Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
368/09.3GAABF.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: EXAME
TOXICODEPENDÊNCIA
INIMPUTABILIDADE
CULPA
ILICITUDE
AUTORIA
CO-AUTORIA
CAUSALIDADE ADEQUADA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CONCURSO DE INFRACÇÕES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
BEM JURÍDICO
MEDIDA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 03/31/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário : I -O exame a que se reporta o art. 52.º do DL 15/93, de 22-01 tem por finalidade primeira, como resulta dos respectivos trabalhos preparatórios, determinar o grau de imputabilidade do arguido no momento da prática do crime e, em segundo lugar, avaliar do seu estado (de eventual toxicodependência) actual para efeito de aplicação da medida mais apropriada.
II - Numa interpretação literal do preceito poderia concluir-se que basta fazer chegar a autoridade judiciária que superintende no processo a «notícia» de que o arguido era toxicodependente no momento da consumação do crime para desencadear a realização urgente desta perícia. Tal pressuposto tem, porém, que ser objecto de algum cuidado de forma a evitar a prática de actos inúteis, de expedientes ou manobras dilatórias, pelo que se entende que a mesma «notícia» deve ser fundamentada e, por outro lado, não existirem elementos que apontem para um expediente inútil ou com o fim de ludibriar tribunal.
III - A capacidade de culpa é o primeiro dos elementos sobre o qual se fundamenta o juízo de culpabilidade. A capacidade de culpa deve concorrer para que a decisão de cometer o facto possa resultar em definitivo censurável. Só quem chegou a uma determinada idade, e não padece de perturbação da vontade, possui aquele mínimo de capacidade de autodeterminação que ordenamento jurídico requer para a responsabilidade jurídico-penal.
IV - Assim, impõe-se a equação científica do estado de dependência da droga perante a culpa pela prática do crime.
V -O estado em que se encontra o toxicodependente pode, assim, impedi-lo de compreender a ilicitude do facto e actuar conforme a essa compreensão. Tal estado é tanto mais evidente quanto mais próximo estamos de situações de síndrome de abstinência e de intoxicação.
VI - Este quadro de intoxicação que apresentam as substâncias estupefacientes produz em muitas ocasiões um profundo efeito psicológico. A desorientação tempo espacial, a despersonalização, as alucinações visuais, auditivas e tácteis, a paranóia, a psicose, a esquizofrenia, as ideias delirantes, as sensações de mudança da própria realidade, a angustia são alterações psíquicas suficientemente importantes para suscitar sérias dúvidas sobre a existência de uma correcta compreensão do acto.
VII - Importa por outro lado equacionar o síndrome de abstinência na sua projecção na vontade. O mesmo consubstancia-se por um conjunto de manifestações fisiológicas comportamentais e cognoscitivas nas quais o consumo de uma droga, ou de um tipo de drogas, assume a máxima prioridade para o individuo, maior que qualquer outro tipo de comportamento daqueles que no passado tiveram a maior importância.
VIII - Ao falar de dependência os autores diferenciam o hábito ou dependência psicológica e a adição o dependência física. Assim, a dependência psicológica define-se como o impulso psíquico a administrar-se droga de forma intermitente ou continua para obter certo prazer ou dissipar um estado de mal estar enquanto que a dependência física seria o estado de adaptação que se manifesta pela aparição transtornos físicos quando se interrompe o consumo da substância aditiva.
IX - Também já se defendeu a dependência física como um estado de elevada excitabilidade que se desenvolve no toxicodependente em virtude do consumo frequente daquelas substâncias e que levam a um síndrome de abstinência ao deixar o consumo das mesmas substâncias. A dependência psíquica aparece ligada a um conceito subjectivo e arbitrário salientando-se que todas as substâncias que provocam dependência física provocam também a dependência psíquica embora nem sempre suceda o contrário.
X - A conclusão sobre a relevância do estado de dependência pressupõe, todavia, a existência de requisitos como é o caso da exigência, ou seja, a comprovação do estado de toxicodependência ou seja do estado de dependência. Nem todas as drogas produzem os mesmos efeitos pelo que é necessário analisar diversos tipos de drogas no momento de avaliar a existência, ou não, do estado carencial.
XI - Dito isto, é manifesto que as circunstâncias do caso vertente apontam, de forma evidente, no sentido da relevância do exame em causa. Na verdade, como se aponta na decisão recorrida, estamos perante um quadro de dependência de heroína em que o quotidiano dos arguidos é marcado pela dependência da droga a qual constitui o modo de vida.
XII - A ausência de tal exame é prejudicial para a condição dos arguidos pois que a constatação dos pressupostos enunciados poderia conduzir a uma diminuição da sua responsabilidade sequente da crise da autodeterminação que é a base de culpa sendo esta o fundamento da pena.
XIII - Numa concepção restritiva do conceito de autoria só é autor quem realiza, por si mesmo, a acção típica, enquanto que a simples contribuição para a produção do resultado, mediante acções distintas das típicas, não pode fundamentar a imputação da autoria. Nesta perspectiva o estabelecimento de formas especiais de participação, como a instigação e a cumplicidade, significa que a punibilidade se amplia a acções situadas fora do tipo embora que, de acordo com este, apenas se deveria penalizar quem, pessoalmente, cometeu a infracção. Os outros intervenientes, que só determinaram o autor a realizar o facto punível, ou o auxiliaram, teriam que ficar impunes se não existissem os especiais preceitos penais relativos á comparticipação.
XIV - Ao conceito restritivo de autor opõe-se o conceito extensivo, sobretudo com a finalidade de colmatar as lacunas de punibilidade que implicava a aplicação daquele primeiro conceito. O fundamento dogmático desta teoria é a ideia da equivalência de todas as condições na produção do resultado a qual serve de base à teoria da “condição sine qua non”. Nesta perspectiva é autor todo aquele que contribuiu para causar o resultado típico sem que a sua contribuição para a produção do facto tenha que consistir numa acção típica.
XV - À face do direito penal português e, nomeadamente do art. 26.º do CP, a teoria do domínio do facto é o eixo fundamental de interpretação da teoria da comparticipação.
XVI - Autor é, segundo esta concepção, e de forma sintética e conclusiva, quem domina o facto, quem dele é “senhor”, quem toma a execução nas suas próprias mãos, de tal modo que dele depende decisivamente o “se” e o “como” da realização típica; nesta precisa acepção se pode afirmar que o autor é a figura central do acontecimento. Assim se revela e concretiza a procurada síntese que faz surgir o facto como unidade de sentido objectiva subjectiva: ele aparece, numa sua vertente como obra de uma vontade que dirige o acontecimento, noutra vertente como fruto de uma contribuição para o acontecimento dotada de um determinado peso e significado objectivo.
XVII - De acordo, ainda, com o Professor Figueiredo Dias há nesta matéria da autoria, em todo o caso, uma asserção que deve reputar-se fundamental: a de que ela é, mais que uma decorrência, verdadeiramente um elemento essencial do ilícito típico. Por isso, a unidade de sentido da autoria, por um lado, participa da natureza do ilícito pessoal, do ilícito que é obra de uma pessoa; por outro lado liga-se indissoluvelmente a realização do tipo como exigência primária do princípio da legalidade.
XVIII - O facto aparece, assim, como a obra de uma vontade que se dirige para a produção de um resultado. Porém, não só é determinante para a autoria a vontade de direcção, mas também a importância objectiva da parte do facto assumida por cada interveniente. Daí resulta que só possa ser autor quem, segundo a importância da sua contribuição objectiva, comparte o domínio do curso do facto.
XIX - A co-autoria consiste numa "divisão de trabalho" que torna possível o facto ou que facilita o risco. Requer, no aspecto subjectivo que os intervenientes se vinculem entre si mediante uma resolução comum sobre o facto, assumindo cada qual, dentro do plano conjunto uma tarefa parcial, mas essencial, que o apresenta como co-titular da responsabilidade pela execução de todo o processo. A resolução comum de realizar o facto é o elo que une num todo as diferentes partes.
XX - No aspecto objectivo, a contribuição de cada co-autor deve alcançar uma determinada importância funcional, de modo que a cooperação de cada qual no papel que lhe correspondeu constitui uma peça essencial na realização do plano conjunto (domínio funcional).
XXI - O necessário subjectivo da co-autoria é a resolução comum de realizar o facto. Unicamente através da mesma se justifica a imputação recíproca de contribuições fácticas. Não basta um consentimento unilateral, senão que devem "actuar todos em cooperação consciente e querida". Um acordo de vontades em que se fixa a distribuição de funções graças á qual deve obter-se, com as forças unidas o resultado perseguido em comum. Aliás, a forma como se faz a repartição de papéis deverá revelar que a responsabilidade pela execução do facto impende sobre todos os intervenientes.
XXII - Sublinhe-se que, na distinção entre a autoria singular imediata e a co-autoria, o autor singular executa o facto por si mesmo, enquanto o co-autor toma parte directa na sua execução - e fá-lo por acordo ou juntamente com outro ou outros.
XXIII - Na co-autoria não precisa cada um dos agentes de realizar totalmente o facto correspondente à norma penal violada, podendo executá-lo só parcialmente. Na co-autoria várias pessoas dividem as tarefas e na fase executiva cada uma presta a sua contribuição para o êxito do plano comum.
XXIV - Por outro lado, para caracterizar a decisão conjunta não parece bastar a existência de um qualquer acordo entre os comparticipantes - acordo que em regra existe também entre o autor e o cúmplice, - exigindo uns que todos os co-autores tenham uma "incondicional vontade de realização do tipo"; - impondo outros que o papel desempenhado por cada um revele objectivamente a sua participação no domínio do facto. Deste último ponto de vista, o essencial residirá então no segundo requisito da autoria: o exercício conjunto do domínio (funcional) do facto. Um domínio funcional do facto que existirá quando o contributo do agente - segundo o plano de conjunto - põe, no estádio da execução, um pressuposto indispensável ã realização do evento intentado, quando, assim, "todo o empreendimento resulta ou falha". Em resumo, é indispensável uma decisão conjunta e uma execução conjunta da decisão. O acordo entre os agentes pode ser expresso ou tácito, prévio ou não à execução do facto.
XXV - O STJ tem, desde há muito, consagrado a tese segundo a qual, para a co-autoria, não é indispensável que cada um dos intervenientes participe em todos os actos para obtenção do resultado pretendido, já que basta que a actuação de cada um, embora parcial, seja um elemento componente do todo indispensável à sua produção. A decisão conjunta pressupondo um acordo, que, sendo necessariamente prévio, pode ser tácito, pode bastar-se com a existência da consciência e vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado tipo legal de crime (a consciência e vontade unilateral de colaboração poderão integrar uma autoria paralela).
XXVI - A qualificação do crime de tráfico de estupefaciente como crime de perigo pressupõe a identificação do bem jurídico tutelado pela respectiva norma incriminadora.
XXVII - O custo social e económico do abuso de drogas é pois exorbitante em particular se atentarmos nos crimes e violências que origina e na erosão de valores que provoca. O escopo do legislador é evitar a degradação e destruição de seres humanos provocadas pelo consumo de estupefacientes que o respectivo tráfico indiscutivelmente potencia. O tráfico põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos: a vida; a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores de estupefacientes e, demais, afecta a vida em sociedade na medida em que dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos.
XXVIII - Trata-se de um crime de perigo comum, visto que a norma protege uma multiplicidade de bens jurídicos designadamente de carácter pessoal, reconduzidos à saúde pública.
XXIX - Para a teoria do concurso de normas a técnica empregue pelo legislador é a de utilizar uma disposição com várias normas entendendo por disposição em sentido técnico a forma exterior da fonte que introduz no ordenamento a norma jurídica. Entre norma e disposição pode existir uma correspondência quantitativa porque a disposição contem uma única norma mas também tal coordenação pode faltar porque a disposição contem várias normas.
XXX - O facto de uma disposição conter uma pluralidade de normas provoca um concurso aparente ente as mesmas que deve ser resolvido de acordo com os principio gerais que regulam esta matéria ou seja as condutas em lugar de se acumular excluem-se em virtude dos principio da consumpção da especialidade ou subsidiariedade.
XXXI - Para esta teoria a razão para que se sancione o agente por um único delito ainda que se verifiquem todas as condutas deve-se à aplicação dos princípios gerais que regulam o concurso de normas para o qual é indiferente que a pluralidade de normas esteja contida numa única disposição ou em várias disposições diferentes.
XXXII - O crime de tráfico de droga surge como ponto de referência de exemplo da necessidade de tipificar o maior ou menor grau de ilicitude como forma de corresponder á potencialidade de perigo de lesão do bem jurídico e da sua compatibilização com o principio da proporcionalidade.
XXXIII - O art. 25.º do DL 15/93, de 22-01, representa um tipo privilegiado em razão do grau de ilicitude em relação do tipo fundamental do art. 21º. Pressupõe, por referência ao tipo fundamental, que a ilicitude do facto se mostre «consideravelmente diminuída» em razão de circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da acção, e a qualidade ou a quantidade dos produtos.
XXXIV - A essência da distinção entre os tipos fundamental e privilegiado reverte, assim, ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), aferida em função de um conjunto de itens de natureza objectiva que se revelem em concreto, e que devam ser globalmente valorados por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei, e significativas para a conclusão quanto à existência da considerável diminuição da ilicitude pressuposta no tipo fundamental. Os critérios de proporcionalidade que devem estar pressupostos na definição das penas, constituem, também, um padrão de referência na densificação da noção, com alargados espaços de indeterminação, de «considerável diminuição de ilicitude».
XXXV - As referências objectivas contidas no tipo para aferir da menor gravidade situam-se nos meios; na modalidade ou circunstâncias da acção e na qualidade e quantidade das plantas. Na sua essência o que pretende é estabelecer-se a destrinça entre realidades criminológicas distintas que, entre si, apenas têm de comum o facto de constituírem segmentos distintos de um mesmo processo envolvido no perigo de lesão. Na verdade o legislador sentiu a aporia a que era conduzido pela integração no mesmo tipo leal de crime de condutas de matriz tão diverso como o tráfico internacional envolvendo estruturas organizativas integradas e produto de quantidades e qualidades muito significativas e negócio do dealer de rua, último estádio de um processo de comercialização actuando isoladamente, sem estrutura e como mero distribuidor.
XXXVI - Como refere Jeschek, o ponto de partida da individualização penal é a determinação dos fins das penas pois que só arrancando de fins claramente definidos é possível determinar os factos que relevam na respectiva ponderação. Aqui, é preciso, em primeiro lugar, readquirir a noção da importância fundamental que assume a justa retribuição do ilícito, e da culpa, compreendendo o princípio da culpa quer uma função fundamentadora, quer uma função limitadora da mesma pena. Ao mesmo nível que a retribuição justa situa-se o fim da prevenção especial.
XXXVII - Por consequência a pena deve ponderar, também, a forma de contribuir para a reinserção social do arguido e de não prejudicar a sua posição social para além do estritamente inevitável.
XXXVIII - A medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa. A verdadeira função desta última, na doutrina da medida da pena segundo o Professor Figueiredo Dias, reside numa incondicional proibição de excesso: a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas - sejam de prevenção geral positiva ou antes negativa, de integração ou antes de intimidação, sejam de prevenção especial positiva ou negativa, de socialização, de segurança ou de neutralização. Com o que se toma indiferente saber se a medida da culpa é dada num ponto fixo da escala penal ou antes como uma moldura de culpa: de uma ou de outra forma, é o limite máximo de pena adequado à culpa que não pode ser ultrapassado. Uma tal ultrapassagem, mesmo em nome das mais instantes exigências preventivas, poria em causa a dignitas humana do delinquente e seria assim, logo por razões jurídico-constitucionais, inadmissível.
XXXIX - A culpa é a “parte de responsabilidade” do agente pela sua falta de disponibilidade para deixar-se motivar pela norma correspondente” quando “esse deficit não possa fazer-se compreensível sob a afirmação de que não afecta a confiança geral na norma”.
XL - Sem embargo, a culpa e a prevenção residem em planos distintos. A culpa responde à pergunta de saber de se, e em que medida, o facto deve ser reprovado pessoalmente ao agente, assim como qual é a pena que merece. Só então se coloca a questão, totalmente distinta da prevenção.
XLI - A culpa é a razão de ser da pena e, também, o fundamento para estabelecer a sua dimensão. A prevenção é unicamente a finalidade da mesma.
XLII - A restrição do princípio da culpa á função de “meio para a limitação da pena” é o ponto central na interpretação deste conceito transmitida por Claus Roxin. Por tal forma pretende o mesmo autor fazer a teoria jurídico-penal da culpa “independente do livre arbítrio”. Por seu turno, tal conceito de culpa, restringido ao papel de margem superior da pena, é o fundamento da nova categoria sistemática de “responsabilidade”, na qual se fundiu a culpa do autor com a necessidade preventiva da pena.
XLIII - Na verdade, e atribuindo consistência prática ao exposto, as penas têm de ser proporcionadas à transcendência social - mais que ao dano social - que assume a violação do bem jurídico cuja tutela interessa prever. O critério principal para valorar a proporção da intervenção penal é o da importância do bem jurídico protegido porquanto a sua garantia é o principal fundamento da referida intervenção.
XLIV - A necessidade de proporcionalidade constitui também uma exigência do Estado democrático: um direito penal democrático deve ajustar a gravidade das penas à transcendência que para a sociedade têm os factos a que se ligam. Exigir uma proporção entre delitos e penas no é, com efeito, mais que pedir que a dureza da pena não exceda a gravidade que para a sociedade possui o facto punido.
XLV - A decisão de suspensão da execução da pena pressupõe a ultrapassagem de uma fase de determinação da pena concreta e implica uma definição do equilíbrio entre a prevenção geral e especial na aceitação daquela pena de substituição.
XLVI - Na lei penal vigente, a culpa só pode (e deve) ser considerada no momento que precede o da escolha da pena – o da medida concreta da pena de prisão – não podendo ser ponderada para justificar a não aplicação de uma pena de substituição: tal atitude é tomada tendo em conta unicamente critérios de prevenção.
XLVII - As considerações de culpa não devem ser levadas em conta no momento da escolha da pena. Na verdade, o juízo de culpa já foi feito: antes de se colocar a questão da escolha da pena importou já decidir sobre a aplicação da pena de prisão e sobre a sua medida concreta, para o que foi decisivo um juízo (concreto) sobre a culpa do agente.
XLVIII - O tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas; coisa que só raramente acontecerá se não se perder de vista o já tantas vezes referido carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração. Uma vez recusada pelo tribunal a aplicação efectiva da prisão, resta ao seu dispor mais do que uma espécie de pena de substituição (v,g. multa, prestação de trabalho a favor da comunidade, suspensão da execução da prisão), sendo ainda considerações de prevenção especial de socialização que devem decidir qual das espécies de penas de substituição abstractamente aplicáveis deve ser a eleita.
XLIX - A comunidade jurídica suporte a substituição da pena, pois só assim se dá satisfação às exigências de defesa do ordenamento jurídico e, consequentemente, se realiza uma certa ideia de prevenção geral. A sociedade tolera uma certa perda de efeito preventivo geral, isto é conforma-se com a aplicação de uma pena de substituição, mas nenhum ordenamento jurídico se pode permitir pôr-se a si mesmo em causa, sob pena de deixar de existir enquanto tal.
L- Em caso de absoluta incompatibilidade, as exigências (mínimas) de prevenção geral hão-de funcionar como limite ao que, de uma perspectiva de prevenção especial, podia ser aconselhável. A aplicação de uma pena de substituição é suficiente, não só para evitar que o agente reincida, como também para realizar o limiar mínimo de prevenção geral de defesa da ordem jurídica.
LI -Deste modo, o pressuposto básico da aplicação de pena de substituição será a existência de factos que permitam um juízo de prognose favorável. Por outras palavras é necessário que o tribunal esteja convicto de que a censura expressa na condenação e a ameaça de execução da pena de prisão aplicada são suficientes para afastar o arguido de uma opção desvaliosa em termos criminais e para o futuro. Tal conclusão terá de se fundamentar em factos concretos que apontem de forma clara na forte probabilidade de uma inflexão em termos de vida, reformulando os critérios de vontade de teor negativo e renegando a prática de actos ilícitos.
Decisão Texto Integral:

                                     Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA e BB vieram interpor recurso da decisão que os condenou, respectivamente, nas penas de cinco anos e 6 seis meses de prisão e seis anos e seis meses de prisão pela prática de um crime de tráfico p.p. nos termos do artigo 21 do Decreto Lei 15/93.

As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões das respectivas motivações de recurso onde se refere que.

Em relação ao recorrente

I-O Recorrente discorda do douto Acórdão quanto à qualificação jurídica da e medida concreta da pena, pois é toxicodependente de drogas duras há 16 anos (desde os 29 anos, Factos Provados n.° 62), e deixou de trabalhar por causa do consumo de estupefacientes

II-O Arguido, para conseguir manter o seu consumo recorria à venda de parte de estupefaciente que adquiria para esse mesmo seu consumo. E fazia essa venda com o fito e a finalidade exclusiva de conseguir meios para continuar a adquirir a droga necessária ao seu consumo (fls. 13, parágrafo 3 do douto Acórdão).

III-O Tribunal "a quo" entendeu não poder considerar haver finalidade exclusiva de consumo no tráfico do Recorrente porque este também proveria algumas necessidades básicas do seu sustento; mas o facto do Recorrente utilizar alguma pequena parte dos valores obtidos no tráfico não apenas para comprar mais droga e consumi-la, mas também para parte do seu fraco sustento ou alimentação, tem que ser entendido no quadro de uma interpretação em termos hábeis da exigência da exclusividade que a lei proclama; como aliás tem vindo a ser interpretado pela Jurisprudência e Doutrina; (vejam-se, Eduardo Maia Costa, em comentário crítico ao Acórdão do STJ de 17-05-2000, proc. 260/2000, in Revista do Ministério Público n.° 83, pág. 187; e Acórdão STJ de 20.10.1999 BMJ, 490, págs. 104; e João Luís de Moraes Rocha, in Droga, Regime Jurídico, Livraria Petrony 1994).

IV-Ou seja, ter o Recorrente eventualmente usado alguma pequena parte dos valores obtidos no tráfico não só para comprar mais droga e consumi-la, mas também para parte do seu fraco sustento ou alimentação, não pode afastar por si só o seu enquadramento como traficante consumidor.

V-Face ao exposto, deveria o douto Acórdão recorrido ter concluído que a conduta do Recorrente se insere no âmbito do artigo 26.° do DL 15/93 de 22 de Janeiro, sendo o Recorrente traficante consumidor.

VI-Não o tendo feito, violou claramente este artigo.

VII-Além do mais, a interpretação do artigo em causa (26.°), no sentido de que a "finalidade exclusiva" implica que nenhuma parcela, por ínfima que seja, de valor obtido pelo agente no tráfico possa ser usada na sua alimentação - de que depende a sua sobrevivência, e por isso o seu consumo - é claramente inconstitucional por violação do artigo 32.° da CRP, ofendendo as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar.

VIII-Ser o Recorrente toxicodependente de drogas pesadas há cerca de 16 anos, e ter deixado de trabalhar por causa desse consumo, deve relevar para a medida concreta da pena,

IX-Desde 22 de Fevereiro de 2010, o arguido encontra-se internado na Comunidade Terapêutica "O Lugar da Manhã" sendo que o seu processo terapêutico tem sido avaliado de modo positivo (Factos provados 70), estando já na 2a fase desse tratamento, que envolve assunção de maior autonomia e responsabilidade, prevendo-se que o período de tratamento demore entre 12 a 18 meses. Como se pode verificar, este internamento do Recorrente está a ter sucesso e a libertar o Recorrente da sua terrível dependência.

X-Está ainda provado que o arguido confessou todos os factos (fls. 13, parágrafo 3 do douto Acórdão), o que significa, juntamente com o actual tratamento um arrependimento não meramente de palavras, mas de actos concretos.

XI-Face ao exposto, a pena que foi aplicada ao arguido peca por excesso. Desde logo, tal pena deveria ter sido encontrada dentro da moldura penal do artigo 26.° do DL 15/93 citado, devendo ser suspensa na sua execução atento o arrependimento do Arguido, e a sua vontade em libertar-se da toxicodependência, libertação essa que está a decorrer pelo seu internamento na centro terapêutico.

XII-Se, todavia, se considerar que a conduta do Recorrente cai no âmbito do artigo 21.° e não no do 26.° do citado DL, ainda assim a pena aplicada peca por excesso. Pois face às circunstâncias supra, a pena a aplicar em concreto nunca deveria ultrapassar o limite mínimo estabelecido por lei, 4 anos de prisão, suspensa na sua execução, o que além do mais permite a continuação do internamento e a recuperação positiva do arguido para a sociedade.

XIII-Não tendo assim decidido, o Tribunal "a quo" violou o art. 71° do CP.

Conclui pedindo que

Deve o Acórdão ora recorrido ser revogado, e substituído por outro que declare que o Recorrente é traficante consumidor nos termos do artigo 26.° do DL 15/93 de 22 de Janeiro, aplicando-se-lhe pena de prisão não superior a 3 anos suspensa na sua execução; ou, se se considerar o mesmo traficante no âmbito do artigo 21.° do DL 15/93, que se lhe aplique pena de prisão de 4 anos, também a suspendendo na sua execução.

Qualquer das penas deve permitir ao Recorrente que continue o tratamento no Centro terapêutico onde se encontra internado.

Em relação á recorrente:

1.O Douto Acórdão considerou que a arguida e a sua conduta se enquadrava e preenchia o estatuído no art. 21.° do dec. Lei n.° 115/93 de 22/1.

2.Porém deve ser considerada que a conduta da mesma ser enquadra como traficante consumidor previsto no art. 26.° do mesmo diploma.

3.Devendo assim ser revogado o presente acórdão e proferir-se outro que determine a aplicação do referido dispositivo legal.

4.Deve ainda e caso não proceda a aplicação do tal dispositivo legal deve ainda ser considerado que o tribunal a quo não ponderou a aplicação do art. 40.° e 71 .° do CP. aplicando à arguida uma pena desproporcional e desadequada às exigências da politica criminal vigente devendo ser aplicada uma pena menos grave à arguida.

5.Para além do tribunal dever ter atenuado especialmente a pena à arguida tendo em conta a sua conduta e arrependimento em julgamento e á sua situação de toxicodependência.

6.Em último deveria ter sido realizado as perícias médico legais determinadas pelo art. 56.° do Dec. Lei n.° 11/93 de 22/1 para se aferir sobre as capacidades cognitivas e cognoscitivas da arguida.

7.Uma vez que é omisso os autos relativamente a este aspecto deve ser nos termos do art 120.° do C.P.P. ser revogado o douto acórdão e proferido novo acórdão que determine a nulidade dos autos e ser a arguida absolvida dos mesmos.

Termina pedindo que:

Termos em que deve o acórdão ser considerado nulo e proferido novo acórdão em que se considere que a mesma se enquadra no trafico de consumo de estupefacientes p. e p. pelo artigo 26° do Dec-Lei 115/23 de 22 de Janeiro.

            Foi produzida resposta pelo Ministério Publico advogando a improcedência do recurso,

Nesta instância o ExºMº Sr.Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que:

 1Os factos carreados aos autos foram, devidamente, fundamentados e apontam para a prática, pelos arguidos de um crime previsto e punido pelo art. 21, n. °1 do DL 15/93, de 22 de Janeiro.

2.° Relevam, aqui, o elevado grau de dolo e de i1icitude demonstrado no agir dos agentes.

3.° Relevam, também, os antecedentes criminais do arguido, estando com a pena suspensa em relação a determinados crimes, enquanto a arguida não tem relevantes antecedentes criminais.

4. ° Entendemos que a medida da pena deve ser fixada em medida que se fixe em redor dos cinco anos de prisão.

5.° Entendemos, como referimos supra, que estas penas não devem ser suspensas na sua execução.

                                   Os autos tiveram os vistos legais

                                              Cumpre decidir

Em sede de decisão recorrida encontra-se provada a seguinte factualidade:

1º- Pelo menos desde o dia 11 de Novembro de 2009 que os arguidos, não exercem qualquer actividade profissional remunerada, dedicando-se em exclusivo à venda de produtos estupefacientes, fornecendo diversos consumidores e toxicodependentes de Albufeira.

2º- Habitualmente os arguidos compravam esses produtos em local não apurado do Algarve, dividindo-o em doses individuais e vendiam-no directamente aos consumidores na zona antiga desta cidade de Albufeira, incluindo no Largo Engenheiro Duarte Pacheco.

3º- Algumas vezes e para saber se os arguidos tinham produto estupefaciente os consumidores telefonavam-lhes para os telemóveis de que eram possuidores.

4º- No dia 11 de Novembro de 2009, pelas 11 horas e 40 minutos, os arguidos dirigiram-se ao Largo Duarte Pacheco, conhecido por “Jardim de Albufeira”, e sentaram-se num dos bancos aí existentes.

5º- Pelas 11 horas e 45 minutos, um indivíduo cuja identidade concretamente não se apurou, entregou uma nota de 5 € à arguida tendo recebido em troca um “panfleto” de heroína.

6º- Porque avistaram um veículo da G.N.R. a passar no local os arguidos abandonaram-no, voltando cerca das 12 horas e 20 minutos, sendo que, desta feita, o arguido BB sentou-se num topo do jardim, local onde conseguia ver todas as movimentações, enquanto que a arguida AA se dirigiu a quatro indivíduos que estavam sentados num banco de pedra.

7º- Aí chegada, abriu um saco vermelho que trazia consigo e do seu interior retirou vários “panfletos” de heroína, entregando pelo menos um a CC, recebendo um número indeterminado de dinheiro em troca.

8º- Nesse dia e enquanto esteve no local acima indicado, nos períodos de tempo atrás indicados, a arguida AA entregou heroína a diversos consumidores, recebendo dinheiro em troca.

9º- Assim, entregou a um indivíduo cujo primeiro nome é DD um “‘panfleto” de heroína, recebendo dinheiro em troca.

10º- E EE, foi ao encontro da arguida AA e deu-lhe pelo menos 5 €, recebendo em troca um “panfleto” de heroína.

11º- E uma pessoa com os nomes de FF, aproximou-se da arguida AA e deu-lhe dinheiro, recebendo em troca um “panfleto” de heroína.

12º- E GG entregou dinheiro à arguida AA, recebendo em troca um “panfleto” de heroína.

13º- E uma pessoa com o nome de HH abeirou-se da arguida AA e entregou-lhe dinheiro, recebendo um “panfleto” de heroína.

14º- No dia 18 de Novembro de 2009, pelas 12 horas e 30 minutos, a arguida AA dirigiu-se à Rua 5 de Outubro, e sentou-se num passeio junto ao supermercado denominado “Blue”.

15º- Cerca das 13 horas, II e JJ receberam uma quantidade indeterminada de heroína das mãos da arguida dando-lhe um valor monetário em troca.

16º- No dia 20 de Novembro de 2009, pelas 12 horas, a arguida dirigiu-se à Rua 5 de Outubro, de novo junto ao Supermercado “Blue”.

17º- Trazia consigo um saco vermelho que continha heroína dividida em doses individuais.

18º- Depois de se sentar no passeio, a arguida retirou-as desse saco e colocou-as dentro de um tubo verde aí existente.

19º- Mais 5 minutos decorridos e KK abeira-se da arguida que lhe entregou um plástico com 0,324 grama de heroína, recebendo em troca quantia indeterminada de moedas de euro.

20º- Decorridos 5 minutos, a arguida AA colocou um “panfleto” de heroína no chão que foi apanhado por LL, que lhe dinheiro em troca.

21º- Pelas 12 horas e 35 minutos, a arguida colocou no chão um “panfleto” com 0,350 gramas de heroína, que MM apanhou, de imediato, recebendo em troca moedas.

22º- De seguida, GG, dirigiu-se á arguida e deu-lhe dinheiro recebendo um “panfleto” heroína.

23º- Pelas 13 horas, NN abeirou-se da arguida e entregou-lhe dinheiro. recebendo em troca um “panfleto” com 0,352 gramas de heroína.

24º- Passados cerca de 10 minutos, o arguido BB foi ao encontro da sua companheira, a arguida AA, que lhe entregou o dinheiro que havia resultado das vendas de estupefacientes efectuadas até ao momento, abandonando este, de seguida, o local.

25º- Cerca das 13 horas e 15 minutos, OO aproximou-se da arguida e depois de lhe dar uma quantia indeterminada em moedas recebeu um “panfleto” de heroína.

26º- Nas mesmas circunstâncias de tempo a arguida entregou um “panfleto” de heroína a JJ e em troca recebeu uma quantia indeterminada em dinheiro.

27º- No dia 12 de Dezembro de 2010, a arguida AA entregou dois “panfletos” com 0,653 gramas de heroína, a PP e recebeu em troca, pelo menos 5 euros.

28º- A arguida tinha ainda consigo 5 “panfletos” de heroína com o peso total de 1,604 gramas.

29º- Nesse mesmo dia 12 de Dezembro os arguidos detinham, no quarto onde pernoitavam, sito em Rua …, nº … - Pensão “...”, Quarto S/N, em Albufeira, diversos recortes de saco plástico, um pequeno “panfleto” com 0,193 gramas de heroína, 70€ em dinheiro e uma embalagem aberta de bicarbonato de sódio.

30º- Após ter sido detida, no citado dia, e enquanto aguardava na sala rádio das instalações do N.I.C. da G.N.R. pela chegada de um militar de sexo feminino a fim de lhe fazer uma revista pessoal, pelas 17 horas e 40 minutos, a arguida AA, escondeu nessas instalações sete “panfletos” com 2,441 gramas de heroína que trazia consigo.

31º- Para além dos actos de venda acima descritos, a arguida AA realizou ainda os seguintes:

a) A MM vendeu heroína, no ano de 2009, pelo menos por mais uma vez, pelo preço de 5 euros.

b) A NN vendeu heroína, no ano de 2009, pelo menos por mais uma vez, pelo preço de 5 euros.

            c) A PP vendeu heroína, no ano de 2009, pelo menos por mais uma vez, pelo preço de 5 euros.

            d) A ... QQ vendeu heroína, no ano de 2009, por uma vez, pelo preço de 5 euros.

            e) A RR vendeu heroína, no ano de 2009, por duas vezes, pelo preço de 5 euros de cada vez.

            f) A SS vendeu heroína, no ano de 2009, pelo menos por mais uma vez, pelo preço de 5 euros.

            g) A GG vendeu heroína, no ano de 2009, pelo menos por 30 vezes, aqui se incluindo os 2 actos de venda acima indicados, pelo preço de 5 euros de cada vez.

            h) A EE vendeu heroína, no ano de 2009, pelo menos 2 vezes por semana durante 4 meses, ao preço global de 10 euros por cada vez, aqui já se incluindo os actos de venda indicados nos Factos provados antecedentes.

            i) A II vendeu heroína, no ano de 2009, pelo menos 1 vez por semana desde Junho ou Julho de 2009 até à data em que a arguida foi detida (12/1/2010), ao preço de 5 euros por cada vez, aqui já se incluindo o acto de venda indicado nos Factos provados antecedentes.

            j) A JJ vendeu heroína, desde Março ou Abril de 2009 até momento próximo da data em que a arguida foi detida (12/1/2010) , pelo menos por 20 vezes, aqui se incluindo os 2 actos de venda indicados nos Factos provados antecedentes, pelo preço global que variava entre 10 e 20 euros de cada vez.

32º- Em data concretamente não apurada mas situada no verão de 2009, o arguido TT entregou directamente a JJ heroína, recebendo dinheiro como contrapartida dessa entrega.

33º- O arguido BB não só conhecia a actividade de venda de estupefaciente desenvolvida pela sua companheira, a arguida AA, como a auxiliava, designadamente, efectuando vigilâncias, atendendo telefonemas de compradores/consumidores e diligenciando pela aquisição de droga a terceiros.

34º- Acresce que não exercia qualquer actividade profissional utilizando o dinheiro conseguido com as ditas transacções para fazer face a todas as suas despesas, nomeadamente, pagando o quarto da pensão onde pernoitavam e adquirindo todos os bens necessários à sua subsistência.

35º- Os arguidos actuaram de forma concertada, livre, deliberada e consciente, sendo conhecedores da natureza estupefaciente dos produtos que adquiriam e vendiam, querendo com tal actuação angariar meios económicos, o que conseguiram.

36º- Do mesmo modo, os arguidos sabiam que essas suas condutas eram proibidas e punidas por lei e, não obstante, não se coibiram de as levar a cabo

37º- A arguida AA desenvolveu-se num agregado familiar, constituído pelos pais e uma irmã, oriundos de Angola, e que mantinham um nível de vida mediano, em termos económicos; vieram para Portugal em 1975, passando a residir na região do Algarve. O pai encontra-se reformado, a mãe e a irmã exercem actividade profissional na área da hotelaria.

38º- A arguida iniciou a escolaridade com a idade regular e estudou com aproveitamento até ao 12ºano.

39º- Quer nos períodos de férias escolares, quer a partir dos 20 anos de idade, a arguida começou a trabalhar em lojas de roupa e restauração; posteriormente, viveu sozinha em Lisboa, por um período de quatro anos, onde ganhou o prémio de melhor vendedora.

40º- De regresso a Lagos, trabalhou numa joalharia, sendo reconhecida pela entidade patronal como uma pessoa responsável e íntegra nos seus compromissos profissionais; a referida entidade patronal manifestou-se disponível para lhe voltar a proporcionar colocação laboral.

41º- Aos 30 anos de idade, a arguida AA, no contexto de saídas nocturnas com o grupo de pares, iniciou-se no consumo de bebidas alcoólicas. Conheceu, então, o actual companheiro (co-arguido), toxicodependente desde os 16 anos, e passou a consumir estupefacientes.

42º- Quando engravidou, sujeitou-se a tratamentos terapêuticos, sem sucesso.

43º- Depois de deixar a casa de seus pais, e por incapacidade económica de arrendarem um imóvel, a arguida e o arguido, seu companheiro, viveram na rua.

44º- À data dos factos em causa neste processo, a arguida não mantinha contacto com a família, pois tinha-se afastado voluntariamente e não recorria ao apoio do agregado.

45º- Após o nascimento do filho, a irmã da arguida requereu a sua guarda, para evitar que o mesmo fosse conduzido a um centro de acolhimento.

46º- A arguida, a nível laboral e até iniciar o consumo de substâncias estupefacientes, revelou hábitos de trabalho e grande empenho profissional.

47º- No E.P.R. de Odemira, a arguida trabalha na etiquetagem de embalagens de fruta, não regista punições, e apresenta um comportamento de acordo com as normas vigentes.

48º- A situação de reclusão da arguida tem vindo a causar constrangimentos pessoais e familiares, no entanto, permitiu um corte com um modo de vida desajustado e a desabituação do consumo de estupefacientes.

49º- A arguida, em geral, nunca conviveu com o seu filho, actualmente com 3 anos de idade.

50º- A arguida tem o apoio dos pais, da irmã e do cunhado.

51º- Aquando da entrada no EPR de Odemira, a arguida apresentava síndrome de abstinência positivo para opiáceas e cocaína e com estado geral muito degradado, tendo evoluído favoravelmente, física e psicologicamente até à presente data, superando a desintoxicação e encontrando-se de momento com reduzida medicação.

            52º- O arguido BB é o segundo elemento de uma fratria de três, sendo a irmã mais nova uterina, e cresceu inserido no núcleo monoparental materno entre os 2 e aos 6 anos de idade, dada a separação dos pais.

            53º- Quando o arguido tinha 6 anos de idade, a progenitora contraiu matrimónio e o agregado fixou-se em Leiria, local onde viveu até aos 18 anos de idade. Este agregado permitiu-lhe um enquadramento bastante estável a nível pessoal e da satisfação das suas várias necessidades, sendo o quadro financeiro da família considerado bom, decorrendo os rendimentos de uma farmácia pertença do padrasto.

54º- Neste período, a progenitora não exerceu qualquer actividade laboral, assumindo deste modo os cuidados e responsabilidades educativas do arguido.

55º- O arguido iniciou a frequência escolar em idade normal, mantendo comportamento, assiduidade e rendimento escolar regular até cerca dos 16 anos, idade em que frequentou o 9º ano de escolaridade. Posteriormente, e até cerca dos 18 anos de idade, ainda frequentou o ensino nocturno, revelando neste período desinteresse e falta de aproveitamento.

56º- Para além da frequência escolar, o arguido manteve, paralelamente, até cerca dos 17 anos de idade, actividade desportiva, tendo jogado andebol a nível federado.

57º- Quando o arguido tinha 16 anos de idade, iniciou-se no consumo de haxixe e álcool.

58º- Quando o arguido tinha cerca de 17 anos de idade a relação conjugal da progenitora tornou-se instável, tendo ocorrido posteriormente o divórcio, na sequência do qual, e quando o arguido tinha 18 anos de idade, a família passou a viver em Valença do Minho, onde a progenitora iniciou um negócio por conta própria e onde o arguido iniciou actividade laboral.

59º- Nesta fase e até ao cumprimento do serviço militar obrigatório (SMO), o arguido trabalhou no estabelecimento comercial da família e estruturou o seu quotidiano em torno desta actividade.

60º- Cerca dos 21 anos de idade, o arguido iniciou cumprimento do SMO no corpo de comandos, o qual concluiu cerca dos 23 anos, regressando novamente ao agregado de origem, onde deu continuidade à actividade laboral junto do comércio da família venda de faqueiros e atoalhados, que o próprio passou também a vender em feiras em vários pontos do país.

61º- O arguido casou cerca dos 24 anos de idade, relação que manteve durante 12 anos, tendo um filho que actualmente tem cerca de 19 anos e vive a cargo da progenitora.

62º- Tendo mantido sempre de modo regular o consumo de haxixe, o arguido iniciou o consumo de heroína cerca dos 29 anos de idade, quando se encontrava já a residir com o agregado autónomo em Leiria. Este consumo veio a revelar-se desorganizador em termos da sua capacidade de manter actividade laboral, da sua estabilidade pessoal e da relação conjugal, culminado deste modo com o divórcio.

63º- Numa tentativa de ajudar à reorganização pessoal do arguido a progenitora fixou-se em Vilamoura (Algarve), zona onde o arguido vive desde os seus 35 anos. Contudo esta tentativa revelou-se infrutífera.

64º- Assim e até à sua integração na comunidade terapêutica (Fevereiro de 2010) que o arguido tem vindo a manter o consumo de heroína, que pontualmente tem conseguido parar, através do apoio no contexto do IDT, sendo o seu percurso laboral também marcado pelo consumo, verificando-se deste modo a manutenção de alguma capacidade para trabalhar, nomeadamente até cerca de 2004, tendo trabalhado, ainda que de modo esporádico, ligado ao sector da segurança de bares.

65º- A partir de então e no contexto do estabelecimento de uma nova relação marital, com a co-arguida, que também é toxicodependente, acentua-se o consumo de estupefacientes, assim como a degradação das suas condições de vida, vivendo desde 2007 em casas abandonadas.

66º- Desta relação o arguido tem um filho, o qual por motivos da falta de condições dos progenitores, lhes foi retirado, encontrando-se confiado a um familiar.

67º- À data dos factos em causa neste processo, o arguido não tinha qualquer actividade laboral, e o seu quotidiano encontrava-se centrado na necessidade de assegurar o consumo de estupefacientes, e no convívio regular com outros sujeitos consumidores.

68º- Então, o relacionamento com a família mãe e irmã-, estava comprometido, atendendo não só às circunstâncias acima referidas, como ao facto de ao longo dos anos o arguido vir a registar urna série de recaídas no consumo de estupefacientes.

69º- O arguido revela competências em termos de comunicação e relacionamento interpessoal, sendo contudo um sujeito muito reservado/introvertido no que concerne aos aspectos mais íntimos da sua vida.

70º- O desencadeamento do presente processo contribuiu para que o arguido, em 22 de Fevereiro de 2010, entrasse na Comunidade Terapêutica” O Lugar da Manhã”, onde o arguido se mantêm, sendo que o seu processo terapêutico tem sido avaliado de modo positivo, tendo transitado recentemente para a 2° fase, que envolve a assunção de maior autonomia e responsabilidade, prevendo-se que o período de tratamento demore entre 12 a 18 meses.

71º- No certificado de registo criminal do arguido BB constam as seguintes menções:

a) No processo comum singular n.º 1.236/01.2PBLRA do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria, por sentença de 30/5/2003, relativa a factos de 7/8/2001, o arguido foi condenado pela prática do crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, al. a) do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos.

b) No processo comum singular n.º 1.745/03.9GBABF do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Albufeira, por sentença de 12/7/2004, relativa a factos de 14/7/2003, o arguido foi condenado pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21º do Dec. Lei n.º 15/93, de 22/1, na pena de 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e 3 meses.

c) No processo comum singular n.º 37/07.9GAABF do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Albufeira, por sentença de 2/7/2008, relativa a factos de 2/2/2007, o arguido foi condenado pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21º do Dec. Lei n.º 15/93, de 22/1, na pena de 1 ano e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e 10 meses.

d) No processo comum colectivo n.º 23/07.9GTABF do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Faro, por acórdão de 21/7/2008, relativo a factos de 4/1/2007, o arguido foi condenado pela prática do crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204º do Código Penal, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos e 3 meses, com regime de prova.

e) No processo comum colectivo n.º 3/05.9GALLE do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Loulé, por acórdão de 28/6/2007, relativo a factos de 7/9/2004, o arguido foi condenado pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 25º, al. a) do Dec. Lei n.º 15/93, de 22/1, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos.

72º- No certificado de registo criminal da arguida AA consta a seguinte menção:

- No processo comum singular n.º 1.505/09.3TDLSB do 5º Juízo Criminal, 3ª Secção, do Tribunal Judicial de Lisboa, por sentença de 21/4/2010, relativa a factos de 12/12/2008, a arguida foi condenado pela prática do crime de furto simples, p. e p. pelo art.º 203º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 90 dias que se transmutou em admoestação.

73º- Os telemóveis apreendidos nos autos e indicados a fls. 402 foram utilizados pelos arguidos para a prática das condutas acima descritas e como referido no Facto provado 3º.

74º- A quantia de 80 euros apreendida nos autos era proveniente de venda de produtos estupefacientes feita pelos arguidos.

 . FACTOS NÃO PROVADOS

Não resultaram provados os seguintes factos:

- Que nas circunstâncias referidas no facto provado 14º, e sem prejuízo do que consta nos demais factos provados, poucos minutos depois, um indivíduo de estatura média, que envergava calças de ganga azuis, camisola cinzenta e casaco bege, abeirou-se da arguida e entregou-lhe quantidade indeterminada de moedas, recebendo em troca uma dose de heroína.

- Que nas circunstâncias referidas no facto provado 14º, e sem prejuízo do que consta nos demais factos provados, concretamente pelas 12 horas e 50 minutos, GG, com a alcunha “...”, dirigiu-se à arguida e recebeu desta um “panfleto” com quantidade indeterminada de heroína dando em troca algumas moedas.

- Que nas circunstâncias referidas no facto provado 18º, e sem prejuízo do que consta nos demais factos provados, cerca de 5 minutos depois, um indivíduo de estatura média, que vestia uma blusa de cor azul um boné e uma mochila de cor creme, chegou junto da arguida e depois de lhe entregar uma quantia em moedas recebeu uma dose de heroína.

- Que nas circunstâncias referidas no facto provado 18º, e sem prejuízo do que consta nos demais factos provados, pelas 12 horas e 15 minutos, DD dirige-se à arguida que lhe vende, por quantia indeterminada, um “panfleto” de heroína.

- Que após as circunstâncias referidas no facto provado 22º, e sem prejuízo do que consta nos demais factos provados, um indivíduo que vestia uma camisa de cor azul, fazendo uso de um boné de cor clara entregou à arguida dinheiro recebendo um “panfleto” contendo heroína.

I

Relativamente á questão suscitada pelos recorrentes incidindo sobre a omissão do exame a que se reporta o artigo 52 do Decreto Lei 15/93 dir-se-á, na esteira de Lourenço Martins (Droga e Direito pag 255 e seg) que a realização desta perícia médico-legal tem por finalidade primeira, como resulta dos respectivos trabalhos preparatórios, determinar o grau de imputabilidade do argui­do no momento da prática do crime e, em segundo lugar, avaliar do seu estado (de eventual toxicodependência) actual para efeito de aplicação da medida mais apropriadas.

Numa interpretação literal do preceito poderia concluir-se que basta fazer chegar a autoridade judiciária que superintende no processo a «notícia» de que o arguido era toxicodependente no momento da consumação do crime para desencadear a realização urgente desta perícia. Tal pressuposto tem, porém, que ser objecto de algum cuidado de forma a evitar a prática de actos inúteis, de expedientes ou manobras dilatórias, pelo que se entende que a mesma «notícia» deve ser fundamentada e, por outro lado, não existirem elementos que apontem para um expediente inútil ou com o fim de ludibriar tribunal.

.           Realizada de acordo com a Portaria 93/96[1] tal perícia tem uma importância fundamental para se avaliar a forma como a vontade do arguido, e a sua opção desvaliosa pela prática do crime, foi de alguma força influenciada pela dependência da droga. Na verdade, o princípio da culpa tem como pressuposto lógico a liberdade de decisão do homem e só quando existe a capacidade de determinar-se pelas normas jurídicas pode o autor ser feito responsável de ter chegado ao facto antijurídico em lugar de dominar os impulsos criminais.

A capacidade de culpa é o primeiro dos elementos sobre o qual se fundamenta o juízo de culpabilidade. A capacidade de culpa deve concorrer para que a decisão de cometer o facto possa resultar em definitivo censurável. Só quem chegou a uma determinada idade, e não padece de perturbação da vontade, possui aquele mínimo de capacidade de autodeterminação que ordenamento jurídico requer para a responsabilidade jurídico-penal.

            Assim, impõe-se a equação científica do estado de dependência da droga perante a culpa pela prática do crime. Efectivamente, o substrato neurobiológico da dependência fí­sica está longe de ser totalmente definido.

            Al­guns autores colocam a hipótese segundo a qual as dependências físicas e psíquicas são virtualmente indissociáveis, a partir do mo­mento em que se tenta identificar os seus ele­mentos celulares e moleculares. Porém, tal pressuposto só tem validade em relação aos opiáceos; ao álcool, ao tabaco e os ansiolíti­cos os quais induzem uma síndroma de privação real­mente caracterizada. Além disso, os sistemas neuronais e os processos postos em jogo nos dois fenómenos são diferentes: a dependência psíquica está, quanto a ela, em parte ligada a dessensibilização; ao dos receptores opiáceos da espinal-medula e a um disfuncionamento pro­vável do locus coeruleus. A dependência física é um fenómeno tanto mais complexo quanto pode ser alvo de um condicionamento de tipo pavloviano

Por seu turno a dependência psíquica, exclusivamente mo­tivada pelo prazer experimentado aquando da tomada de droga, está ligada a acção pre­ponderante desta droga sobre o sistema de recompensa cerebral, por outras palavras, so­bre os neurónios de dopamina e as estruturas que estes inervam. Os psicoestimulantes, os opiáceos, o cannabis, a nicotina e provavel­mente o álcool estimulam, todos eles, directa­mente ou não, as vias neuronais que contem a dopamlna, neuromediador envolvido, entre outros, no controlo dos comportamentos afec­tivos e na regulação: ao dos estados emotivos, em particular o prazer: A dependência psíquica pode por conseguin­te estar ligada aos efeitos hedonistas das dro­gas, de acordo com o esquema que se segue: o primeiro consumo do produto activa o sis­tema de recompensa e provoca uma «satisfaço;» cerebral, daí uma motivação para repe­tir a experiência, o que, por sua vez, activa os sistemas executivos, decisórios e motores e permite a procura de uma nova experiencia. Quando esta é possível, o círculo vicioso da dependência psíquica activa-se.

            É preciso ter igual­mente em conta o efeito das drogas sobre al­guns outros sistemas neuronais, em particular os neurónios de noradrenalina e de seroto­nina. Por outro lado, os efeitos agradáveis das dro­gas são rapidamente ultrapassados pelas consequências nefastas do seu consumo prolon­gado e o discurso do toxicómano traduz muitas vezes o sofrimento de ter perdido a sua li­berdade. Por último, é frequente observar uma dissociação evolutiva entre a necessidade de consumir, sempre a aumentar, e o prazer do consumo, sempre a diminuir. A dependência psíquica está, a semelhança da dependência física, sujeita a um condicionamento de tipo Pavloviano

O estado em que se encontra o toxicodependente pode, assim, impedi-lo de compreender a ilicitude do facto e actuar conforme a essa compreensão. Tal estado é tanto mais evidente quanto mais próximo estamos de situações de síndrome de abstinência e de intoxicação.

Este quadro de intoxicação que apresentam as substâncias estupefacientes produz em muitas ocasiões um profundo efeito psicológico. A desorientação tempo espacial, a despersonalização, as alucinações visuais, auditivas e tácteis, a paranóia, a psicose, a esquizofrenia, as ideias delirantes, as sensações de mudança da própria realidade, a angustia são alterações psíqui­cas suficientemente importantes para suscitar sérias dúvidas sobre a existência de uma correcta compreensão do acto.

Importa por outro lado equacionar o síndrome de abstinência na sua projecção na vontade. O mesmo consubstancia-se por um conjunto de manifestações fisiológicas comportamentais e cognoscitivas nas quais o consumo de uma droga, ou de um tipo de drogas, assume a máxima prioridade para o individuo, maior que qualquer outro tipo de comportamento daqueles que no passado tiveram a maior importância.

            Ao falar de dependência os autores diferenciam o hábito ou dependência psicológica e a adição o dependência física. Assim, a dependência psicológica define-se como o impulso psíquico a administrar-se droga de forma intermitente ou continua para obter certo prazer ou dissipar um estado de mal estar enquanto que a dependência física seria o estado de adaptação que se manifesta pela aparição transtornos físicos quando se interrompe o consumo da substância aditiva.

Também já se defendeu a dependência física como um estado de hiperexcitabilidade que se desenvolve no toxicodependente em virtude do consumo frequente daquelas substâncias e que levam a um síndrome de abstinência ao deixar o consumo das mesmas substâncias. A dependência psíquica aparece ligada a um conceito subjectivo e arbitrário salientando-se que todas as substâncias que provocam dependência física provocam também a dependência psíquica embora nem sempre suceda o contrário.

Para a Organização Mundial de Saúde, a toxicodependência tem as seguintes características principais:

a-Um desejo invencível ou una necessidade de continuar consumindo a droga e de procurar por todos os meios.

b-Uma tendência a aumentar progressivamente a dose devido á tolerância que gera a droga.

c- Uma dependência de origem psíquica e, por vezes, física em consequência da droga94.

A tolerância consiste, como é sabido, num aumento gradual da dose com a finalidade de manter a mesma intensidade e duração dos efeitos do principio activo, encontrando-se estreitamente relacionada com o fenómeno da dependência. Una importante disparidade entre ambas radica no facto de que a dependência biológica não pode ser medida directamente, e a melhor maneira de determinar sua presencia e intensidade é observar os sinais e sintomas de abstinência valorando quantitativamente a sua intensidade).

            Um dado extraído da pratica indica que o maior número de delitos se consuma perante o medo de entrar em síndrome sendo certo que a privação assume diferente intensidade em função das próprias substancias psicotrópicas, dificultando a valoração do facto na medida a maioria dos drogados são poli dependentes.

De qualquer forma a maioria dos Autores pronuncia-se decididamente pela afectação da capacidade de autodeterminação pelo menos nos estados mais avançados do síndrome. Na verdade, os sintomas que integram o síndrome de absti­nência relativamente ás drogas, as quais, com manifesta evidência, o produzem e, nomeadamente, os opiáceos centram-se na ansiedade, agitação, fortes tremores, cãibra ou crises convulsivas, e que na medida da intensidade que podem alcançar estes sinais desembocam numa perturbação plena da consciência.

A conclusão sobre a relevância do estado de dependência pressupõe, todavia, a existência de requisitos como é o caso da exigência, ou seja, a comprovação do estado de toxicodependência ou seja do estado de dependência. Nem todas as drogas produzem os mesmos efeitos pelo que é necessário analisar diversos tipos de drogas no momento de avaliar a existência, ou não, do estado carencial.

Igualmente é certo que o síndrome de abstinência não é uma entidade fisiológica monolítica, mas aparece integrado pelas diversas fases que vai desenvolvendo o individuo –que não alcança uma nova dose de droga e nas quais a obnubilação mental é muito variável.

Em consonância com este facto (a grande variabilidade) e em consonância, também, com a plenitude de efeitos possíveis é que será possível avaliar a equação entre o síndrome de abstinência e a sua graduação em sede de responsabilidade criminal

Coerentemente com o exposto a existência do estado de toxicodependência e o síndrome de abstinência terá de ser aferido em relação ao lapso de tempo durante o qual se cometeu a infracção imputada

Dito isto é manifesto que as circunstâncias do caso vertente apontam, de forma evidente, no sentido da relevância do exame em causa. Na verdade, como se aponta na decisão recorrida, estamos perante um quadro de dependência de heroína em que o quotidiano dos arguidos é marcado pela dependência da droga a qual constitui o modo de vida.

A ausência de tal exame é prejudicial para a condição dos arguidos pois que a constatação dos pressupostos enunciados poderia conduzir a uma diminuição da sua responsabilidade sequente da crise da autodeterminação que é a base de culpa sendo esta o fundamento da pena.

Todavia, em sede procedimental os recorrentes escolheram um procedimento desadequado sendo este o momento de chamar á colação o consabido principio de que dos despachos recorre-se e contra as nulidades reclama-se. Na verdade, face a uma nulidade processual o interessado deve reclamar da mesma e a reclamação é apresentada e julgada no tribunal perante o qual a nulidade ocorreu, ou pelo tribunal a que a causa estava afecta no momento em que a nulidade se cometeu.

Como refere o Prof. Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, vol.V, reimpressão, Coimbra, 1984, pág. 424): «É postulado tradi­cional, que o próprio Supremo tem várias vezes proclamado: dos despachos recorre‑se, contra as nulidades reclama‑se (...). A reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é conse­quência de decisão judicial, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição da lei, a parte prejudicada não deve reagir me­diante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam‑se por meio de recursos (artigo 677.º) e não por meio de arguição de nulidade do pro­cesso».

Também o Prof. Manuel de Andrade escreve a este propósito Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1993, pág. 183): «...se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho), que ordenou, auto­rizou ou sancionou o respectivo acto ou omissão, em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a dedu­zir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. É a doutrina tra­dicional, condensada na máxima: dos despachos recorre‑se; contra as nulida­des reclama‑se».
Note-se que, como também salienta o Prof. Alberto dos Reis (Co­mentário, II vol., pág. 510), a autorização ou sancionamento do acto ou omis­são pode ser feita só de modo implícito, não é necessário que haja qualquer in­dicação mais ou menos concludente no sentido de o juiz ter considerado o ponto a que se refere a nulidade.
Ora, no caso, não foi deduzida oportunamente a arguição de nulidade antes se utilizou um meio de reacção inadequado.

II

A segunda questão que é suscitada pelo recurso interposto prende-se com a configuração jurídico-penal da actuação concreta do arguido. Na análise da mesma questão assume feição essencial a matéria de facto considerada provada, nomeadamente em dois segmentos distintos: 

1º- Pelo menos desde o dia 11 de Novembro de 2009 que os arguidos, não exercem qualquer actividade profissional remunerada, dedicando-se em exclusivo à venda de produtos estupefacientes, fornecendo diversos consumidores e toxicodependentes de Albufeira.

2º- Habitualmente os arguidos compravam esses produtos em local não apurado do Algarve, dividindo-o em doses individuais e vendiam-no directamente aos consumidores na zona antiga desta cidade de Albufeira, incluindo no Largo Engenheiro Duarte Pacheco.

3º- Algumas vezes e para saber se os arguidos tinham produto estupefaciente os consumidores telefonavam-lhes para os telemóveis de que eram possuidores.

4º- No dia 11 de Novembro de 2009, pelas 11 horas e 40 minutos, os arguidos dirigiram-se ao Largo Duarte Pacheco, conhecido por “Jardim de Albufeira”, e sentaram-se num dos bancos aí existentes.

6º- Porque avistaram um veículo da G.N.R. a passar no local os arguidos abandonaram-no, voltando cerca das 12 horas e 20 minutos, sendo que, desta feita, o arguido BB sentou-se num topo do jardim, local onde conseguia ver todas as movimentações, enquanto que a arguida AA se dirigiu a quatro indivíduos que estavam sentados num banco de pedra.

24º- Passados cerca de 10 minutos, o arguido BB foi ao encontro da sua companheira, a arguida AA, que lhe entregou o dinheiro que havia resultado das vendas de estupefacientes efectuadas até ao momento, abandonando este, de seguida, o local.

32º- Em data concretamente não apurada mas situada no verão de 2009, o arguido TT entregou directamente a JJ heroína, recebendo dinheiro como contrapartida dessa entrega.

33º- O arguido BB não só conhecia a actividade de venda de estupefaciente desenvolvida pela sua companheira, a arguida AA, como a auxiliava, designadamente, efectuando vigilâncias, atendendo telefonemas de compradores/consumidores e diligenciando pela aquisição de droga a terceiros.

34º- Acresce que não exercia qualquer actividade profissional utilizando o dinheiro conseguido com as ditas transacções para fazer face a todas as suas despesas, nomeadamente, pagando o quarto da pensão onde pernoitavam e adquirindo todos os bens necessários à sua subsistência.

35º- Os arguidos actuaram de forma concertada, livre, deliberada e consciente, sendo conhecedores da natureza estupefaciente dos produtos que adquiriam e vendiam, querendo com tal actuação angariar meios económicos, o que conseguiram.

36º- Do mesmo modo, os arguidos sabiam que essas suas condutas eram proibidas e punidas por lei e, não obstante, não se coibiram de as levar a cabo

A questão que então se coloca é a de saber se a actuação configurada pela forma expressa, tem a virtualidade para assumir a natureza de autoria ou, melhor dito, da figura de co-autoria. Num outro plano a chave da descodificação do acto ilícito praticado passa, necessariamente, por se enunciar o critério que distingue entre a prática do facto-autoria-e e o auxílio á prática por outrem do facto doloso-cumplicidade.  

Numa concepção restritiva do conceito de autoria só é autor quem realiza, por si mesmo, a acção típica, enquanto que a simples contribuição para a produção do resultado, mediante acções distintas das típicas, não pode fundamentar a imputação da autoria. Nesta perspectiva o estabelecimento de formas especiais de participação, como a instigação e a cumplicidade, significa que a punibilidade se amplia a acções situadas fora do tipo embora que, de acordo com este, apenas se deveria penalizar quem, pessoalmente, cometeu a infracção. Os outros intervenientes, que só determinaram o autor a realizar o facto punível, ou o auxiliaram, teriam que ficar impunes se não existissem os especiais preceitos penais relativos á comparticipação.

Ao conceito restritivo de autor opõe-se o conceito extensivo, sobretudo com a finalidade de colmatar as lacunas de punibilidade que implicava a aplicação daquele primeiro conceito. O fundamento dogmático desta teoria é a ideia da equivalência de todas as condições na produção do resultado a qual serve de base á teoria da “condição sine qua non”. Nesta perspectiva é autor todo aquele que contribuiu para causar o resultado típico sem que a sua contribuição para a produção do facto tenha que consistir numa acção típica.

 

Á face do direito penal português e, nomeadamente do artigo 26 do Código Penal, a teoria do domínio do facto é o eixo fundamental de interpretação da teoria da comparticipação. Iniciada por Lobe, e impulsionada essencialmente por Roxin, tem como ponto de partida o conceito restritivo de autor com a sua vinculação ao tipo legal.

Autor é, segundo esta concepção, e de forma sintética e conclusiva, quem domina o facto, quem dele é "senhor", quem toma a execução "nas suas próprias mãos" de tal modo que dele depende decisivamente o “se” e o “como” da realização típica; nesta precisa acepção se pode afirmar que o autor é a figura central do acontecimento. Assim se revela e concretiza a procurada síntese que faz surgir o facto como unidade de sentido objectiva subjectiva: ele aparece, numa sua vertente como obra de uma vontade que dirige o acontecimento, noutra vertente como fruto de uma contribuição para o acontecimento dotada de um determinado peso e significado objectivo.

Como refere Figueiredo Dias  o critério do domínio do facto deve restringir a sua validade, segundo Roxin, aos "delitos dolosos gerais" sem dúvida a esmagadora maioria dos crimes contidos na PE dos códigos penais que ele apelidou, consequentemente, delitos de domínio. "Senhor" do facto é, nestes delitos, aquele que domina a execução típica, de tal modo que a ele cabe papel director da iniciativa, interrupção, continuação e consumação da realização, dependendo estas, de forma decisiva, da sua vontade. A uma concretização desta ideia serve, adianta o mesmo Mestre, o nosso próprio sistema legal, pelo menos na medida em que o artigo 26° individualiza e distingue a autoria imediata, a autoria mediata e a co-autoria.

            Correspondendo a tal trilogia de formas de autoria existem, na verdade, três tipos diversos de domínio do facto:- O agente pode dominar o facto desde logo na medida em que é e/e próprio quem procede a realização típica, quem leva a cabo o comportamento com o seu próprio corpo (é o chamado por Roxin domínio da acção que caracteriza a autoria imediata). Mas pode também dominar o facto, e a realização típica mesmo sem nela fisicamente participar, quando domina o executante através de coacção, de erro ou de um aparelho organizado de poder (quando possui o domínio da vontade do executante que caracteriza a autoria mediata). Como pode, ainda, dominar o facto através de uma divisão de tarefas com outros agentes, desde que, durante a execução, possua uma função relevante para a realização típica (possuindo o que Roxin chamou o domínio funcional do facto que constitui o signo distintivo da co-autoria)           

De acordo, ainda, com o Professor Figueiredo Dias há nesta matéria da autoria, em todo o caso, uma asserção que deve reputar-se fundamental: a de que ela é, mais que uma decorrência, verdadeiramente um elemento essencial do ilícito típico. Por isso, a unidade de sentido da autoria, por um lado, participa da natureza do ilícito pessoal, do ilícito que é "obra de uma pessoa"; por outro lado liga-se indissoluvelmente a realização do tipo como exigência primária do princípio da legalidade.

O facto aparece, assim, como a obra de uma vontade que se dirige para a produção de um resultado. Porém, não só é determinante para a autoria a vontade de direcção, mas também a importância objectiva da parte do facto assumida por cada interveniente. Daí resulta que só possa ser autor quem, segundo a importância da sua contribuição objectiva, comparte o domínio do curso do facto.

Resulta daqui, e em primeiro lugar, que a realização pessoal, e plenamente responsável, de todos os elementos do tipo fundamenta sempre a autoria Este é, também, o sentido do artigo 26 do Código Penal ao apontar aquele que realiza por si mesmo o delito.

Importa, ainda, salientar que o conceito não pode limitar-se, como pretendia a teoria objectivo formal, á a realização de uma acção típica no estrito sentido literal. A interpretação dos tipos revela a descrição da acção, quando o resultado se produz pela actuação conjunta de várias pessoas, deve entender-se de um modo material que flexibilize o sentido literal. Por isso, o tipo, em certas condições, pode ser realizado também por aqueles que, pese embora não executarem uma acção típica em sentido formal, detêm o domínio do facto porque o comparticipam.

É neste sentido que releva a exigência a todos os intervenientes que comparticipem na decisão conjunta de realizar o facto, porque só de esta forma podem participar no exercício do domínio do facto. Para além disso cada um deverá adicionar objectivamente uma contribuição para o facto que, pela sua importância, resulte qualificado para o resultado e caracterize, em todo o caso, mais além de uma mera acção preparatória. Sem embargo, importa referir que, atendendo á "divisão de papéis" mais apropriada ao fim proposto, pode ocorrer na co-autoria uma contribuição para o facto que não entra formalmente no marco da acção típica suficiente para castigar por autoria. Basta que se trate de una parte necessária da execução do plano global dentro de una razoável "divisão de trabalho (domínio funcional do facto)

A co-autoria consiste, assim, numa "divisão de trabalho". que torna possível o facto ou que facilita o risco. Requer, no aspecto subjectivo que os intervenientes se vinculem entre si mediante uma resolução comum sobre o facto, assumindo cada qual, dentro do plano conjunto uma tarefa parcial, mas essencial, que o apresenta como co-titular da responsabilidade pela execução de todo o processo. A resolução comum de realizar o facto é o elo que une num todo as diferentes partes.

No aspecto objectivo, a contribuição de cada co-autor deve alcançar uma determinada importância funcional, de modo que a cooperação de cada qual no papel que lhe correspondeu constitui uma peça essencial na realização do plano conjunto (domínio funcional).

O necessário subjectivo da co-autoria é a resolução comum de realizar o facto. Unicamente através da mesma se justifica a imputação recíproca de contribuições fácticas. Não basta um consentimento unilateral, senão que devem "actuar todos em cooperação consciente e querida" Um acordo de vontades em que se fixa a distribuição de funções graças á qual deve obter-se, com as forças unidas o resultado perseguido em comum. Aliás, a forma como se faz a repartição de papéis deverá revelar que a responsabilidade pela execução do facto impende sobre todos os intervenientes. 

Conforme a definição legal (artigo 26°), várias pessoas podem ser co-autores, tomando parte directa na execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros.

Sublinhe-se que, na distinção entre a autoria singular imediata e a co-autoria, o autor singular executa o facto por si mesmo, enquanto o co-autor toma parte directa na sua execução - e fá-lo por acordo ou juntamente com outro ou outros.

Na co-autoria não precisa cada um dos agentes de realizar totalmente o facto correspondente à norma penal violada, podendo executá-lo só parcialmente. Na co-autoria várias pessoas dividem as tarefas e na fase executiva cada uma presta a sua contribuição para o êxito do plano comum.

Por outro lado, para caracterizar a decisão conjunta não parece bastar a existência de um qualquer acordo entre os comparticipantes - acordo que em regra existe também entre o autor e o cúmplice, - exigindo uns que todos os co-autores tenham uma "incondicional vontade de realização do tipo"; - impondo outros que o papel desempenhado por cada um revele objectivamente a sua participação no domínio do facto.

Deste último ponto de vista, o essencial residirá então no segundo requisito da autoria: o exercício conjunto do domínio (funcional) do facto. Um domínio funcional do facto que existirá quando o contributo do agente - segundo o plano de conjunto - põe, no estádio da execução, um pressuposto indispensável ã realização do evento intentado, quando, assim, "todo o empreendimento resulta ou falha". Em resumo, é indispensável uma decisão conjunta e uma execução conjunta da decisão. O acordo entre os agentes pode ser expresso ou tácito, prévio ou não à execução do facto.

O Supremo Tribunal de Justiça tem, desde há muito, consagrado a tese segundo a qual, para a co-autoria, não é indispensável que cada um dos intervenientes participe em todos os actos para obtenção do resultado pretendido, já que basta que a actuação de cada um, embora parcial, seja um elemento componente do todo indispensável à sua produção. A decisão conjunta pressupondo um acordo, que, sendo necessariamente prévio, pode ser tácito, pode bastar-se com a existência da consciência e vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado tipo legal de crime [a consciência e vontade unilateral de colaboração poderão integrar uma autoria paralela]. As circunstâncias em que os arguidos actuaram nos momentos que antecederam o crime podem ser indício suficiente, segundo as regras da experiência comum, desse acordo tácito; já no que diz respeito à execução, não é indispensável que cada um deles intervenha em todos os actos ou tarefas tendentes ao resultado final, basta que a actuação de cada um, embora parcial, se integre no todo e conduza à produção do resultado.

No caso concreto, e conforme consta da transcrição feita, existiu um acordo prévio na sequência do qual os arguidos assumiram papeis diferentes na aquisição e venda da droga sendo certo que tal divisão deve ser entendida dentro de uma linearidade ou simplicidade de actuação que caracteriza a sua actuação. Por outro lado, e essencial na apreciação que se faz sobre a actuação do arguido, é a ligação entre as transacções concretas efectuadas pela arguida e o seu papel de vigilância ou seja arranca-se do pressuposto de que a actividade concreta de observação existe em relação a cada um dos actos imputados á mesma arguida.

Na verdade, no que concerne ás imputações vagas e genéricas sem qualquer sustentação em termos de precisão de tempo, lugar e modo entendemos que a sua valoração, sem mais, pode consubstanciar uma ofensa ao direito de defesa do arguido o qual é confrontado com factos difusos em relação aos quais não em qualquer possibilidade de exercer o contraditório. Os valores e interesses subjacentes á vinculação temática do tribunal, implicada no princípio da acusação, constituem a pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido - sem o qual o fim do processo penal é inalcançável-, que assim se vê protegido contra arbitrários alargamentos da actividade cognitória e decisória do tribunal e assegura os seus direitos de contraditoriedade e audiência, pressuposto um real direito de defesa do arguido deveriam conduzir a absolvições maciças.

   Por outras palavras dir-se-á que a imputação genérica de uma actividade de venda de quantidade não determinada de droga, e a indefinição sequente em termos de espaço, tempo ou intervenientes, nunca poderá ser valorada num sentido não compreendido pelo objecto do processo, mas apenas dentro dos limites da acusação, e em relação á matéria em relação á qual existiu a possibilidade de exercício do contraditório.

        Não obstante, é certo que cada um dos arguidos estava incumbido de desempenhar uma tarefa concreta dentro dos contornos desenhados por um processo linear ou de manifesta simplicidade.

Conforme se referiu o elemento subjectivo da co-autoria é a resolução comum de realizar o facto. Vontade consciente, e querida, na sequência da qual se partilham as tarefas e, consequentemente, se assumem as inevitáveis responsabilidades. No caso vertente existiu esse querer que se consubstanciou nos actos concretos que cada um praticou de acordo com uma divisão de trabalho feita previamente.

                     O arguido foi co-autor do crime pelo qual foi condenado sendo certo que este crime se consubstancia nos actos em concreto imputados ao arguido.

III

            O artigo 21 do Decreto-lei 15/93 define o crime de tráfico e outras actividades ilícitas sobre substâncias estupefacientes, descrevendo de maneira assumidamente compreensiva e de largo espectro a respectiva factualidade típica: «Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver [...], plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas Tabelas I a IV, é punido com a pena de prisão de 4 a 12 anos».O mesmo preceito contém a descrição fundamental - o tipo essencial - relativa à previsão e ao tratamento penal das actividades de tráfico de estupefacientes, construindo um tipo de crime que assume, na dogmática das qualificações penais, a natureza de crime de perigo. A lei, nas condutas que descreve, basta-se com a aptidão que revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores (a vida, a saúde, a tranquilidade, a coesão inter-individual das unidades de organização fundamental da sociedade), considerando integrado o tipo de crime logo que qualquer das condutas descritas se revele, independentemente das consequências que possa determinar ou efectivamente determine: a lei faz recuar a protecção para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta.

           Crime de perigo abstracto é o crime que não pressupõe nem o dano nem o perigo de um concreto bem jurídico protegido pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para casuar um perigo para um desses bens jurídicos. Os tipos de perigo abstracto descrevem acções que, segundo a experiência conduzem á lesão não dependendo a perigosidade do facto concreto mas si de um juízo de perigosidade geral

            A qualificação do crime de tráfico de estupefaciente como crime de perigo pressupõe a identificação do bem jurídico tutelado pela respectiva norma incriminadora. Nesse particular releva a posição de princípio da Organização das Nações Unidas no sentido de que a luta contra o abuso e drogas é, antes de mais, e sobretudo um combate contra a degradação e destruição de seres humanos. A toxicomania priva a sociedade do contributo que os consumidores de drogas poderiam trazer á comunidade de que fazem parte.

O custo social e económico do abuso de drogas é pois exorbitante em particular se atentarmos nos crimes e violências que origina e na erosão de valores que provoca. O escopo do legislador é evitar a degradação e destruição de seres humanos provocadas pelo consumo de estupefacientes que o respectivo tráfico indiscutivelmente potencia.

O tráfico põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos: a vida; a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores de estupefacientes e, demais, afecta a vida em sociedade na medida em que dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos.

            É, assim, de um crime de perigo que tratamos, e de perigo comum, visto que a norma protege uma multiplicidade de bens jurídicos designadamente de carácter pessoal- reconduzidos á saúde pública. Finamente é, também, um crime de perigo abstracto porque não pressupõe nem o dano nem o perigo de um dos concretos bens jurídicos protegidos pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para as espécies de bens jurídicos protegidos abstraindo de algumas das outras circunstancias necessárias para causar um perigo desses bens jurídicos.

         Igualmente de enunciar é a estrutura progressiva que caracteriza o artigo 21 do Decreto-Lei 15/93 pretendendo abarcar a multiplicidade de condutas em que se pode desdobrar a actividade ilícita relacionada com o tráfico de droga. Tal preocupação, de perfil transversal, concretiza-se, com a integração vertical vertida em três tipos legais fundamentais que revelam a maior ou menor gravidade desta actividade em relação ao tipo fundamental daquele artigo 21, ou seja, o artigo 24 no sentido agravativo e o artigo 25 do mesmo diploma no sentido atenuativo.

Ainda em relação á progressividade de condutas abarcadas no tipo legal fundamental importa considerar que, para a teoria da unidade do delito, as diversas condutas são somente parte ou estados de um processo tendente a causar dano na saúde de pessoas indeterminadas e aqui radica a razão para que exista um só delito, ainda que se realizem duas ou mais acções distintas. Ao punir pretende-se impedir a produção de um só dano sendo este único dano unido ao único bem jurídico que se protege integrado pela saúde pública os factores que dão unidade ao delito. Tal posicionamento omite o acto de nos encontrarmos perante um delito de perigo e não de lesão pelo que a lesão do bem jurídico dificilmente pode assumir uma função clarificadora.

Para a teoria do concurso de normas a técnica empregue pelo legislador é a de utilizar uma disposição com várias normas entendendo por disposição em sentido técnico a forma exterior da fonte que introduz no ordenamento a norma jurídica. Entre norma e disposição pode existir uma correspondência quantitativa porque a disposição contem uma única norma mas também tal coordenação pode faltar porque a disposição contem várias normas. O facto de uma disposição conter uma pluralidade de normas provoca um concurso aparente ente as mesmas que deve ser resolvido de acordo com os principio gerais que regulam esta matéria ou seja as condutas em lugar de se acumular excluem-se em virtude dos principio da consumpção da especialidade ou subsidiariedade.

Para esta teoria a razão para que se sancione o agente por um único delito ainda que se verifiquem todas as condutas deve-se á aplicação dos principio gerais que regulam o concurso de normas para o qual é indiferente que a pluralidade de normas esteja contida numa única disposição ou em várias disposições diferentes.

            Todavia, a opção que a jurisprudência consagrou tem como paradigma a teoria das condutas alternativas que radica na consideração de que as diversas condutas não autónomas em si, mas alternativas, de tal maneira que para a subsistência do delito é indiferente que se realize uma ou outra permanecendo um só delito ainda que se realizem as diversas acções descritas.

Efectivamente nesta caso a razão pela qual se castiga por um único delito não radica na existência de um concurso de normas, mas sim da especial estrutura delitiva já que se trata de um delito de condutas alternativas que estão entre si numa relação de progressão criminal de maneira a que do cultivo de droga se passa á fabricação de produtos estupefacientes que exijam intervenção química; o transporte e, por último os actos de tráfico[2]

                                                           

        Caracterizado o tipo importa agora equacionar a ilicitude relevante para, consoante o respectivo grau, caracterizar o crime de tráfico de menor gravidade. 

            Uma acção é formalmente antijurídica na medida em que está em contravenção com uma proibição ou mandato legal e é materialmente anti jurídica na medida em que com ela se plasma uma lesão de bens jurídicos socialmente nociva e se não se pode combater suficientemente com meios extra penais[3]

A importância prática da anti juriscidade material é tripla permite realizar graduações da ilicitude e aproveita-las dogmaticamente; proporciona meios auxiliares de interpretação para a teoria do tipo e do erro e para solucionar outros problemas dogmáticos e torna possível formular os princípios e que se baseiam as causas de exclusão do ilícito e determinar o seu alcance. É em função da mesma que se pode graduar a ilicitude de acordo com a sua gravidade.

            Como a quantidade e qualidade do ilícito material são essenciais para o grau de culpa e por sua vez a medida desta tem grande importância para a medição da pena a pena resulta decisivamente determinada por aquele.

            O crime de tráfico de droga surge como ponto de referência de exemplo da necessidade de tipificar o maior ou menor grau de ilicitude como forma de corresponder á potencialidade de perigo de lesão do bem jurídico e da sua compatibilização com o principio da proporcionalidade.

            A construção do tipo legal com base  no maior grau de ilicitude surge, também, como instrumento adequado de realização de uma politica criminal que distingue as realidades criminógenas que estão subjacentes a este fenómeno criminal e que potencialmente podem apresentar características absolutamente diversas.

            Como se refere em decisão deste Supremo Tribunal[4] a construção e a estrutura dos crimes ditos de tráfico de estupefacientes, como crimes de perigo, de protecção (total) recuada a momentos anteriores a qualquer manifestação de consequências danosas, e com a descrição típica alargada, pressupõe, porém, a graduação em escalas diversas dos diferentes padrões de ilicitude em que se manifeste a intensidade (a potencialidade) do perigo (um perigo que é abstracto-concreto) para os bens jurídicos protegidos. De contrário, o tipo fundamental, com os índices de intensidade da ilicitude pré-avaliados pela moldura abstracta das penas previstas, poderia fazer corresponder a um grau de ilicitude menor uma pena relativamente grave, com risco de afectação de uma ideia fundamental de proporcionalidade que imperiosamente deve existir na definição dos crimes e das correspondentes penas.

Por isso, a fragmentação por escala dos crimes de tráfico (mais fragmentação dos tipos de ilicitude do que da factualidade típica, que permanece no essencial), respondendo às diferentes realidades, do ponto de vista das condutas e do agente, que necessariamente preexistem à compreensão do legislador: a delimitação pensada para o grande tráfico (artigos 21º e 22º do Decreto-Lei no 15/93), para os pequenos e médios traficantes (artigo 25º) e para os traficantes-consumidores (artigo 26º)[5]

                                                       

            O artigo 25º do Decreto-Lei nº 15/93, denominado de "tráfico de menor gravidade", dispõe, com efeito, que «se, nos casos dos artigos 21º e 22º a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade e as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações», a pena é de prisão de 1 a 5 anos (alínea a)), ou de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias (alínea b)), conforme a natureza dos produtos (plantas, substancias ou preparações) que estejam em causa.

            Trata-se, como é entendido na jurisprudência e na doutrina[6] de um tipo privilegiado em razão do grau de ilicitude em relação do tipo fundamental de artigo 21º. Pressupõe, por referência ao tipo fundamental, que a ilicitude do facto se mostre «consideravelmente diminuída» em razão de circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da acção, e a qualidade ou a quantidade dos produtos.
           A essência da distinção entre os tipos fundamental e privilegiado reverte, assim, ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), aferida em função de um conjunto de itens de natureza objectiva que se revelem em concreto, e que devam ser globalmente valorados por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei, e significativas para a conclusão quanto à existência da considerável diminuição da ilicitude pressuposta no tipo fundamental. Os critérios de proporcionalidade que devem estar pressupostos na definição das penas, constituem, também, um padrão de referência na densificação da noção, com alargados espaços de indeterminação, de «considerável diminuição de ilicitude».

            As referências objectivas contidas no tipo para aferir da menor gravidade situam-se nos meios; na modalidade ou circunstâncias da acção e na qualidade e quantidade das plantas. Na sua essência o que pretende é estabelecer-se a destrinça entre realidades criminológicas distintas que, entre si, apenas têm de comum o facto de constituírem segmentos distintos de um mesmo processo envolvido no perigo de lesão. Na verdade o legislador sentiu a aporia a que era conduzido pela integração no mesmo tipo leal de crime de condutas de matriz tão diverso como o tráfico internacional envolvendo estruturas organizativas integradas e produto de quantidades e qualidades muito significativas[7] e negócio do dealer de rua, último estádio de um processo de comercialização actuando isoladamente, sem estrutura e como mero distribuidor. Num segmento intermédio mas nem por isso despojado, em abstracto, de significativa ilicitude situa-se o tráfico interno, muitas vezes com uma organização rudimentar (e com tendência a uma compartimentação cada vez maior dificultando a investigação).

             Função essencial na interpretação do tipo em questão assume a referência feita pelo legislador no proémio do D.L. 430/83 quando já aí demonstrava a sensibilidade á diversidade de perfis de actuação criminosa dizendo que “Daí a revisão em termos que permitam ao julgador distinguir os casos de tráfico importante e significativo, do tráfico menor que, apesar de tudo, não pode ser aligeirado de modo a esquecer o papel essencial que os dealers de rua representam no grande tráfico. Haverá assim que deixar uma válvula de segurança para que situações efectivas de menor gravidade não sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que ao invés se force ou use indevidamente uma atenuante especial   

            A relevância de tal pressuposto também é adequada para a prossecução de relevantes finalidades de prevenção geral e especial, justifica as opções legais tendentes à adequada diferenciação do tratamento penal entre os grandes traficantes (artigos 21º, 22º e 24º) e os pequenos e médios (artigo 25º), e ainda daqueles que desenvolvem um pequeno tráfico com a finalidade exclusiva de obter para si as substâncias que consomem (artigo 26º).

                                                       

            Justificada, em temos dogmáticos, a existência do tipo legal em apreço importa agora, numa tentativa de aproximação concreta, densificar os critérios eleitos como consubstaciadores daquela menor gravidade.

            Sem qualquer margem para a dúvida que a inexistência de uma estrutura organizativa e/ou a redução do acto ilícito a um único negócio de rua, sem recurso a qualquer a qualquer técnica ou meio especial, dão uma matriz de simplicidade que, por alguma forma conflui com a gravidade do ilícito. Como elementos coadjuvantes relevantes e decisivos surgem, então, a quantidade e a qualidade da droga.                                                                                                                                                                                                                                     

A quantidade de droga possuída constitui aqui um elemento da importância vital na altura de realizar a verificação revelando-se como um instrumento técnico (às vezes único) para demonstrar o destino para terceiros do estupefaciente possuído. É preciso que nos fundamentemos na quantidade da substância, quando outros dados não existem, se não quisermos violar o objectivo que o legislador tenta prosseguir com o crime de tráfico          

            Pretendem os recorrentes que a sua conduta se integra nos elementos constitutivos do artigo 26 do diploma citado, ou seja, afigura do traficante consumidor.

Refere-se a norma citada á situação em que o agente com a sua actividade ilícita (por referência ao artigo 21º) tiver por finalidade exclusiva conseguir droga para uso pessoal e a quantidade de produto detido não exceder o necessário para o consumo individual durante o período de cinco dias, a pena será atenuada.

Reconhece o legislador que há consumidores que traficam para conseguir sustentar o seu consumo e que esse comportamento, pese embora seja ilícito, é-lhes compreensivelmente menos censurável. Relembre-se que o tráfico de droga em pequena ou grande escala é utilizado pela quase totalidade dos toxicodependentes e o artigo em causa reflecte essa realidade.

            Importa porém precisar, como elemento do tipo, a exigência da “finalidade exclusiva”.

É certo que o toxicodependente vai perdendo progressivamente até ao total a capacidade para o trabalho, quer a nível físico quer a nível intelectual. A toxicodependência transforma o percurso de vida do drogado, tornando a droga a primeira, e a última, das razões para além de quaisquer outros valores. Em função da sua dependência os valores, bem como os compromissos ou deveres, assumem um papel secundário.

Orbitando a sua vida em função da droga, nomeadamente das drogas que criam um estado de adição mais consistente, é evidente que, muitas vezes o consumo bem como a satisfação das necessidades básicas está dependente dos resultados de um tráfico de sobrevivência.

Aceita-se, assim, como válido o pressuposto de que arrancam os recorrentes. Porém, o interprete não pode colher da lei uma interpretação que colide frontalmente com a sua letra e não tem apoio em qualquer elemento de exegese o que equivale a dizer que a finalidade exclusiva de consumo não pode ser considerada a finalidade que visa a satisfação de outras necessidades por mais primárias ou básicas que sejam.

É evidente que tal interpretação restringe, deixando sem cobertura da norma actividades que deveriam merecer igual tutela pois que o toxicodependente que trafica para alimentar o seu consumo terá necessariamente de prover igualmente ao seu sustento. Na verdade, quando o toxicodependente trafica para consumir, normalmente já perdeu tudo: trabalho, família e casa-a única coisa que conta é a satisfação do seu vício.

            Porém, como se afirmou a constatação de tal realidade não pode legitimar uma interpretação á margem, ou contra a lei, pois que a questão é a forma como o legislador protege, ou não, os interesses que lhe são propostos.

            Sem embargo é evidente que o quadro factual subjacente a uma impetração pela aplicação do regime do artigo 26 deve ser considerado em sede de medida da pena.

III

  Importa agora apreciar sobre a medida da pena aplicada o que pressupõe uma indagação prévia sobre a finalidade que se propõe a mesma pena Na verdade se é certo que a fixação da pena dento dos limites do marco punitivo é uma acto de discricionariedade Judicial igualmente é exacto que tal discricionariedade não é livre, mas sim vinculada aos princípios individualizadores que, em parte, não estão escritos, mas que radicam na própria finalidade da pena.

 Como refere Jeschek o ponto de partida da individualização penal é a determinação dos fins das penas pois que só arrancando de fins claramente definidos é possível determinar os factos que relevam na respectiva ponderação. Aqui, é preciso, em primeiro lugar, readquirir a noção da importância fundamental que assume a justa retribuição do ilícito, e da culpa, compreendendo o princípio da culpa quer uma função fundamentadora, quer uma função limitadora da mesma pena. Ao mesmo nível que a retribuição justa situa-se o fim da prevenção especial.

Por consequência a pena deve ponderar, também, a forma de contribuir para a reinserção social do arguido e de não prejudicar a sua posição social para além do estritamente inevitável. Esta exigência está plasmada na fórmula de Kohlrausch sobre a prevenção especial “Na individualização da pena o tribunal deve considerar os meios necessários para reconduzir o arguido a uma vida ordenada e ajustada á lei”.

 Salienta Jeschek que, na prevenção especial, se contem a protecção da comunidade face ao delinquente perigoso o que é, frequentemente, esquecido.

 Por fim a prevenção geral é um fim indispensável da pena pois que esta deve ser ponderada por forma a neutralizar os efeitos do delito como exemplo negativo para a comunidade e deve contribuir, simultaneamente, para fortalecer a sua consciência jurídica assim como a satisfazer o pedido de justiça por parte do circulo de pessoas afectadas pelo delito e pelas suas consequências (confirmação da ordem jurídica).

Substancialmente distinta da exposta é a posição de Figueiredo Dias que, analisando os vectores que devem presidir á aplicação da medida da pena, salienta que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado a pena não pode ultrapassar em caso algum, a medida da culpa. Nestas duas proposições reside, na sua opinião, a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena.[8]

Mais refere o mesmo autor que, primordialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto. E não se objectará validamente a esta ideia que não tem sentido falar em tutela de bens jurídicos face a uma infracção já verificada e que precisamente lesou ou pôs em perigo bens jurídicos. Quando se afirma que é função do direito penal tutelar bens jurídicos não se tem em vista só o momento da ameaça da pena, mas também - e de maneira igualmente essencial - o momento da sua aplicação. Aqui, pois, protecção de bens jurídicos assume um significado prospectivo, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou prevenção de integração, que decorre precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena que o art. 18.°-2 da CRP iniludivelmente consagra. A ponto de poder afirmar-se que onde a medida da pena não fosse comandada essencialmente por este critério de necessidade, aí poderia descortinar-se uma infracção ao espírito da referida norma constitucional.

     Em última análise está em causa a formulação de Jakobs - emitida na esteira da terminologia de Luhmann - segundo a qual a finalidade primária da pena reside na estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada.  A medida da necessidade de tutela de bens jurídicos não será, pois, um acto de valoração in abstracto, mas um acto de valoração in concreto, de conformação social da valoração legislativa, a levar a cabo pelo aplicador à luz das circunstâncias do caso. Factores, por isso, da mais diversa natureza e procedência - e, na verdade, não só factores do «ambiente», mas também factores directamente atinentes ao facto e ao agente concretos podem fazer variar a medida da tutela dos bens jurídicos e da necessidade da pena. [9]

Afirma o mesmo Autor que a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa. A verdadeira função desta última, na doutrina da medida da pena segundo o Professor Figueiredo Dias, reside, efectivamente, numa incondicional proibição de excesso: a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas - sejam de prevenção geral positiva ou antes negativa, de integração ou antes de intimidação, sejam de prevenção especial positiva ou negativa, de socialização, de segurança ou de neutralização. Com o que se toma indiferente saber se a medida da culpa é dada num ponto fixo da escala penal ou antes como uma moldura de culpa: de uma ou de outra forma, é o limite máximo de pena adequado à culpa que não pode ser ultrapassado. Uma tal ultrapassagem, mesmo em nome das mais instantes exigências preventivas, poria em causa a dignitas humana do delinquente e seria assim, logo por razões jurídico-constitucionais, inadmissível.

Adianta ainda Figueiredo Dias que, dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração - entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos – podem, e devem, actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve, em toda a extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia óptima de protecção dos bens jurídicos.

Tal entendimento converge com o desenvolvimento da uma das linhas da dogmática da culpa na qual se situa Günther Jakobs, ao formular uma “concepção funcional da culpa” construída sobre a teoria sociológica da formação do Direito a cargo de Niklas Luhmann. Perfilham a orientação de Jakobs, autores para quem a culpa reside num “ deficit na motivação jurídica do agente”. Essa culpa depende das exigências da prevenção geral, no grau de responsabilidade pessoal do autor pela sua acção.

Jakobs designa a culpa quase como um “derivado da prevenção geral”. O objectivo da sanção seria a estabilização da vigência da norma e a exercitação da confiança no Direito por parte da sociedade, e não a confrontação com o agente. A dependência da culpa em relação ás exigência da prevenção geral alcança uma expressão evidente, como refere o mesmo Autor, no facto de que no momento de estabelecer o conteúdo da culpa resulta decisivo “o estado em que se encontra a sociedade em cada caso

Ainda na perspectiva de Jakobs os próprios implicados “deverão gerir quantas restrições sociais poderá ser onerado o agente por aplicação do princípio da culpa e quantas características desagradáveis deste têm que ser aceites pelo Estado e pela sociedade”.A censura da culpa, não se refere á lesão dolosa, ou imprudente, de um bem jurídico por parte do autor, mas liga-se a uma carência no “âmbito da organização” próprio, carência pela qual o mesmo autor é responsável.

A culpa é a “parte de responsabilidade” do agente pela sua falta de disponibilidade para deixar-se motivar pela norma correspondente” quando “esse deficit não possa fazer-se compreensível sob a afirmação de que não afecta a confiança geral na norma”.

Estamos em crer que é nunca é demais acentuar o papel da culpa como critério fundamentador da medida da pena, ao invés da preponderância que alguns, entre os quais Jakobs, outorgam á prevenção geral, colocando-a acima da retribuição da culpa pelo delito quando é esta, na realidade, que justifica a intervenção penal. Na verdade as normas deveriam “ser reafirmadas na sua própria existência como um fim em si mesmas” enquanto o agente, pelo contrário, tem direito a esperar, e espera, sobretudo uma resposta ao facto injusto e culposo que cometeu. Realçando-se a prevenção como critério fundamental desvanece-se, com prejuízo da justiça individual, a orientação que o Direito penal faz da responsabilidade do agente pela sua acção.

Sem embargo, a culpa e a prevenção residem em planos distintos. A culpa responde á pergunta de saber de se, e em que medida, o facto deve ser reprovado pessoalmente ao agente, assim como qual é a pena que merece. Só então se coloca a questão, totalmente distinta da prevenção. Aqui há que decidir qual a sanção que parece apropriada para introduzir de novo o agente na comunidade e para influir nesta num sentido social-pedagógico.

A culpa é a razão de ser da pena e, também, o fundamento para estabelecer a sua dimensão. A prevenção é unicamente a finalidade da mesma.[10]

 A restrição do princípio da culpa á função de “meio para a limitação da pena” é o ponto central na interpretação deste conceito transmitida por Claus Roxin. Por tal forma pretende o mesmo autor fazer a teoria jurídico-penal da culpa “independente do livre arbítrio” . Por seu turno, tal conceito de culpa, restringido ao papel de margem superior da pena, é o fundamento da nova categoria sistemática de “responsabilidade”, na qual se fundiu a culpa do autor com a necessidade preventiva da pena.

A isto pode-se objectar, reafirmando o ensinamento de Jeschek, que a culpa, se é o limite superior da pena, também deve ser co-decisivo para toda a determinação da mesma que se encontre abaixo daquela fronteira. Aliás, e fundamentalmente, ao limitar-se a fixação concreta da pena a fins preventivos, a decisão do juiz perde o ponto de conexão com a qualificação ética do facto que é julgado, e a pena, por esse facto perde também todo a possibilidade de influir a favor daqueles objectivos de prevenção.

Só apelando á profundidade moral da pessoa se pode esperar tanto a ressocialização do condenado como também uma eficácia sociopedagógica da pena sobre a população em geral. A renúncia ao critério da culpa para a pena concreta é um preço demasiado alto por evitar o problema da liberdade na teoria da culpa[11] 

                        Aprofundando ainda o exposto, mas agora em sede de violação do princípio da proporcionalidade, torna-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade da culpa expressa no facto e a gravidade da pena. Ao cometer um crime, o agente incorre na sanção do Estado, no exercício do seu direito de punir e esta sanção poderá importar uma limitação de sua liberdade.

             Uma das principais ideias presente no princípio da proporcionalidade é justamente, invadir o menos possível a esfera de liberdade do indivíduo isto é invadir na medida do estritamente necessário á finalidade da pena que se aplica porquanto se trata de um direito fundamental que será atingido.

                        É certo que a determinação da concreta medida definitiva da pena tem sempre presente pon­tos de vista preventivos. Dado que o parâmetro da culpa representa um estádio na determinação da medida definitiva da pena a sua dimensão final fixa-se, também, de acordo com critérios preventivos dentro dos limites impostos pela culpa.

                        Também neste contexto a proibição de excesso tem uma importância determinante. Segundo o mesmo importa eleger a forma de intervenção menos gravosa que ofereça perspectivas de êxito e, assim, é possível que a dimensão concreta da pena varie dentro dos limites da culpa segundo a forma como se apresenta a concreta imagem de prevenção do autor. [12]

                        Como refere Anabela Rodrigues a finalidade de prevenção geral que aqui está em causa é limitada pela referência ao bem jurídico e sua importância. Com o que o conteúdo da prevenção geral que aqui está em causa começa a ganhar contornos: a gravidade do facto cometido deve integrar esse conteúdo, servindo, além do mais, de limite à prevenção[13].

            Adianta a mesma Autora que O que se diz, pois, é que, exactamente do ponto de vista de um controlo racional preventivo da criminalidade que se justifique a partir da necessidade social da intervenção penal jurídico-constitu­cionalmente consagrada (artigo 18.°-2), é possível assinalar à preven­ção geral um conteúdo que a impeça de excessos. Via a exigir que o efeito preventivo, a obter-se (apenas) mediante a confirmação da validade da norma jurídica violada, se realize em consonância com a função de protecção de bens jurídicos que cabe ao direito penal assegurar. Só assim, e ainda na medida em que esta função ape­nas se legitima se e enquanto não há outros meios para possibilitar a convivência pacifica dos homens em sociedade, a realização daquela finalidade de prevenção postulará a sua limitação pelo princípio da proporcionalidade. Princípio que não é mais do que um limite à intervenção penal derivado do fundamento da prevenção geral na necessidade social e que implica, no âmbito da medida da pena, que a sua gravidade seja adequada à gravidade da lesão do bem jurídico ocorrida. O que significa que, com isto, o efeito de preven­ção geral que se quer obter - protecção de bens jurídicos -, radi­cado na necessidade, mediante o limite que constitui a própria refe­rência ao bem jurídico, postula um limite à sua própria realização - a proporcionalidade -, com que nunca correrá o risco de se transformar numa prevenção geral de intimidação.

  Na verdade, e atribuindo consistência prática ao exposto, as penas têm de ser proporcionadas á transcendência social- mais que ao dano social - que assume a violação do bem jurídico cuja tutela interessa prever. O critério principal para valorar a proporção da intervenção penal é o da importância do bem jurídico protegido porquanto a sua garantia é o principal fundamento da referida intervenção.[14]

            A necessidade de proporcionalidade constitui também uma exigência do Estado democrático: um direito penal democrático deve ajustar a gravidade das penas á transcendência que para a sociedade têm os factos a que se ligam. Exigir uma proporção entre delitos e penas no é, com efeito, mais que pedir que a dureza da pena não exceda a gravidade que pa­ra a sociedade possui o facto punido.

Em termos redutores dir-se-á que a proporcionalidade entre a medida da pena e o crime que implica uma retribuição pelo mal praticado pelo arguido é uma exigência da comunidade que só assim pode, e deve, aceitar a justiça encontrada no caso concreto.                                                          

Partindo de tal pressuposto, considerando a culpa como sendo critério fundamental na determinação da medida da pena, e no que concerne aos factores de medida da pena no caso concreto, importa agora procedera uma afinação de critérios.[15]

            Nomeadamente, e no que toca á “execução do facto”, importa salientar as circunstâncias inerentes ao modo de execução, que e traduz num tráfico de rua numa zona limite do tipo base próxima de tipos de menor gravidade. Os recorrentes são manifestamente toxicodependentes cuja vida se centra na droga pois que viviam desta e para esta

            A sua actividade surge convergente em grande parte num círculo coincidente com a típica do traficante consumidor apenas a excedendo na medida em que era também á roga que iam buscar o necessário para satisfação de necessidades básicas. Sem pretender desculpabilizar mas marcando diferenças estamos perante um quadro de “tráfico de miséria”.

            Os actos concretos de venda processaram-se ao longo de um largo período de tempo e se existiu uma pluralidade de compradores igualmente é certo que as quantidades em causa assumiram uma dimensão mínima.

É evidente a existência de dolo directo. Porém, a culpa assume uma dimensão bem mais vincada em relação ao arguido que, persistentemente, tem assumido uma opção de vida desvaliosa á margem dos valores da comunidade e para a qual convocou a arguida. A culpa refere-se a um itinerário de vida que se reflecte no facto ilícito praticado    

 Igualmente é certo que, se subscrevemos as considerações inerentes á prevenção em relação aos crimes de tráfico, não podemos deixar de marcar a diferença em concreto nos diversos tipos que o mesmo assume e que a mesma prevenção assume uma cromática totalmente distinta entre o acto de tráfico que visa o lucros ilícito em larga escala daquele que visa a sobrevivência na dependência.

Considera-se a confissão dos factos operada em audiência e efectuada pelos dois arguidos e que não foi valorada na decisão recorrida

Sublinha-se o esforço desenvolvido pelos arguidos para se afastarem do consumo de estupefacientes que se consubstancia no diagnóstico favorável das entidades a que está entregue a sua recuperação dos efeitos da dependência.

Importa, ainda, considerar o estado de dependência Na verdade, não pode deixar de assumir especial relevância nesta visão global a consideração de que a actuação dos arguidos teve um denominador comum que é a sua dependência do consumo de droga ou, dito por outra forma, o síndrome de dependência.

  É certo que tal estado de dependência não anula a consciência do acto ou a liberdade de acção. Porém, como refere Figueiredo Dias[16], a culpa adiciona um novo elemento á acção ilícita-típica sem o qual nunca poderá falar-se de facto punível, ou seja, necessário se torna que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente por aquele se revelar expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever ser ético comunitário. Não poderá deixar de se tomar em atenção a forma como aquela opção dos recorrentes pelo comportamento ilícito ou desvalioso foi condicionada por uma prévia sujeição a uma dependência da droga e á necessidade de satisfazer o seu vício.

 Importa valorar os antecedentes criminais dos arguidos sendo certo que em relação á arguida apenas consta uma admoestação pela prática do crime de furto simples p.p. pelo artigo 203 do Código Penal.

             Nesta conformidade, entendem-se por adequadas as penas de quatro anos e seis meses de prisão e cinco anos e seis meses de prisão em relação, respectivamente, a AA e BB pela prática do crime p.p. no artigo 21 do Decreto Lei 15/93.

IV

    Será de admitir a suspensão da execução da pena aplicada á recorrente?               

             - A decisão a emitir pressupõe a ultrapassagem de uma fase de determinação da pena concreta e implica uma definição do equilíbrio entre a prevenção geral e especial na aceitação daquela pena de substituição.

         Uma das questões mais importantes no âmbito das penas substituição, e com que se debate a decisão, é o critério, ou critérios, que devem presidir à escolha entre prisão e uma pena de substituição. O que se afirma é então que, na lei penal vigente, a culpa só pode (e deve) ser considerada no momento que precede o da escolha da pena - o da medida concreta da pena de prisão -, não podendo ser ponderada para justificar a não aplicação de uma pena de substituição: tal atitude é tomada tendo em conta unicamente critérios de prevenção. Significa o exposto que não oferece qualquer dúvida interpretar o estipulado pelo legislador (artigo 71º do Código Penal) a partir da ideia de que um orientamento de prevenção-e esse é o da prevenção especial- deve estar na base da escolha da penal pelo tribunal; sendo igualmente um orientamento de, agora, de prevenção geral, no seu grau mínimo - o único que (e deve) fazer afastar a conclusão a que se chegou em termos prevenção especial.

            Assim, reafirma-se o princípio de que as considerações de culpa não devem ser levadas em conta no da escolha da pena. Na verdade, o juízo de culpa já foi feito: antes de se colocar a questão da escolha da pena importou já decidir sobre a aplicação da pena de prisão e sobre a sua medida concreta, para o que foi decisivo um juízo (concreto) sobre a culpa do agente. Conforme refere Figueiredo Dias “afastada a relevância da culpa no problema da escolha da pena de neste âmbito, comportam mutuamente, substituição, resta determinar como se as exigências de prevenção geral e de prevenção especial"

            É inteiramente distinta a função que umas e outras exercem neste contexto. Prevalência decidida, considera o mesmo Mestre, não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo todo o movimento de luta elas que justificam, em perspectiva político-criminal, contra a pena de prisão. E prevalência, anote-se, a dois níveis diferentes:

-o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas; coisa que só raramente acontecerá se não se perder de vista o já tantas vezes referido carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração. Em segundo lugar, sempre que, uma vez recusada pelo tribunal a aplicação efectiva da prisão, reste ao seu dispor mais do que uma espécie de pena de substituição (v,g. multa, prestação de trabalho a favor da comunidade, suspensão da execução da prisão), são ainda considerações de prevenção especial de socialização que devem decidir qual das espécies de penas de substituição abstractamente aplicáveis deve ser a eleita.

      Por seu turno a prevenção geral surge aqui sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.

        Impõe-se que a comunidade jurídica suporte a substituição da pena, pois só assim se dá satisfação ás exigências de defesa do ordenamento jurídico e, consequentemente, se realiza uma certa ideia de prevenção geral. A sociedade tolera uma certa perda de efeito preventivo geral-isto é conforma-se com a aplicação de uma pena de substituição, mas nenhum ordenamento jurídico se pode permitir pôr-se a si mesmo em causa, sob pena de deixar de existir enquanto tal. Em caso de absoluta incompatibilidade, as exigências (mínimas) de prevenção geral hão-de funcionar como limite ao que, de uma perspectiva de prevenção especial, podia ser aconselhável 

       A aplicação de uma pena de substituição é suficiente, não só para evitar que o agente reincida, como também para realizar o limiar mínimo de prevenção geral de defesa da ordem jurídica. Na verdade, a utilização de reacções não institucionais foi muitas vezes apontada um enfraquecimento da ideia de repressão que se alia á pena: dir-se-ia que a realização das finalidades de prevenção geral e a expressão do castigo pelo crime cometido que se pretendeu realizar através da pena entrariam, com elas, em crise. Ora, é hoje unanimemente conhecido que qualquer das formas de substituição de da pena clássica de prisão não deixa de envolver a inflição de um mal que comporta um efeito mais ou menos penoso para quem o sofre, constituindo, nesse sentido, uma verdadeira pena. O que se quer assim significar é que as exigências de exteriorização física da reprovação pelo crime cometido impõem, em certos casos, ao menos por agora, se lance mão da pena de prisão.                                                       

            É exactamente esse delicado equilíbrio entre os limites propostos pelos fins das penas que terá de ser resolvida a questão proposta. E, desde logo, deve-se prevenir para uma difícil conjugação entre a aplicação de uma pena de prisão, com o juízo positivo sobre a suficiência da advertência contida na suspensão da execução, e as exigências contidas na prevenção a nível geral.

   Pressuposto básico da aplicação de pena de substituição á arguida recorrente será a existência de factos que permitam um juízo de prognose favorável. Por outras palavras é necessário que o tribunal esteja convicto de que a censura expressa na condenação e a ameaça de execução da pena de prisão aplicada são suficientes para afastar o arguido de uma opção desvaliosa em termos criminais e para o futuro. Tal conclusão terá de se fundamentar em factos concretos que apontem de forma clara na forte probabilidade de uma inflexão em termos de vida, reformulando os critérios de vontade de teor negativo e renegando a prática de actos ilícitos.

.           Por outras palavras é necessário que o tribunal esteja convicto de que a censura expressa na condenação, e a ameaça de execução da pena de prisão aplicada, são suficientes para afastar a arguida de uma opção desvaliosa em termos criminais e para o futuro.

            Importa considerar aqui o percurso seguido pela arguida que, assumindo a sua responsabilidade criminal pelo crime imputado, evoluiu favoravelmente no plano físico e psicológico, superando a desintoxicação e encontrando-se com reduzida medicação (artigo 51 da matéria provada). Mais se afirma que a situação de reclusa tendo vindo a causar constrangimentos pessoais e familiares permitiu um corte com um modo de vida desajustado e a desabituação do consumo de estupefacientes. Os actos praticados inscreveram-se, assim, num ciclo de vida condicionado pela droga que se indicia estar ultrapassado.

 Por outro lado as expectativas da comunidade, em termos de prevenção geral, não repelem a possibilidade suspensão de execução da pena tendo em conta as particulares situações do caso vertente em que, configurando-se uma situação de tráfico, não é menos certo que a mesma se situa numa zona próxima da situação do traficante consumidor.

Nestes termos julgam-se parcialmente procedentes os recursos interpostos e, em consequência, condenam-se os arguidos AA e BB, respectivamente, nas penas de quatro anos e seis meses de prisão e cinco anos e seis meses de prisão pela prática do crime p.p. no artigo 21 do Decreto Lei 15/93.

A pena aplicada á arguida é suspensa pelo período de quatro anos e seis meses com a obrigação de acompanhamento periódico por instituição de recuperação de toxicodependência nos termos a determinar pelo tribunal de primeira instância.

Sem custas

Supremo Tribunal de Justiça, 31 de Julho de 2011

Santos Cabral (Relator)

Oliveira Mendes

_________________________
[1]
Finalidades
1 —Para efeitos da perícia prevista no artigo 52ºdo Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, os procedimentos de diagnóstico e os exames periciais têm por finalidade determinar:a) O eventual estado de toxicodependência do arguido;b) A natureza dos produtos consumidos pelo arguido;c) O estado do arguido no momento da sua realização;d) Os eventuais reflexos do consumo na capacidade do arguido para avaliar a ilicitude dos seus actos ou para se determinar de acordo com a avaliação feita.
2 — Para efeitos do exame médico previsto no artigo 43.o do Decreto-Lei n.o 15/93, de 22 de Janeiro,
os procedimentos de diagnóstico e os exames periciais têm por finalidade determinar:a) O eventual estado de toxicodependência da pessoa a eles sujeita;b) A existência de grave risco para a sua saúde ou de perigosidade social decorrentes daquele estado.
3.oEnumeração-Os procedimentos de diagnóstico e os exames periciais que devem ser realizados tendo em vista as finalidades referidas no número anterior são os seguintes:a) Recolha da história pessoal, abrangendo o período pré-natal, a infância, a adolescência e a idade adulta;b ) Recolha da história familiar;
c) Recolha da situação actual;d) Recolha da história clínica, abrangendo o eventual consumo de estupefacientes ou de substância spsicotrópicas, os outros hábitos tóxicos e os antecedentes médico-cirúrgicos;e) Exame objectivo, abrangendo a apresentação, o exame físico e o exame psiquiátrico;f) Exames complementares, quando necessários, abrangendo os toxicológicos ao sangue, à urina
ou a outros produtos biológicos, os serológicos e os psicológicos
[2] Confrontar ... Huidobro”El delito de tráfico de estupefacientes
[3] Roxin Derecho Penal Parte General pag 559
[4] Acórdão de 25 de Maio de 2005
[5] Cfr.. v. g., LOURENÇO MARTINS, "Droga e Direito", ed. Aequitas, 1994, pág. 123; e, entre vários, o acórdão deste Supremo Tribunal, de 1 de Março de 2001, na "Colectânea de Jurisprudência", ano IX, tomo I, pág. 234).

[6] Acórdão deste Supremo Tribunal, cit. de 1 de Março de 2001, com extensa indicação de referências jurisprudenciais
[7] O montante das apreensões de cocaína e Portugal no ano de 2005 atingiu um montante de  19 toneladas com um valor superior a 350 milhões de Euros
[8] Direito Penal Português pag 227
[9]  À primeira vista, dir-se-ia que este critério básico da necessidade da pena, ligado à tutela de bens jurídicos, haverá de fornecer um quantum exacto de pena; com o que a pena concreta, medida a esta luz, se tomaria de novo numa Punktstrafe, que não admitiria qualquer correcção: fosse pela consideração da culpa (senão na medida em que esta influenciasse o nível de estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada), fosse por pontos de vista de prevenção especial de socialização. Pois, acrescentar-se-ia, tudo o que fique aquém desta medida exacta de tutela de bens jurídicos não cumpre ainda a finalidade primária da pena, enquanto tudo o que vá além excederá a medida da necessidade e será assim ilegítimo.
Nada, porém, seria menos exacto do que urna tal concepção. Há, decerto, urna medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias; medida, pois, que não pode ser excedida em nome de considerações de qualquer tipo. Mas, abaixo desse ponto óptimo, outros existem em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se sem que esta perca a sua função primordial; até se alcançar um limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmenté em causa a sua função tutelar.

[10] Não se ignora, realça Jeschek, a relevância na Alemanha uma interpretação que pretende conceder ao principio da culpa exclusivamente a função de limite superior da pena, enquanto que para precisar a mesma pena concreta só os aspectos preventivos devam ser decisivos Assim se indicava no § 59,  1° do Projecto alternativo de 1966 que “ a culpa pelo facto determina o limite superior da pena”, enquanto que a sua dimensão no caso particular se rege unicamente por objectivos de prevenção.
 Como justificação, os autores do Projecto argumentaram, de forma negativa, que “queriam prevenir a ideia de retribuição. O Código Penal alemão, sem embargo, não seguiu este Projecto, mas, pelo contrário, converte a culpa no § 46, 1°, 1°no “fundamento para a fixação da pena” e, com isso, não só em fronteira superior da medida da pena, mas também em principio decisivo para a fixação da pena concreta. A razão de ser desta decisão do legislador reside no facto de a pena não dever estar só ao serviço das finalidades preventivas mas, em primeiro lugar, ao serviço da retribuição da culpa, ou seja, a sanção está marcada pelo pensamento de que através dela “o agente experimenta a merecida resposta de desaprovação da comunidade jurídica ao facto ilícito e culposo por ele cometido”.
[11] Hans Heinrich Jescheck, "Evolución del concepto jurídico penal de culpabilidad en Alemania y Austria Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia Núm. 05 (2003) -
[12] É justa aquela medida que se limita estritamente á obtenção da finalidade imprescindível. Como refere Liszt: "A pena necessária, neste sentido, é também a pena justa" .
[13] A determinação da medida da pena privativa de liberdade pag 371
[14] Norbert Barranco “El principio de proprcionalidad” pag 211
[15]  Refere a decisão recorrida como factores de medida da pena
               Ambos os arguidos agiu com dolo directo.
                É significativo relevante o número de concretos actos de venda apurados (quase que atinge a centena) feitos a diversos consumidores, não se assumindo aqui como particularmente relevante a circunstância do produto estupefaciente ser de quantidade reduzida (importando mais o volume das vendas), pese embora se deva ter em conta que essas dimensões já foram consideradas para a incriminação dos arguidos pelo tipo base do art.º 21º).
                Face à dimensão que a dependência de produtos estupefacientes apresenta na sociedade, com as graves consequências que de todos são conhecidas, e o papel que nessa dependência assume o tráfico de estupefacientes (condição e muitas vezes causa da toxicodependência) que ainda é potenciador da prática de outros ilícitos criminais, afiguram-se como particularmente elevadas as exigências de prevenção geral.
                È de registar que o arguido BB não só apresenta antecedentes criminais assinaláveis- duas condenações pelo crime de furto qualificado e três condenações pelo crime de tráfico de estupefacientes- como, à data dos factos que vão levar á condenação do arguido neste processo, encontrava-se a decorrer o período de suspensão da execução das penas de prisão que lhe fora aplicada em três distintos processos……..
Quer dizer, não obstante saber que havia sido suspensa a execução da pena de prisão em três processos, incluindo duas condenações pelo crime de tráfico de estupefacientes, o arguido não quis deixar de delinquir, e pelo mesmo tipo de crime.
No que respeita á arguida AA, apesar dos antecedentes criminais não assumirem relevância semelhante á do co-arguido, não se deixará de apontar que aquela já foi condenada pela prática de um crime de furto simples.
No entanto, em sede de exigências de prevenção especial, importará ter em conta que agora se evidencia um esforço por parte dos arguidos em se afastarem do consumo de estupefacientes, embora não se podendo garantir que aqueles continuarão com tais propósitos e conseguirão finalmente afastar-se da toxicodependência, passo fundamental para a sua inserção social.
Ainda no que concerne á determinação da medida da pena, não se deixará de ter em conta os reflexos que o envolvimento dos arguidos com o consumo de estupefacientes assumiu na actividade ilícita a que aqueles se dedicaram.
Por isso, tendo presente todas as demais circunstâncias do caso e a postura assumida pelos arguidos em audiência de julgamento, deverá ser fixada uma pena concreta mais próxima do limite mínimo, mas não deixando de traduzir a culpa dos arguidos, o que significará a fixação de uma pena de 5 anos e 6 meses para a arguida AA e de 6 anos e 6 meses para o arguido BB (esta medida maior determinada pelos antecedentes criminais do arguido).

[16] Temas Básicos de Direito Penal pag 230