Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
17268/16.3T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
BENS COMUNS DO CASAL
QUOTA SOCIAL
DETERMINAÇÃO DO VALOR
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
Data do Acordão: 05/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A acção especial de prestação de contas tem como finalidade específica o apuramento das receitas obtidas e das despesas realizadas em função da administração de um bem com vista à liquidação do saldo e condenação no seu pagamento;

II. Não cabe na metodologia típica da acção de prestação de contas o apuramento do valor duma quota social em vista da sua partilha entre os ex-cônjuges.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE


ENTRE

AA

(aqui patrocinado por BB, adv.)

Autor / Apelado / Recorrente

CONTRA

CC

(tendo como curador provisório o seu co-réu)

E

DD

(aqui patrocinado por EE, adv.)

Réus / Apelantes / Recorridos



I – Relatório

 O Autor intentou contra os Réus a presente acção especial peticionando a prestação de contas relativamente à gestão de determinados bens comuns, ainda não partilhados, do casal que formou com a Ré mulher, bem como de imóvel de que são, Autor e Réus, comproprietários.

  Alega que foi casado com a Ré mulher no regime de comunhão de adquiridos desde 04OUT1973 até à dissolução desse vínculo em 09JAN1998; que na constância desse matrimónio advieram ao património do casal uma quota de 50% numa sociedade, de que a Ré mulher foi a gerente e sobre a qual, desde 1997, não lhe dá qualquer informação, designadamente quanto à venda do estabelecimento e à liquidação da sociedade; que o imóvel de que é comproprietário foi pelos Réus arrendado, sem que lhe forneçam qualquer informação acerca desse imóvel ou do mesmo lhe resulte qualquer rendimento.

Pede, em concreto, a citação dos Réus para que apresentem:
a) As contas integrais relativas à gestão e administração da sociedade comercial denominada F..., LDA., nelas se incluindo todos os livros, escrituração comercial, contas bancárias e respectivos extractos relativos ao período compreendido entre 1997 e 2011, com vista a apurar os valores recebidos pela Ré desde 1997 até à data da dissolução e liquidação da sociedade e, assim, apurar a existência de saldo credor a favor do Autor;
b) As declarações de IRS relativas aos anos 2011, 2012, 2013, 2014 e 2015 de ambos os Réus, para apurar os valores por estes declarados à administração fiscal, quer em razão das importâncias recebidas por efeito da liquidação da sociedade F..., LDA., quer em razão do arrendamento do apartamento herdado e legado, e, assim, dessa forma, apurar a existência de saldo credor a favor do Autor;
c) Os comprovativos de pagamento/recibos das rendas recebidas por efeito do arrendamento do apartamento herdado por falecimento de FF, para, dessa forma, se apurar a existência de saldo credor a favor do Autor;
d) As apólices dos seguros subscritos por FF e em vigor à data do falecimento deste;
e) A condenação dos Réus no pagamento ao Autor do saldo global que venha a ser apurado a favor deste, de acordo com as respectivas responsabilidades.

Os Réus contestaram alegando que a quota na sociedade ou os rendimentos que dela tenha obtido são bens próprios da Ré mulher, que o Autor age em abuso de direito porquanto sempre se desinteressou quer pela gestão quer da assunção de encargos dos bens em causa, não obstante ter relativamente a eles a posição de cabeça de casal, que o meio processual adequado não é a prestação de contas mas antes o inventário, mas de qualquer forma elenca os réditos auferidos e as despesas incorridas relativamente ao imóvel em compropriedade.

Veio então a ser proferida sentença em que se decidiu:
a) Que a Ré se encontra obrigada a prestar contas ao Autor relativamente às receitas que tenham sido recebidas e despesas que tenham sido efectuadas, em razão da titularidade de quota social de propriedade dos mesmos na sociedade comercial “F..., LDA.”, no período compreendido entre 9 de Fevereiro de 1998 e a dissolução da sociedade inscrita em registo a 1 de Junho de 2011, contas essas a prestar nos termos previstos no artigo 944.º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, devendo a Ré ser notificada para as apresentar dentro de 20 dias, sob pena de lhe não ser permitido contestar as que o Autor apresente.
b) Convidar os Réus a apresentarem, no mesmo prazo de 20 dias, as contas da administração que efectuaram, relativamente ao imóvel em lide de que são herdeiros juntamente com o Autor, em conta-corrente corrente com indicação expressa de cada uma das receitas e despesas, e não englobadas, sob pena de verificação do disposto na parte final no artigo 944.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

Inconformados, apelaram os Réus invocando terem sido condenados em objecto diverso do pedido e que deveriam ter sido decretada a improcedência da acção.

A Relação, entendendo que sempre se haveria de entender a pretensão do Autor como reportada às contas da sociedade, não sendo caso de condenação em objecto diverso do pedido, considerou ser tal pretensão improcedente, quer porque a prestação de contas relativamente a bens comuns do casal pressupõe que essa qualidade esteja previamente determinada e que a mesma se reporte à integralidade dos bens integrados na comunhão e não a bens individualizados, sendo o meio processual adequado o processo de inventário, quer porque a comunhão de quota societária só releva, na comunhão conjugal, na vertente patrimonial (enquanto valor da quota e não já quanto aos direitos corporativos), não assistindo ao cônjuge do sócio o direito de obter informação societária (designadamente quanto às contas) e, por outro lado, que o Réus haviam apresentado correctamente as contas quanto ao imóvel, julgou a apelação procedente, decidindo:
a) Absolver a ré do pedido formulado pelo Autor sob a alínea A);
b) Considerar que a ré apresentou as contas sob a forma e conta corrente em relação à fracção de que o A. e réus são herdeiros, devendo a acção prosseguir apenas nesta parte os seus trâmites.

Agora irresignado veio o Autor interpor recurso de revista concluindo, em síntese, erro de julgamento devendo ser repristinada a sentença de 1ª instância no que tange à prestação de contas relativa à quota em sociedade comercial.

Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido e, subsidiariamente, se ampliou o objecto do recurso quanto à nulidade da sentença de 1ª instância por condenação em objecto diverso do pedido.


II – Da admissibilidade e objecto do recurso

A situação tributária mostra-se regularizada.

O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (artigo 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (artigo 40º do CPC).

Tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (artigos 639º do CPC.

O acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º e 671º do CPC e AUJ 5/2021).

Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).

Destarte, o recurso merece conhecimento.

 Vejamos se merece provimento.

 Já o mesmo não ocorre relativamente à ampliação do objecto do recurso uma vez que a nulidade da sentença ou acórdão é questão diferenciada dos fundamentos da acção ou da defesa e só quanto a estes, segundo o artigo 636º do CPC, se verifica a possibilidade de ampliação do objecto do recurso.

Pelo que se não admite a pretendida, ainda que subsidiariamente, ampliação do objecto do recurso.

           


-*-


Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

 Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, desde logo há a realçar que o acórdão recorrido transitou em julgado na parte em que considerou as contas relativas á fracção autónoma de que o Autor e Réus são herdeiros apresentadas em boa e devida forma.

 A questão a decidir é a de saber se os Réus estão ou não obrigados à apresentação de contas relativamente “às receitas que tenham sido recebidas e despesas que tenham sido efectuadas, em razão da titularidade de quota social de propriedade dos mesmos na sociedade comercial”.


III – Os factos

Das instâncias vêm fixada a seguinte factualidade:

Factos provados:
1. O Autor e a Ré contraíram casamento o dia 4 de Outubro de 1973, sob o regime de comunhão de adquiridos.
2. Na constância do matrimónio nasceu seu filho FF, falecido no dia .../.../2012 com 37 anos de idade, sem descendentes.
3. O indicado casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida em 30 de Janeiro de 1998 e transitada em julgado em 9 de Fevereiro de 1998, proferida pelo ... Juízo do Tribunal de Círculo ....

4. O Autor e a Ré separaram-se um ano antes do divórcio.

5. Em 6 de Março de 1986 foi inscrita no respectivo registo comercial a constituição da sociedade comercial “F..., LDA.”, com objecto social de exploração de farmácia, com capital social de €7.481,97, sendo uma das quotas, no montante no valor de €3.740,98, da titularidade de CC, então casada em regime de comunhão de adquiridos com AA.
6. Por escritura pública de trespasse outorgada no dia 14 de Maio de 2010, cuja certidão consta de fls. 66 a 72 do processo físico e teor respectivo se dá por reproduzido, a sociedade comercial “F..., LDA.”, representada pelas suas únicas sócias e gerentes CC, e GG, declarou trespassar à sociedade “M..., Lda.”, pelo preço já recebido de Um Milhão e Oitocentos Mil Euros, do estabelecimento comercial de farmácia denominado “F..., LDA.”, instalado no prédio sem número Rua ..., localidade do ..., freguesia ..., concelho ....
7. Em 16 de Maio de 2011 foi deliberada em Assembleia-Geral Extraordinária da sociedade “F..., LDA.”, a respectiva dissolução e liquidação por inexistência de activo e passivo.
8. Em 1 de Junho de 2011 foi inscrito no respectivo registo comercial, a dissolução, o encerramento da liquidação, e o cancelamento da matrícula da indicada sociedade, sendo depositária a aqui Ré CC.
9. A Ré foi uma das sócias gerentes da indicada sociedade desde a constituição até à dissolução.

10. A Ré desenvolvia a sua actividade profissional na F..., LDA..

11. O Autor e a Ré são proprietários dos seguintes imóveis:

- Prédio rústico correspondente ao artigo n.º ...2, secção .. da União das Freguesias ... e ...;
- Prédio rústico correspondente ao artigo n.º ...4, secção .. da União das Freguesias ... (... e ..., ... e ...);
- Prédio urbano correspondente ao artigo n.º ...37 da União das Freguesias ... (... e ..., ... e ...).

12. O Autor e a Ré não procederam a partilha de bens comuns posterior ao divórcio.
13. A Ré não prestou ao Autor contas da actividade da farmácia relativa ao período entre o divórcio e a dissolução da sociedade.
14. Os Réus contraíram casamento no dia 3 de Agosto de 2012, com convenção antenupcial, no regime de comunhão geral de bens.

15. Por testamento lavrado no dia 20 de Janeiro de 2009, FF, sem descendentes, instituiu como herdeiro da quota disponível de seus bens DD, e caso falecesse sem herdeiros legitimários, como seu único herdeiro.

16. À data do respectivo óbito, FF era proprietário da fracção autónoma designada pela letra ..., destinada a habitação, correspondente ao ... (Apartamento ...), do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida ..., na freguesia e concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...25 da referida freguesia.
17. O referido apartamento foi arrendado a HH, tendo os Réus recebido rendas e efectuado pagamento, de prestações ao credor hipotecário “Milennium BCP” e outras despesas relativas ao imóvel.

Factos não provados:
a) Que o dinheiro utilizado para constituir a sociedade foi doado à Ré por seus pais e o Autor sempre o reconheceu.

b) Que o Autor não promoveu a partilha por saber que a quota não era bem comum.

           
IV – O direito

Pouco importa para a resolução da questão em causa a discussão sobre o âmbito dos poderes do Autor no que concerne à sua posição de (ex-)cônjuge de titular de uma quota social bem comum do casal: se, segundo a tese ‘clássica’, tal comunhão se restringe apenas ao valor económico dessa participação social (quota-valor) não assistindo ao cônjuge ‘não considerado como sócio’ qualquer direito ao faculdade relativamente à sociedade, designadamente a possibilidade de requerer a prestação de contas, de requerer a anulação de deliberações sociais ou a necessidade de prestar consentimento para actos de administração extraordinária (nesse sentido cf.: os acórdãos do STJ de 31MAR1998, proc. 97A791; 28NOV2000, BMJ, 501, 300; 29JUN2004, proc. 04A2062; 16JAN2021, proc. 325/18.9T8VNG.P1.S1; FERRER CORREIA, “Sociedades por Quotas - Cessão de Quota a Meeiro de Sócio (parecer)”, Coletânea de Jurisprudência, Ano XIV, Tomo IV, 1989; REMÉDIO MARQUES, “O (Ex)Cônjuge de Sócio de Sociedade Comercial Adquire a Qualidade de Sócio? – Designadamente para o Efeito de Requerer Inquérito Judicial?”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. XCIV, Tomo II, 2018); ou antes, de acordo com posições alternativas, lhe assiste, em função da comunicabilidade do bem, a possibilidade de maior intervenção na sociedade ou mesmo a qualidade de sócio (cf.: o acórdão da Relação de Lisboa de 12JUL2007, proc. 5856/2007-7; RITA LOBO XAVIER, “Participação Social em Sociedade por Quotas Integrada na Comunhão Conjugal e Tutela dos Direitos do Cônjuge e do Ex-Cônjuge do “Sócio”, in Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais, Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Vol. III, Coimbra, Coimbra Editora; MARIA MIGUEL CARVALHO, “Breves Considerações sobre a Posição Jurídica do Cônjuge Meeiro Relativamente aos Dividendos Societários”, Scientia Iuridica, Tomo LXVII, n.º 346, JAN/ABR 2018; JOSÉ MIGUEL DUARTE, “A Comunhão dos Cônjuges em Participação Social”, Revista Ordem dos Advogados,  Ano  65,   Vol.   II,   Lisboa, SET/2005).

É que não está em causa o apuramento das receitas obtidas  e das despesas realizadas em função da administração da quota social que é bem comum do casal, com vista à liquidação do saldo, que é a finalidade específica da acção especial de prestação de contas (artigo 941º do CPC), mas sim o apuramento do valor dessa mesma quota social em vista da sua partilha entre os ex-cônjuges (conforme resulta cristalino do afirmado nas conclusões 6ª e 7ª do Recorrentes: «… do facto daquela quota… ser um bem comum… que jamais fora objecto de partilha após a dissolução do respectivo casamento, o ora Recorrente tem o direito de receber da ora Recorrida metade do dinheiro por esta recebido»).

Sendo que a partilha dos bens comuns do casal na sequência do divórcio, para além de se realizar para o conjunto desses bens e não relativamente a bens individualizados (sobre os quais, até à partilha, nenhum dos interessados tem direito, mas antes a uma quota ideal relativamente à globalidade desses bens), se faz através de inventário para separação de meações. E aí, a propósito do apuramento do valor dos bens a partilhar, as necessidades de informação serão satisfeitas pelos meios estabelecidos no artigo 417º do CPC (sem prejuízo da obrigação do cabeça-de-casal aí prestar contas anualmente, relativamente à administração que não quanto ao valor dos bens – cf. acórdão da Relação de Lisboa de 26ABR2007, proc. 1944/2007-2).

Ou seja, não se vislumbra que para apuramento do valor de quota social que seja bem comum do ex-casal tendo em vista a sua partilha seja relevante o apuramento das receitas e despesas realizadas no giro da sociedade tendente à condenação no pagamento no respectivo saldo e, que, consequentemente, assista ao Recorrente o direito de exigir esse tipo de informação.


V – Decisão

Termos em que se nega a revista, confirmando a (parte da) decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 05MAI2022

Rijo Ferreira (relator)

Cura Mariano

Fernando Baptista