Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
583/19.1T8FAR.E1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
USUCAPIÃO
POSSE
ESCRITURA PÚBLICA
AÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
BEM IMÓVEL
INEFICÁCIA
REGISTO PREDIAL
TRATO SUCESSIVO
PRESSUPOSTOS
CASO JULGADO
CONHECIMENTO OFICIOSO
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - A acção de impugnação de justificação notarial é uma acção de simples apreciação negativa, em que por inversão do regime regra do ónus da prova, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (art. 343.º, n.º 1, do CC).

II - Se na escritura o declarante, réu na acção, declarou ter adquirido por usucapião um determinado prédio, compete-lhe a prova dos factos necessários à verificação da usucapião, a saber, a posse, com os seus dois elementos (corpus e animus), pelo tempo necessário à aquisição do direito.

III - Se o réu não provou qualquer acto de posse sobre o imóvel objecto da escritura de justificação, é inevitável a procedência da acção, com a declaração de ineficácia das declarações dela constantes.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

“LUAR SILVESTRE, LDA”, intentou acção  declarativa comum contra AA peticionando que:

a) Se considere impugnado, para todos os efeitos legais, os factos constantes na escritura pública de justificação lavrada em 9 de outubro de 2017, por BB como gestor de negócios do réu AA, com a gestão ratificada em 14 de janeiro de 2019, com o conteúdo referido no art. 1.º desta petição inicial;

b) Se declare nula e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, por forma a que o réu não possa, através dela, adquirir nem registar quaisquer direitos de propriedade sobre o prédio nela identificado e objecto da presente impugnação.


Regularmente citado o réu, além do mais, suscitou a questão da falta de legitimidade da sociedade/autora para instaurar a presente acção.


Discutida a causa, foi proferida sentença que absolveu o Réu da instância na sequência da procedência da excepção de ilegitimidade processual e substantiva da autora.


Do assim decidido apelou a Autora.

A Relação de Évora, por acórdão de 15.05.2022, julgou procedente a apelação e, em consequência,

- Revogou a sentença recorrida;

- Declarou a ineficácia da escritura de justificação notarial outorgada pelo Réu AA, em 09.10.2017.


É a vez do Réu interpor recurso de revista, pugnando pela revogação do acórdão e a repristinação da sentença, tendo apresentado as seguintes conclusões:

1. O douto acórdão decidiu dar como não provado o facto provado 25, no qual consta que “O prédio justificando se situa entre o prédio descrito sob o n.º ...86 - e o prédio de CC, a sul daquele”.

2. O Recorrente celebrou a escritura de justificação para possibilitar o registo predial do prédio justificando após ter realizado um levantamento topográfico que lhe permitiu aferir a existência dessa área não registada da qual é dono e possuidor.

3. AA. tem persistido na pretensão de se apoderar do prédio descrito sob o n.º ...86, registado a favor do R., o qual se situa a Norte do prédio justificando e confina a Sul com o prédio da A..

4. Por isso, a A. intentou a ação nº 3265/19.... que corre termos no Juízo Central Cível ... – Juiz ....

5. Para tanto, a A. defende que o prédio justificando não existe, de forma a poder convencer o Tribunal de que o prédio que se situa no lugar do prédio justificando é o prédio descrito sob o n.º ...86, não permitindo ao R. registar mais área a seu favor.

6. O Tribunal de primeira instância nos presentes autos compreendeu com exatidão quais as motivações de cada uma das partes e decidiu de forma correta considerando provado o facto enumerado como 25 e fundamentou com exatidão a sua convicção.

7. Nos presentes autos, tendo sido realizada peritagem para apurar o valor do prédio, e tendo o perito procedido ao exame do prédio com a situação que resultou provada no artigo 25º, veio a A. interpor recurso, alegando que a situação do prédio não era aquela.

8. AA. pretendia que o Sr. Perito avaliasse o prédio a Norte, o descrito sob o nº ...15, objeto do processo nº 3265/19.....

9. Encontrando-se o perito no local e tendo conseguido proceder à avaliação do prédio justificando, não seria viável concluir que o mesmo não existe ou que a respetiva área se situa mais a Norte.

10. O Venerando Tribunal da Relação de Évora decidiu pela improcedência do recurso, mediante o Acórdão proferido em sede da Apelação 583/19...., 1ª Secção, tendo concluído que foi correta a identificação do prédio constante da escritura de justificação.

11. Tal recurso transitou em julgado em 01/02/2022, fazendo por isso caso julgado.

12. Também no Processo nº 3265/19.... foi considerado que “não se provou atuação de uma das partes que tenha lesado o direito de propriedade da parte contrária”, encontrando-se o processo a aguardar decisão no STJ.

13. Contudo, inexplicavelmente veio o douto acórdão recorrido concluir que a versão apresentada pela A. é verdadeira, mas sem qualquer base legal ou fundamentação que o justifique.

14. E ao abrigo dessa convicção, o acórdão recorrido ordenou que o facto 25. não elencasse o conjunto de factos provados, mas sim de factos não provados.

15. O douto acórdão recorrido faz uma reprodução fiel da posição assumida pela A. quando refere, na página 15, que o ora Recorrente terá pretendido ampliar a sua área à custa do prédio da A., o que não corresponde à verdade, como já foi considerado provado nas decisões supra mencionadas.

16. Ora, tal entendimento explanado no acórdão recorrido não pode proceder, porquanto uma convicção cuja base é ininteligível não pode sobrepor-se ao entendimento de um acórdão sobre os mesmos factos já transitado em julgado (Apelação 583/19....).

17. Vem ainda o douto acórdão recorrido afirmar que se verificou um erro de direito, por considerar que o interesse em agir não é condição da procedência da ação, ao contrário do que foi o entendimento do tribunal de primeira instância.

18. Resulta clara e não oferece dúvidas o entendimento explanado na douta sentença proferida em primeira instância, segundo o qual: “A falta de legitimidade constitui, nos termos da alínea e) do artigo 577.º do Código de Processo Civil uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso (cfr. artigo 578.º do Código de  Processo Civil), a qual obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, de acordo com o estipulado no artigo 576.º, n.º 2 do mesmo Código, ficando prejudicado o conhecimento do mérito da ação.”

19. Além deste entendimento seguir o determinado pela lei processual civil, é abundante a jurisprudência que o corrobora. Veja-se a título de exemplo a decisão recente proferida pelo Tribunal da Relação do Porto no Processo 129/21.1T8VGS.P1 (Ref. JTRP000).

20. A escritura de justificação celebrada em nada interfere com os direitos da A., nem o prédio justificando confronta com o prédio da A.. Logo, é evidente a sua falta de interesse em agir.



Não foram apresentadas contra alegações.

           

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


///


Fundamentação.

O acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. No dia 30 de abril de 1987, no Cartório Notarial ..., DD, no ato representada pelo Dr. EE, FF e GG e mulher, HH, outorgaram uma escritura de venda a II, no ato representada por Francês JJ, pelo preço de sete milhões de escudos já recebidos, de "um prédio misto, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., que consta de terra de cultura, pastagem e diverso arvoredo e casas com diversos compartimentos, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo número duzentos e noventa e nove, com o valor matricial de dezanove mil e cem escudos e na matriz urbana sob o artigo número dois mil oitocentos e noventa e dois, com o valor matricial de sessenta e três mil escudos, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número duzentos e quinze, da freguesia ... e inscrito a seu favor (da vendedora), pela inscrição G-dois."

2. Da matriz predial rústica referente ao n.9 299 resulta que ela corresponde ao atual artigo matricial n...., com a área total de 3,030000 ha, sendo titular inscrito II, contribuinte n....

3.  As confrontações constantes da matriz são: Norte, KK, Sul, CC, Nascente, Estrada, e Poente, LL.

4. A descrição n.e 215/...17, correspondente à descrição em livro ...27, livro n.? 5, tem por objeto um prédio misto situado em ..., ..., composto de terra de cultura e pastagem, com oliveiras e alfarrobeiras e edifício térreo, com a área total de 30300 m2, que confronta do Norte, com KK, Sul, com CC, Nascente, com Estrada e Poente com LL.

5. Está inscrita a aquisição da propriedade a favor de II e de AA, por compra a GG, DD e FF.

6. Em 18 de Janeiro de 2019, o jornal ... publicou um anúncio com um extrato de uma escritura de justificação, no qual o Notário Dr. MM certificava, para publicação, nos termos do art. 100.° do Código do Notariado que, por escritura pública de justificação, outorgada em 9 de outubro de 2017, exarada a folhas 43 e seguintes do competente livro n.s ...09... do Cartório Notarial ..., do Notário ..., sito na Rua ..., ..., que:

"AA, divorciado, natural do Reino Unido, de nacionalidade ..., residente em ..., 66 .... ..., ..., NN 2HG, ..., Reino Unido declarou ser dono e legítimo possuidor e com exclusão de outrem, do prédio rústico composto por terras de cultura, pastagem, oliveiras e alfarrobeiras, sito na Estrada ..., na freguesia ... (... e ...) com a área de 29.106,37 m2, confrontando a Norte com o próprio justificante, Sul com CC, Nascente com a Estrada e Poente com LL, pertencendo à área territorial da antiga freguesia ... (...), com o valor patrimonial tributário de 6.400,00 €, não descrito na Conservatória do Registo Predial ...;

Tendo para o efeito alegado que este prédio, com a indicada composição e área, chegou à sua posse em trinta de Abril do ano de mil novecentos e oitenta e sete, por compra meramente verbal, feita a DD, solteira, maior, residente que foi na ..., FF, viúva, residente que foi em ..., e GG e mulher, HH, residentes que foram em ...;

Que, porém, desde aquele ano, portanto, há mais de vinte anos, de forma pública, pacifica, contínua e de boa fé, ou seja, com o conhecimento de toda a gente, sem violência nem oposição de ninguém, reiterada e ininterruptamente, na convicção de não lesar quaisquer direitos de outrem e ainda convencido de ser o único titular do direito de propriedade, sobre o identificado prédio, e assim o julgando as demais pessoas, tem possuído aquele prédio -cultivando a terra, tratando das culturas, colhendo os respetivos frutos, amanhando e limpando a terra, tratando das árvores e dela retirando os respetivos rendimentos - pelo que, tendo em consideração as referidas características de tal posse, o seu representado adquiriu o referido prédio por USUCAPIÃO.»

O extrato para publicação tem data de 14 de janeiro de 2019.


8. Em 8 de fevereiro de 2019 foi o mesmo anúncio republicado, com a retificação de fazer a menção da inscrição matricial do prédio justificando, a qual era o artigo 41695.

9. Os extratos publicados em janeiro e fevereiro de 2019 correspondem ao conteúdo de uma escritura pública de justificação lavrada em 9 de outubro de 2017 por BB como gestor de negócios do Réu AA, tendo a gestão sido ratificada por OO, em representação do gestido, em 14 de janeiro de 2019.

10. Consultando a caderneta predial rústica do artigo matricial n....95, verifica-se que ele apenas foi inscrito na matriz em 2017, ano em que foi lavrada a escritura de justificação.

11. O prédio misto composto na parte rústica por terra de cultura e pastagem com árvores e, na parte urbana, por um edifício térreo, em ruínas, sito em ..., ..., freguesia ... (União de Freguesias ... e ...), concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob n....63, daquela freguesia e inscrito na respetiva matriz, a parte rústica sob o art. ... e a parte urbana com o número provisório 5381.2,  pertence à autora.

12. A descrição n....90 é o extrato em ficha da descrição n....74, a folhas 175 v do Livro ...6.

13. Dela consta que se trata de um prédio misto, sito em ..., ..., terra de cultura e pastagem com alfarrobeiras - 98 390m2 - e edifício térreo que se encontra em ruínas, com 4 divisões e logradouro - (confronta) norte, PP, nascente, estrada pública, sul QQ, poente LL.

14. Pelo averbamento 01 à descrição, foi desanexado o prédio n....26, com a área de 400m2, pelo que pelo averbamento 02 foi retificada a área, que passou a ser de 97 990m2.

15. Pelo averbamento 04, foi desanexado o prédio n....22, com 933m2, pelo que a área atual do prédio é de 9,705700 ha, conforme consta da caderneta predial.

16. Este prédio foi adquirido pela autora por permuta celebrada por escritura pública celebrada em 7 de novembro de 2012, no Cartório Notarial ..., perante o notário Dr. MM, em que foi permutante da autora a sociedade G... Lda., anteriormente designada pela firma S... Lda.

17. A inscrição da propriedade do prédio em nome da autora foi feita pela apresentação 2090 de 2012/11/07.

18. Por seu turno, a S... Lda. tinha adquirido a propriedade do mesmo prédio por compra a RR, realizada por escritura pública celebrada em 12 de fevereiro de 1999 no Cartório Notarial ... a cargo do notário Dr. SS.

19. E tinha registado a aquisição em seu nome pela inscrição G-2, Ap. ...19.

20. A vendedora do mesmo prédio à S... Lda., de nome RR, tinha-o por sua vez adquirido por sucessão hereditária de KK, conforme inscrição G-l, Ap. ...83, com o número 14943, e escritura de 12 de janeiro de 1983, lavrada a fls. 4 do livro ...8 do Cartório Notarial ....

21. Consta da descrição n. ° ...90 que o prédio da autora confronta, do lado sul, com QQ, que também em vários documentos aparece com o nome de GG,

22. Este prédio, que confronta do sul com o prédio da autora, é o prédio com a descrição ...17, que II adquiriu a GG, DD e FF, que foram os herdeiros e sucessores do GG.

23. O prédio descrito sob o n....17 e o prédio da autora, com a descrição ...90, são contíguos, sendo a linha divisória entre ambos a confrontação sul do prédio da autora e a confrontação norte do prédio do réu acima mencionado.

24. Em 18 de junho de 2018, AA em seu próprio nome e no de II, escreveu uma carta à autora notificando-a, "na qualidade de proprietários e legítimos possuidores do prédio misto sito em ... - ..., na União de Freguesias ... (... e ...), concelho ..., inscrito na matriz predial urbana da respetiva freguesia sob o número ...75 e na matriz rústica sob o número ...29, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n° ...17' de que era sua pretensão celebrar, sobre este imóvel, um contrato de compra e venda e de que, "ao abrigo do disposto no artigo 1380° n° 1 do Código Civil, (conferiam à autora) a faculdade de exercer o direito de preferência no contrato acima referido, "devendo, no prazo de 8 (oito) dias, conforme estipulado no n° 2 do artigo 416° do mesmo diploma legal, dizer se pretende exercer o seu direito de preferência no contrato supra mencionado ...".

25. (…) alterado na Relação para não provado.

26. A autora instaurou ação de reivindicação e demarcação relativa aos terrenos em discussão nos autos, a qual corre os seus termos sob o n. ° 3265/19...., J3, deste juízo central.


E julgou não provado:

O prédio justificando se situa entre o prédio descrito sob o n.º ...86 - e o prédio de CC, a sul daquele. (anterior facto provado sob o nº 25).


O direito.


Constitui objecto da revista saber se o acórdão recorrido ajuizou bem ao declarar a ineficácia da escritura de justificação notarial outorgada pelo Réu AA, em 09.10.2017.

Como decorre do art. 116º, nº1, do Código do Registo Predial (CRP), a escritura de justificação notarial constitui um mecanismo apto a obter a primeira inscrição registral de um prédio que alguém diz ser seu.

A justificação para obter o trato sucessivo, isto é, para se obter a primeira inscrição (art. 89º do Código do Notariado) consiste numa declaração feita pelo interessado em que este se afirma, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais.

O recurso à justificação notarial com base na usucapião tanto pode ter lugar estando o prédio omisso no registo ou descrito, sem que sobre ele exista inscrição da transmissão, domínio ou posse, como quando essa inscrição exista.

Para além da primeira inscrição, há ainda dois tipos de justificação: para reatamento do trato sucessivo, e o estabelecimento de novo trato.

Como referido por Joaquim Seabra Lopes, Direito dos Registos e do Notariado, 10ª edição, pag. 804, são três as hipóteses de justificação do trato sucessivo:

1ª – Estabelecimento do trato sucessivo (em regra, prédio até então omisso no registo predial;

2ª – Reatamento do trato sucessivo (prédio descrito que foi objecto de uma ou mais transmissões não registadas a partir do último titular inscrito e até à transmissão para o actual pretenso titular);

3ª – Novo trato sucessivo (aquisição originária de prédio descrito, adquirido por usucapião pelo actual pretenso titular).


Importa acrescentar que, nos termos do nº2 do art. 89º do Código do Notariado (CN),

“Quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.”


A escritura de justificação notarial é um documento autêntico (art. 363º/2 do CCivil). Porque assim é, segundo o art. 371º do CCivil e art. 35º, nº2 do CN, a escritura de justificação faz prova plena do factos praticados pelo respectivo oficial público – notário -, bem como dos factos atestados com base nas suas percepções. No entanto, não garante a veracidade das declarações dos outorgantes.  (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, p. 130).

É patente que a escritura de justificação notarial – porque baseada nas declarações dos próprios interessados – não oferece cabais garantias de segurança e de correspondência com a realidade, potenciando mesmo a sua utilização fraudulenta e permitindo que o justificante dela se sirva para titular direitos que não possui, com lesão de direitos de terceiros.

Daí que o facto justificado possa ser impugnado em juízo, conforme prescreve o art.  101º do Código do Notariado: “Se algum interessado impugnar em juízo o facto justificado deve requerer simultaneamente ao tribunal a comunicação ao notário da pendência da acção”.

A acção de impugnação de escritura de justificação é, conforme entendimento pacífico, uma acção de simples apreciação negativa.


As acções de simples apreciação constituem uma modalidade da acção declarativa e visam obter a declaração de existência ou inexistência de um direito ou de um facto. (art. 10º nº3, al. a) do CPC),

Na sua formulação negativa, recai sobre o réu o ónus da prova da existência do direito ou do facto que o autor veio (legitimamente) questionar. (art. 343º/1 do CCivil)

Neste sentido, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão uniformizador nº 1/2008, de 04.12.2007, DR, nº 63, série I, de 31.03.2008:

Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116º, nº1 do Código do Registo Predial e 89º e 101º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do art. 7º do Código do Registo Predial.”


Entendimento constantemente reiterado pelo STJ, como sucedeu no Acórdão de 25.06.2015, CJ, AcSTJ, II, pag. 129: “na acção de impugnação de escritura de justificação notarial recai sobre o demandado o ónus de alegar e provar os factos constitutivos do direito que pretendeu justificar através dessa escritura.”

No caso sub judice, a 1ª instância absolveu o Réu da instância por considerar que o Autor não tinha interesse em agir, por nenhum prejuízo lhe resultar da escritura de justificação, decisão esta que a Relação reverteu.

Na revista, o Recorrente insiste na falta de interesse em agir por a escritura de justificação celebrada em nada interferir com os direitos da A., nem o prédio justificando confronta com o prédio da Autora.

A este propósito tem utilidade recordar aqui o decidido no Acórdão do STJ de 11.11.2010, P. 33/08 (Maria dos Prazeres Beleza), em cujo sumário se lê:

“Numa acção de simples apreciação, verifica-se o pressuposto do interesse em agir se o direito cuja existência ou inexistência se pretende que seja judicialmente declarada se encontrar numa situação de dúvida susceptível de causar prejuízos graves e objectivos ao seu titular.

Numa acção de impugnação de justificação notarial, o autor vem reagir contra a afirmação de titularidade do direito de propriedade por parte do justificante; trata-se de um pedido de simples apreciação negativa.

É condição imprescindível ao conhecimento da acção que o impugnante alegue ser titular de direito susceptível de ser afectado pela justificação notarial.”


No caso vertente, a Autora alegou ser proprietária de um prédio misto (nº 963), que confina a sul com o prédio misto nº215, inscrito a favor do Réu e da sua ex-mulher, e que com a escritura de justificação o Réu mais não pretende que ampliar a área do prédio ...15 à custa do prédio da Autora.

Tanto basta para demonstrar que a Autora tem legitimidade para a acção, que é aferida em função do pedido e da causa de pedir invocada, como tem interesse em agir.

Posto isto,

Por escritura pública de justificação, outorgada em 9 de outubro de 2017, no Cartório Notarial ..., o Réu AA arrogou-se dono e legítimo possuidor, por o ter adquirido por usucapião, de um prédio rústico, com área de 29.106,37 m2, omisso na Conservatória, tendo declarado, na parte que aqui interessa, que confronta “a norte com o próprio justificante”.

Que tal prédio veio à sua posse por compra meramente verbal, que fez em 30 de Abril de 1987, a DD e GG e mulher, HH (…).

De acordo com a escritura de justificação e é essa posição que o Recorrente sustenta, o prédio objecto da escritura de justificação situa-se a sul do prédio misto que foi objecto da escritura pública de 30.04.1987 ( nº 1 da matéria de facto), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...15 (duzentos e quinze), freguesia ..., inscrito a favor de II e do próprio Réu, confrontando do norte com CC.

A tese do Réu foi acolhida na sentença de 1ª instância, que deu como provado no ponto 25 que “o prédio justificando se situa entre o prédio ...15 e o prédio de CC,  a sul daquele.”

A Autora apelou da sentença, com impugnação da matéria de facto, nomeadamente sobre o ponto 25, com sucesso, pois que a Relação alterou para não provada a matéria ali enunciada, com a seguinte justificação:

A apelante defende que na sua réplica «está perfeitamente expressa a posição da autora no sentido de que não existe sequer prédio justificando e que o lugar topográfico onde o réu ficcionou o prédio justificando é o do prédio descrito sob o n....».

E tem razão. É por demais evidente que a autora/apelante nega a existência do prédio justificando localizado designadamente onde aquele facto provado o situa. Com efeito, logo no art. 39.2 da sua petição inicial, a autora sustentou que «o inferência lógica é que o prédio justificando se situa entre o prédio do justificante - a descrição n° ...86 - e o prédio a que diz respeito a confrontar com o de CC. Mas tal conflitua com a descrição ...15, que coloca o prédio a que diz respeito a confrontar com o de CC»; e acrescenta no art. 40.gda PI: «a conclusão é que o prédio justificando, para além de não ter existência legal, também não tem existência física». E na sua réplica, a autora volta a afirmar que «como é evidente e resulta da própria contestação do réu, este procura, com a escritura de justificação impugnada neste processo, alterar a área do prédio que comprou, ampliando-a de 30.300m2 para 60,982m2. E isto à custa do prédio da autora que confina a sul com o prédio do réu» (art. 143.e).

Em suma e concluindo, a apelante nunca aceitou o facto ora em análise tendo, ao invés, impugnado o mesmo veementemente, afirmando que a escritura de justificação judicial foi um meio procurado pelo réu para "ampliar" o prédio n....15 à custa do prédio da autora, empurrando, para norte, a linha divisória entre o prédio da autora n.9 963 e o prédio do réu n.9 215.

Em face do exposto, o ponto de facto n.s 25 constante do elenco dos factos provados deverá transitar para o elenco da factualidade não provada, até porque o mesmo não é confirmado pela demais prova produzida nos autos.”


No recurso, o Recorrente insurge-se contra esta decisão, dizendo que tal decisão “não tem base legal nem fundamentação que a justifique” (conclusão 13ª).

Não lhe assiste razão.

O acórdão recorrido justificou, como não podia deixar de ser, a decisão de alterar para não provado o facto enunciado no ponto 25 da sentença, uma decisão que este Tribunal não pode reapreciar.  

Assim é por o STJ ser um tribunal de revista, que em regra não pode sindicar a decisão da Relação sobre a matéria de facto, como decorre do nº3 do art. 674º do CPC: o erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.”

Neste aspecto existe uniformidade na jurisprudência do STJ, de que é exemplo o Acórdão de 25.06.2015, P. 686/12, Sumários, 2015, pag. 378: “o STJ  só pode sindicar o conhecimento da matéria de facto fixada pela Relação, quando esta considerar como provado um facto sem produção da prova que, por força da lei, é indispensável para demonstrar a sua existência ou se houver desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no ordenamento jurídico (arts. 674º, nº3 e 682º, nº2, do CPCivil.”

A Relação ao alterar para “não provado” o facto constante do ponto 25 da sentença não incorreu em violação das regras de direito probatório, nem tal vem alegado, pelo que a manifestação de discordância da Recorrente com o acórdão recorrido é inconsequente por estar em causa decisão que não pode ser objecto do recurso de revista.


Na apreciação do mérito do recurso, escreveu-se no acórdão recorrido:

“In casu, tendo sido proferido julgamento da matéria de facto, verifica-se não constar do elenco da factualidade provada qualquer facto relativo a atos de posse relacionados com a parcela de terreno identificada na escritura de justificação notarial, a qual o réu alegara ter uma área de 29.106,37 m2 e confrontar a Norte com o próprio justificante e a Sul com CC, factos que não logrou provar quando era sobre ele que recaía o ónus de alegação e de prova dos mesmos (cfr. supra III. 4.3). Ou seja, o réu não logrou provar os factos justificados na escritura de justificação notarial que a autora impugna na presente ação. Consequentemente, a escritura de justificação notarial ineficaz, isto é, é insuscetível de produzir os efeitos a que se destinava.”


Entendimento que não podemos deixar de acompanhar.

Com efeito, o Réu não logrou fazer a prova da aquisição do prédio justificando através da usucapião, nos termos do art, 1287º do Cód. Civil.

A verificação da usucapião depende de dois elementos: a posse e o decurso de certo período, variável conforme a natureza móvel ou imóvel da coisa.

Para conduzir à usucapião, a posse tem sempre de revestir duas características: ser pública e pacífica.

Os restantes carateres (boa ou má fé, titulada ou não) influem apenas no prazo.

Por sua vez, a posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.

Necessita de dois elementos: o corpus e o animus, a intenção de exercer os poderes de facto como titular do direito real sobre a coisa, e não como mero detentor.

Pois bem.

Percorrendo a matéria de facto, nele nada se encontra que revele actos materiais de posse, inerentes à titularidade do direito de propriedade, sobre a parcela em causa, seja os declarados na escritura – cultivo da terra e das culturas, colheita dos frutos, amanho e limpeza do terreno, tratamento das árvores – ou outros. 

Não provada a posse sobre o prédio justificando, é inevitável concluir que o Réu não adquiriu por usucapião o prédio objecto da escritura de justificação.

Nas conclusões 10 e 11, sustenta o Recorrente que o Tribunal da Relação de Évora, por acórdão proferido Apelação 583/19...., transitado em julgado em 01/02/2022,  concluiu que “foi  correta a identificação do prédio constante da escritura de justificação”, fazendo por isso caso julgado.

Ora, o P. nº 583/19.... é o presente processo, inexistindo na matéria de facto qualquer referência a um acórdão da Relação de Évora, transitado em julgado, que tenha concluído que “foi correcta a identificação do prédio constante da escritura de justificação.”

Assim, e embora a excepção dilatória de caso julgado seja de conhecimento oficioso (arts. 577º e 578º do CPC), a invocação do caso julgado, sem qualquer suporte probatório, não pode deixar de improceder.   

Uma última observação. Na eventualidade, como parece ser o caso, de a finalidade da escritura se reconduzir à pretensão de rectificação da área de um prédio (no caso, o nº251), cabe dizer que a escritura de justificação não é o meio próprio para se rectificar a área de um prédio, erradamente declarada no título que serviu de base ao registo. (Ac. STJ de 11.11.2003, CJ, AcSTJ, ano XI, 3º, pag. 141).


Com o que improcedem na totalidade as conclusões da alegação do Recorrente.


Decisão.

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.


Lisboa, 10.01.2023


Ferreira Lopes (Relator)

Manuel Capelo

Tibério Nunes da Silva