Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | RICARDO COSTA | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS RECURSO DE REVISTA REGIME APLICÁVEL CONTRATO-PROMESSA TRADIÇÃO DA COISA INCUMPRIMENTO DO CONTRATO DIREITO DE RETENÇÃO CONSUMIDOR ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA | ||
Data do Acordão: | 10/13/2020 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA (COMÉRCIO) | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
Sumário : | I. A impugnação recursiva junto do STJ das decisões tomadas em incidentes do processo de insolvência que correm por apenso, como o de verificação e graduação de créditos, não observa o regime de revista atípica previsto no art. 14º, 1, do CIRE, aplicando-se nesse caso as regras do processo civil, de acordo com a remissão operada pelo art. 17º do CIRE, o que dita a aplicação da revista normal e ordinária, com a consequente adequação substancial do recurso que tenha sido imposto com base no art. 14º ao quadro recursivo do art. 674º, 1, do CPC. II. O direito de retenção reconhecido a favor do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa (art. 755º, 1, f), CCiv.) não exige a prestação de sinal para o seu reconhecimento como garantia do crédito pelo incumprimento definitivo da promessa. III. O direito de retenção previsto no art. 755º, 1, f), do CCiv. garante qualquer crédito indemnizatório derivado do incumprimento do contrato-promessa com tradição da coisa, incluindo a indemnização fundada em cláusula penal acordada entre as partes como fixação antecipada do montante destinado a liquidar o dano fundado na inexecução do contrato, mesmo se reconhecido como crédito da insolvência. IV. O crédito indemnizatório por incumprimento pelo administrador da insolvência da promessa de transmissão de imóvel reconhecido à herança-património autónomo não deixa de beneficiar da garantia desse direito de retenção desde que os herdeiros-pessoas singulares, que exercem representativamente os direitos da herança já aceite nos termos e de acordo com a legitimidade conferida pelo art. 2091º, 1, do CCiv., preencham os critérios de retentor consumidor fixados pelos AUJ n.º 4/2014 e 4/2019. | ||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 54/10.1TBBGC-R.G1.S1 Revista – Tribunal recorrido: Relação de Guimarães, 1.ª Secção Cível
Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO A) Veio a Credora Reclamante, Herança llíquida e Indivisa por Óbito de AA, representada em juízo pelos respectivos únicos herdeiros, BB, CC e DD, deduzir reclamação de créditos nos autos do processo de insolvência da declarada insolvente “CB – Construtora Brigantina, Lda.” (em 4/5/2010) pelo valor de € 1.100.000,00 (o qual inclui o valor das moradias – € 970.000,00 – inscrito nos contratos-promessa celebrados em 2008, bem como o valor das benfeitorias realizadas nas preditas habitações – € 100.000,00 – e ainda o valor do cheque entregue para assegurar a continuação da construção da quarta moradia – € 30.000,00), e que seja reconhecido que esse crédito está garantido por direito de retenção nos termos dos artigos 754º, 755º, 1, f), 442º, 442º, 2, e 759º do CCiv., o qual prevaleceria sobre a hipoteca constituída a favor da “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da ..., CRL” (Caixa Agrícola ou CCAM). E) Foi proferido despacho saneador, em 19/9/2013, pelo 2.º Juízo do Tribunal Judicial de ..., nos termos do qual se determinou a absolvição da instância da Reclamada, CCAM, em função da falta de personalidade judiciária da Reclamante e Impugante, “Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de AA”: “decorre dos factos alegados pela própria impugnante que a herança já não se mostra aceite, por ter sido aceite pelas suas herdeiras. Ora, o Código de Processo Civil limita a extensão da personalidade judiciária à herança jacente, pelo que[,] no caso concreto, verifica-se a falta de personalidade judiciária da herança aberta por óbito de AA”. A Herança recorreu do despacho saneador na parte da absolvição da instância. Decidindo, o Tribunal da Relação do Porto veio prolatar acórdão em 6/3/2014 (junto aos autos, depois de solicitado pelo aqui Relator por despacho de 18/6/2020: fls. 248 e ss), no qual, adoptando-se o entendimento de que a reclamação de créditos apresentada devia ser entendida e interpretada como formulada e deduzida a reclamação de créditos pelas herdeiras da herança do falecido, AA, em respeito pelo art. 2091º, 1, do CCiv., o que conduziria à não ocorrência da excepção dilatória aludida no despacho saneador, veio revogar o saneador “na parte em que absolveu da instâncias as reclamadas quanto à reclamação em causa” e ordenar o prosseguimento dos autos com a prolação de despacho saneador e de julgamento quanto à referida impugnação – com o valor de caso julgado formal, nos termos do art. 510º, 3, do CPC 1961, correspondente ao actual art. 595º, 3, do CPC 2013.
F) Em sequência, foi proferido despacho saneador, com indicação do objecto do litígio, selecção dos temas de prova e fixação do valor da causa em € 1.100.000, e realizada audiência de julgamento (cfr. fls. 31 e ss).
G) Na sequência foi proferida sentença pelo Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo Local Cível de ... – Juiz 2 (cfr. fls. 37 e ss), em 12/9/2018, com o seguinte dispositivo: H) Não se resignando, veio a Caixa Agrícola interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães, tendo em vista revogar a sentença no segmento dispositivo em que “reconheceu que a herança ilíquida e indivisa do falecido, AA, é titular de um crédito de € 1.000.000,00 (1 milhão de euros) garantido por direito de retenção incidente (apenas) sobre os prédios apreendidos na massa insolvente correspondentes aos Lotes A1, A2 e A3 sitos no Loteamento ... (zona das ..., ..., ...), respectivamente, descritos na Conservatória de Registo Predial de ... sob os n.º 1696/20040920,1697/20040920 e 1698/20040920”. Apresentaram-se contra-alegações, sustentando a improcedência da apelação, com a consequente manutenção do decidido na douta sentença recorrida. Decidindo, o TRG, em acórdão proferido em 23/5/2019 (cfr. fls. 84 e ss), julgou parcialmente procedente o recurso e decidiu alterar a decisão recorrida no seguinte sentido: “I. Reconhecer que a herança ilíquida e indivisa do falecido, AA, é titular de um crédito de € 1.000.000,00 (1 milhão de euros). II. Não reconhecer que o crédito aludido em I) se encontra garantido por direito de retenção incidente sobre o prédio apreendido na massa insolvente correspondente aos Lotes A 1, A2, A3 e A4 sitos no Loteamento ... (zona das ..., ..., ...), respectivamente, descritos na Conservatória de Registo Predial de ... sob os no 1696/20040920, 1697/20040920, 1698/20040920 e nº 1699/2004092019”; no mais decidiu manter integralmente a decisão recorrida.
I) Aqui chegados, BB, CC e DD, representantes da herança ilíquida e indivisa por óbito de AA, não se conformando, vieram interpor recurso de revista para o STJ (cfr. fls. 109 e ss) nos termos do art. 14º, 1, do CIRE, invocando a oposição com o Ac. do STJ proferido em 3/7/2018, no processo n.º 2717/16.9T8VNF-B.G1.S2, tendo por fim ser revogada a decisão recorrida e ser a mesma substituída por outra no sentido do acórdão fundamento. Para esse efeito, apresentaram nas suas alegações as seguintes Conclusões: “1. Aquando da apreciação do Tribunal de Primeira Instância do caso concreto, este procedeu a uma correcta, precisa e coerente interpretação dos factos e aplicação do direito. 2. O Tribunal a quo não faz uma correcta aplicação do direito porquanto, a al. f) do n.º 1 do artigo 755.º do Código Civil efectua uma ampla remissão para o artigo 442.º do Código Civil. 3. Esta norma admite três tipos de créditos pecuniários emergentes do incumprimento da contraparte do beneficiário do direito de retenção: o do sinal em dobro, o do valor da coisa ou do direito e o da indemnização para além do sinal. 4. Caso a existência de sinal fosse conditio sine qua non para o exercício do direito de retenção, a remissão da al. f) do n.º 1 do artigo 755.º do Código Civil seria para o n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil, o que não acontece. 5. Desta forma, é de concluir que os requisitos para o exercício do direito de retenção são apenas a tradição do objeto mediato do contrato definitivo prometido, o incumprimento definitivo do contrato-promessa pelo promitente alienante e a titularidade pelo promitente adquirente (em virtude desse incumprimento) de um direito de crédito. 6. Pelo que, como a existência de sinal não é considerado pressuposto obrigatório para o exercício do direito de retenção, encontram-se preenchidos todos os parâmetros para tal exercício. 7. Encontrando-se o crédito em causa protegido pelo direito de retenção, este caracteriza-se como sendo um crédito garantido, assim devendo ser reconhecido. 8. O Acórdão recorrido, ao impor a existência de sinal, mostra-se em oposição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.º 2717/16.9T8VNFB. G1.S2, de 03-07-2018, transitado em julgado, no domínio da mesma legislação, sobre a mesma questão fundamental de direito, não existindo jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre a matéria. 9. A recorrente considera que foi violada a al. f) do n.º 1 do artigo 755.º do Código Civil e, bem assim, o artigo 442.º do Código Civil.”
A Recorrida apresentou contra-alegações (cfr. fls. 121 e ss) no sentido de se manter o acórdão recorrido, invocando, em síntese: (i) o acórdão-fundamento refere-se especificamente a uma indemnização convencionada – fundada no incumprimento do contrato-promessa; ao invés, no caso decidido pelo acórdão recorrido, não se trata de uma indemnização convencionada no contrato-promessa, mas outrossim de uma cláusula penal, resultante do acordo de garantia celebrado entre as partes em 2004, cláusula penal essa que resulta da aplicação do artigo 810º e ss do CCiv. e não da previsão do artigo 755º, 1, f), do CCiv., cujo tratamento aparece vertido no acórdão fundamento; (ii) uma vez que no contrato-promessa celebrado entre a insolvente e o falecido AA e a esposa não ficou estabelecida a prestação de qualquer quantia a título de sinal ou de qualquer preço ou a sua antecipação, nos termos dos arts. 441º e 442º do CCiv., não se preencheram os requisitos necessários e obrigatórios para o reconhecimento do direito de retenção, que exige além da tradição da coisa a prestação de um sinal nos termos do artigo 442º CC; (iii) o crédito reclamado não se fundamenta na aplicação do artigo 442º do CCiv., mas sim da cláusula penal estabelecida previamente no acordo de garantia celebrado em 2004, pelo que fica prejudicada a aplicação da alínea f) do art. 755º, 1, do CCiv. e, consequentemente, o alegado direito de retenção, uma vez que dessa previsão resulta que não é atribuído direito de retenção, em caso de tradição da coisa, a todo e qualquer crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, antes depende de ter sido entregue um sinal, nos termos do artigo 442º. Logo, em conclusão, “não se tendo verificado a entrega de sinal nos termos do citado artigo 442º CC, a alegada tradição da coisa apenas se apresenta como um acto de mera tolerância, não atribuindo à herança o direito de retenção a que alude”.
J) Compulsados os autos pelo aqui Relator, foi proferido despacho (4/3/2020) no qual se entendeu que “o julgamento do objecto recursivo, no que toca à atribuição da garantia traduzida em direito de retenção à herança ilíquida e individa, incidente sobre “os prédios apreendidos na massa insolvente correspondentes aos Lotes A1, A2 e A3”, implica, ademais, a dilucidação prévia da questão de direito relativa ao reconhecimento de tal direito de retenção à herança enquanto património autónomo, à luz da jurisprudência fixada nos acórdãos de uniformização n.º 4/2014, de 20/3/2014 – Processo n.º 92/05.6TYVNG-M.P1.S1, publicado in DR, 1.ª Série, n.º 95, de 19/5/2019 – e 4/2019, de 12/2/2019 – Processo n.º 2384/08.3TBSTS-D.P1.S1-A, publicado in DR, 1.ª Série, n.º 141, de 25/7/2019 (arts. 682º, 1, 608º, 2, 5º, 3, CPC)”, razão pela qual se ordenou “notificar as partes para, querendo e na atribuição processual pertinente para efeitos do exercício do contraditório, se pronunciarem no prazo de 10 dias sobre a questão elencada (…), nos termos aplicáveis dos arts. 3º, 3, e 4º do CPC”. A Herança respondeu, seguindo em grande medida a argumentação do Ac. do Relação do Porto de 6/3/2014, exarado nos autos, e enunciando como principais conclusões: (i) “a herança aceite mas ainda indivisa, como aquela dos autos, não tem personalidade judiciária, uma vez que os seus titulares estão devidamente e perfeitamente determinados, como bem resulta de todos os elementos juntos aos autos, do que se retira consequentemente que os verdadeiros titulares dos direitos discutidos nos autos são as referidas sucessoras do de cujus, BB, CC e DD, conforme se encontra devidamente comprovado e provado nos autos. Estando igualmente claro que a referida herança indivisa não tem personalidade jurídica e que por isso não pode ser titular de direitos e obrigações, mas sim os seus respectivos e identificados herdeiros”; (ii) “dúvidas não podem restar de que as herdeiras em causa sucederam nos direitos e obrigações do de cujus relativamente ao contrato promessa inicial celebrado em 1999 e melhor identificado nos autos, passando a ser titulares dos mesmos, o que ficou reforçado com a celebração dos contratos promessa individuais em 2008 e igualmente identificados nos autos, e mais reforçado ficou ainda com a entrega das chaves das moradias em causa a cada uma das herdeiras de forma individual, e finalmente com a ocupação e habitação dessas mesmas moradias de forma individual a partir de Dezembro de 2008 (quanto às herdeiras BB e CC) e Novembro de 2009 (quanto à herdeira DD). Não se olvidando igualmente que cada uma das herdeiras pagou individualmente os custos da respectiva moradia relativos a projecto de arquitectura, cozinha, aquecimento central, fecho de divisão, requisição de água e luz e certificação do prédio. Do que decorre, e no que aqui mais importa, que na situação dos autos estamos a falar de património cujos titulares são sujeitos certos e bem determinados, não se podendo confundir esta situação com a situação de patrimónios autónomos semelhantes à herança jacente cujos titulares são sujeitos incertos ou indeterminados, esta última prevista no aludido art.º 12.º, al. a), do Cód. Proc. Civil”; (iii) “- A herança ilíquida e indivisa do falecido AA, de que são titulares as identificadas herdeiras BB, CC e DD, é titular de um crédito de 1 000 000,00€ (um milhão de euros) sobre a identificada massa insolvente, o mesmo correspondendo a dizer que estas herdeiras são titulares do referido crédito; - As identificadas herdeiras gozam de garantia por direito de retenção incidente sobre os prédios identificados e apreendidos na massa insolvente correspondentes aos Lotes A1, A2 e A3 (já não do Lote A4), pelo referido crédito, ou seja, são titulares de um crédito garantido por direito de retenção; - Gozando tais herdeiras de crédito garantido por direito de retenção, têm a faculdade de serem pagas com preferência aos demais credores do devedor, ou seja, da massa insolvente, prevalecendo neste caso sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente, o que decorre do direito positivo consagrado no art.º 759.º, n.os 1 e 2 do Cód. Civil”. Concluiu: “é por isso que o acórdão recorrido tem de ser revogado, (…) de acordo com o que já se encontra pugnado pelas titulares da herança nas alegações de revista”. A Caixa Agrícola veio aos autos pugnar por posição diversa: “Não encontrando assim a dita herança ilíquida e indivisa do falecido, AA, enquanto património autónomo, qualquer acolhimento no conceito de consumidor, em sentido restrito, plasmado no referido acórdão de uniformização (4/2019), nos termos das notas tipológicas consagradas no artigo 2º, nº 1, da Lei da Defesa do Consumidor nº 24/96, de 31 de julho”; “Uma vez que, a referida herança em circunstância alguma, poderia destinar os três imóveis ao seu uso particular”; “Logo, não sendo um consumidor, à luz dos citados acórdãos, não lhe pode ser aplicado o beneficio concedido ao consumidor promitente-comprador previsto no artigo 755º, nº 1, alínea f) do Código Civil”; “Sendo em consequência e a considerar-se como tal, um credor comum da insolvência”. Pelo que, “a considerar-se a herança ilíquida e indivisa do falecido, AA, como credora da insolvência, deve o crédito reclamado por esta[,]ser qualificado como comum”.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS
1. Admissibilidade e objecto do recurso A recorrente invocou a admissibilidade do recurso seguindo o regime do art. 14º, 1, do CIRE, invocando para isso oposição jurisprudencial com acórdão do STJ sobre a mesma questão fundamental de direito. O especial regime dos recursos previsto no art. 14º, 1, do CIRE («No processo de insolvência e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das Relações ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686º e 687º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.») tem sido objecto de uma apurada e fundamentada aplicação por parte deste Supremo Tribunal e nesta 6.ª Secção. Em primeira linha, no que respeita ao âmbito de aplicação da disciplina restritiva nele contido em razão da matéria – logo, da amplitude da inibição de acesso de Acórdãos proferidos por Tribunal da Relação ao terceiro grau de jurisdição do STJ, tendo em conta a especialidade da norma de irrecorribilidade –, tem-se uniformemente julgado e decidido que a revista “normal” – independentemente do juízo sobre a condição negativa da “dupla conformidade decisória”, tal como prevista no art. 671º, 3, do CPC – está vedada a todas as decisões proferidas no processo de insolvência (e, extensivamente, no PER e no PEAP), incluindo-se as decisões tomadas nos incidentes que do ponto de vista formal e estrutural integram o referido processo e nele se tramitam (excluindo-se portanto da irrecorribilidade todas as acções e incidentes processados por apenso ao processo de insolvência e PER, a não ser, por expressa previsão legal e constituindo apenso nos termos do art. 41º, 1, do CIRE, os embargos opostos à sentença de declaração de insolvência): v., por ex., os Acs. de 13/11/2014[1] e de 12/8/2016[2], absorvendo igualmente a posição e os fundamentos da doutrina, focada com acerto na relação do n.º 1 com o n.º 2 (quando neste se faz referência a «todos os recursos interpostos no processo ou em qualquer dos seus apensos») do art. 14º do CIRE[3]. Em suma, a razão visada na restrição (ao art. 671º, 1 e 2, do CPC), centrada na particular celeridade e desejada estabilidade processual nas matérias da insolvência (cfr. Preâmbulo, ponto 16, do DL n.º 53/2004, que aprovou o CIRE) e da revitalização pré-insolvencial, aplica-se à tramitação endógena dos processos e deixa de fora a tramitação apensa e adjectivamente autonomizada desses mesmos processos, cujos litígios correm o regime comum (como induz justamente o referido art. 14º, 2, do CIRE). Para essa tramitação endógena tão-só se admite que se precluda a limitação do direito de recurso a um grau apenas nos casos de oposição de acórdãos em matéria relativamente à qual não exista ainda uniformização de jurisprudência (2.ª parte do art. 14º, 1). Assim sendo, para além de o teor literal do art.14º não permitir sustentar essa interpretação, tem sido jurisprudência reiterada do STJ que as regras do art.14º não se aplicam aos incidentes que correm por apenso, como o de verificação e graduação de créditos (art. 132º do CIRE)[4]. Logo, in casu, não temos que submeter o recurso à revista atípica do art. 14º, 1, de modo que não estamos condicionados a, apenas e exclusivamente, podermos apreciá-la tendo em conta a oposição de julgados invocada para a sua viabilização, nos termos determinados pela 2.ª parte do n.º 1 do art. 14º do CIRE, e das normas aplicáveis à regularidade de recurso fundado em “conflito jurisprudencial”, sem mais qualquer outro fundamento. Antes teremos que submeter a impugnação recursiva para o STJ aos termos gerais, aplicando-se, para tanto, as regras do processo civil, de acordo com a remissão operada pelo art. 17º do CIRE, o que dita a aplicação da revista normal e ordinária[5]. Assim: — tendo o acórdão recorrido revogado parcialmente a decisão proferida em primeira instância, no que toca a um dos segmentos decisórios, o recurso de revista é admissível, nos termos do art. 671º, 1, do CPC, estando ademais reunidas as condições gerais de admissibilidade previstas no art. 629º,1, do CPC; — a questão a decidir, que emerge das conclusões das alegações da Recorrente, enquadrada no art. 674º, 1, a), do CPC, é a de saber se houve errada interpretação e aplicação da lei, em referência aos arts. 755º, 1, f), e 442º do CCiv., quando o acórdão recorrido decide não reconhecer que o crédito resultante do incumprimento de contratos-promessa não se encontra garantido por direito de retenção sobre prédios da massa insolvente, em função de não ter havido pagamento de sinal como antecipação de pagamento; — analisado o âmago de tal questão, impõe-se, ademais, que o julgamento do objecto recursivo, no que toca à atribuição da garantia traduzida em direito de retenção à herança ilíquida e indivisa, incidente sobre “os prédios apreendidos na massa insolvente correspondentes aos Lotes A1, A2 e A3”, abranja a dilucidação da questão de direito relativa ao reconhecimento de tal direito de retenção à luz da jurisprudência fixada nos acórdãos de uniformização n.º 4/2014 e 4/2019 (arts. 682º, 1, 608º, 2, 5º, 3, CPC). 2. Factualidade Foram considerados provados pelas instâncias os seguintes factos: 1. BB e AA foram casados sob o regime de comunhão geral de bens em primeiras núpcias de ambos, tendo o segundo falecido, sem testamento ou qualquer disposição de última vontade, em 19/12/2007. 2. Sucederam ao aludido AA como herdeiras, além da viúva, BB, as duas filhas do casal, CC, casada no regime de comunhão de adquiridos com EE, e DD, casada no regime de comunhão de adquiridos com FF. 25. Assim, a partir de Dezembro de 2008, as aludidas herdeiras, BB e CC passaram a residir, respectivamente, nas moradias edificadas nos lotes A1 e A2, dormindo nas mesmas, aí preparando e tomando refeições, tomando banho e cuidando dos respectivos jardins. 26. Da mesma forma, também nessa altura, as referidas, BB e CC, sempre com autorização do legal representante da Insolvente, procederam à requisição de água e luz e, bem assim, requereram a certificação do prédio, pagando as taxas e encargos daí decorrentes. 27. Posteriormente, em Novembro de 2009, também a herdeira, DD, passou a residir com a sua família na casa edificada no lote A3, aí dormindo e tomando as suas refeições, para o que, fazendo uso do contrato-promessa aludido em 21) requisitou igualmente água e luz, bem como a certificação do prédio em causa. 28. Sem prejuízo, a moradia edificada no lote A4 não foi concluída, tendo a estrutura da casa, paredes e vedações sido construídas com recurso ao cheque de € 30.000,00 entregue pela aludida BB à Insolvente e tendo as herdeiras de AA, a partir de Novembro de 2009 e da entrega de tal lote A4 pelo representante legal da insolvente a estes, cuidado do mesmo, procedendo às limpezas necessárias, corte de arbustos e plantas que foram crescendo no local, consertado a vedação e colocado anúncio de venda com o nome da representante da herança. 29. Nos meses subsequentes a celebração dos contratos-promessa aludidos em 21) a 23), ou seja, em 2009, as herdeiras do falecido, AA, pediram, por várias vezes, ao representante legal da Insolvente JJ, para este diligenciar a marcação da escritura pública dos contratos definitivos de compra e venda das aludidas moradias; 30. Manifestando o aludido representante legal da Insolvente que tinha vontade de outorgar tais escrituras, mas que, de momento, não o podia fazer em função de não ter dinheiro para fazer os destrates das hipotecas (aludidas em 10) que incidiam sobre os imóveis a vender, pedindo, pois, mais tempo a fim de poder melhorar a situação financeira da insolvente e ter solvabilidade para pagar o empréstimo bancário. 31. Em 9/12/2009 a Herança Reclamante instaurou acção declarativa que correu termos sob o nº 1522/09.3TBGCC destinada a reconhecer o direito de resolução dos contratos-promessa aludidos em 3), bem como 21) e a condenação da Construtora Brigantina, Lda. a pagar àquela a quantia de € 2.000.000,00 acrescida de € 100,000,00 a título de benfeitorias ou, caso assim se não entendesse, a condenação desta a pagar à primeira a quantia de € 1.000.000,00, acrescida dos referidos € 100.000,00 a título de benfeitorias, mais se reconhecendo em todo o caso o direito de retenção da Herança sobre os imóveis construídos nos lotes A1, A2, A3 e A4 para garantia do pagamento de tal indemnização. 33. Na acção aludida em 31), entretanto apensa aos presentes autos de insolvência, foi proferida sentença que absolveu a Construtora Brigantina, Lda. do pedido, decisão essa da qual foi interposto recurso pela Herança, aí Autora, recurso esse, na sequência do qual a Construtora Brigantina, Lda. foi absolvida da instância. 35. Os lotes A1, A2, A3 e A4 encontram-se ainda onerados com a hipoteca a favor da credora hipotecária, CCAM em consequência do acordo de hipoteca aludido em 10). 36. No decurso do presente processo de insolvência, foi reconhecida pela Sra. Administradora de Insolvência à Herança Reclamante um crédito comum no valor de € 1.100.000,00. 37. A Sra. Administradora de Insolvência esclareceu no julgamento ocorrido nos presentes autos, nunca ter pretendido outorgar as escrituras dos contratos definitivos de transmissão dos lotes A1, A2, A3 e A4, entretanto apreendidos na massa insolvente, por entender que – a menos que os promitentes-compradores aludidos em 21) e 22) pagassem o respectivo preço de mercado – tal prejudicaria os restantes credores, designadamente, a CCAM. 3. O direito aplicável Por sua vez, atenta esta última circunstância, a decisão de 1.ª instância reconheceu o direito de retenção ao crédito indemnizatório antecipadamente convencionado apenas para as promessas incidentes sobre os prédios apreendidos a que correspondem os lotes A1, A2 e A3 (e apenas sobre esses) tendo em conta a aplicação da jurisprudência fixada pelo AUJ n.º 4/2014 e a inerente exigência da qualidade de consumidor aos respectivos promitentes-compradores. Argumentou-se que as heranças também ingressam no conceito de promitente-comprador consumidor exigido pelo tal AUJ, “desde que a destinação do prédio seja para uso (habitacional ou não) próprio destas e não para revenda” (pág. 36 e nt. 15).
3.2. Aqui chegados, percebe-se qual a questão directamente colocada para julgamento nesta instância pelas Recorrentes: decidir se o crédito da Herança Ilíquida e Indivisa, emergente do incumprimento pelo AI desses contratos-promessa celebrados em 2008 em referência aos aludidos lotes A1, A2 e A3, uma vez não sinalizados e em função desta natureza das promessas, está ou não garantido pelo direito de retenção, sendo certo que em benefício dela se registou a tradição dos imóveis-moradias que a Insolvente se havia obrigado a construir nos lotes respectivos, entretanto apreendidos na massa insolvente, e, ademais, estando esse crédito reconhecido judicialmente pelas instâncias[10] e, assinale-se, a discussão do seu montante fora do objecto recursivo. “Em termos gerais, é pacífico que nestas situações (de contrato-promessa) se pode reconhecer a existência de um direito de retenção, que tenha por objecto os lotes ou moradias que viessem a ser construídas e que tivessem sido entregues ao promitente "permutador", desde que obviamente se verifiquem os respectivos pressupostos legalmente previstos nos arts. 754° e 755° do CC. Na verdade, é inequívoco que o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real, sinalizada (que tenha prestado sinal), e que obteve a tradição da coisa objecto do contrato-prometido pode gozar do direito de retenção "pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442° do CC". E esta afirmação é válida para todas as situações em que no contrato intervenha o beneficiário de qualquer contrato promessa sinalizado com traditio rei – coisa móvel ou imóvel, rústica ou urbana, para habitação, comércio, indústria, etc. – e não só do contrato-promessa previsto no art. 410º, nº 3 do CC. O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição do direito real que não obteve a tradição da coisa, não goza do direito de retenção, o que é óbvio, por definição, visto que um dos pressupostos necessários para que o direito de retenção exista, é que o devedor esteja obrigado a entregar a coisa que detém, lícita e legitimamente, à pessoa de que é simultaneamente credor. No entanto, se tal tradição tiver ocorrido, tal direito de retenção pode ser reconhecido em qualquer contrato promessa sinalizado em que se declare prometer constituir um direito real. Isto significa que o disposto na aI. f) do nº 1 do art. 755º do CC não é só aplicável aos contratos promessa de compra e venda. Também poderá abranger um contrato-promessa de troca ou permuta de bens imóveis que reúna os referidos requisitos. No entanto (…), o nosso entendimento é que o âmbito de protecção do direito de retenção não abarca todos os créditos indemnizatórios que possam decorrer do incumprimento do contrato promessa, tendo que se fundar antes naqueles que decorram da aplicação do disposto no nº 2 do art. 442º do CC. Ora, constata-se que o crédito aqui reclamado não se mostra calculado em função do valor de qualquer sinal que tivesse ficado estabelecido no contrato – como exige aquele preceito legal –, mas sim do valor previamente fixado em termos de cláusula penal (arts. 810º e ss. do CC) no aludido Acordo de Garantia (2004) – como já ficou referido”. Ademais: “Dispõe o art. 754° do CC que o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados. Em síntese, o direito de retenção previsto naquele normativo depende de três requisitos: a) a detenção lícita de uma coisa que deve ser entregue a outrem; b) apresentar-se o detentor, simultaneamente, credor da pessoa com direito à entrega; c) a existência de uma conexão directa e material entre o crédito do detentor e a coisa detida, quer dizer, resultante de despesas realizadas com ela ou de danos pela mesma produzidos. A conexão objectiva entre o crédito e a coisa ("debitum cum re iunctum") constitui o alicerce básico do direito de retenção. O direito de retenção mostra-se, assim, consagrado na lei como um verdadeiro direito real de garantia, equiparando-se o seu titular ao credor pignoratício ou hipotecário, consoante o objecto do direito seja uma coisa móvel ou uma coisa imóvel (arts. 758º e 759º). Segundo o Prof. Calvão da Silva, para além da função de garantia, o direito de retenção tem ainda a função coercitiva, sendo um meio de pressão sobre o devedor para o determinar a pagar as despesas feitas por causa da coisa legitimamente retida ou por causa dos danos por ela causados. Torna-se, assim, possível definir o direito de retenção, com a necessária segurança, como o direito conferido ao credor, que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor de, não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir, mas também, de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores. Para além das situações que derivam da aplicação do critério geral consagrado no art. 754º do CC – que aqui não tem aplicação –, existem os casos especiais de direito de retenção previstos nas diversas alíneas do nº 1 do art. 755º do CC. Nalguns daqueles casos especiais, há lugar a direito a retenção apenas com base na simples origem comum dos dois créditos, sem que se verifique a conexão objectiva entre o direito e a coisa. No caso concreto, a Reclamante/Recorrida invocou a aI. f) do nº 1 do art. 755º do CC. Dispõe esta aI. f) que goza de direito de retenção o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442º do CC. Como é sabido, a exigência de ter havido constituição de sinal e a tradição da coisa têm subjacente a ideia de que nestes casos existe uma forte confiança na firmeza e concretização do negócio. Ora, salvo o devido respeito, e como decorre já do exposto, a questão no caso concreto não tem razão para existir.
3.4. Não obstante, perfilhamos outro entendimento, que ficou cabalmente explicitado no Ac. do STJ de 3/7/2018[11], com apoio doutrinal relevante (Calvão da Silva, Ana Prata, Gravato Morais) e jurisprudência sustentada, que é de sufragar. Vejamos os principais argumentos e contra-argumentos:
3.5. À argumentação que seguimos não obsta o facto de a indemnização pelo incumprimento estar ancorada num montante antecipadamente fixado através da estipulação de cláusula penal, clausulado antes da verificação da declaração de insolvência, e, portanto, fora do contexto de incumprimento pelo AI. Na verdade, é de advogar que, na falta de qualquer distinção na lei e na ausência de racionalidade ou teleologia excludentes, o art. 755º, 1, f), do CCiv. garante qualquer crédito indemnizatório derivado do incumprimento do contrato-promessa com tradição da coisa[12], incluindo essa indemnização fundada em cláusula penal na espécie antecipatória[13], destinada a liquidar o dano fundado na inexecução do contrato mediante acordo prévio substitutivo sobre o montante da obrigação de indemnizar como prestação pecuniária exigível (quantum respondeatur), de acordo com os arts 442º, 4, 1.ª parte – «Na ausência de estipulação em contrário…» –, 810º e 811º, 2, do CCiv.[14]. E não se vê que, uma vez reconhecida tal indemnização como crédito da insolvência, actuada no âmbito do incumprimento por parte do AI, se abalem os interesses considerados na insolvência com o facto de o montante indemnizatório para ressarcir os prejuízos causados pelo incumprimento das promessas ter sido substituído pelo valor antecipadamente fixado pelas partes na “pena” convencional, em preenchimento da função coercitiva da cláusula penal, implicada na autorização em exigir alternativamente uma prestação (em princípio) mais gravosa em relação ao regime legal[15]. A tal asserção não obsta ainda o carácter bivalente dessa estipulação em concreto. Resulta dos factos provados que o crédito indemnizatório deriva, em primeira linha, da cláusula penal fixada no primeiro e mais amplo contrato-promessa celebrado em 1999 (cfr. facto provado 6.) e, em segunda linha, circunscrita ao montante a ressarcir em caso de incumprimento da promessa de transmissão e construção nos lotes A1, A2, A3, A4 e C1, do “acordo de garantia” de 2004. E este painel enquadra-se com a admissibilidade de acordar, integralmente ou em algum do seu conteúdo, cláusula penal (mesmo que tacitamente por factos concludentes: art. 217º, 1, do CCiv.) fora do contrato em que se integra e num momento diferente (nomeadamente depois), desde que antes da verificação do facto que contempla. Em qualquer dos casos, “sempre a cláusula penal se encontra ligada à obrigação de que previne o incumprimento: tem carácter acessório”[16].
3.6. Sem prejuízo, e a montante da questão de direito entendida no seu todo, o julgamento do objecto recursivo, no que toca à atribuição da garantia traduzida em direito de retenção à titular do crédito herança ilíquida e indivisa, incidente sobre “os prédios apreendidos na massa insolvente correspondentes aos Lotes A1, A2 e A3”, implica necessariamente a análise do reconhecimento de tal direito de retenção à herança de acordo com a jurisprudência fixada nos acórdãos de uniformização n.º 4/2014, de 20/3/2014 – Processo n.º 92/05.6TYVNG-M.P1.S1, publicado in DR, 1.ª Série, n.º 95, de 19/5/2019 – e n.º 4/2019, de 12/2/2019 – Processo n.º 2384/08.3TBSTS-D.P1.S1-A, publicado in DR, 1.ª Série, n.º 141, de 25/7/2019 (arts. 682º, 1, 608º, 2, 5º, 3, CPC)[17].
3.6.1. O Acórdão n.º 4/2014 uniformizou jurisprudência nos seguintes termos: «No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755.º, n.º 1, alínea f) do Código Civil». O Acórdão n.º 4/2019, em complemento e seguindo as notas tipológicas consagradas no art. 2º, 1, da Lei 24/96, de 31 de Julho (Lei de Defesa do Consumidor), uniformizou jurisprudência tal como se transcreve: «Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para os efeitos do disposto no Acórdão n.º 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa». Em suma: O titular do direito de crédito indemnizatório, enquanto promitente-comprador lesado pelo incumprimento do contrato-promessa pelo administrador da insolvência e beneficiado com a garantia conferida pelo direito de retenção, tem que, para esse efeito de qualificação garantística do seu crédito à luz do art. 755º, 1, f), do CCiv., dispor da qualidade de consumidor, conferida enquanto e na medida em que “destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa”. Isto é, em síntese, teremos que nos confrontar com um retentor consumidor, em regra, pessoa singular[18]. Porém, não se exige uma exclusão liminar e absoluta de nele se integrarem pessoas colectivas, em especial se desprovidas de organização empresarial[19]. Mas solicita-se necessariamente uma relação do promitente- -comprador com o imóvel (prometido vender e entregue) para uso interessado, particular (mormente habitacional) ou (admite-se) altruístico ou egoístico, afastando- -se da tutela garantística a identificação no negócio de conexão com uma finalidade profissional e/ou económico-lucrativa. Neste âmbito, será que poderemos conferir esse direito de retenção ao crédito indemnizatório reconhecido à herança líquida e indivisa por óbito de AA?
3.6.2. Para começo de resposta, julgamos que a herança não se encontra, pelo menos desde a celebração dos contratos-promessa em 2008, a que se refere o facto provado 21., num estado de jacência, assim como prevista no art. 2046º do CCiv. («herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado»). Essa intervenção de todas as herdeiras foi comportamento negocial que deve ser visto como facto concludente para se constituir como aceitação tácita da herança (pelo menos na parcela patrimonial respectiva) pelas herdeiras (arts. 2056º, 2, 217º, 1, CCiv.) e, com ela, a respectiva assunção do ingresso de todas as herdeiras na titularidade das relações jurídicas do de cujus para efeitos do exercício representativo de direitos – neste caso, a de promitente-compradoras dos imóveis. Só assim, aliás, se justifica e legitima a traditio dos imóveis objecto das promessas celebradas em 2008 após a sua celebração, uma vez que o art. 2050º, 1, do CCiv. estatui precisamente que «o domínio e posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação, independentemente da apreensão material». Estando aceite, ainda que não partilhada e ainda indivisa, e tendo havido por essa via determinação dos seus titulares, não pode a herança nesse estado ser qualificada como património autónomo para efeitos processuais e, como tal, não dispõe de personalidade judiciária (arts. 6º, a), CPC 1961, 12º, a), CPC 2013, a contrario sensu)[20]. Por isso se compreende a decisão do Tribunal da Relação do Porto de 6/3/2014, referida no Relatório e constante por certidão a fls. 248 e ss destes autos, que, em apelação do despacho saneador – que determinara a absolvição da instância da Credora CCAM, em função da falta de personalidade judiciária da Reclamante, Herança –, revogou tal despacho de absolvição de instância e sanou a falta desse alegado pressuposto processual, considerando justamente que a reclamação de créditos apresentada devia ser entendida e interpretada como deduzida pelos herdeiros da herança do falecido, AA. Nestes termos se pronunciou (com sublinhado nosso): São tais herdeiros aceitantes vistos como partes activas legítimas da reclamação de créditos e do seu contraditório, na qualidade de únicas e exclusivas herdeiras da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do falecido – v., a este propósito, o art. 278º, 3, do CPC 2013. Em resumo: a sua legitimidade ad causam está afirmada processualmente por decisão oportunamente proferida e transitada em julgado.
3.6.3. No entanto, em termos substanciais, mesmo uma herança aceite não deixa de ser património autónomo e separado enquanto acervo de bens que responde e só ele responde pelas dívidas da herança – essencialmente, arts. 2068º e 2071º, com os limites do art. 2070º do CCiv. E, à primeira vista, essa sua natureza jurídica poderia obstar à titularidade do direito de retenção para garantia do crédito reconhecido no elenco de créditos da insolvência, tendo em atenção os pressupostos do AUJ n.º 4/2014, complementado pelo AUJ n.º 4/2019. Todavia. Note-se, desde logo, que o alargamento, com cautelas e dentro dos termos restritos do AUJ n.º 4/2019, do conceito de consumidor às pessoas colectivas, não é, como vimos, colocado liminarmente de parte – excepção feita, por regra, atendendo à inclusão dos negócios garantidos na realização, directa ou indirecta, de actividades relativas a objecto económico ou mercantil e submetidas ao princípio da especialidade do fim lucrativo (arts. 160º, 1, do CCiv., e 6º do CSC, em ligação com o lucro previsto no art. 980º do CCiv.), às sociedades, nomeadamente comerciais[21]-[22]. Por maioria de razão, não o deve ser também afastado para os patrimónios autónomos, ainda que desprovidos de personalidade jurídica – este sim, o verdadeiro óbice – desde que assim o justifiquem as particulares situações de debilidade e vulnerabilidade que escoram a tutela insolvencial do promitente- -comprador que o direito de retenção confere (na relação privilegiada com os credores titulares de hipoteca). Depois. É importante enfatizar que o facto de a herança ser legalmente património autónomo visa apenas e tão-somente um escopo de liquidação patrimonial, “traduzido em assegurar o pagamento dos credores da herança com os bens da herança e só com estes”[23]. Logo, essa teleologia não pode ser base para cercear ou condicionar a efectivação de direitos de crédito da própria herança, derivados da esfera jurídica do “de cujus”, e que passam a estar na dependência da vontade e da posição das pessoas singulares chamadas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais do falecido (herdeiros e legatários: art. 2024º do CCiv.). Por isso mesmo, depois de ultrapassado o estado de herança jacente, o art. 2091º, 1, do CCiv. constitui o normativo basilar para resolver a nossa questão e conferir a solução à questão decidenda. Esse preceito impõe que, fora dos «casos declarados nos artigos anteriores» (basicamente, a administração da herança pelo cabeça-de-casal até à sua partilha e liquidação), «(…) os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros» (o que se sobrepõe à competência do cabeça-de- -casal, ainda que para os actos para os quais dispõe de poderes de administração). Daqui resulta, na doutrina de OLIVEIRA ASCENSÃO, que, tratando-se de um caso de litisconsórcio necessário, “os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros. (…) temos aqui uma regra geral quanto à actuação sobre o património hereditário. (…) só os herdeiros podem em geral praticar: 1) A disposição dos bens 2) O pagamento do passivo hereditário 3) A defesa judicial dos direitos contestados, nomeadamente a cobrança de dívidas activas”[24]. CAPELO DE SOUSA acrescenta, a propósito: “A lei exige a intervenção conjunta de todos os herdeiros para conferir legitimidade activa ou passiva a esses actos, de disposição, uma vez que tratando-se de actos de disposição que põem em causa o valor e a composição da herança em si mesma, apesar de se poderem referir a alguns dos bens hereditários, justo é que intervenham todos os titulares desse património autónomo”[25]. De modo que, no caso de herança indivisa, “cabe apenas aos seus herdeiros intervir em nome próprio para fazer valer os seus direitos e que só por todos eles podem ser exercidos”, de forma que, “quando determinados os seus herdeiros, não devem eles ser condenados a pagar os encargos da herança, mas sim reconhecer a existência dos débitos que devam ser satisfeitos pelas forças da herança” (aqui se assume a autonomia ou separação patrimonial para efeitos de responsabilidade por dívidas) – assim se julgou no Ac. do STJ de 9/2/2012[26]. Ora, se assim é, a qualidade de retentor garantido no âmbito dos contratos- -promessa cujas posições jurídicas patrimoniais se encontram radicados na herança ilíquida e indivisa – relembre-se a origem do crédito no contrato-promessa matriz de 1999 – deve ser aferida na pessoa jurídica singular dos herdeiros que aceitaram a herança – desde que devidamente identificados – e à herança ser reconhecida a garantia privilegiada do seu crédito indemnizatório se esses herdeiros, na relação com o imóvel, preencherem os critérios impostos pela jurisprudência fixada pelos AUJ 4/2014 e 4/2019[27]. Vistos os factos relevantes processualmente assentes, conclui-se que esses pressupostos se verificaram:
3.6.4. Destarte, concluímos: (i) a circunstância de os contratos-promessa em causa não terem sido sinalizados contratualmente não prejudica o direito de retenção estabelecido no art. 755º, 1, f), do CCivil; e (ii) o crédito indemnizatório por incumprimento da promessa de transmissão de imóvel reconhecido à herança-património autónomo não deixa de beneficiar da garantia desse direito de retenção desde que os herdeiros-pessoas singulares que exercem os direitos da herança já aceite, nos termos do art. 2091º, 1, do CCiv., correspondam aos critérios dos AUJ n.º 4/2014 e 4/2019. Assim, o crédito reconhecido na insolvência está garantido pelo direito de retenção sobre os prédios apreendidos na massa insolvente correspondentes aos lotes identificados, que foram entregues, gozando por esse efeito da respectiva preferência legal, nomeadamente no confronto com o crédito hipotecário conflituante na graduação (art. 759º, 2, CCiv.). Procedem, de tal sorte, no que respeita à questão decidenda, as conclusões das Recorrentes, ainda que com fundamentação adicional.
III. DECISÃO STJ/Lisboa, 13 de Outubro de 2020
Ricardo Costa (Relator) José Rainho Ana Paula Boularot (vencida nos termos da declaração de voto que junto)
SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).
_______________________________________________________
PROCESSO N.º 54/10.1TBBGC-R.G1.S1 DECLARAÇÃO DE VOTO
Voto vencida o Acórdão, pelas seguintes razões.
A reclamação de créditos que foi desenvolvida e cujo crédito reconhecido não é aqui posto em causa provém da cláusula penal, tendo a respectiva decisão, neste particular, transitado em julgado (bem ou mal, não se discute).
A única questão que está em discussão é a do direito de retenção.
Aqui chegada, suscitam-me as seguintes questões, impeditivas de subscrever a decisão plasmada na tese que faz vencimento: i)O contrato promessa que foi celebrado em 29 de Setembro de 1999 com o de cujus dizia respeito ao terreno, cfr pontos 3 e 4 da matéria assente, onde iria ser construído um loteamento, terreno esse pertença daquele e cuja escritura foi efectuada em 5 de Março de 2004, pontos 5 e 6; ii) Nessa mesma data foi celebrado um outro contrato promessa entre a Insolvente e o de cujus, no qual aquela se comprometeu a vender a este os lotes A1,A2, A3 e A4 e C1, ponto 7, lotes esses nos quais iriam ser construídas a moradias cujo direito de retenção se encontra aqui em discussão no que tange às instaladas nos lotes A1 a A3; ii) O de cujus faleceu em 19 de Dezembro de 2007, sendo que antes da sua morte havia manifestado a vontade que a A1 ficaria para si e para sua mulher e as outras duas, seriam respectivamente para cada uma das filhas, ponto 16; iii)Posteriormente ao óbito, em 00 de … de 2008, a viúva e as filhas celebraram um contrato com a insolvente, denominado de permuta e compra e venda, relativamente às moradias A1, A2 e A3, sendo no âmbitos destes específicos contratos que lhes foi entregue a chave dos imóveis, cfr pontos 21 a 27;
Assim, se os contratos promessa que são a base para o direito de retenção aqui em causa foram celebrados directamente com as herdeiras e foi a estas que foram dadas as chaves para utilização dos imóveis, como é que se pode concluir que a HERANÇA tem o direito de retenção através do «mecanismo» do disposto no artigo 1091º, nº1 do CCivil, na asserção de que «os herdeiros pessoas singulares que exercem os direitos da herança já aceite correspondam aos critérios dos AUJ 4/2014 e 4/2019»?
Este ínsito legal, pressupõe o exercício dos direitos de acção pelos herdeiros, hipótese que aqui não ocorre, não se confundindo com o exercício de direitos pela própria Herança Ilíquida e Indivisa por óbito de AA, enquanto património autónomo, com personalidade judiciária própria, nos termos do artigo 12º, alínea a) do CPCivil, credora e parte na acção, embora representada judiciariamente pelas herdeiras, as quais, não obstante tal qualidade, não são parte nesta acção. E, não sendo parte, não lhes poderá ser reconhecido qualquer direito, sob pena de se estar a conhecer de objecto diverso do pedido, com a transmutação do tema decidendum e a alteração dos direitos dos intervenientes, substituindo-os por outros, que nada reivindicaram nos autos e contra os quais não foi deduzida qualquer defesa
Sendo a herança um património autónomo não poderá este «sujeito» processual ser titular de um direito de retenção, mesmo que se entenda, por mera hipótese de raciocínio, que foi com o mesmo, embora intervindo as herdeiras em sua representação, que tal promessa foi acordada, tendo em atenção a doutrina do AUJ 4/2019, no qual se define quem podem ser os titulares de tal direito, o que afasta a se, a pretensão aqui plasmada.
Face a toda a factualidade apurada e à questão de direito suscitada nos autos, a única solução seria a de concluir pela impossibilidade de declaração do direito de retenção peticionado, mantendo-se a decisão de segundo grau embora com fundamentação diversa.
(Ana Paula Boularot) _______________________________________________________
[22] V. Acs. do STJ de 17/10/2019, processo n.º 1012/15.5T8VRL-BD.G1.S2, Rel. JOSÉ RAINHO, e de 17/12/2019, processo n.º 1997/11.0TYLSB-B.L1.S1, Rel. RAIMUNDO QUEIRÓS (subscrito como Primeiro Adjunto pelo aqui Relator), in www.dgsi.pt, com convergência de princípio com a restrição interpretativa de Calvão da Silva e Pestana de Vasconcelos. |