Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
540/12.9TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SILVA GONÇALVES
Descritores: USUCAPIÃO
POSSE
POSSE PÚBLICA
PRESCRIÇÃO
INÍCIO DA PRESCRIÇÃO
PRESTAÇÕES PERIÓDICAS
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
INDEMNIZAÇÃO
RESTITUIÇÃO DE IMÓVEL
PRIVAÇÃO DO USO
Data do Acordão: 02/15/2017
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / TEMPO E SUA REPERCUSSÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS / PRESCRIÇÃO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / PRESCRIÇÃO DO DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO - DIREITOS REAIS / POSSE / USUCAPIÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ).
Doutrina:
- Abílio Neto, “Código de Processo Civil” Anotado, 54.
- Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil” Anotado, Vol. V, 139, 140, 143.
- Aníbal de Castro, A Caducidade, 28, A Caducidade, 2.ª edição actualizada, 171/172.
- Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 6.ª ed., 302.
- Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II445-446.
- Menezes Cordeiro, A Posse; Perspectivas Dogmáticas Actuais, 54 e ss.; Direitos Reais, II Volume, 663/664, 670, 675.
- Nuno Sebastião, A Condenação Além do Pedido, 10.
- Oliveira Ascensão, Reais 359.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 307.º, 310.º, ALÍNEA G), 360.º, N.º 1, 498.º, N.º 1, 1251.º, 1260.º, 1262.º, 1267.º, N.º 1, AL. D), E N.º 2, 1271.º, 1282.º, 1296.º, 1297.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 3.º, 615.º, 1, ALS. B), D).
CÓDIGO DE REGISTO PREDIAL (CRPRED): - ARTIGO 7.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-N.º 259/2000, D.R., II SÉRIE, DE 7 DE NOVEMBRO DE 2000.

-*-

ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 26/10/1975, BOLETIM, 250.º, 150, ANOTADO NA R.L.J, N.º 109, 311.
-DE 14/01/1993, B.M.J., 423.°, 519.
-DE 19/06/2012, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 20/03/2014, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I. A posse oculta, também designada de “clandestina”, tomada sem oferecer ao titular do direito a oportunidade de defesa, ou seja, aquela que é exercida sem o conhecimento do possuidor ou proprietário, não conduz à aquisição, por usucapião, do direito de propriedade.

II. Cotejando o disposto no n.º 1 do art.º 498.º (prescrição) e o estatuído no n.º 1 do art.º 360.º, ambos do Código Civil, da sua descrição resulta que o prazo prescritivo começa a correr, impreterivelmente, a partir do momento em que o titular do direito o possa exigir do seu devedor; e, porque nem sempre coincidem o instante em que se fica a saber da ilicitude factual que determina o direito à indemnização, ou seja, a altura em que o lesado fica a conhecer do direito que lhe assiste, e o momento em que este ressarcimento pode ser exigido, havemos de considerar que, na ausência desta marcante contemporaneidade, a contagem do prazo conducente à prescrição se inicia, sempre e só, quando o direito puder ser exercido.

III. Tendo na devida conta que a indemnização atribuída à autora se circunscreve ao pagamento da quantia de € 900,00 mensais, desde 14/3/2012 (data da citação da 1.ª ré) e até que ocorra a restituição do espaço ilicitamente ocupado pelas rés, porque o prazo prescricional deve começar a correr no momento em que o direito invocado, sendo exigível também pode ser exercido, soçobra a argumentação das recorrentes sobre a prescrição do direito de indemnização que à autora é assentida tão só a partir de 14/3/2012.

IV. É que, porque a autora ainda não pôde exercer o direito que nesta ação lhe é conferido - tratando-se de prestações periódicas a prescrição do direito unitário do credor corre desde a exigibilidade da primeira prestação que não for paga (art.º 307.º do C.Civil) - o prazo para a sua prescrição ainda nem sequer principiou.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



“AA, Lda” instaurou acção declarativa, com forma ordinária, contra BB e, posteriormente, também contra CC, pedindo:

a) - Se condenem as RR. a reconhecerem o direito de propriedade da autora sobre o prédio urbano sito na Rua … n.º … a …, tornejando para a Rua da … nos … e …, composto de rés-do-chão com lojas, cinco andares e águas furtadas;

b) - Se condenem as RR. a restituírem a parte que ocupam por baixo do soalho do 1º andar e em parte do rés-do-chão (explicitado no ponto 9.º do articulado de aperfeiçoamento da petição) do prédio da A. e a reconstruírem a parede traseira do edifício da A., repondo a situação anterior às obras que efectuaram;

c) - Seja fixada uma sanção pecuniária compulsória não inferior a 5.000 € diários para o caso de as rés não cumprirem a sentença;

d) - Subsidiariamente, que a A. execute tais obras e se condenem as RR. a pagar o respectivo custo, no montante de 48.000 €;

e) - Em qualquer caso, a condenação das RR. a pagarem uma indemnização não inferior a 1.500€ por mês, até efectivo cumprimento da sentença,  que  até  à instauração da acção ascende a 94.500€.

        

Alega, em síntese, que adquiriu o mencionado prédio por compra e venda em 1980 e procedeu ao respectivo registo a seu favor, e que as RR. são proprietárias do prédio contíguo sito nas traseiras do prédio da A. Em Janeiro de 2006, ao proceder a obras de recuperação do seu edifício detectou que a parede traseira, contígua ao prédio das RR. se encontrava abatida, apresentando um desnível de  cerca de 14 centímetros em relação  à  parede da frontaria,  o que  a levou a reforçar a estrutura do edifício com vigas de aço. Ao tentar executar esse reforço no 1º andar, deparou-se com a existência de um vão que penetra no seu prédio e ocupa parte dele, entre o primeiro andar e o rés-do-chão. Essa ocupação de parte do seu prédio resulta do aumento da área de duas lojas do prédio das RR. para dentro do seu, numa extensão de 7,35 metros por 2,40 metros. A ocupação parcial do seu prédio por parte das lojas das RR. impede a autora de concluir o  reforço  da  estrutura  do  seu  edifício,  colocando  em  risco  a  respectiva  segurança, bem como a impede de concluir as obras no 1º andar e na loja do seu prédio. As RR. foram intimadas pelos Serviços Camarários a repor a situação anterior, o que não acataram. Impossibilitada de concluir a obras do seu prédio, a A. não pode arrendar o 1.º andar pelo valor de 500 € e a loja por 1 000 €, o que desde Janeiro de 2007 perfaz já um prejuízo de 94.500€ (63 meses à razão de 1.000 € + 500 €). A reposição da situação anterior importa num custo de 48 000€.


A R. contestou e deduziu reconvenção. Por excepção invoca a prescrição do direito da A. a obter indemnização porque a fundamenta na putativa conduta ilícita que remonta a Janeiro de 2007 e apenas instaurou a acção em Março de 2012, prescrevendo assim o seu direito a indemnização. Nega ter realizado as obras de aumento da área das suas lojas e de ocupação de parte do prédio da A.

Refere que quando adquiriu o prédio em 1989, por efeito de sentença proferida em acção de preferência, já as lojas tinham a área que actualmente possuem; essa área existente por baixo do soalho do 1º andar do prédio da A. faz parte integrante do rés-do-chão do seu prédio. Nega ter sido intimada pela Câmara Municipal a realizar obras de reposição do seu prédio.

Em reconvenção pede o reconhecimento da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre o espaço situado por baixo do soalho do 1º andar do prédio da A. e é por esta reivindicada. Alega para o efeito que adquiriu o prédio em 1989, por força de sentença proferida em acção de preferência, o qual é composto por rés-do-chão, quatro andares e águas furtadas; o rés-do-chão é composto por duas lojas, uma com entrada pelo 6-A e outra com entrada pelo 8-A e têm uma área total de 86,45 m2; a área existente por baixo do soalho do 1º andar do prédio da A. faz parte do rés-do-chão do seu prédio; o primeiro andar é composto por quatro divisões e tem uma área de 70,60 m2; o segundo andar tem a área de 70,60 m2; o terceiro andar tem a área de 72,34 m2; as águas furtadas têm a área de 61,12 m2. Desde 28/09/1989 que, ininterruptamente, tem usado e fruído o seu prédio, incluindo a área reivindicada pela A., pago todas as obras, impostos e taxas, sempre à vista e com o conhecimento de todos e sem oposição de ninguém, com a consciência de exercer o seu direito de propriedade e na convicção de não prejudicar ninguém.

        

Na réplica a A. pugna pela improcedência da exceção de prescrição, argumentando que a actuação da R. ao ocupar parte da área do prédio consubstancia um facto permanente e duradouro. Defende a improcedência da reconvenção, dizendo que as obras foram feitas às ocultas e que a ocupação de parte da área do prédio da A. não é perceptível do exterior do edifício, o que nos termos do art.º 1297º do CC impede a usucapião. Pede a condenação da R. como litigante de má fé, em multa e indemnização a fixar pelo tribunal, por a mesma negar ter sido intimada pela Câmara Municipal, como resulta dos documentos que juntou ao processo.


Na tréplica a R. mantém que não foi por obra sua que o espaço das lojas do seu prédio passou a ocupar parte da área do prédio da A.: quando adquiriu o prédio as lojas já tinham aquela configuração e área. Pugna pela improcedência da pretensão da sua condenação como litigante de má fé.


Em audiência preliminar foi a autora convidada a explicitar a área ocupada em termos de comprimento, altura e largura e a sua localização precisa.


A A. correspondeu ao convite, apresentando nova petição inicial, explicitando que a ocupação pelas lojas do prédio da R. ocupam um nível intermédio do prédio da A., que é de 12,30 m2 ao nível das lojas do rés-do-chão (lado esquerdo 5,60 m2 e lado direito 6,70 m2) e de 13 m2 ao nível do 1º andar, na área total de 25,30 m2. A nível das lojas da A. verifica-se redução do pé-direito de 2,75 m para cerca de 1,95 m por baixo do tecto numa banda contínua de 1,60 m; ao nível do 1º andar da A., verifica-se uma redução do pé-direito em cerca de 0,85 cm devido a um alteamento em degrau do pavimento ao longo do limite contíguo numa banda de 2 m. O aumento da loja da R. com entrada pelo 8-A para dentro do prédio da A. faz-se por uma passagem pelo saguão que foi tapado. Em consequência da explicitação da área ocupada aperfeiçoa o pedido alargando-o também à parte da área ocupada do seu rés-do-chão (ponto 9º da petição inicial aperfeiçoada).

 

A R. respondeu à petição inicial aperfeiçoada, reiterando, no essencial o que havia alegado na sua contestação e alarga a reconvenção em consequência da explicitação do pedido da A..

        

Em audiência prévia, foi a R. reconvinte convidada a esclarecer a titularidade do prédio, bem como a suprir a falta de concretização da matéria de facto alegada quanto aos actos materiais praticados em relação ao específico local ou espaço reivindicado.

        

A R. correspondeu ao convite, explicitando que o prédio integra a herança indivisa do seu falecido marido, sendo co-herdeira a sua filha CC. Explicita que a loja com entrada pelo nº 8-A tem 32 m2 e é composta por uma divisão, uma arrecadação e uma casa de banho; a loja com entrada pelo nº 6-A tem a área de 12,35 m2 e é composta por uma divisão e uma casa de banho. A área que a A. reivindica localiza-se ao nível do rés-do-chão do prédio da R., na parte posterior da loja com entrada pelo 6-A e da arrecadação da loja com entrada pelo nº 8-A. As lojas do seu prédio sempre tiveram a configuração e áreas que actualmente ocupam e sempre foram assim utilizadas nas actividades que nelas se têm desenvolvido. Explicita o pedido reconvencional peticionando se reconheça que adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre a parte posterior da loja com entrada pelo nº 6-A e a arrecadação que serve a loja com entrada pelo nº 8-A e se localizam entre o 1º andar e o r/c do prédio da A.

          

A A. respondeu à reconvenção aperfeiçoada, mantendo no essencial a mesma posição já expressa.


CC requereu a sua intervenção principal espontânea como associada da R. e reconvinte, mediante adesão aos articulados desta, intervenção que foi admitida.


Em audiência prévia foram indicados o objecto do litígio e os temas de prova e relegado para a decisão final o conhecimento da excepção de prescrição do direito de indemnização da A.


Teve lugar exame pericial por perito singular, sendo que antes do início da acção tinha tido lugar perícia colegial, enquanto produção antecipada de prova.

  

Realizado julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando as RR. a reconhecerem o direito de propriedade da A. sobre o prédio urbano sito na Rua … nº … a …, tornejando para a Rua da … nos … e …, composto de rés-do-chão com lojas, cinco andares e águas furtadas e absolvendo as RR. do pedido quanto ao demais peticionado  pela A. , não se condenando as mesmas como litigantes de má fé.

E julgou a reconvenção procedente, declarando que as RR. adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade sobre a parte posterior e casa de banho da loja com entrada pelo nº 6-A e a arrecadação que serve a loja com entrada pelo nº 8-A e se localizam entre o 1º andar e o r/c do prédio da A.


Inconformada, desta sentença apelou a autora para a Relação de Lisboa que, por acórdão de 21.04.2016 (cfr. fls. 1139 a 1170), julgando parcialmente procedente a apelação, revogou correlativamente a sentença recorrida e condenou as rés a, além de reconhecerem o direito de propriedade da autora sobre o prédio urbano sito na Rua dos … n.º 106 a 114, tornejando para a Rua da … nos 2 e 4, composto de rés-do-chão com lojas, cinco andares e águas furtadas, como foi decidido na 1ª instância, restituírem à autora a parte que ocupam por baixo do soalho do 1.º andar e em parte do rés-do-chão do prédio desta (explicitado no ponto 9.º do articulado de aperfeiçoamento da petição), e a pagarem-lhe, desde 14/3/2012, o valor mensal de € 900, até que ocorra a referida restituição, absolvendo as RR. do demais peticionado.


Desagradados com o decidido, recorrem agora para este Supremo Tribunal as rés BBe CC, que alegaram e concluíram pela forma seguinte:

1. O acórdão recorrido na parte em que julga improcedente o pedido reconvencional e em que condena as rés a, além de reconhecerem o direito de propriedade da A. sobre o prédio urbano sito na Rua dos … n.º 104 a 114, tornejando para a Rua da … n.º s 2 a 4, composto de rés-do-chão com lojas, cinco andares e águas furtadas, como foi decidido na 1.ª instância, restituírem à A. a parte que ocupam por baixo do soalho do 1.º andar e em parte do rés-do-chão do prédio desta (explicitado no ponto 9° do articulado de aperfeiçoamento da petição) e a pagaram-lhe, desde 14/3/2012, o valor mensal de € 900, até que ocorra a referida restituição, é injusto, porque desconforme com o Direito.

2. No seu petitório a autora não lançou mão da alegação e da prova da aquisição originária ou sequer da presunção derivada do registo quanto aos espaços que reivindica, limitando-se a configurar a sua acção - causa de pedir e pedido - exclusivamente com base numa alegada acessão ou usurpação que não logrou provar.

3. Ao Tribunal a quo é vedado que, em substituição da autora decida fora das questões que lhe foram dirigidas, sob pena de cometer excesso de pronúncia com violação do princípio do dispositivo (artigo 3°-1 do CPC) e do princípio do contraditório (artigo 3°-3 do CPC).

4. O acórdão do Tribunal a quo é nulo por extravasar as questões que lhe foram submetidas à apreciação, nos termos do disposto no artigo 615°-1- d)- 2.ª parte do CPC.

5. A presunção legal do direito registado (artigo 7° do CRpr) não abrange a área, confrontações e/ou limites dos imóveis registados.

6. O acórdão do Tribunal a quo não indica nem especifica os fundamentos que justificam a aplicação da presunção de o direito registado abranger o espaço que resulta circunscrito em função das respetivas paredes delimitadoras - as prumadas - quando esteja em causa a respectiva contiguidade em relação a um prédio vizinho, sendo por essa razão nulo, nos termos do disposto no artigo 615°-1 -b) do CPC.

7. A posse pública, determina o artigo 1262° CC, é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados.

8. Para ser pública exige-se que o exercício da posse seja feito de modo a poder ser conhecido dos interessados mas já não um seu conhecimento efectivo (artigo 1263° -a) do CC), por contraposição à posse oculta que não leva à usucapião.

9. Para que a posse seja pública para efeitos de aquisição basta que se possua a coisa como a possuiria um normal proprietário, sem a ocultar dos eventuais interessados.

10. Há que apreciar objectiva e casuisticamente da possibilidade dos interessados se poderem ou não aperceber do exercício da posse.

11. In casu, existe uma zona das lojas das rés que ocupa uma área de 12,30 m2 ao nível das lojas do r/c do prédio da autora e uma área de 13 m2 ao nível do 1.º andar do prédio da autora, sendo que em consequência o 1.º andar do prédio desta apresenta-se com parte do respectivo pavimento alteado em cerca de 0,85 metros e ao nível do r/c parte do respectivo pé direito encontra-se reduzido para 1,95 metros, zona esta que nas palavras das testemunhas da própria Autora (DD, EE, FF, GG, HH e II, conforme ponto 1.3.1.1 da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto) constitui um "palanque" ou "caixa" ou "estrado" visível entre parte do 1.º andar e a loja do prédio da autora.

12. A autora, quer os anteriores proprietários, não podia ignorar a existência da ocupação dos espaços pelas lojas das rés, assim como não podia ignorar que eles apenas serviam os proprietários do prédio das rés, pois só com ele tinha ligação, porque é notoriamente iniludível e visível.

13. Assim sendo e porque estamos in casu perante uma situação de posse em que concorrem o corpus e o animus, posse pacífica e pública e continuada durante mais de quinze e de vinte anos, ou seja, perante todos os requisitos necessários à aquisição do direito de propriedade sobre as áreas em causa, tem de se concluir que se radicou na esfera jurídica das rés o direito de propriedade sobre tais áreas, através da usucapião (artigo 1287° CC).

14. Não pode pois deixar de ser inteiramente procedente o pedido reconvencional das rés de que adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade sobre a parte posterior e casa de banho da loja com entrada pelo n° 6-A e a arrecadação que serve a loja com entrada pelo n.º 8-A e se localizam entre o 1° andar e o r/c do prédio da autora pelo que nesta medida deve acórdão recorrido nesta parte ser substituído por outro que declare a procedência do pedido reconvencional.

Sem prejuízo do exposto, e por extrema cautela, há ainda que ter em conta que,

15. Os factos que a Autora invoca para sustentar o pedido de indemnização que deduziu, reportam-se, como a própria expressamente o indicou, o que inclusive consta dos factos provados, a Janeiro de 2007.

16. A Autora propôs a acção que deu início aos presentes autos no dia 07.03.2012.

17. Desde Janeiro de 2007 até 07.03.2012, decorreram 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses.

18. Desde Janeiro de 2007 até 07.03.2012, decorreram mais de 3 (três) anos.

19. O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete - artigo (498°- 1 do CC).

20. O alegado direito à indemnização prescreveu em Janeiro de 2010.

21. Completada a prescrição, o cumprimento e reconhecimento da pretensa obrigação de indemnizar não é judicialmente exigível (artigo 304°-1 do CC).

22. O Tribunal a quo determinou a aplicação do disposto a final no artigo 1271.º CC, por considerar a alteração da posse de boa fé das rés a partir da citação, a qual cessou a partir desse momento e passou a ser uma posse de má fé por força do disposto no artigo 481 ° -a) do CPC fazendo corresponder o dever de indemnização das rés ao valor dos frutos que a autora enquanto proprietária diligente poderia ter obtido com os espaços ocupados.

23. A posse das rés, ainda que de má fé, não causa no caso em concreto, quaisquer prejuízos à autora.

24. A ocupação dos espaços por parte das lojas das rés, não impede a autora de acabar as obras no seu prédio ou de arrendar o 1.º andar e a loja do seu prédio.

25. A conclusão das obras, ou não, e o arrendamento, ou não, do 1.º andar e da loja do prédio da autora são da sua exclusiva vontade e domínio.

26. As rés não podem ser responsáveis pelas rendas que alegadamente a autora não tem obtido pelo arrendamento do 1.º andar e da loja do seu prédio porquanto se não as obtém é porque não quer.

27. Cada uma das alegadas áreas na posse das rés - 12,30 m2 ao nível da loja no rés-do-chão e de 13 m2 ao nível do 1.º andar - não tem a virtualidade de por si só produzir quaisquer frutos.

28. Cada uma das alegadas áreas na posse das rés - 12,30 m2 ao nível da loja no rés-do-chão e de 13 m2 ao nível do 1.º andar - não tem por si só valor económico pelo que nunca poderiam produzir frutos pelos quais as Rés  pudessem a vir ser responsáveis.

29. O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa deve ser revogado, na parte que condenou as rés no pagamento de indemnização desde a citação - e a da 1.ª Ré ocorreu em 14/3/2012 - pelas rendas que a A. não tem obtido com o arrendamento dos referidos 1.º andar e loja, consequentemente, pelo valor mensal de € 900, desde aquela data, até que ocorra a restituição dos espaços ocupados pelas RR. nesse 1.º andar e loja.

Terminam pedindo que seja revogado o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e substituído por decisão que considere procedente o pedido reconvencional das rés e as absolva dos restantes pedidos.


Contra-alegou a recorrida “AA, Lda” pedindo a manutenção do julgado.


Corridos os vistos legais, cumpre decidir.


As instâncias consideraram provados os factos seguintes:

Da petição inicial

1º- Pela Ap. 7, de 1980/03/26, mostra-se registada a aquisição, por compra, a favor da A., do prédio urbano sito na Rua dos … nºs 106 a 114, tornejando para a Calçada da …. nºs 2 a 4, composto por duas lojas no R/C e por 5 andares e águas furtadas, inscrito na matriz sob o art.º 71º, da freguesia do Socorro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o nº 35…/…, freguesia do Socorro.

2º- Pela Ap. 12964, de 2010/12/02, mostra-se registado a favor das RR. o prédio urbano sito na Calçada da …, nºs 6 a 8-A,  composto por loja, r/c, quatro andares e águas furtadas, inscrito na matriz predial sob o art.º 75º da freguesia do Socorro, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o nº 6…/19… da freguesia do Socorro.

3º- O prédio das RR. é contíguo com o prédio da A. pelas traseiras.

4º- Em Janeiro de 2006 a A. iniciou obras de recuperação do seu prédio, começando pelo telhado e aplicando vigas de aço verticais para reforço da estrutura do edifício, na zona da parede traseira, entre o telhado e o 1º andar.

5º- As lojas do prédio das RR. com entrada pelos nºs 6-A e 8-A, penetram parcialmente no prédio da A., ocupando uma área de 12,30 m2 ao nível das lojas do r/c do prédio da A. e uma área de 13 m2 ao nível do 1º andar do prédio da A..

6º- A autora apercebeu-se dessa situação aquando da realização das obras de recuperação do seu prédio.

7º- A parte do 1º andar do prédio da A. - ocupada por parte das lojas das RR. -apresenta-se com parte do respectivo pavimento alteado em cerca de 0,85 metros; e ao nível do r/c, do prédio da A. parte do respectivo pé direito encontra-se reduzido para 1,95 metros. 

8º- A penetração das lojas das RR. em parte do prédio da A. condiciona a utilização do 1º  andar e de parte do r/c do prédio da A.

9º- A zona do saguão entre os prédios foi coberta, ao nível do r/c, servindo de comunicação para a arrecadação da loja do nº 8-A do prédio das RR. na parte que se insere no prédio da A..

10º- A A. destina o seu prédio a arrendamento.

11º- O valor locativo do 1º andar com as obras concluídas ronda os 500 € por mês.

12º- O valor locativo da loja, com as obras concluídas, ronda os 400 € por mês.

Da Contestação e da Reconvenção (aperfeiçoada, a fls 278 e segs).

13º- A 1ª R. adquiriu o prédio referido em 2º supra por via de sentença proferida a 20/07/1989, transitada em julgado, em acção de preferência, em que era A. e que correu termos sob o nº 5 273 da 2ª Secção do 3º Juízo Cível de Lisboa.

14º- Desde que adquiriu o prédio a 1ª R. limitou-se a fazer obras de conservação.

15º- O r/c do prédio das RR. tem a área de 86,45 m2 e é composto por duas lojas, uma loja com entrada pelo nº 6-A e com área de 12,35 m2, contendo uma divisão e uma casa de banho e, outra loja com entrada pelo 8-A com a área de 32 m2, contendo uma divisão, duas casas de  banho e uma arrecadação.

16º- Quando a 1ª R. adquiriu o prédio, as lojas do nº 6-A e do nº 8-A já tinham a configuração e áreas que actualmente apresentam, incluindo a parte posterior e casa de banho da loja com entrada pelo 6-A e, a arrecadação na parte posterior da loja com entrada pelo nº 8-A, que se inserem dentro do edifício da A. entre o 1º andar e loja do nº 108.

17º- Desde que adquiriu o prédio que a 1ª R. utiliza e explora as lojas, inicialmente por si e posteriormente por cedência do gozo a terceiros, com aquela mesma configuração e área incluindo as áreas que penetram no prédio da A..

18º- Essas lojas sempre estiveram abertas ao público e as respectivas utilizações, pela R. ou por terceiros a quem cede o gozo, sempre foi feita à vista de todos que frequentavam essas lojas.

19º- Desde que adquiriu o prédio, a R. suporta junto da administração tributária e edilidade os impostos e taxas relativos à exploração das lojas.

20º- Jamais alguém se opôs que a R. usasse e fruísse, por si ou por intermédio de terceiros, as duas lojas, incluindo a parte posterior e casa de banho da loja 6-A e a arrecadação da loja 8-A.

21º- Desde que adquiriu o prédio a R. sempre utilizou e explorou, por si ou por intermédio de terceiros, as duas lojas, incluindo a parte posterior e a casa de banho da loja 6-A e arrecadação da loja 8-A, na convicção de exercer um direito próprio e de que não prejudicava terceiros.

                         

Factos Não Provados.

Da Petição Inicial aperfeiçoada (fls 235 e segs)

Não se provou que:

a) - O telhado do prédio da autora ameaçasse ruína;

b) - A parede traseira do prédio da A. contígua ao prédio das RR. se encontrava degradada e abatida em toda a sua extensão apresentando um desnível em relação à parede da frontaria de cerca de 14 cm;

c) - Se verifique impossibilidade de acabamento das obras no prédio da A.;

d) - A existência de lojas das RR. encaixadas no prédio da A. resultou do derrube de uma ou mais paredes de alvenaria da estrutura resistente do prédio da A.;

e) - A utilização do saguão e arrecadação subsequente tenha implicado derrube da parede que confina entre os dois prédios;

f) - A CML tenha intimado as RR. a realizarem obras de reposição das lojas e a tapar as paredes e a reforçar a estrutura que haviam sido destruídas para dar acesso à abertura por baixo do 1º andar do prédio da A.;

g) - As RR. não tivessem acatado a ordem camarária;

h) - A A. esteja impedida, desde 2007, de arrendar o 1º andar e a loja do seu prédio;

i) - As lojas das RR. impeçam a A. de arrendar o 1º andar e loja e de receber 1 500€ por mês.


Da Contestação/Reconvenção.

     Não resultaram factos não provados.



===========================


Pretende a autora nesta ação, essencialmente, que as demandadas lhes reconheçam o direito de propriedade sobre o prédio urbano sito na Rua dos … n.º 106 a 114, tornejando para a Rua da … nos 2 e 4, composto de rés-do-chão com lojas, cinco andares e águas furtadas e que lhe restituam a parte deste imóvel que ocupam por baixo do soalho do 1º andar e em parte do rés-do-chão.


As demandadas negam este direito e, em reconvenção, pedem que lhes seja conferido o direito de propriedade sobre o espaço situado por baixo do soalho do 1º andar do prédio da autora, por esta reivindicado, o qual adquiriram por usucapião.


Contrariando este pedido reconvencional, argumenta a autora que as obras a que as rés procederam no prédio foram feitas às ocultas e que a ocupação de parte da área do prédio da autora não é perceptível do exterior do edifício, o que impede a usucapião nos termos do art.º 1297.º do C.Civil.


A 1.ª instância julgou a reconvenção procedente, declarando que as rés adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade sobre a parte posterior e casa de banho da loja com entrada pelo nº 6-A e a arrecadação que serve a loja com entrada pelo nº 8-A e se localizam entre o 1º andar e o r/c do prédio da A.

Mas a Relação de Lisboa, revogando a sentença proferida na 1.ª instância, condenou as rés a restituírem à autora a parte que ocupam por baixo do soalho do 1.º andar e em parte do rés-do-chão do prédio desta (explicitado no ponto 9.º do articulado de aperfeiçoamento da petição), e a pagarem-lhe, desde 14/3/2012, o valor mensal de € 900, até que ocorra a referida restituição, absolvendo as rés do demais


É contra este entendimento que as rés reagem, produzindo argumentação no sentido de que se declare a procedência do pedido reconvencional.

Para as recorrentes, não podia a autora ignorar (e os anteriores seus donos) a exteriorização da ocupação do espaço que reivindicam, um facto notoriamente iniludível e visível.


Arguindo que a autora não lançou mão da alegação e da prova da aquisição originária nem mesmo da presunção derivada do registo quanto aos espaços que reivindica, apontam as recorrentes ao acórdão recorrido a nulidade prescrita no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do C.P.Civil (excesso de pronúncia), com violação do princípio do dispositivo (artigo 3.º, n.º 1 do C.P.Civil) e do princípio do contraditório (artigo 3.º, n.º 3 do C.P.Civil).

Igualmente, argumentado que a Relação não especifica os fundamentos que justificam a aplicação da presunção estabelecida no art.º 7.º do C.R.Predial, endereçam ao acórdão recorrido a nulidade preceituada no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do C.P.Civil (falta de fundamentação).


Vejamos, então, se assiste a razão que as recorrentes/rés rogam.


==========================


I. É nula a sentença quando o juiz …conheça de questões de que não podia tomar conhecimento - art.º 615.º, 1, al. d), do C.P.Civil.


Recorrendo-se a Tribunal para que aí sejam solucionadas as questões trazidas pelas partes, impõe-se ao Juiz que aprecie cada uma, dirimindo todas elas através de uma justa decisão.

É através do pedido que se faz e da descrição dos factos que o fundamentam que os sujeitos processuais dão conteúdo à questão que pretendem ver solucionada, ou seja, é da análise dos factos avançados por autor e réu que se enquadram dentro dos limites da causa de pedir, apontada para o concreto pedido - e só esses - que o Julgador terá de manobrar com vista a resolver o litígio que os opõe.

"Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão" - Prof. Alberto dos Reis; Cód. Proc. Civil Anotado; Vol. V; pág. 143).


Também se não pode validar a decisão que exorbite do âmbito da questão que as partes assinalam e definem na demanda, ou seja, se o julgado se não identificar com a causa de pedir e pedido da acção.

Não pode, pois, a sentença determinar efeitos jurídicos que as partes não abordaram no desenvolvimento da lide, nem abordar questões que o autor ou réu omitiram nos articulados.


Queixam-se as recorrentes/rés de que o acórdão prolatado no processo se excedeu na sua função de julgar, pois que a autora não alegou (nem provou) a aquisição originária, nem sequer se referiu à presunção derivada do registo dos espaços que reivindica.

    

Sem razão, todavia.

A ação, tal como a configurou a autora, é perspetivada no sentido de que lhe seja reconhecida a propriedade de especificado prédio urbano e sejam as rés condenadas a restituírem à demandante a parte dele que ocupam por baixo do soalho do 1º andar e em parte do rés-do-chão.

Foi neste contexto jurídico-processual que a ação foi apreciada e é neste enquadramento jurisdicional que a causa há-de ser decidida.

O Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos fixados pelo tribunal o regime jurídico que pondere adequado, estando contida nesta sua função a presunção contemplada no art.º 7.º do C.R.Predial; e julgou a Relação tendo na devida conta os factos comprovados em julgamento:

Ora, estando implicada na causa de pedir que se entendeu ser a utilizada na acção, a questão dos limites da loja e arrecadação a que a ré se refere na reconvenção, o tribunal serviu-se do que entendeu ser uma presunção (de facto), no sentido de que, «no que respeita a um prédio urbano, não pode deixar de se presumir, em termos de facto, que o direito registado abrange o espaço que resulta circunscrito em função das respectivas paredes delimitadoras - as prumadas - quando esteja em causa a respectiva contiguidade em relação a um prédio vizinho». A utilização desta presunção - presunção de facto, repete-se contribuiu justamente, para a fundamentação jurídica da questão que cumpria apreciar (transcrição do texto da Relação proferido a fls. 1263).


O princípio do dispositivo identifica-se essencialmente em três vectores:

1. As partes determinam o início do processo; é o princípio do pedido, cabendo às partes o impulso inicial do processo; o art.º 3.º do CPC consagra expressamente tal expressão deste princípio;

2. As partes têm a disponibilidade do objecto do processo (disponibilidade do pedido, das questões e dos factos necessários à decisão desse pedido);

3. As partes têm a disponibilidade do termo do processo, podendo prevenir a decisão por compromisso arbitral, desistência, confissão ou transacção.

O pedido é o ponto de partida de toda a tramitação processual, posta ao serviço das pessoas para a resolução do conflito de interesses que trazem a juízo.

E se é certo que, em nome da segurança das partes, o Tribunal terá de atender aos limites que a própria parte estabelece à causa, ao fixar os contornos do seu próprio pedido,[1] ferindo de nulidade a decisão que não consagra este comando legal, isto é, não podendo, pois, a decisão determinar efeitos jurídicos que as partes não abordaram no desenvolvimento da lide, nem abordar questões que o autor ou réu omitiram nos articulados, a resolução tomada pela Relação enquadra-se neste tipificado contexto jurisdicional e nada temos a assinalar no sentido de que se haja exorbitado deste horizonte jurídico-processual. 


Foi neste envolvimento processual que autora e ré delinearam o seu tecnicismo judicial e foi neste adjetivo enquadramento que alcançaram ou perderam ou os seus projetados objetivos.   

Tiveram as partes, incluindo as rés/recorrentes, a possibilidade de, através dos seus articulados produzidos na ação se defenderem de todas as imprecações que contra cada uma delas foram inferidas e a aplicação da lei corporizada pela Relação está fundamentada em factos, pormenorizadamente escolhidos e à lide trazidos pelas partes.


O princípio do contraditório (ou da audiência), que tem a sua expressão mais generalizada no direito que tem toda e qualquer pessoa a ser ouvida antes de contra ela ser proferida decisão que a atinja na sua pessoa ou património, manifesta-se também no princípio estatuído no art.º 3.º, n.º 3, do C.P.Civil de que não é lícito ao Juiz, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.


Quer isto dizer que as partes (demandado e demandante e os outros eventuais sujeitos processuais) não podem ser surpreendidas por uma decisão tomada pelo Juiz fora do contexto em que se posicionaram em juízo - o efeito surpresa é intrinsecamente malévolo e atentório do dever de lealdade que deve informar a actividade dos operadores judiciários (Abílio Neto; Código Processo Civil Anotado; pág. 54).

Por outro lado, o princípio do contraditório, um dos princípios estruturantes do processo civil, assumiu uma dimensão mais aprofundada com a reforma do Processo Civil operada pelo DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro e pelo Dec. Lei n.º 180/96 de 25 de Setembro.

Consagrado no artigo 3.º n.º 3, decorre deste princípio, conforme consta do preâmbulo daquele primeiro diploma legal, a proibição da prolação de decisões surpresa, não permitindo aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

A norma contida no artigo 3.º, n.º 3 do CPC resulta (…) de uma imposição constitucional, conferindo às partes num processo o direito de se pronunciarem previamente sobre as questões - suscitadas pela parte contrária ou de conhecimento oficioso - que o tribunal vier a decidir.” - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 259/2000; DR, II série, de 7 de Novembro de 2000.


Traduzindo-se na garantia das partes a uma efectiva participação em todos os actos do processo - o princípio do contraditório encontra-se ao serviço do princípio da igualdade das partes - podemos afirmar, sem tibieza, que se encontra observado este princípio na ação, com a prévia audição das partes de modo a colocá-las em paridade, dando-lhes a oportunidade de influenciar a decisão judicial que foi tomada.


II. Também é nula a sentença - ou acórdão - quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão - artigo 615.°, n.º l, alínea b), do C.P.C.

A "ratio" deste imperativo legal, que concede tão grande importância à motivação da sentença, tomando-a nula se esta for omitida, é fácil de descortinar, no dizer do Prof. Alberto dos Reis (in Cód. Proc. Civil Anotado; Vol. V; pág. 139):

- Razão substancial. A sentença deve representar a adaptação da vontade abstracta da lei ao caso particular submetido à apreciação do Juiz; ao comando geral e abstracto da lei o magistrado substitui um comando particular e concreto. Não se podendo este comando gerar arbitrariamente, cumpre ao Juiz demonstrar que a solução dada ao caso é legal e justa, ou, por outras palavras, que é a emanação correcta da vontade da lei.

- Razões práticas. As partes precisam de ser elucidadas a respeito dos motivos da decisão. Sobretudo a parte vencida tem o direito de saber por que razão lhe foi desfavorável a sentença.

Tenha-se, porém, em atenção que o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação, não se podendo considerar nula a sentença que se caracteriza por uma motivação deficiente, medíocre ou errada (Prof. A. dos Reis; ob. citada; pág. 140).

Esta doutrina é a que, desde há muito tempo, tem sido seguida pela nossa jurisprudência (v. g. Ac. do S.T.J. de 14/01/93; BMJ; 423 °; pág. 519).

Cuida a Relação na procura da fundamentação jurídico-positiva que determinou a solução do litígio em que as partes estão envolvidas; e não é pela circunstância de o Tribunal ter valorado de forma diferente das recorrentes a argumentação por elas produzida que este vício se pode revelar no julgado realizado.

III. No processo comum a nossa lei consagra a teoria da substanciação, segundo a qual o objecto da acção é o pedido mas definido através de certa causa de pedir (Ac. do STJ de 26.10.1975; Boletim; 250.º, pág. 150, anotado na RLJ n.º 109, pág. 311).

Bastará que o demandante descreva com cuidado - e prove - os factos que fundamentam o seu direito e isso chegará para que o Tribunal lhe conceda esse direito a que se arroga (como o pretor romano: "da mihi factum dabo tibi jus").

    

A presente lide configura, dúvidas não temos, uma acção de reivindicação.

Através dela a autora pretende, essencialmente, que as rés lhes restituam a parte do seu prédio que dele ocupam, situada por baixo do soalho do 1º andar e em parte do rés-do-chão


Nas acções de reivindicação incumbe ao autor demonstrar que tem o direito de propriedade sobre a coisa reivindicada e que esse direito se encontra na posse ou detenção de outrem. E é tudo quanto basta para que a entrega da coisa se faça ao reivindicante.

Só assim não acontecerá se o detentor da coisa demonstrar possuir direito real ou obrigacional que faça obstar ao exercício pleno do direito de propriedade, direito que consubstancia uma excepção peremptória (art.º 493.º, n.º 3, do C.P.Civil) e que o réu pode invocar no processo em seu proveito.


A autora na presente acção pede o reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio urbano sito na Rua dos … n.º 106 a 114, tornejando para a Rua da … nos 2 e 4, composto de rés-do-chão com lojas, cinco andares e águas furtadas e que as rés lhe restituam a parte que dele ilicitamente ocupam.


Por sua vez as rés invocam em seu favor que, quando adquiriram o seu prédio (em 1989), já as lojas tinham a área que actualmente possuem e que essa área existente por baixo do soalho do 1.º andar do prédio da autora faz parte integrante do rés-do-chão do seu imóvel que adquiriram.

Em reconvenção pedem o reconhecimento da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre o espaço reivindicado pela autora (situado por baixo do soalho do 1º andar do prédio da autora): desde 28/09/1989 que, ininterruptamente, tem usado e fruído o seu prédio, incluindo a área reivindicada pela autora, pago todas as obras, impostos e taxas, sempre à vista e com o conhecimento de todos e sem oposição de ninguém, com a consciência de exercer o seu direito de propriedade e na convicção de não prejudicar ninguém.

Consubstancia esta factualidade uma defesa por excepção (peremptória) a qual, uma vez provada, é suscetível de obstar a que a autora possa exigir a entrega da faixa de terreno reivindicada.


Lograram as rés provar este desiderato, capaz de obstar a que à autora possa ser reconhecida a sua pretensão reivindicante?

Nos termos do disposto no o artigo 7.º do C.R.Predial, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.

Tendo a autora registado em seu favor a aquisição do prédio que reivindica, a lei estabelece uma presunção (tantum juris, ou seja, sempre elidível) no sentido de que a autora é a proprietária deste imóvel tal qual como do registo consta.

Esta presunção não é, todavia, extensiva a todos os elementos que fazem parte da descrição posta no registo pelo Sr. Conservador; as regras atinentes à publicidade do registo não têm função constitutiva, mas antes declarativa: - afirma-se comummente entre nós que o registo é declarativo; o que é traduzido na gíria forense pela afirmação de que o registo não dá nem tira direitos (Prof. Oliveira Ascensão; Reais; pág. 359).


Convenhamos, porém, que, conferindo-se o registo sobre identificado imóvel, natural e racionalmente, há-de ter de se considerar que a presunção que dele sobressai abrange toda a sua estrutura predial, desta feita compreendendo toda a construção que integra o edifício assim demarcado, mais precisamente abrange a plenitude do exato espaço existente entre as paredes mestras que o suportam e o delimitam, ou seja, como proficientemente se diz no acórdão recorrido, que, apesar da presunção (legal) resultante da inscrição do direito não abranger a área, limites ou confrontações dos prédios descritos no registo, por se mostrar nesses aspectos meramente enunciativo, a verdade é que, no que respeita a um prédio urbano, não pode deixar de se presumir, em termos de facto, que o direito registado abrange o espaço que resulta circunscrito em função das respectivas paredes delimitadoras - as prumadas - quando esteja em causa a respectiva contiguidade em relação a um prédio vizinho.


IV. De acordo com o art. 1251.º do Código Civil, a posse é concebida como o poder de facto que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.

A lei portuguesa veio consagrar, assim, a concepção subjectivista de posse (saliente-se, contudo, a tese defendida por Menezes Cordeiro no sentido de uma orientação objectivista do nosso Código Civil - in A Posse; Perspectivas Dogmáticas Actuais; pág. 54 e segs.), seguindo de perto Savigny, sendo possuidor aquele que, actuando por si ou por intermédio de outrem (art. 1252° n° l CC), além do "corpus" possessório tem também o "animus possidendi" que se caracteriza pela intenção de exercer sobre a coisa um direito real próprio.


Distingue a lei diferentes espécies de posse - titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta (art.º 1258.º do C.Civil) - a cada uma delas ligando efeitos também diversificados.

A este propósito saliente-se que, como está consagrado no artigo 1287.º do C.Civil, "a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião".

Quer isto dizer que a usucapião, uma forma de constituição de direitos reais, designadamente o direito de propriedade, apoia-se numa situação de posse - corpus e animus - exercida em nome próprio, durante os períodos estabelecidos na lei e revestindo os caracteres que a lei lhe fixa, pública, contínua, pacífica, titulada e de boa fé.

Remontando este instituto já à Lei das 12 Tábuas, (usus auctoritas fundi biennium coeterarum rerum annus esto) a noção de usucapião é actualizada e definida por Menezes Cordeiro (in Direitos Reais, II Volume; pág. 670) como "a constituição, facultada ao possuidor, do direito real correspondente à posse, desde que esta, dotada de certas características, se tenha mantido pelo lapso de tempo fixado na lei".


O prazo de usucapião é diferente consoante a natureza da coisa de cuja aquisição se trate e varia conforme as características da posse sobre ela exercida.

Assim, o prazo capaz de legitimar a aquisição do direito de propriedade sobre uma coisa imóvel, não havendo registo de título nem de posse e esta seja de boa fé, é de 15 (quinze) anos - art.º 1296.º do C.Civil.

Presumindo-se de boa fé a posse titulada e de má fé a não titulada - a posse adquirida com violência é sempre de má fé (art.º 1260.º, n.º 2 e 3, do C.Civil), o que temos de averiguar agora é se os réus, não apresentando título a justificar a posse sobre a faixa de terreno e muro reivindicados pelos autores, conseguiram elidir esta presunção legal, ou seja, alcançaram comprovar que, não obstante a falta de título, usufruíram  aqueles a faixa de terreno e muro de boa-fé durante 15 anos.

A posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem (art.º 1260.º, n.º 1, do C.Civil), ou seja, o possuidor, quando começa a gozar a coisa, não merece que seja apodado de malfazejo se actua na convicção de que não está a prejudicar outrem.

Como afirma Menezes Cordeiro (in Obra citada; pág. 675) é de boa fé a posse que, não sendo, na sua origem, violenta, se tenha constituído pensando o possuidor:

       - que tinha, ele próprio, o direito;

       - que ninguém tinha direito algum sobre a coisa.


Como ficou provado, desde que adquiriu o prédio (por via de sentença proferida a 20/07/1989) que a ré BB utiliza e explora as lojas reivindicadas pela autora, à vista de todos os que as frequentavam, sem oposição de ninguém e na convicção de exercer um direito próprio e de que não prejudicava terceiros.


Desta pontual facticidade deduzimos que a ré BB não alcançou provar a aquisição, por usucapião, do espaço correspondente às lojas que no pedido reconvencional reclama, tudo porque não ficou comprovada a posse pública sobre tal superfície, requisito essencial para que pudesse comprovar a invocada aquisição do espaço que de vem usufruindo.  


Na verdade, muito embora as “lojas” exploradas pelas rés fossem vistas pelas pessoas que as frequentavam e que integravam a sua caracterizada clientela, o certo é que esta particularidade jurídico-factual não se mostra que estava acessível à autora, dona do edifício; e, para que o requisito da publicidade efetivamente se materialize, imprescindível se torna que os atos que assinalam a posse se concretizem de modo a poderem ser vistos pelos seus interessados, isto é, que a notoriedade desta prática seja acessível ao dono da “res” (coisa sobre que incidem as ações da posse).

    

“A intensidade do acto material sobre a coisa deve ser bastante para a comunidade jurídica se aperceber da constituição da situação possessória.

O termo “publicidade” tem, contudo, de ser tomado com cuidado. Deduzimos do artigo 1267.º, n.º 2, que a posse se pode constituir ocultamente, em relação à comunidade social: deve ser conhecida apenas pelo possuidor anterior, prejudicado pela nova posse. Pensamos, por isso, que a publicidade é, aqui, o conhecimento da situação por parte dos interessados. Para além disso, aplicar-se-ão as regras gerais sobre a protecção da boa fé de terceiros, nos termos oportunamente estudados” - Prof. António Menezes Cordeiro; Direitos Reais; II Volume; pág. 663/664.

    

Nos termos do que está estatuído no art.º 1262.º do C.Civil, posse pública é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados.

Para ser pública não é necessário que a pessoa interessada conheça efetivamente as circunstâncias que a corporizam, mas exige-se, realmente, que o exercício da posse seja feito de modo a poder ser conhecido dos interessados.

Não é necessário o conhecimento efectivo do exercício da posse por aqueles a quem possa interessar, bastando a possibilidade de dela se aperceberem aqueles a quem a posse afectar. Basta que possua a coisa como a possuiria um normal proprietário, sem a ocultar dos eventuais interessados; e tem de se apreciar objectiva e casuisticamente dessa possibilidade dos interessados se poderem ou não aperceber do exercício da posse; se o exercício for tal, que uma pessoa de normal diligência, colocada na situação do titular do direito, daquele se teria apercebido, a posse é pública - Carvalho Fernandes; in Lições de Direitos Reais, 6.ª ed., pág. 302.


Para ser pública, a posse há-de ser percetível ao vulgar interessado, tomando como paradigma a precaução que o proprietário medianamente cuidadoso, prudente, sagaz e regularmente conhecedor da vivência mundana, tomaria em face das incidências concretas da situação.


Não detetamos, no caso que ora ajuizamos, algum vestígio capaz de nos fazer inclinar para a ideia de que a autora teve o ensejo de, particularmente, se ter apercebido, ainda antes de Janeiro de 2006, de que as lojas do prédio das rés penetram parcialmente no prédio da autora, ocupando uma área de 12,30 m2 ao nível das lojas do r/c do prédio da autora e uma área de 13 m2 ao nível do 1º andar do prédio da autora.

A única facticidade que sobre esta realidade possessória se conhece é que o prédio das rés é contíguo com o prédio da autora pelas traseiras e que a autora, só em Janeiro de 2006, quando iniciou obras de recuperação do seu prédio - começando pelo telhado e aplicando vigas de aço verticais para reforço da estrutura do edifício, na zona da parede traseira, entre o telhado e o 1º andar - é que se apercebeu de que o seu prédio estava a ser ilicitamente ocupado pelas rés.


Pontificando as circunstâncias, concretamente apuradas, sobre a forma como se processou o uso das “lojas” praticado pelas demandadas, havemos sempre de considerar que a autora tão só quando iniciou as obras de recuperação do seu prédio - em  Janeiro de 2006 - é que se apercebeu de que as lojas do prédio das rés, penetravam parcialmente no prédio dela, ocupando uma área de 12,30 m2 ao nível das suas lojas do r/c  e uma área de 13 m2 ao nível do seu 1º andar; e, sendo assim, só a partir daquele momento (Janeiro de 2006) é que, para efeitos do disposto nos artigos 1262.º, 1267.º, n.º 1, al. d) e 2, 1282.º e 1297.º do C.Civil, a publicidade da “posse” das rés se tornou uma realidade jurídica.


A posse oculta, também designada de “clandestina”, tomada sem oferecer ao titular do direito a oportunidade de defesa, ou seja, aquela que é exercida sem o conhecimento do possuidor ou proprietário, não conduz à aquisição, por usucapião, do direito de propriedade.


V. Caracterizando-se a má-fé como o comportamento da parte que, apesar de saber da ilicitude da sua conduta, prossegue na prática das ações que a corporizam, porfiando contra os ditames da lealdade e probidade, tomando este postulado podemos asseverar que as rés passaram a incluir-se neste circunstancialismo jurídico-positivo a partir do momento em que foram citadas para a ação.


Se é verdade que, quando foi adquirida a posse das duas lojas, as rés estavam de boa-fé - ignorava ao adquiri-la que lesava o direito de outrem (n.º 1 do art.º 1260.º do C.Civil), também é certo que este estado de graça desapareceu quando lhes foi judicialmente comunicado que as “lojas” de que desfrutavam estavam a ocupar o prédio da autora, passando a partir deste momento a estarem de má-fé.

    

Conferindo o proposto no art.º 1271.º do C.Civil - o possuidor de má fé responde pelo valor dos frutos que um proprietário diligente poderia ter obtido - segue-se que estão as rés obrigadas a ressarcir a autora dos prejuízos que à demandante causaram desde a citação (a ré BB foi citada em 14/3/20102) e pautados pelo condicionamento da utilização do 1º  andar e de parte do r/c do prédio da autora que a penetração das lojas das rés provocara (item 8.) e tendo na devida conta que  o  valor locativo do 1.º andar com as obras concluídas ronda os 500 € por mês, e que, o valor locativo da loja, com as obras concluídas, ronda os 400 € por mês (itens 10. a 12.)


Como foi, adequada e ajustadamente, ajuizado pela Relação, as demandadas são civilmente responsáveis perante a autora, desde a citação, pelo valor das rendas que a demandante deixou de obter se não fosse a afirmada ocupação, referentemente ao 1.º andar e loja do seu imóvel (€ 900 mensais).


VI. Argúem as recorrentes no sentido de que, tendo a ação entrado em juízo em 07.03.2012 e tendo ocorrido em Janeiro de 2007 os factos que sustentam o seu pedido de indemnização, desde janeiro de 2007 até 07.03.2012 decorreram já 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses, o que faz com que o invocado direito à indemnização se encontre prescrito desde Janeiro de 2010 (o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete - artigo (498°- 1 do C.Civil).

Não acompanhamos esta pretensa dedução assim exposta.

Desde há muito tempo que a doutrina e a jurisprudência vêm explicitando que a razão da “prescrição” se vai buscar à praticada negligência do titular de discriminado direito, consubstanciada na omissão do seu exercício durante certo tempo, que o legislador contabiliza e durante o qual se faz presumir a renúncia ao direito, ou, torna aquele indigno de protecção jurídica (Prof. Manuel de Andrade; Teoria Geral da Relação Jurídica; II; pág. 445-446); constituindo a prescrição um facto extintivo do direito, tem o seu fundamento específico na situação antijurídica de negligência (Aníbal de Castro; A Caducidade; pág. 28).


A prescrição, tal como a caducidade e o não uso, exprimem a relevância do tempo (do seu decurso sobre as relações jurídicas), visando a certeza e a segurança do tráfego jurídico, tendo como fundamento a consideração de que não merece a protecção do ordenamento jurídico quem descura o exercício dos direitos que lhes assistem, porque a paz social não se compadece com a inércia, para lá de limites temporais impostos pelo legislador (Ac. STJ de 19.06.2012; Relator o Ex.mo Cons. Dr. Fonseca Ramos; www.dgsi.pt).


Dispõe o n.º 1 do art.º 498.º (prescrição) do Código Civil que o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso.

Por sua vez estatui o n.º 1 do art.º 360.º do C.Civil que o prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido.


Cotejando ambos estes normativos legais, da sua descrição resulta que o prazo prescritivo começa a correr, impreterivelmente, a partir do momento em que o titular do direito o possa exigir do seu devedor; e, porque nem sempre coincidem o instante em que se fica a saber da ilicitude factual que determina o direito à indemnização, ou seja, a altura em que o lesado fica a conhecer do direito que lhe assiste, e o momento em que este ressarcimento pode ser exigido, havemos de considerar que, na ausência desta marcante contemporaneidade, a contagem do prazo conducente à prescrição se inicia, sempre e só, quando o direito puder ser exercido.


O início do prazo na prescrição das obrigações começa a correr quando o direito puder ser exercido, de acordo com os n.º s do art.º 306.º e 307.º- C.C.

Na prescrição dos demais direitos, em que não tenha lugar o conceito de exigibilidade, o prazo começa a correr com o conhecimento do facto de que dependa a exigibilidade, ou seja, também a partir do momento em que o direito pode ser exercido. Há, porém, casos em que o momento a partir do qual se faz a contagem é indicado casuisticamente, v.g. art.º 498.º - C.C., na prescrição…(Aníbal de Castro; A Caducidade, 2.ª edição actualizada; pág. 171/172).  


O início do prazo de prescrição reporta-se, não ao momento da lesão do direito do titular da indemnização, mas àquele em que o direito possa ser exercido, a coincidir com o momento do conhecimento do direito que lhe compete, isto é, do direito à indemnização (arts. 306º-1 e 498º-1 cit.).
Consequentemente, como a própria lei consagra, o lesado não precisa de conhecer integralmente os danos para intentar acção indemnizatória, mas é necessário que tenha conhecimento do dano e, apesar disso, não tenha agido judicialmente, reclamando o reconhecimento e efectivação da indemnização. Se e enquanto não tiver conhecimento do dano o prazo de prescrição é o ordinário
, só se iniciando o prazo trienal a partir do momento desse conhecimento - Ac. STJ de 20.03.2014; Alves Velho (relator); www.dgsi.pt.


Ora, tendo na devida conta que a indemnização atribuída à autora se circunscreve ao pagamento da quantia de € 900,00 mensais, desde 14/3/2012 (data da citação da 1.ª ré) e até que ocorra a restituição do espaço ilicitamente ocupado pelas rés, porque o prazo prescricional deve começar a correr no momento em que o direito invocado, sendo exigível também pode ser exercido, soçobra a argumentação das recorrentes sobre a prescrição do direito de indemnização que à autora é assentida tão só a partir de 14/3/2012.

     

Lembremo-nos, ainda que, consubstanciando esta indemnização uma prestação periodicamente renovável, que prescreve no prazo de cinco anos - art.º 310.º, alínea g), do C.Civil, tomando o disposto no n.º 1 do art.º 306.º do C.Civil, 1.ª parte (o prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido), não é a partir data em que a ação foi proposta que se inicia a contagem do prazo prescricional, mas antes a partir do momento em que autora pode obrigar as rés ao cumprimento da indemnização que lhe é imposta e, por isso, não ocorreu o prazo de prescrição alegado pelas recorrentes.

É que, porque a autora ainda não pôde exercer o direito que nesta ação lhe é conferido - tratando-se de prestações periódicas a prescrição do direito unitário do credor corre desde a exigibilidade da primeira prestação que não for paga (art.º 307.º do C.Civil) - o prazo para a sua prescrição ainda nem sequer principiou.


A invocada prescrição do direito conferido à autora não se encontra prescrito, como sem razão, contrariamente argumentam as recorrentes.

 

Concluindo:

1. A posse oculta, também designada de “clandestina”, tomada sem oferecer ao titular do direito a oportunidade de defesa, ou seja, aquela que é exercida sem o conhecimento do possuidor ou proprietário, não conduz à aquisição, por usucapião, do direito de propriedade.

2. Cotejando o disposto no n.º 1 do art.º 498.º (prescrição) e o estatuído no n.º 1 do art.º 360.º, ambos do Código Civil, da sua descrição resulta que o prazo prescritivo começa a correr, impreterivelmente, a partir do momento em que o titular do direito o possa exigir do seu devedor; e, porque nem sempre coincidem o instante em que se fica a saber da ilicitude factual que determina o direito à indemnização, ou seja, a altura em que o lesado fica a conhecer do direito que lhe assiste, e o momento em que este ressarcimento pode ser exigido, havemos de considerar que, na ausência desta marcante contemporaneidade, a contagem do prazo conducente à prescrição se inicia, sempre e só, quando o direito puder ser exercido.

3. Tendo na devida conta que a indemnização atribuída à autora se circunscreve ao pagamento da quantia de € 900,00 mensais, desde 14/3/2012 (data da citação da 1.ª ré) e até que ocorra a restituição do espaço ilicitamente ocupado pelas rés, porque o prazo prescricional deve começar a correr no momento em que o direito invocado, sendo exigível também pode ser exercido, soçobra a argumentação das recorrentes sobre a prescrição do direito de indemnização que à autora é assentida tão só a partir de 14/3/2012.

4. É que, porque a autora ainda não pôde exercer o direito que nesta ação lhe é conferido - tratando-se de…prestações periódicas a prescrição do direito unitário do credor corre desde a exigibilidade da primeira prestação que não for paga (art.º 307.º do C.Civil) - o prazo para a sua prescrição ainda nem sequer principiou.


Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.


Custas pelas recorrentes.


Supremo Tribunal de Justiça, 15 de fevereiro de 2017.


Silva Gonçalves (Relator)


António Joaquim Piçarra (vencido nos termos da declaração de voto que junto)


Fernanda Isabel Pereira


Declaração de voto



Ainda que subscreva, na totalidade, as citações doutrinais constantes do acórdão, a propósito da caracterização e classificação da posse, não acompanho a posição que fez vencimento, quanto à subsequente qualificação da posse das rés (recorrentes) como oculta (e não pública), com o argumento de que «Não detetamos, no caso que ora ajuizamos, algum vestígio capaz de nos fazer inclinar para a ideia de que a autora teve ensejo de, particularmente, se ter apercebido, ainda antes de Janeiro de 2006, de que as lojas do prédio das rés penetram no prédio da autora».

A distinção entre posse pública e oculta assenta, segundo o artigo 1262º do Cód. Civil, na sua cognoscibilidade pelos interessados, sendo estes os titulares dos direitos cujos poderes o possuidor exerce, ou que são afectados pela sua actuação. Para a posse ser pública, o seu exercício tem de ser feito em termos de poder ser conhecido dos interessados. Não é necessário, porém, o conhecimento efectivo daqueles a quem possa interessar, bastando a possibilidade de dela se aperceberem aqueles a quem a posse afectar.

Por seu turno, a posse é tida por cognoscível, conforme assinala Orlando de Carvalho (in Introdução à Posse, RLJ, ano 122, n.º 3792, pág. 73) «se um interessado razoável (medianamente diligente e sagaz) na posição do real interessado, dela tivesse percepção». Igual formulação se surpreende ainda em Luís Carvalho Fernandes (in Lições de Direitos Reais, 6ª edição, pág. 302), onde refere, a este propósito, que «se o exercício for tal, que uma pessoa de normal diligência, colocada na situação do titular do direito, daquele se teria apercebido, a posse é pública». Esta é também a orientação expressa por José Alberto Vieira (in Direitos Reais, 2016, Almedina, pág. 503, citando ainda Pires de Lima/Antunes Varela, Cód. Civil, anotado, Vol. III, pág. 25) quando adianta que «a cognoscibilidade resulta de uma possibilidade de conhecimento a partir de um comportamento normalmente diligente em relação à coisa. Quer dizer, parte-se daquilo que se entende ser a actuação de um possuidor medianamente diligente em relação à sua coisa e verifica-se se o possuidor em questão agindo dessa forma conheceria ou não a posse de outrem».

No caso em apreço, a autora é, desde Março de 1980, proprietária do prédio em que as lojas do prédio das rés penetram parcialmente, ocupando uma área de 12,30 m2, ao nível das lojas do r/c e uma área de 13 m2, ao nível do 1º andar (cfr. pontos 1º e 5º do elenco factual provado). Em resultado dessa ocupação a parte do 1º andar desse prédio apresenta-se com parte do respectivo pavimento alteado em cerca de 0,85 metros e ao nível do r/c parte do respectivo pé direito encontra-se reduzido para 1,95 metros, o que condiciona a utilização do 1º andar e parte do r/c, encontrando-se a zona do saguão entre os dois prédios coberta, ao nível do r/c, servindo de comunicação para a arrecadação da loja das rés, na parte em que se insere no prédio da autora (cfr. pontos 7º, 8º e 9º do elenco factual provado).

Esta situação de apossamento dessas áreas ocorre pelo menos desde Julho de 1989, altura em que a 1ª ré adquiriu o seu prédio, tendo as lojas já a configuração e áreas actuais (cfr. pontos 13º, 14º, 16º e 17º do elenco factual provado). Essa posse sempre se exteriorizou pelo modo indicado em 18º a 21º desse elenco factual, à vista de todos, sem qualquer oposição e na convicção do exercício de um direito próprio e de que nenhum prejuízo era causado a terceiros. Quer dizer, tudo decorria às escâncaras, comportando-se como verdadeiras proprietárias, sendo certo ainda que nenhum comportamento tendente ao encobrimento do apossamento lhes pode ser imputado, o que descarta, por si só, qualquer «animus celandi». Mais, atenta a significativa dimensão das áreas ocupadas e as suas características, com edificação de paredes e cobertura, com elevação do piso em cerca de quase 1 metro e diminuição do pé direito do prédio da autora, não descortino que outro tipo de exteriorização seria exigível para considerar pública a posse das rés.

É bom de ver, porque notoriamente iniludível, que a autora não podia ignorar a existência daquelas divisões, assim como não podia ignorar que apenas serviam o prédio vizinho, pois só com ele tinham ligação. Uma vez que a prática de actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade sobre essas divisões era exercido de modo a poder ser conhecida de uma pessoa de normal diligência, considero que o exercício da posse se revestiu claramente de publicidade, não relevando, para este efeito, ao contrário do que se entendeu, o conhecimento efectivo ocorrido apenas em 2006.

Aliás, os imóveis, ao invés dos móveis, dificilmente se prestam a uma posse oculta, sendo apresentados como exemplos clássicos da clandestinidade, a construção de aquedutos subterrâneos e a exploração de pedreiras e minas no subsolo, cuja existência não é obviamente cognoscível do proprietário. Não era isso o que sucedia com a situação aqui equacionada em que a exteriorização do apossamento era patente e ostensiva. Se a autora a desconheceu durante tão extenso lapso temporal não foi por não ser dela cognoscível, mas sim porque não actuou com a diligência normal para um proprietário de quem se espera que cuide do que lhe pertence e se inteire do seu estado, tanto mais que o seu prédio, naquela zona, era também constituído por lojas destinadas a arrendamento. Só a sua incompreensível inércia (que não deve ser premiada) permitiu que a posse das rés perdurasse durante tanto tempo, com as características conducentes à usucapião.

Por tais razões, propendo por considerar que a posse das rés é pública e não impeditiva da usucapião, como, aliás, também foi entendido, em duas situações muito similares, nos acórdãos do STJ de 24/06/2010 (proc. 137/06.2TCGMR.G1.S) e de 29/10/2009 (proc. 577/04.1TVLSB), ambos acessíveis através de www.dgsi., e, nessa medida, revogaria o acórdão recorrido, com a subsistência do sentenciado pela 1ª instância.

__________________

[1] Nuno Sebastião; A Condenação Além do Pedido; pág. 10.