Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1631/13.4TBVCT-D.G1-A.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AGUIAR PEREIRA
Descritores: RECLAMAÇÃO
SUCUMBÊNCIA
RECURSO DE REVISTA
CONDENAÇÃO PARCIAL
VALOR DA CAUSA
ACORDÃO DA RELAÇÃO
PEDIDO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: DEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário :
I - A sucumbência mínima a que alude o art. 629.º, n.º 1, do CPC no excerto “a decisão seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal”, apura-se, em regra, através do cotejo entre a pretensão formulada pela parte recorrente e a situação definida pela sentença ou acórdão de que se pretende recorrer.

II - Para efeito de interposição do recurso de revista nos casos de procedência parcial do pedido em 1.ª instância com a qual a parte recorrente se não conformou, o cálculo do valor da sucumbência faz-se tendo como parâmetros o valor do pedido não reconhecido ao autor em primeira instância e o valor económico fixado no acórdão do tribunal da Relação recorrido.

Decisão Texto Integral:

Em nome do POVO PORTUGUÊS, acordam em Conferência os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


֎


RELATÓRIO

INTRODUÇÃO E IDENTIFICAÇÃO DA QUESTÃO

1. BB, CC, DD e EE instauraram acção especial para prestação de contas contra AA (e contra FF e GG que viriam a ser considerados partes ilegítimas e absolvidos da instância), pedindo a sua condenação a prestar contas relativas ao exercício das funções de tutora de HH, interditada por incapacidade para a prática de quaisquer actos e, a final, condenada a pagar aos autores, enquanto herdeiros de HH a importância que da quantia de € 86.197,49 (oitenta e seis mil cento e noventa e sete euros e quarenta e nove cêntimos) não vier a ser aprovada como despesa, acrescida de juros legais a contar da citação, até integral e efectivo pagamento.

Alegaram, em síntese, que entre julho de 2012 e 2019 a primeira ré recebeu e gastou na referida qualidade de sua tutora o dinheiro da pensão auferida pela referida HH, devendo prestar aos autores, seus herdeiros, as contas relativas ao exercício do cargo.


2. Deduzida que foi contestação viria a ser decidido que a ré estava obrigada a apresentar contas do exercício das suas funções de tutora de HH relativas ao período compreendido entre a data da sua nomeação (12 de março de 2014) e a da sua substituição no cargo (15 de novembro de 2015).


3. A ré apresentou, pela forma legalmente prescrita, as aludidas contas, indicando ser a receita total no valor de € 46.218,51 (quarenta e seis mil duzentos e dezoito euros e cinquenta e um cêntimos) e a despesa total no valor de € 71.976,33 (setenta e um mil novecentos e setenta e seis euros e trinta e três cêntimos), havendo, em conformidade um saldo a seu favor no valor de 25.757,82 € (vinte e cinco mil setecentos e cinquenta e sete euros e oitenta e dois cêntimos).


4. Após realização da audiência de julgamento, por sentença proferida a 21 de janeiro de 2021, foi a acção julgada em primeira instância parcialmente procedente, sendo as contas aprovadas relativamente a receitas no valor global de € 57.048,68 (cinquenta e sete mil e quarenta e oito euros e sessenta e oito cêntimos) e a despesas no valor global de € 57.376,24 (cinquenta e sete mil, trezentos e setenta e seis euros e vinte e quatro cêntimos), donde resulta um saldo a favor da ré AA no valor de € 327,56 (trezentos e vinte e sete euros e cinquenta e seis cêntimos).


5. Os autores e a ré AA interpuseram recursos de apelação independentes.

Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães foram os recursos julgados parcialmente procedentes e a sentença proferida em primeira instância parcialmente alterada, sendo, em sua substituição, aprovadas as contas contendo receitas no valor global de € 58.912,68 (cinquenta e oito mil novecentos e doze euros e sessenta e oito cêntimos) e despesas no valor global de € 47.408,54 (quarenta e sete mil quatrocentos e oito euros e cinquenta e quatro cêntimos), tendo a ré AA sido condenada no pagamento aos autores da quantia de € 11.504,15 (onze mil quinhentos e quatro euros e quinze cêntimos).


6. Inconformada a ré interpôs recurso de revista, invocando erro na apreciação das provas e na fixação da matéria de facto em segunda instância e na interpretação e aplicação da lei substantiva.

7. O autor apresentou articulado de resposta defendendo a inadmissibilidade do recurso de revista na medida em que o valor da sucumbência na apelação, correspondente à diferença entre o saldo positivo apurado em primeira instância e o saldo negativo apurado pela decisão impugnada é de € 11.831,71 (onze mil oitocentos e trinta e um euros e setenta e um cêntimos), portanto inferior a metade do valor da alçada do Tribunal da Relação definido no artigo 44.º n.º 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário.


8. O requerimento de interposição do recurso de revista foi indeferido por despacho proferido em 2 de novembro de 2022 pela Senhora Juíza Desembargadora relatora, com o fundamento de o valor sucumbência correspondente ao seu decaimento ser de € 11.831,71 (onze mil oitocentos e trinta e um euros e setenta e um cêntimos), inferior a metade do valor da alçada, e, por isso, impeditivo da admissibilidade do recurso de revista interposto pela ré AA.

Considerou a Senhora Juíza Desembargadora relatora, além disso, que a situação não estava abrangida por norma que previsse a admissibilidade do recurso independentemente do valor da causa ou da sucumbência.

A fundamentação do mencionado despacho assentou na seguinte linha de raciocínio:

A admissibilidade dos recursos ordinários pressupõe, cumulativamente, que a causa em que é proferida a decisão impugnada tenha valor superior ao da alçada do tribunal de que se recorre e que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade do valor da alçada do tribunal recorrido;

Na acção especial de prestação de contas – que tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas e a eventual condenação no saldo que venha a ser apurado – o valor da causa é o da receita bruta ou da despesa apresentada se esta for superior e não o valor da causa que possa ter sido indicado pelo autor/requerente no requerimento inicial;

O valor de referência, para efeitos de cálculo do decaimento em primeira instância é aferido em função do saldo das contas apresentadas pelo réu ou pelo autor, sendo o valor da sucumbência o correspondente à diferença em prejuízo do recorrente entre o saldo das contas apresentadas e o das contas aprovadas pela sentença impugnada;

Já o decaimento em segunda instância é o correspondente à diferença entre o valor do saldo das contas aprovado pela sentença de primeira instância e o valor do saldo aprovado pelo Tribunal da Relação;

A ré apresentou as contas referentes ao período em que exerceu a tutoria, delas resultando um saldo a seu favor no montante de € 25.757,82 (vinte e cinco mil setecentos e cinquenta e sete euros e oitenta e dois cêntimos);

No despacho saneador foi fixada à acção o valor de € 71.976,33 (setenta e um mil novecentos e setenta e seis euros e trinta e três cêntimos), o qual não foi alterado na sentença;

A sentença de primeira instância, proferida após audiência de julgamento, aprovou as contas em relação a receitas no valor de € 57.048,68 (cinquenta e sete mil e quarenta e oito euros e sessenta e oito cêntimos) e a despesas no valor global de € 57.376,24 (cinquenta e sete mil trezentos e setenta e seis euros e vinte e quatro cêntimos) de que resultava um saldo a favor da ré de € 327,56 (trezentos e vinte e sete euros e cinquenta e seis cêntimos);

No âmbito dos recursos de apelação interpostos pelo autor e pela ré foram aprovadas as receitas no valor global de € 58.912,68 (cinquenta e oito mil novecentos e doze euros e sessenta e oito cêntimos) e as despesas no valor global de € 47.408,54 (quarenta e sete mil quatrocentos e oito euros e cinquenta e quatro cêntimos), sendo a ré condenada no pagamento aos autores do saldo apurado no valor de € 11,504,15 (onze mil quinhentos e quatro euros e quinze cêntimos);

O decaimento da ré em segunda instância, correspondente à diferença entre o saldo de € 327,56 (trezentos e vinte e sete euros e cinquenta e seis cêntimos) favorável à ré reconhecido na sentença de primeira instância e o saldo final de € 11,504,15 (onze mil quinhentos e quatro euros e quinze cêntimos) a favor dos autores fixado pelo Tribunal da Relação é de € 11.831,71 (onze mil oitocentos e trinta e um euros e setenta e um cêntimos);

Atendendo ao valor da causa nada obsta à admissibilidade do recurso de revista;

Sendo, porém, o valor da sucumbência da ré em segunda instância inferior a metade do valor da alçada do Tribunal da Relação, o recurso de revista é inadmissível.


9. Inconformada com o teor de tal decisão a ré AA apresentou reclamação para o Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto no artigo 643.º n.º 1 do Código de Processo Civil.

Da reclamação em causa extrai-se o seguinte discurso argumentativo cuja parte conclusiva se reproduz:

“Ocorre que, a Ré Recorrente, não se conformou com a procedência parcial, vantagem parcial, que obteve em Primeira Instância, designadamente, com a condenação do Autor a pagar-lhe apenas a quantia de € 327,56 e, por ser assim, interpôs Recurso de Apelação, pugnando pela substituição da decisão por outra que condenasse o Autor a pagar-lhe € 24.768,03,

Portanto, a admitir-se que a Ré tacitamente se conformou com algum prejuízo (decaimento), foi apenas, o correspondente à diferença entre o valor peticionado em primeira instância (€ 25.757,82) e aquele que concluiu na sua apelação (€ 24.768,03), portanto € 989,79.

Nunca a Ré se conformou com a vantagem de € 327,56, ou que seja o decaimento de € 24.768,03!

Portanto, não pode, pois, concluir-se que ao ter Tribunal da Relação fixado a favor dos Autores o valor de € 11.504,15, a Ré decaiu no valor de € 11.831,71 (€ 11.504,15 + € 327,56), pois que, tal apenas colheria no caso de a Ré não ter interposto recurso da Decisão de Primeira Instância e, desta feita, ter-se conformado com a vantagem de € 327,56, que não sucedeu!

Acresce que, o acórdão objeto do recurso, além de não reconhecer à Ré o saldo a seu favor de € 24.768,03, valor pelo qual pugnou em sede de apelação, concluiu pelo apuramento de um saldo em favor dos Autores no valor de € 11.174,34, pelo que o valor da sucumbência da Ré/Recorrente haverá de ser determinado na medida, por um lado, do que lhe veio negado e que se arrogou com direito e, por outro, as obrigações impostas que sustenta não estar vinculada, concluindo-se assim que, com a Decisão Recorrida a Ré decaiu em € 35.942,37 (24.768,03 + 11.174,34).

Assim, temos que, a sucumbência relevante da recorrente foi de € 35.942,37, valor este superiora metade da alçada da Relação, pelo que, deverá o despacho proferido ser substituído por outro que considere pela admissibilidade do Recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça.”


10. Por despacho do relator do presente acórdão datado de 2 de janeiro de 2023 foi indeferida a reclamação apresentada e mantido o despacho reclamado da Sr.ª Juíza Desembargadora do Tribunal da Relação de Guimarães, nos seguintes termos:

“Nos termos, com os fundamentos atrás expostos e ao abrigo do disposto no artigo 643.º n.º 4 do Código de Processo Civil, indefiro a reclamação apresentada pela ré AA contra o despacho da Senhora Juíza Desembargadora relatora que não admitiu, com base no valor da sucumbência e ao abrigo do disposto na parte final do artigo 629.º n.º 1 do Código de Processo Civil , o recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30 de junho de 2022 (rectificado por acórdão de 29 de setembro de 2022) mantendo-se, em conformidade, o despacho reclamado.”

Fundamentou-se a decisão em causa na conclusão de que o valor da sucumbência da ré em segunda instância era, efectivamente, e em linha com o despacho reclamado, inferior a metade do valor da alçada do Tribunal recorrido.


11. Tendo sido notificada do teor de tal decisão singular do relator a ré AA requereu ao abrigo do disposto no artigo 652.º n.º 3 do Código de Processo Civil, que sobre a matéria da decisão singular recaísse acórdão.

Alega para tanto, em síntese, o seguinte, na parte conclusiva do seu requerimento:

“17. Salvo o devido respeito, que é muito, o entendimento, adotado no Despacho que ora se pretende submeter à apreciação da Conferência, que faz corresponder a medida da sucumbência da parte que pretenda interpor recurso de revista à diferença entre “os valores arbitrados na sentença de 1.ª instância e no acórdão da Relação”, sem qualquer interferência ou ponderação do valor do pedido, configura, IN CASU, ilegal e restritiva interpretação e aplicação do nº 1 do artigo 629º do CPC, e bem assim, do Acórdão para Uniformização do Supremo Tribunal de Justiça 10/2015 e, sempre, manifesta inconstitucionalidade, por violação do art. 32.º, n.º 1, da CRP, que prevê o direito ao recurso como garantia de defesa!

18. Aliás, na adoção do entendimento sufragado no Acórdão para Uniformização do Supremo Tribunal de Justiça 10/2015, não poderia – com o devido respeito - o Senhor Juiz Conselheiro Relator, desconsiderar, como já vinha sendo desconsiderado, que a situação que esteve na sua base é bem distinta da dos presentes autos, já que, no mesmo a parte que pretendeu interpor recurso de revista, não interpôs recurso de apelação da decisão proferida em Primeira Instância, pelo que, o valor ali fixado considerou-se tacitamente aceite porque não impugnado, pelo que, se a parte aceita o dano da improcedência total ou parcial, não recorrendo oportunamente, a questão fica resolvida, não podendo posteriormente ser ressuscitado esse decaimento e, como tal, nessas situações e, apenas nessas, se pode concluir que, conformando-se uma parte com o valor da condenação na 1ª instância e procedendo parcial ou totalmente a apelação interposta pela outra parte, a medida da sucumbência da apelada, para efeitos de ulterior interposição do recurso de revista, corresponde à diferença entre os valores arbitrados na sentença de 1ª instância e no acórdão da Relação.

19. Acresce que, diferentemente do considerado pela Decisão ora impugnada, a Recorrente/Reclamante não visou tão-só a adoção daquele que foi o entendimento suportado nas considerações tecidas nas declarações de voto vencido do Senhor Conselheiro Pires da Rosa, de acordo com o qual a sucumbência deverá ser aferida em função do valor do pedido formulado, pois que, bem sabe a Recorrente/Reclamante ser o mesmo alheio às situações de aceitação total ou parcial, por não interposição de recurso da decisão de 1.ª instância, pelo que, nessas situações, a medida da sucumbência da apelada, para efeitos de ulterior interposição do recurso de revista, corresponde à diferença entre os valores arbitrados na sentença de 1ª instância e no acórdão da Relação.

20. Ainda assim, a situação que ora nos ocupamos, conforme veio evidenciada, É BEM DIFERENTE!

21. Pois que, a Recorrente/Reclamante NUNCA se conformou com o valor fixado pela decisão da 1ª instância e, depois, com a condenação que resultou do Acórdão da Relação,

22. Pelo que, não pode, pois, simplesmente, fazer-se TÁBUA RASA daquele que foi o valor peticionado pela Recorrente/Reclamante, como que, se a mesma tivesse aceitado a improcedência parcial do pedido - QUE APENAS SE DEVE ENTENDER COM BASE NA NÃO INTERPOSIÇÃO DE RECURSO NO TEMPO PROCESSUALMENTE DEVIDO!

23. A Recorrente/Reclamante em momento algum aceitou as decisões anteriores, que impugnou: primeiro a improcedência parcial do pedido pela Sentença da Primeira Instância e, depois, a condenação do Acórdão do Tribunal da Relação.

24. Aliás, naquele mesmo citado AUJ, exceciona-se nitidamente de tal entendimento a situação submetida à apreciação do Ac. STJ de 11-07-2013 (Revista n.º 105/08.0TBRSD.P1-A.S1), “E foi essa aceitação que não se verificou no caso tratado no Ac. STJ de 11- 07-2013 (Revista n.º 105/08.0TBRSD.P1-A.S1) invocado pelas recorridas.

Como se alcança do respectivo relato, aí o demandante impugnou sempre os montantes indemnizatórios fixados na 1.ª instância e no Acórdão da Relação.”

25. E, nesse mesmo Ac. STJ de 11-07-2013 (Revista n.º 105/08.0TBRSD.P1-A.S1) veio a considerar-se na linha do entendimento da Recorrente/Reclamante que, não se conformando a parte vencida com a decisão de Primeira Instância e, depois, da Relação, a sucumbência para efeitos de Recurso de Revista é aferida pelo diferencial entre o valor peticionado e o montante obtido no acórdão que se pretende impugnar), “Ora, revelando tal situação processual uma efetiva divergência ou dissonância das instâncias sobre um elemento ( o montante da indemnização) essencial para o interesse das partes – e continuando a parte que pretende recorrer, embora relativamente beneficiada com o teor do acórdão da Relação, a configurar-se como parte vencida, por a ampliação obtida ser ainda substancialmente inferior ao montante peticionado, sendo a sucumbência ( ou seja, o diferencial entre o valor peticionado e o montante obtido no acórdão que se pretende impugnar) superior a metade da alçada da Relação, nos termos previstos no nº1 do art. 678º do CPC, nada obstará à interposição de revista normal.”

POIS BEM,

26. Os Autores, na p.i., indicaram o valor de € 5.001,00 como sendo o valor da ação,

27. A Ré não impugnou a obrigação de prestar contas e apresentou-as indicando um saldo a seu favor de € 25.757,82, senda esta, a vantagem patrimonial que pretendia obter na demanda.

28. No despacho saneador foi fixado à ação o valor de € 71.976,33, correspondente às despesas apresentadas pela requerida que são superiores às receitas;

29. Na sentença foram aprovadas receitas no valor global de € 57.048,68 e despesas no valor global de € 57.376,24, decidindo-se pela condenação do Autor no pagamento à Ré de € 327,56.

30. A Ré/Recorrente, ora Reclamante, não se conformou com a procedência parcial que obteve em Primeira Instância, designadamente, com a condenação dos Autores a pagar-lhe a quantia de €327,56 e, por ser assim, interpôs Recurso de Apelação, pugnando pela substituição da decisão, por outra que condenasse os Autores a pagar-lhe €24.768,03, portanto a admitir-se que a Ré tacitamente se conformou com algum prejuízo (decaimento), foi apenas, o correspondente à diferença entre o valor peticionado em primeira instância (€25.757,82) e aquele que concluiu na sua apelação (€24.768,03), portanto €989,79.

31. Portanto, não pode, pois, concluir-se que ao ter Tribunal da Relação fixado a favor dos Autores o valor de €11.504,15, a Ré decaiu no valor de €11.831,71 (€11.504,15 + €327,56), pois que, tal apenas colheria, caso a Ré não tivesse interposto recurso da Decisão de Primeira Instância e, desta feita, ter-se conformado com a vantagem de € €327,56, que não sucedeu!

32. Acresce que, o acórdão objeto do recurso, além de não reconhecer à Ré o saldo a seu favor de €24.768,03, concluiu, pelo apuramento de um saldo em favor dos Autores no valor de €11.174,34, pelo que o valor da sucumbência haverá de ser considerado, atento, por um lado, o valor, cuja vantagem patrimonial não logrou alcançar e, bem assim, aquele em que veio condenada ao pagamento, concluindo-se assim que, com a Decisão Recorrida a Ré decaiu em € 35.942,37 (24.768,03 + 11.174,34).

33. Assim, temos que, a sucumbência relevante da recorrente foi, sem margem de dúvidas, de € 35.942,37, valor este superior a metade da alçada da Relação, pelo que, deverá o despacho proferido ser substituído por outro que considere pela admissibilidade do Recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça.”

Conclui pedindo que “sobre a matéria do Decisão Singular proferida pelo Senhor Juiz Conselheiro Relator recaia um acórdão que, em sua substituição, decida pelo deferimento da reclamação apresentada pela ré AA, admitindo, ao abrigo do disposto na parte final do artigo 629.º n.º 1 do Código de Processo Civil, o Recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça, do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30 de junho de 2022.”


12. O reclamado / recorrido BB pronunciou-se sobre a questão tendo formulado as seguintes conclusões:

“A- Veio a recorrente requerer que sobre a decisão singular de não admissão do recurso de revista proferido pelo Senhor Juiz Conselheiro Relator seja proferido acórdão por discordar com os fundamentos dessa decisão que manteve o anterior despacho de não admissão do recurso proferido pela Senhora Juíza Desembargadora relatora do Tribunal da Relação.

B- A recorrente discorda com o entendimento de que o valor relevante para efeitos de sucumbência seja obtido pela diferença entre o valor fixado no acórdão do Tribunal da Relação recorrido e o valor fixado na sentença da 1ª instância.

C- Pois que entende que devido ao facto de não se ter conformado com a decisão proferida pela 1ª instância, tendo interposto recurso dessa decisão, que o valor da sucumbência deva ser obtido pela diferença entre o valor fixado pelo acórdão do Tribunal da Relação e o pedido formulado em sede de PI, fazendo tábua rasa da existência da sentença proferida em sede de 1ª instância.

D- Para sustentar essa sua posição argumenta que a situação que esteve na base do acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 10/2015 é distinta da dos presentes autos já que naquele acórdão Uniformizador a parte que pretendeu interpor recurso de revista não tinha interposto recurso de apelação da decisão proferida em 1ª instância, aceitando a parte recorrente o valor aí fixado nessa sentença.

E- Assim, por ter recorrido da decisão proferida em sede de 1ª instância defende que o valor da sucumbência há de ser obtido pela diferença entre o pedido formulado em sede de PI e a decisão recorrida proferida pelo Tribunal da Relação.

F- Ora, o artigo 629º, n.º 1, do CPC é claro e não oferece quaisquer dúvidas de interpretação ao referir que a decisão desfavorável ao recorrente que tem de ter valor superior a metade da alçada do tribunal para o qual se recorre é a decisão impugnada.

G- No caso de recurso de apelação não há dúvidas que a decisão impugnada seja a decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância e a sucumbência obtém-se pela diferença entre o valor da decisão da 1ª instância com o valor do pedido formulado em sede de PI.

H- Ora, no caso de recurso de revista dúvidas também não há de que a decisão impugnada seja a decisão proferida pelo Tribunal da Relação.

I- Pelo que a sucumbência terá forçosamente de se obter pela diferença entre o valor da decisão da 2ª instância com o valor da decisão da 1ª instância, pois que a decisão impugnada – o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação – veio conformar ou alterar a decisão da 1ª instância.

J- Não pode ser outra a forma de calcular a sucumbência porque é a única interpretação que tem sustento na lei.

K- Para a recorrente calcular-se-ia o valor de sucumbência para efeitos de recurso de revista de diferentes formas consoante a parte recorrente (de revista) tenha ou não recorrido da decisão proferida pela Relação.

L- Com efeito defende a recorrente que se a parte que pretende recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça não recorreu do acórdão da Relação, o valor da sucumbência obtém-se pela diferença entre o valor da 2ª instância com o valor da 1ª instância enquanto que se a parte recorreu do acórdão da Relação, o valor da sucumbência já seria obtido pelo valor da 2ª instância com o valor do pedido.

M- Ora, a lei não faz essa distinção.

N- E nem o acórdão Uniformizador de jurisprudência n.º 10/2015 referido pela recorrente faz essa distinção.

O- Pois que o acórdão Uniformizador não refere que se a recorrente de revista também interpôs recurso de apelação, não se conformando com a decisão da 1ª instância, que o valor da sucumbência é calculado de forma diferente daquela que seria calculada se não tivesse interposto recurso de apelação.

P- A recorrente confunde o facto de se ter ou não conformado com uma decisão com o facto dessa decisão lhe ser ou não desfavorável.

Q- A medida do decaimento, do prejuízo para a parte, é calculado com base na concreta decisão que veio alterar a sua posição jurídica definida pelas sentenças anteriormente proferidas e não com a conformação ou não das partes com essa mesma decisão.

R- Pois que o acórdão da Relação veio pronunciar-se sobre o que foi fixado em sede de sentença da 1ª instância e não sobre o pedido da ação.

S- Assim, forçosamente, o decaimento para a recorrente terá de ser calculado entre o valor fixado pela 2ª instância com o valor fixado na 1ª instância.

T- O decaimento é a medida da posição jurídica que foi alterada pela decisão impugnada e isto independentemente da parte recorrente de revista ter ou não interposto recurso de apelação.

U- Motivos pelos quais, não se verifica no caso concreto o critério da sucumbência, devendo manter-se os despachos de não admissão do recurso proferidos na medida em que o decaimento da decisão impugnada foi de € 11.831,71, correspondente a diferença entre o saldo positivo de € 327,56 da sentença da 1ª instância e o saldo negativo de € 11.504,15 da decisão impugnada.”


֎


13. Colhidos os Vistos dos Senhores Juízes Conselheiros que intervêm no julgamento em conferência cumpre apreciar e decidir, tal como requerido, emitindo pronúncia colectiva acerca da admissibilidade do recurso de revista interposto pela ré AA em relação ao acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30 de junho de 2022 (rectificado por acórdão de 29 de setembro de 2022).

A questão que vem colocada é a da eventual existência de sucumbência da ré impeditiva da subida dos autos à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do recurso de revista que interpôs.


֎


FUNDAMENTAÇÃO

1. Os factos com relevância para a decisão a tomar nesta sede sobre a verificação da sucumbência decorrente do acórdão que a ré pretende impugnar emergem já do antecedente relatório e são, especificamente, os seguintes:

- na acção especial para prestação de contas, a ré apresentou contas relativas ao exercício das funções de tutora de HH entre 12 de março de 2014 e 15 de novembro de 2015, indicando haver um saldo a seu favor no valor de 25.757,82 € (vinte e cinco mil setecentos e cinquenta e sete euros e oitenta e dois cêntimos).

- por sentença proferida em primeira instância foram as contas apresentadas parcialmente aprovadas, apurando um saldo a favor da ré no valor de € 327,56 (trezentos e vinte e sete euros e cinquenta e seis cêntimos).

- tendo sido interposto recurso de apelação pelos autores e pela ré pelo Tribunal da Relação de Guimarães foi alterada a sentença de primeira instância e aprovadas as contas quanto a um saldo favorável aos autores no valor de € 11.504,15 (onze mil quinhentos e quatro euros e quinze cêntimos) que a ré foi condenada a pagar.


2. Está em causa saber se ocorre sucumbência da ré AA, ora reclamante, com a prolação do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães que, pelo seu valor económico, obste à interposição do recurso de revista nos termos previstos na segunda parte do artigo 629.º n.º 1 do Código de Processo Civil.


3. Conforme tem decidido de modo uniforme o Tribunal Constitucional o princípio com assento na Constituição da República Portuguesa que consagra o acesso ao direito e aos tribunais como direito fundamental não comporta a possibilidade de recurso de todas as decisões proferidas pelos Tribunais nem que o direito ao recurso – quando reconhecido pela lei ordinária – implique em todos os casos o acesso a todos os níveis de jurisdição desde a primeira instância ao Supremo Tribunal de Justiça.

Nessa conformidade é perfeitamente admissível que a lei ordinária regulamente e defina as situações em que, em concreto, a ponderação dos interesses económicos ou de outra ordem em jogo justifica – ou não – e até que ponto, a apreciação do caso pelos Tribunais de Segunda e de última instância.


4. O legislador infraconstitucional estabeleceu, nesse enquadramento, desde há muito, critérios objectivos de admissibilidade de impugnação ordinária das decisões judiciais através, nomeadamente, da definição do valor da causa em matéria cível em conjugação com a prévia definição legal do valor das alçadas dos tribunais.

O valor da causa constitui um dos pressupostos gerais de admissibilidade dos recursos com base na ideia de que não constitui restrição relevante do acesso à justiça e aos tribunais a irrecorribilidade da decisão de uma causa quando ela não apresente um conteúdo económico que justifique a intervenção do sistema de administração da justiça, a qual só deverá ocorrer a partir de um determinado nível.

O que é pacífico na jurisprudência do Tribunal Constitucional.


5. O legislador ordinário introduziu, na reforma intercalar do processo civil de 1985, como requisito indispensável de admissibilidade dos recursos ordinários o critério da sucumbência mínima que assim poderia ser enunciado: para que o vencido na causa possa interpor recurso ordinário o decaimento na sua pretensão tem de ser sempre superior a metade do valor da alçada do Tribunal recorrido.

O artigo 629.º n.º 1 do Código de Processo Civil estabelece tal princípio sobre a admissibilidade dos recursos ordinários nos seguintes termos:

“1 — O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal (…)” [1].


6. A ausência de uma definição legal do conceito de sucumbência, nomeadamente para o efeito consignado na segunda parte do artigo 629.º n.º 1 do Código de Processo Civil, levantou na jurisprudência dúvidas sobre as condições em que se deve ter por verificado tal requisito.

Na sequência de tais dúvidas a que o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2005 (Acórdão de 14 de maio de 2015 publicado no DR I Série de 26 de junho de 2015) procurou dar resposta, foi estabelecida jurisprudência uniformizada da forma seguinte:

"Conformando-se uma parte com o valor da condenação na 1ª instância e procedendo parcial ou totalmente a apelação interposta pela outra parte, a medida da sucumbência da apelada, para efeitos de ulterior interposição do recurso de revista, corresponde à diferença entre os valores arbitrados na sentença de 1ª instância e no acórdão da Relação".


7. O Acórdão para Uniformização de Jurisprudência 10/2015 debruçou-se sobre uma situação peculiar e o seu segmento uniformizador de jurisprudência e respectiva fundamentação não excluem a interpretação segundo a qual o valor da sucumbência – a medida em que a decisão recorrida foi desfavorável à parte que pretende interpor recurso – se traduz sempre numa diferença para menos entre um valor inicial (que tanto pode ser o valor do pedido como o valor definido na sentença de primeira instância com a qual não se conforma) e o valor da decisão de que se recorre (que, conforme o caso pode ser a sentença de primeira instância ou o acórdão do Tribunal da Relação).


8. Como se dá conta no mencionado acórdão uniformizador “a sucumbência relevante para aferir a recorribilidade consiste (…) numa diferença entre as situações jurídicas delimitadas pela decisão de que se pretende recorrer (antes e depois dela), ou seja, numa modificação negativa (para pior...) da situação jurídica pré-existente à decisão que se pretende impugnar”.

Tal diferença tem como elementos da operação tendente a apurar a sua medida:

- no caso de se tratar de recurso de apelação, o valor do pedido inicial formulado na acção e a situação jurídica criada pela sentença de primeira instância;

- no caso de se tratar de recurso de revista, a situação jurídica criada pela sentença proferida em primeira instância e a que é criada pela decisão proferida pelo Tribunal de segunda instância.

Assim, “quando a decisão recorrida é a sentença de 1.ª instância o valor da sucumbência será calculado em relação ao valor do pedido formulado e, quando se interpuser recurso de um acórdão da Relação – sendo aí, como se sabe, o objecto do recurso constituído por decisão da 1.ª instância – o valor da sucumbência é sempre calculado com referência àqueloutra decisão e ao acórdão da Relação”.

Mas a simplicidade da enunciação da questão não é isenta de dúvidas.


9. Numa abordagem puramente semântica do conceito de sucumbência não pode deixar de se considerar a sua equivalência com a noção comum de perda ou supressão do benefício que a parte requereu ao tribunal.

Se o autor requer que lhe seja reconhecido o direito a haver cem unidades do réu e o tribunal lhe concede dez a sua sucumbência / prejuízo é de noventa unidades.

Para o autor a sucumbência equivale sempre à diferença, para si desfavorável, entre o valor do pedido formulado e o valor obtido na decisão de que se interpõe recurso.

Como se salienta em comentário ao Acórdão para Uniformização de Jurisprudência 10/2015, publicado pela Professora Maria José Capelo nos “Cadernos de Direito Privado” n.º 54 a página 29 e seguintes, o valor do pedido num regime processual civil como o nosso assente no princípio do dispositivo não pode ser menosprezado no cálculo da sucumbência em primeira como em segunda instância.

O valor do pedido constitui o primeiro parâmetro de medição do eventual prejuízo do autor, caso não seja dada procedência, total ou parcial, à sua pretensão.


10. E se é assim, não podem restar dúvidas em como o valor da sucumbência mínima para efeito de interposição do recurso de apelação tem de ser encontrado na diferença entre o que o autor pede (primeiro parâmetro) e o que a sentença de que recorre lhe reconhece (segundo parâmetro).

Para efeito de interposição do recurso de revista também não restam dívidas em considerar como segundo parâmetro do cálculo do prejuízo do recorrente, isto é, para cálculo da sucumbência, o valor fixado pelo Acórdão do Tribunal recorrido.


11. As dúvidas acabam então por se resumir a saber se o outro parâmetro do cálculo do valor da sucumbência continua a ser, no caso de interposição do recurso de revista, o valor do pedido formulado pelo autor ou, em alternativa, o valor do direito reconhecido e fixado na sentença de primeira instância.


12. O segmento uniformizador do Acórdão para Uniformização de Jurisprudência 10/2015 não dá resposta clara a esta questão, parecendo apontar no sentido de que os elementos relevantes para cálculo do valor da sucumbência para efeitos de interposição do recurso de revista são sempre o valor definido pela sentença proferida em primeira instância e o valor do direito reconhecido no acórdão do Tribunal da Relação recorrido – esse é pelo menos o teor literal do segmento uniformizador ainda que restrito à hipótese nele descrita.


13. O Acórdão para Uniformização de Jurisprudência 10/2015, ao menos no seu segmento uniformizador, desconsidera, por conseguinte, o valor do pedido formulado pelo autor, ao mesmo tempo que introduz como elemento interpretativo na busca da definição conceptual da sucumbência mínima a conduta processual da parte recorrente e a renúncia tácita ou expressa ao direito ao recurso [2].


14. Não oferece dúvida que, quando a acção é julgada apenas parcialmente procedente em primeira instância, a sucumbência do autor é limitada ao valor do direito ou da parte dele não atribuído ou reconhecido na sentença, já que, quanto ao mais a parte recorrente obteve ganho de causa.

Fácil é nesse caso concluir que a medida do prejuízo sofrido, isto é, da sucumbência na acção se encontra, calculando a diferença entre o que foi pedido pelo autor e o que lhe foi atribuído/reconhecido.


15. Em coerência com a autonomia reconhecida pela lei processual civil para diversos efeitos entre a fase da acção e a fase dos recursos, o cálculo do valor da sucumbência em segunda instância, isto é, a avaliação do prejuízo sofrido pelo recorrente nesta fase, há-de ter por referência a diferença entre o decidido na sentença de primeira instância e no acórdão do Tribunal de segunda instância que a reapreciou.

O valor da sucumbência para efeito de interposição de recurso de revista reporta-se ao prejuízo que a decisão de segunda instância importa para o recorrente, sendo este naturalmente aferido pelo teor da alegação de recurso e pretensão nele formulada, equivalendo esta à utilidade económica que através do recurso se pretende obter.


16. No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de setembro de 2007 (processo 06S4612 consultável em www.dgsi.pt ), citando acórdão também do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de julho de 2006 (processo 895/06-4), salientou-se que  subjacente à exigência da medida da sucumbência encontra-se a repercussão económica da decisão recorrida para a parte vencida, na perspectiva desta, que pode, no requerimento de interposição do recurso, restringi-lo a qualquer dos segmentos decisórios da decisão impugnada e, nas conclusões da alegação, restringir o objecto inicial do recurso, sendo que os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso. E é a dimensão do valor do objecto do recurso que justifica ou exclui o conhecimento pelos tribunais superiores, sabido que as razões de política legislativa que determinaram a introdução da regra de sucumbência se prendem com a necessidade de “não sobrecarregar os tribunais superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas por tribunais inferiores – sob pena de o número daqueles ter de ser equivalente ao dos tribunais de 1.ª instância e com a consequente dispersão das tendências jurisprudenciais”.


17. Tratando-se de um critério formal de fixação do valor da sucumbência relevante apenas para aferir da recorribilidade do acórdão de segunda instância e tendo presente a sua razão de ser e a politica legislativa que levou à introdução do requisito da sucumbência mínima, não obsta ao que vem de ser dito a circunstância de não ter ainda transitado em julgado a sentença de primeira instância, na parte que tiver sido impugnada, para fazer valer como parâmetro de avaliação da sucumbência mínima o valor do pedido formulado pelo autor que poderá, ou não, ser ainda atendido em última instância.

Persiste, no entanto, uma fundada dúvida sobre se uma tal interpretação do conceito de sucumbência em segunda instância avaliada pela diferença entre o direito reconhecido em primeira e segunda instância – que foi a adoptada no despacho singular do relator ora em apreciação – não conduz a uma injustificada restrição do direito ao recurso.

Não pode, de facto, deixar de se reconhecer pertinência à argumentação da corrente de opinião que, atribuindo mais relevância ao valor da causa, pondera ser no confronto dele (valor da causa ou do pedido) com o que foi obtido na decisão recorrida (em primeira ou segunda instância), que deve ser aferido o valor da sucumbência mínima para efeito do disposto no artigo 629.º n.º 1 do Código de Processo Civil: o prejuízo do autor (sucumbência real) estabelece-se pela diferença entre o que ele pediu e o que lhe foi reconhecido.


18. Por outro lado é um facto que, sendo impugnada a decisão de primeira instância quanto à parte do pedido que o autor não viu reconhecida, o conhecimento do objecto do recurso de apelação se estende a todo o pedido formulado fazendo com que, como defende Maria José Capelo no já citado comentário ao Acórdão para Uniformização de Jurisprudência 10/2015, se mantenha em aberto a possibilidade de vir a ser reconhecido ao recorrente todo o valor por si peticionado.

Daí que se compreenda a relevância desse elemento (valor do pedido) enquanto termo de comparação com o valor decidido no acórdão de segunda instância recorrido.


19. Porque não se trata de uma típica “fundada dúvida acerca do valor da sucumbência” prevista no artigo 629.º n.º 1 do Código de Processo Civil, a persistência da dúvida atrás enunciada justifica que se adopte um critério prático de determinação do valor da sucumbência que viabilize a apreciação do recurso de revista neste Supremo Tribunal de Justiça com base na mais recente doutrina sobre a matéria [3], aproveitando na medida do possível o teor do Acórdão para Uniformização de Jurisprudência 10/2015.


Termos em que se reequaciona, em conferência, a decisão singular do Juiz Conselheiro relator, analisando a situação debatida nestes autos à luz do entendimento segundo o qual, quando a parte pretende interpor recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação que apreciou sentença que deferiu apenas parte do pedido que formulou, o cálculo da sucumbência mínima para efeito do disposto no artigo 629.º n.º 1 do Código de Processo Civil, se faz apurando a diferença entre o valor do pedido não reconhecido na sentença proferida em primeira instância com o qual a parte se não conformou e o valor do direito que lhe foi reconhecido no acórdão recorrido que a substituiu.


20. Ora o que ressalta dos autos?

O recurso de revista foi interposto numa acção especial para prestação de contas.

Neste tipo de acção a pretensão do autor dirige-se à prestação das contas, sendo estas, quando apresentadas, que permitem calcular o valor do pedido em função do saldo apresentado e o valor da causa (artigo 298.º n.º 4 do Código de Processo Civil).

A ré AA, ora recorrente, apresentou as contas que eram pedidas pelos autores e de que resultava – segundo as contas que apresentou – um saldo a seu favor no montante de € 25.757,82 (vinte e cinco mil setecentos e cinquenta e sete mil euros e oitenta e dois cêntimos).

Vista a especificidade da acção de prestação de contas é esse o valor correspondente ao valor do pedido que quem apresenta as contas entende ser devido.

Após julgamento, a sentença proferida em primeira instância apurou um saldo a favor da ré recorrente diferente, reconhecendo ser-lhe devida apenas a quantia de 327,56 (trezentos e vinte e sete euros e cinquenta e seis cêntimos), não lhe reconhecendo o direito aos restantes € 25.424,96 (vinte e cinco mil quatrocentos e vinte e quatro euros e noventa e seis cêntimos).

O Tribunal da Relação de Guimarães, na procedência parcial dos recursos de autor e ré, apurou um saldo final das contas em que as receitas superaram as despesas e condenou a ré a pagar a quantia de € 11,504,15 (onze mil quinhentos e quatro euros e quinze cêntimos).


21. Para efeito de interposição do recurso de revista, os elementos relevantes para efeito de cálculo do valor da sucumbência da ré AA são, nos termos atrás expostos, o valor do pedido que não lhe foi reconhecido na sentença proferida no Juízo Local Cível ... (diferença entre o saldo apresentado pela ré e o valor apurado em primeira instância – 25.757,82 € – 327,56 € = 25.430,26 €) e com o qual a ré se não conformou e o valor do direito reconhecido aos autores pelo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães – 11.504,15 €.

A sucumbência da ré na presente acção e para efeito de interposição do recurso de revista corresponde à diferença entre o valor do saldo não reconhecido em primeira instância e o valor do saldo de 11.504,15 euros a favor dos autores, sendo que ambas as decisões foram desfavoráveis à ré em valor cuja soma excede o valor da alçada do Tribunal da Relação.


22. Em conclusão, de acordo com o entendimento acima enunciado – e ao qual o relator de ambas as decisões, revendo a sua posição inicial, após debate, adere – apura-se um valor de sucumbência da ré AA superior ao valor da sucumbência mínima prevista no artigo 629.º n.º 1 do Código de Processo Civil.

Nada mais a tal obstando o recurso de revista interposto deve ser admitido, requisitando-se para o efeito o processo principal ao Tribunal recorrido.


֎


DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos atrás expostos, decidem em conferência:

- revogar a decisão singular do Juiz Conselheiro relator datada de 2 de janeiro de 2023;

- deferir a reclamação apresentada pela ré AA contra o despacho da Senhora Desembargadora relatora que não admitiu o recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30 de junho de 2022 (rectificado por acórdão de 29 de setembro de 2022), o qual igualmente revoga;

- considerar admissível em função do valor da causa e da sucumbência a revista interposta pela ré AA;

- ordenar, ao abrigo do disposto no artigo 643.º n.º 6 do Código de Processo Civil, a requisição do processo principal ao Tribunal da Relação de Guimarães.

Notifique.

D. N.


Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 28 de fevereiro de 2023


Manuel José Aguiar Pereira (Relator)

Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor

António Pedro de Lima Gonçalves

______________________________________________________________________

[1] Tal justificação foi assim expressa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de maio de 2015 que adiante melhor se analisará, nos termos seguintes: “(…), entendeu-se, por razões de política legislativa, que um prejuízo de valor igual ou inferior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão era insignificante e não justificava o investimento de meios humanos e materiais nos Tribunais Superiores que a interposição, tramitação e julgamento de um recurso implicava e, por isso, condicionou-se a admissibilidade do recurso à verificação desse valor mínimo.”

[2] Solução que a doutrina, pela pena de Ferreira de Almeida – Direito Processual Civil II Volume a páginas 483 da 2.ª edição (Almedina – 2022) e Maria José Capelo (local citado) criticaram.

[3] Ferreira de Almeida (obra e local citado identifica sucumbência com a diferença entre o valor da causa e o obtido na decisão de que se interpõe recurso e Maria José Capelo considera que se enquanto a decisão de primeira instância não transitar em julgado o valor da sucumbência corresponderá à diferença entre o valor peticionado e o montante obtido no acórdão recorrido.