Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A2673
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MÁRIO CRUZ
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
LIVRANÇA
PREENCHIMENTO ABUSIVO
AVALISTA
Nº do Documento: SJ200710230026731
Data do Acordão: 09/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário :
I - Só no caso de se estar já fora da relação jurídica subjacente ao negócio cartular, quando se entra no domínio das relações mediatas, onde há já interesses de terceiros em jogo, se deve colocar, de forma mais inquestionável, a afirmação dos princípios da autonomia, abstracção e literalidade, que caracterizam os títulos cambiários.
II - Nesses casos sobrepõem-se como prevalentes esses princípios, impossibilitando-se que o obrigado cambiário originário - mesmo sendo alegada vítima do preenchimento abusivo - possa vir a opor ao portador a violação do pacto de preenchimento, a menos que o novo portador tenha também ele adquirido o título de má fé ou cometido falta grave ou tenha, com a sua aquisição, procedido conscientemente em detrimento do devedor.- cfr. arts. 10.º e 17.º da LULL.
III - Assim, estando-se no domínio da relação cambiária primitiva, não tendo a livrança saído das relações imediatas, e alegando a executada o comportamento gravemente censurável da exequente com o alegado preenchimento abusivo, não deve a oposição à execução ser liminarmente indeferida, antes devendo ser dada oportunidade de fazer prova dessa matéria.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

O Banco Espírito Santo SA instaurou nos Juízos de Execução do Porto execução comum
contra
AA,
BB
e CC,
alegando os seguintes factos:
“O exequente é legitimo portador de uma livrança, subscrita pelo executado AA e avalizada, pelos, também executados BB e CC, conforme se afere das suas declarações e assinaturas apostas no documento, com o valor de € 24.659,30, vencida a 20.02.2005 – livrança que se junta como doc. n.º 1.
Apresentada a pagamento, a mesma não foi paga, nem na respectiva data de vencimento, nem posteriormente até ao presente, em parte ou na totalidade, e isto, apesar das diversas insistências do exequente para o efeito.
Assim, subsiste em divida a totalidade do capital titulado por tal documento - € 24.659,30 -, bem como os juros de mora vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento, contados à taxa legal de 4% sobre o capital, desde o vencimento do título e ainda o respectivo imposto de selo, contado sobre os juros devidos, também à taxa legal de 4%, conforme estabelecido pela Tabela do Imposto de Selo”.

A executada CC deduziu oposição, alegando, para tanto, essencialmente, os seguintes fundamentos:
Nada tem que ver com o empréstimo em causa, pelo que só a má fé do exequente pode explicar a execução.
De facto, a aqui executada, em 6 de Abril de 2001, constituiu-se fiadora de um empréstimo contraído pelo executado AA, junto do B.I.C. Banco Internacional de Crédito, SA, no valor de 10.350.000$00, destinado á aquisição do seguinte imóvel: fracção autónoma designada pela letra A, correspondente a uma habitação no r/c direito frente e lugar de garagem A-um, na cave, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua Cidade de Trelazé, n.º ...e... e Arruamento a designar, da freguesia e concelho de Valongo.
A aquisição do referido imóvel foi efectuada mediante contrato de “compra e venda mútuo com hipoteca e fiança”, que a opoente assinou, conforme cópia do doc. junto.
Com o referido contrato, a executada assinou, na qualidade de fiadora, a respectiva livrança, livrança esta em branco.
Nunca a executada se constituiu fiadora de qualquer outro empréstimo contraído por aquele devedor, também executado.
A livrança em causa foi utilizada indevidamente pelo exequente, num empréstimo para o qual não foi destinada.
Pediu, assim, que a execução fosse julgada extinta quanto a ela.

Na primeira instância foi entendido que a oposição era manifestamente improcedente, e por isso foi proferido despacho liminar de indeferimento.
Considerou-se, então, que a oposição estava fatalmente votada ao insucesso, porquanto, sendo o título executivo a livrança, a executada, enquanto avalista, se encontrava face ao Exequente (BES) numa relação mediata, o que a impossibilitava de suscitar a excepção de preenchimento abusivo.

A opoente não se resignou, tendo interposto recurso de agravo, referindo em suma, ter havido violação do pacto de preenchimento porque o que contratara se destinara a um empréstimo definido que não aquele, e que a Exequente (BES,SA) se aproveitara do facto de incorporar por fusão o anterior beneficiário da livrança (BIC), interveniente no pacto de preenchimento - sucedendo-lhe assim na situação jurídica daquele - , e porque, não havendo entrado a livrança em circulação, não saíra a mesma do âmbito das relações imediatas, podendo assim opor ao actual Exequente (BES, SA) a excepção da violação do pacto.

A Relação, no entanto, apesar de ter proferido doutas considerações sobre as responsabilidades do avalistas e as circunstâncias em que estes, nas livranças, podem deduzir oposição ao portador, manteve a decisão recorrida, embora com fundamento no facto de a oponente não ter alegado factos dos quais resulte a existência de um acordo de preenchimento da livrança em que tenha participado.

Agravou novamente a Executada, terminando as conclusões da sua alegação de recurso pela forma seguinte:
“1.A recorrente constituiu-se fiadora de um empréstimo contraído junto do BIC Banco Internacional de Crédito, através de contrato de mútuo com hipoteca e fiança prestada através da assinatura de uma livrança em branco.
2.A referida livrança em branco, assinada pela fiadora, foi entregue ao respectivo credor como garantia do contrato de mútuo celebrado entre o afiançado e o BIC, para aquisição de um imóvel.
3.Da interpretação do respectivo pacto de preenchimento, resulta, inequivocamente, que a fiadora afiança todas as obrigações que o mutuário assuma a título de empréstimo em causa naquele mútuo.
4.Tendo havido fusão entre o BIC- Banco Internacional de Crédito, SA e o BES – Banco Espírito Santo SA passando a existir no mercado uma única instituição financeira com a denominação de BES - Banco Espírito Santo SA, a livrança em causa não chegou a entrar em circulação.
5.Nesse sentido, não chegou a sair do domínio das relações imediatas.
6.Nesse sentido, também, é, pois, legítima a discussão do pacto de preenchimento e da relação subjacente como excepções oponíveis à execução, como faz a recorrente.
7. Tal pacto de preenchimento foi totalmente violado pelo portador da livrança, ora recorrido, aproveitando-se de uma alteração superveniente das circunstâncias derivada da fusão acima referida, usou e preencheu abusivamente uma livrança num empréstimo para o qual não foi destinada, unicamente com o propósito de liquidar, o seu crédito mal parado.
8. Na realidade, a livrança em branco foi subscrita para garantir as obrigações decorrentes de um empréstimo contraído por AA, junto do BIC-Banco Internacional de Crédito, SA, no valor de 10.350.000$00 (€ 51.625,58), destinado à aquisição de um imóvel para habitação, empréstimo esse cujo contrato a recorrente assinou, assinando também, como garantia desse mesmo contrato, a livrança em branco aqui em causa.
9. No entanto tal livrança foi preenchida e utilizada para outros fins, designadamente para garantia de outro empréstimo de que é também devedor aquele AA, mas cujo contrato nunca foi subscrito pela recorrente e que, do qual, de resto, nunca teve, sequer, conhecimento.
10. Nesse sentido, ainda, o recorrido ultrapassou todos os limites impostos pela boa fé e exigíveis em todos os negócios jurídicos, designadamente nos princípios dominantes em matéria de interpretação dos mesmos, prescritos nos arts. 236.º, 237.º e 238.º do CC.
11. O douto Acórdão recorrido violou, pois, por erro de interpretação e de aplicação, o disposto nos arts. 236.º, 237.º, 238.º e 334.º do CC., bem como o disposto nos arts. 10.º, 17.º e 77.º da LULL.”
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II. Âmbito do recurso

De acordo com o disposto nos arts. 684.º-4 e 690.º-1 do CPC. - e sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - o âmbito do recurso é determinado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente nas alegações a esse fim destinadas.
Em face das conclusões apresentadas (já atrás transcritas no Relatório), vimos a constatar, portanto, que há apenas duas questões a apreciar:
a) a de determinar se há ou não matéria de facto alegada onde possa suportar-se a existência do pacto de preenchimento e sua violação.
b) a de determinar se pode a Executada [(avalista de AA, subscritor de livrança)] opor ao exequente (BES,SA) [(que, incorporou por fusão o anterior (BIC,SA), a quem o exequente veio a suceder] a excepção da violação do pacto de preenchimento na livrança celebrado com a sua antecessora, quando a Executada refere na oposição ter assinado em branco a livrança aqui dada à execução para garantia de um outro negócio concreto, diferente daquele para o qual está aqui a ser utilizada.

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III. Fundamentação

Os factos a ter em consideração são os que nos são fornecidos no Relatório

Passemos então a analisar o Direito:

III-a) Quanto à falta de alegação por parte da opoente de matéria factual atinente à existência (e violação) do pacto de preenchimento

Temos começar por referir, que só por mero lapso ou equívoco, se compreende a parte final do Acórdão recorrido- que precede a decisão final - , onde se refere que “A opoente não alegou, porém, factos dos quais resulte a existência de um acordo de preenchimento da livrança, em que tenha participado”, e que, por isso, “A oposição não podia deixar de ser considerada como manifestamente improcedente, como foi.”
Na verdade, ao contrário do aí referido, a opoente expressou devidamente:
- que se constituiu fiadora de um empréstimo efectuado por AA junto do BIC, para aquisição dum imóvel – identificado no art. 2.º da oposição à execução - cujo contrato assinou nessa qualidade (art. 2.º da oposição à execução),
- que, com o referido contrato a Executada assinou, na qualidade de fiadora, a respectiva livrança, livrança esta em branco (art. 4.º),
- assinada pelo devedor e pelos fiadores (art. 5.º),
- sendo a mesma subscrita para garantia do empréstimo contraído junto do BIC (6.º),
- empréstimo esse sim efectivamente afiançado pela opoente (7.º)
- que nunca se constitui fiadora de qualquer outro empréstimo contraído por aquele devedor, também Executado (8.º),
- sendo esse o único empréstimo em que a Executada CC se constituiu fiadora e cujo contrato assinou nessa qualidade bem como a respectiva livrança em branco referente também e apenas a esse contrato (11.º)
- sendo a livrança utilizada indevidamente pelo Exequente, num empréstimo para o qual não foi destinado, do qual a Executada nunca teve conhecimento e muito menos se constitui fiadora (art. 12.º ) .
Desta forma, pese embora alguma imprecisão jurídica por se haver atribuído indiscriminadamente a expressão de “fiadora” à posição jurídica da Executada opoente tanto para designar a sua posição na escritura de empréstimo com hipoteca como para definir a sua posição jurídica face à qualidade de avalista do subscritor na livrança em branco, o que não há dúvida é que a opoente se mostrou suficientemente clara em associar o preenchimento da livrança ao enunciado empréstimo, do qual logicamente dependia, sendo este portanto o negócio jurídico subjacente à livrança.
Não tem assim consistência a indicada falta de alegação factual atinente à existência de um pacto de preenchimento quanto à livrança e sua violação.

III-b) Quanto à possibilidade de o avalista do subscritor da livrança opor ao Exequente, portador dela, a violação do pacto de preenchimento.

Nesta matéria importa reter, em primeiro lugar, que o Exequente (BES, SA) incorporou por fusão o anterior mutuante (BIC, SA), herdando a Exequente a mesma posição jurídica detida anteriormente por aquela.
Depois, importa ter em consideração que o aval na livrança, dado pela Executada, se destinou, alegadamente, a reforçar a garantia num mútuo com hipoteca para um empréstimo, em cuja escritura a Executada interviera como outorgante na qualidade de fiadora.
Depois, e por fim, importa reter que a referida Livrança, uma vez preenchida pela entidade mutuante, de que era beneficiária, não chegou a entrar em circulação.

Este quadro leva-nos a considerar que quer a Exequente quer a Executada se mantêm no domínio da relação cambiária primitiva, não tendo a livrança saído das relações imediatas.
Ora, a ser verdade o alegado pela Executada, isso leva-nos a admitir que a Exequente cometeu uma falta grave no preenchimento da Livrança,

Pois bem:
No art. 10.º da LULL, aqui aplicável ex vi do art. 77.º, prevê-se expressamente que no caso de violação do pacto de preenchimento em que a Letra (leia-se Livrança) seja adquirida de má fé ou em que, após a aquisição, o portador tiver cometido uma falta grave, pode a inobservância desse acordo ser motivo de oposição ao portador.
No caso em presença, tendo a Executada alegado que a sua assinatura na livrança se destinou exclusivamente a garantir um negócio – que identifica – e que nada tem a ver com a dívida aqui em causa – deve-se-lhe dar toda a oportunidade para poder vir provar o que alega, ou seja, que a Exequente preencheu a Livrança com um objectivo inteiramente distinto daquele para o qual subscrevera a livrança, circunstância que, a ser verdade, constituirá uma forma gravemente censurável da Exequente, mas que apenas com o desenrolar do processo poderá vir a deslindar-se

Por outro lado convém dizer que só no caso de se estar já fora da relação jurídica subjacente ao negócio cartular, quando se entra no domínio das relações mediatas, onde há já interesses de terceiros em jogo, se deve colocar, de forma mais inquestionável, a afirmação dos princípios da autonomia, abstracção e literalidade, que caracterizam os títulos cambiários.
Nesses casos sobrepõem-se como prevalentes esses princípios, impossibilitando-se que o obrigado cambiário originário – mesmo sendo alegada vítima do preenchimento abusivo - possa vir a opor ao portador a violação do pacto de preenchimento, a menos que o novo portador tenha também ele adquirido o título de má fé ou cometido falta grave ou tenha, com a sua aquisição, procedido conscientemente em detrimento do devedor.- cfr. arts. 10.º e 17.º da LULL.

Será no entanto de vir a ter presente que se porventura a Agravante-Executada não provar a violação do pacto do pacto do preenchimento, é ela responsável da mesma maneira que a pessoa por ela afiançada (leia-se, em rigor, avalizada), e que a sua obrigação se mantém, mesmo no caso de a obrigação que ela garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma. – art. 32.º da LULL.

Assim sendo, não deveria a oposição à execução ser liminarmente indeferida, antes devendo ser dada oportunidade à Executada de no caso em presença poder vir provar o comportamento gravemente censurável que atribui à Exequente com o alegado preenchimento abusivo nas condições que refere.
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IV. Deliberação

Em face do exposto, dá-se provimento ao agravo, ordenando-se que seja recebida a oposição à execução, seguindo os autos os ulteriores termos.
Custas pela agravada, nos recursos interpostos.
Na primeira instância as custas deverão ser determinadas a final.

Lisboa, 18 de Setembro de 2007

Mário Cruz (Relator)
Faria Antunes
Moreira Alves