Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
247/13.0TBCCH.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: USUCAPIÃO
POSSE
DIREITO DE PROPRIEDADE
PRESUNÇÃO
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
DETENÇÃO
ANIMUS POSSIDENDI
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
IMPUGNAÇÃO
Data do Acordão: 11/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / POSSE / EXERCÍCIO DA POSSE POR INTERMEDIÁRIO.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, p. 152;
- Carvalho Fernandes, Direitos Reais, 4.ª Edição, Lisboa, 2003, p. 297;
- Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra, 2000, p. 103 e ss.;
- J. A. Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, p. 56;
- Jacinto R. Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, 1972, Volume III, p. 249;
- Manuel Rodrigues, A Posse, Estudo de Direito Civil Português, Coimbra, 1981, n.º 38, p. 182 a 186;
- Menezes Cordeiro, A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 2.ª Edição, Coimbra, 1999, p. 104;
- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, p. 460-461;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª Edição, revista e actualizada, colaboração de Henrique Mesquita, p. 8, 25 a 27.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1252.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 28-03-1995, IN BMJ N.º 445, P. 388;
- DE 14-05-1996, PROCESSO N.º 085204, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 03-02-1999, PROCESSO N.º 98B1043, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 21-06-2007, PROCESSO N.º 07B1552, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 24-06-2010, PROCESSO N.º 106/06.2TBFCR.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 30-09-2010, PROCESSO N.º 392/03.0TBCNF.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
 I - A doutrina fixada no o AUJ de 14 de Maio de 1996  de que «Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa» vale para os casos em que se desconhece o modo como começou a posse, porquanto “Faltando o título, é a própria lei que então, em caso de dúvida, presume que o possuidor possui em nome próprio, ou, usando os termos legais em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto – nº 2 do art. 1252º do CC.”

II - Não estando provado como ou a que título se iniciou a detenção de um prédio pelos recorridos, a posse, por estes invocada só se poderia ter constituído na sua esfera jurídica através do apossamento, ou seja da prática reiterada e efectiva de actos materiais “capazes de exprimirem o exercício do direito correspondente.

III – Provados esses actos materiais, presume-se o animus possidendi de quem exerce o poder de facto sobre o prédio e verificados os outros pressupostos (publicidade e decurso do prazo legal) adquire-se o respectivo direito por usucapião.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL


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Relatório

AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, RR, intentaram a presente acção declarativa comum contra - SS, e mulher, TT, peticionando o seguinte:

Deve ser considerado impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura de 16 de Abril de 2013, referente à invocação da aquisição pelos RR, por usucapião do prédio rústico inscrito na matriz rústica da freguesia da …, Concelho de Coruche sob o artigo 359, da secção AA;

Ser declarada ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, por forma a que os RR., não possam através dela, registrar quaisquer direitos sobre o prédio identificado no prédio anterior;

Ser ordenando o cancelamento de quaisquer registos operados com base no documento aqui impugnado;

Serem os RR. condenados a restituir o imóvel aos AA., no estado em que o mesmo se encontrava antes da s/ intervenção;

Serem os RR. condenados em sanção pecuniária compulsória no valor de €75,00 por cada dia de incumprimento de restituição do terreno dos AA. após o trânsito em julgado da decisão final.


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Alegaram para o efeito, em síntese, que por escritura lavrada no dia 16 de Abril de 2013, no Cartório Notarial de …, os réus declararam que “(…) com exclusão de outrém, são donos e legítimos possuidores, dos seguintes imóveis:

“Prédio rústico, sito na Rua da G…, freguesia da …, concelho de Coruche, com a área de trinta e dois mil e trinta e quatro metros quadrados, composto por terreno de cultura arvense, que confrontado norte onde termina em bico com a Rua da G… e a Rua do …, do sul com UU, do nascente com Rua da G… e do poente com Rua do …, prédio este inscrito na matriz cadastral da freguesia de …, sob parte do artigo 359, da secção AA, pendente de resolução”, ao qual atribuíram o valor de € 500,00; e

“Prédio rústico, sito na Rua da G…, freguesia da …, concelho de Coruche, com a área de trinta e cinco mil cento e cinco vírgula sessenta e cinco metros quadrados, composto por terreno de cultura arvense, que confronta do norte com Rua da G… e Rua da C…, do sul com Herdeiros de VV, do nascente com Rua da G… e do Poente com Rua da C…, inscrito na matriz cadastral da freguesia de …, sob parte do artigo 359, da secção AA, pendente de resolução”, ao qual atribuíram o valor de € 500,00.

- Mais declararam que os prédios vieram à sua posse “(…) em mil novecentos e oitenta e seis, em dia que não podem precisar, através de compra verbal, nunca reduzida a escritura pública, que fizeram a XX, viúva, residente na freguesia da …, já falecida, a qual por sua vez os havia adquirido por partilha e divisão meramente verbal que efectuou com os demais interessados e herdeiros de ZZ e AAA, também nunca reduzido a escrito, formalmente válido.”

- Tendo declarado ainda que “(…) ignoram o título pelo qual os mencionados ZZ e AAA, adquiriram os prédios, mas sabem que aqueles os possuíam há muito mais de oitenta anos.”

- Declararam ainda que “(…) têm possuído e usado aquelas parcelas de terreno, objecto do direito que agora justificam, tendo sempre e desde então agido como proprietários exclusivos das mesmas e nunca como compossuidores ou comproprietários do prédio originário, respeitando rigorosamente as suas estremas e divisórias, com total exclusividade e independência, e sempre praticaram sobre os mesmos todos os actos de posse de que estes eram susceptíveis, tais como, amanhando-o, colhendo os seus frutos e pagando as respectivas contribuições, tudo na convicção de exercerem um direito próprio, sem qualquer interrupção, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, sendo por isso uma posse pública, pacífica, continua e de boa fé.”

- Contudo, as declarações prestadas pelos réus não correspondem à verdade, porque o prédio do qual se arrogam proprietários é propriedade dos autores, tendo-lhes o mesmo sucedido, por herança desde a sua bisavó BBB.

- Os ascendentes dos autores, proprietários da então denominada Herdade da CCC, deram início a um novo processo de aforamento, do qual resultaria o desenvolvimento da região.

- Os chamados “foros” foram intensamente habitados e desenvolvidos a partir do fim do século XIX, tendo sido os mesmos divididos e dados de arrendamento a rendeiros que dos mesmos cuidavam, cultivavam, colhiam os seus frutos, neles construíam, com a autorização dos “senhores”, as suas casas, e por tudo pagavam uma renda.

- Mais tarde, parcelas de terreno foram arrendadas a variados indivíduos.

- Sendo o terreno de que os réus se arrogam proprietários uma das parcelas pertencentes à família DDD e inseridas naquela que era a chamada Herdade da CCC.

- Os réus nunca exerceram qualquer ato de posse no terreno, mas sim ocuparam abusivamente o mesmo, com a consciência de que não era propriedade sua.

Concluem pedindo a procedência da acção, e em consequência:

a) Deve ser considerado impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura de 16 de Abril de 2013, referente à invocada aquisição pelos réus, por usucapião do prédio rústico inscrito na matriz rústica da freguesia da ..., concelho de Coruche sob o artigo 359, da secção AA;

b) Ser declarada ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, por forma a que os réus não possam através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio identificado no pedido anterior

c) Ser ordenado o cancelamento de quaisquer registos operados base no documento aqui impugnado;

d) Serem os réus condenados a restituir o imóvel aos autores, no estado em que o mesmo se encontrava antes da sua intervenção;

e) Serem os réus condenados em sanção pecuniária compulsória no valor de€ 75,00 por cada dia de incumprimento de restituição do terreno aos autores após trânsito em julgado da decisão final.


*

Os Réus deduziram Contestação, impugnando os factos alegados pelos autores, alegando que desde Janeiro de 1986 que iniciaram a posse das parcelas identificadas na escritura de justificação notarial, por as terem adquirido por compra verbal a EEE, já falecida, que por sua vez as adquiriu, há mais de 40 anos, através de partilha e divisão, também verbal que efetuou com os outros herdeiros de ZZ e AAAno.

Mais alegaram que a EEE demarcou as duas parcelas e colhia a produção florestal, nomeadamente pinheiros e que a partir de 1986 cortaram as árvores existentes, mandaram nivelar as parcelas, fizeram um furo numa delas, fizeram pomar e horta que regam, podam, adubam, curam, colhem a sua produção, o que fazem à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, inclusive dos autores, convictos que são donos das parcelas e que não lesavam o direito de ninguém.

Concluem pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.


*

Efectuado julgamento, foi proferida Sentença em que se decidiu o seguinte:

“ Em face do exposto, e vistas as já indicadas normas jurídicas e os princípios expostos, decido julgar a presente ação totalmente procedente, por totalmente provada, e em consequência:

a) Declaro impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura pública de 16 de abril de 2013, por os réus não terem adquirido os prédios nela identificados por usucapião;

b) Declaro ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, por forma a que os réus não possam através dela registar quaisquer direitos sobre os prédios nela identificados;

c) Ordeno o cancelamento dos registos operados com base na dita escritura, e bem assim a eliminação das inscrições matriciais feitas com a mesma base;

d) Condeno os réus SS, e mulher, TT a restituir aos autores os prédios objeto da escritura pública de justificação de 16 de abril de 2013, no estado em que o mesmo se encontrava antes da sua intervenção;

e) Condeno os réus SS, e mulher, TT ao pagamento de sanção pecuniária compulsória no valor de € 75,00 por cada dia de incumprimento de restituição do terreno aos autores, após trânsito em julgado da presente decisão.

Julgo improcedentes os pedidos formulados pelos réus de condenação dos autores como litigantes de má – fé e no pagamento da indemnização peticionada.

 …”


*

Inconformados com tal decisão, vieram os Réus interpor recurso de apelação, onde além do mais impugnaram a decisão de facto e impetram a improcedência da acção.

Apreciando o recurso o Tribunal da Relação de …, deu provimento parcial à impugnação da decisão de facto, julgou procedente a apelação e improcedente a acção.

Irresignados com o deliberado, vieram os AA. interpor recurso de revista que fundamentaram com as seguintes

Conclusões:

1. « O Tribunal a quo erra na aplicação do Direito quando decide que os Réus têm direito a ver reconhecida a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre as parcelas de terreno identificadas nos autos, e consequentemente, julga improcedente a presente ação.

2. Para que exista aquisição do direito de propriedade, por usucapião, é necessário que se verifiquem dois elementos; o corpus possessório e animus possidendi

3. No caso em apreço não resulta da factualidade provada nenhum dos referidos elementos.

4. Ao contrário do sufragado pelo Acórdão ora recorrido o Réu não logrou provar os factos que objetivamente são tipicamente praticados por um proprietário.

5. Com efeito, a factualidade assente nos pontos 21 a 27 dos factos provados não reflete tais comportamentos típicos e notórios do exercício de um direito de propriedade sobre imóvel.

6. Tais factos apenas poderão caraterizar uma mera detenção ou uma posse precária, mas numa a posse de um direito de propriedade.

7. Os Réus não lograram provar, nomeadamente, o pagamento de imposto, apesar de terem sido notificados, para o efeito, pelo Tribunal.

8. Nunca foi alegado, nem provado pelos Réus que os mesmos retiraram e retiram de tais parcelas de terreno todas as utilidades das mesmas,

9. Nem tão pouco ficou provado que os Réus atuavam à vista e sem oposição dos antecedentes dos autores.

10. Resultando da prova produzida que os Réus nunca praticaram qualquer ato, de imposição do alegado direito de propriedade.

11. Deste modo, considera-se que não resulta provado o corpus possessório, pelo que nunca deveria ter sido equacionado pelo Tribunal recorrida a aplicação do disposto no n.º 2 do art. 1252º do Código Civil, uma vez que

12. A presunção estabelecida no art.º 1252.º, n.º 2, do CC só atua em caso de dúvida e nunca quando se trate de uma situação definida, que exclua a titularidade do direito, como é o caso em apreço.

13. No caso em apreço foi provado que os Réus nunca agiram como titulares do Direito de propriedade, como resulta demonstrado pela matéria de facto dada como Não provada, constante dos pontos 5 e 6 dos factos não provados, pelo que sempre teria sido ilidida tal presunção.

14. Tanto, assim, é que próprio Acórdão recorrido sufraga na sua página 53, que "...) atenta a matéria de facto dada por assente, parece-nos evidente que os Réus não lograram demonstrar que a sua atuação relativamente às parcelas de terreno em apreço, era exteriorizada por uma actuação que expressava a sua vontade de evidenciar perante terceiros o seu domínio senhorial sobre as ditas parcelas, propósito volitivo que se materializava, em suma, nos Pontos 5 e 6 dos Factos Não Provados.,

15.   Pelo que, não se compreende, nem se pode aceitar decisão posterior do Tribunal recorrido, quando decide ser de presumir a posse dos Réus, em nome próprio, sobre as ditas parcelas, por aplicação do n.º 2 do art. 1252º do CC, quando já tinha sufragado que a mesma matéria de facto demonstra de forma evidente que o animus possessório não foi provado.

16. Existe, assim, oposição entre esta decisão e os referidos fundamentos, no mínimo ambiguidade e obscuridade, que torna ininteligível a Decisão ora recorrida o que constitui nulidade do Acórdão, nos termos do art. 615º n.º 1 al. c) do C.P.C..

17. Acresce que, para funcionar a presunção estabelecida no n.º 2 do art. 1252º do C.C. impunha-se que o pretenso possuidor se tivesse apresentado como iniciador da posse, afastado de qualquer possuidor antecedente.

18. No caso em apreço, os Réus sustentaram o seu direito de propriedade em aquisição derivada da posse, pelo que neste caso e, também, por este motivo estaria vedada a aplicação do disposto no n.º 2 do art. 1252º do C.C.,

19. Os Réus não alegaram, nem provaram, ser iniciadores de uma posse desligada de anterior possuidor,

20. Pelo contrário, os Réus alicerçaram o direito de propriedade, por aquisição derivada da posse, numa compra verbal, através da qual ocorreu a alegada prática reiterada, com publicidade, de uso e fruição das referidas parcelas, nomeadamente vedando-o, limpando-o, colhendo os seus frutos, sem oposição de ninguém, conforme resulta provados nos pontos 14,15 e 16 dos factos provados.

21. Não existindo qualquer situação de dúvida quanto ao modo como se iniciou e prosseguiu a atuação dos Réus sobre as parcelas, não sendo de aplicar o n.º 2 do art. 1252º do C.C.

22. Nos casos de aquisição derivada da posse, prevalece a presunção ilidível estabelecida no n.º 2 do art.º 1257.º do C.C, que presume que a posse continua no anterior possuidor,

23. Neste caso, competiria ao adquirente provar não só a mera materialidade da traditio mas também a intencionalidade subjacente, contudo tal não foi provado pelos Réus

24. Os Réus não cumpriram o ónus probatório que sobre eles recaia, nos termos consagrados no disposto no art. 343º n.º 1 do C.C., ao contrário do que entendimento sufragado no Acórdão recorrido.

25. A compra e venda alegada como ato de aquisição derivada do direito arrogado pelos Réus sempre seria nula por vício de forma e ainda nula nos termos do artº 892º do C.C., bem como ineficaz em relação aos Autores, atendendo à falta de legitimidade do vendedor.

26. Pelo exposto, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo errou na interpretação e aplicação das normas consagradas nos art. 343º n.º 1, 1251º, 1252º n.º 2, 1257º n.º 2, 1263º, art. 1287º e seguinte e art. 1317º, todos do Código Civil e nulidade nos termos do disposto no art. 615º n.º 1, alínea c) do C.P.C.

27. Nestes termos, deve conceder-se inteiro provimento ao presente Recurso de Revista e, em consequência, revogar-se a parte em que a recorrente foi vencida, julgando-se a ação inteiramente procedente por provada, tal como o havia sido considerado por Sentença de lª instância, condenando-se os Réus na totalidade dos pedidos…»


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Responderam os RR, pedindo a improcedência da revista.


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Na perspectiva da delimitação pelo recorrente[1], os recursos têm como âmbito as questões suscitadas nas conclusões das alegações (art.ºs 635º nº 4 e 639º do novo Cód. Proc. Civil)[2], salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 608º do  novo Cód. Proc. Civil ).

Das conclusões acabadas de transcrever decorre que a questão objecto do recurso se limita a saber se :

Ocorre nulidade do acórdão por ininteligibilidade, derivada de obscuridade ou ambiguidade;

Se, a materialidade provada, suporta a presunção do animus possidendi, apto a consumar a prescrição aquisitiva por usucapião.


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Dos factos

Nas instâncias foram considerados provados os seguintes factos:

«1. O prédio rústico, sito na Fajarda, composto de cultura arvense, sobreiros, eucaliptal, pinhal manso, vinha e figueiras, com a área de 191 000 m2, a confrontar do norte com ponta aguda, limites do concelho de Coruche com o de Salvaterra de Magos, do sul com herdeiros de FFF e outros, do nascente com Rua do …, linha de caminho de ferro e estrada e do poente com Rua do C… e limites dos concelhos, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Coruche atualmente sob o n.º 587/20070515.

2. O referido prédio encontra-se inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 2 da Secção AA (Parte) – Alteração feita na 2ª instância.

3. Encontra-se inscrito na matriz predial rústica, da freguesia da …, desde 1969, o prédio rústico com a área de 17,403000 ha, sob o artigo 359, da secção AA, o qual resultou da divisão do prédio n.º 2, da seção AA, identificado em 1.

4. Os titulares inscritos de tal prédio rústico, identificado em 3, são AA, GGG,

HHH e III.

5. Pela Ap. 1, de 1965/08/19 foi inscrita a aquisição, por sucessão hereditária, do prédio referido em 1 a favor de JJJ, casado com GGG, de HHH, casada com LLL, de III, casada com MMM e de AA, casada com NNN, por morte de BBB.

6. Pela Ap. 4, de 1992/11/27 foi inscrita a aquisição, por sucessão hereditária, de ¼ do prédio referido em 1 a favor de GGG, por morte de JJJ.

7. Pelo averbamento 5, de 1992/11/27 à Ap. 1, de 1965/08/19 foi inscrita a aquisição de ¾ do prédio referido em 1 a favor de III, de AA e de Maria e HHH, viúvas.

8. No dia 19 de agosto de 2008 faleceu GGG e por Escritura de Habilitação de Herdeiros outorgada no dia 10 de outubro de 2008 foram habilitados os seus herdeiros, BB, CC, DD, EE, FF, OOO, HH e II.

9. No dia 05 de outubro de 2009 faleceu HHH e por intermédio de Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros outorgado no dia 17 de novembro de 2009 foram habilitados os seus herdeiros, NN, JJ, KK, MM e LL.

10. No dia 23 de outubro de 2011 faleceu III e por Escritura de Habilitação de Herdeiros outorgada no dia 12 de outubro de 2012 foram habilitados os seus herdeiros, OO, PP, QQ e RR.

11. Os ascendentes dos autores deram início a um novo processo de aforamento, relativamente ao prédio identificado em 1 – Alteração feita na 2ª instância.

12. Os chamados “foros” foram intensamente habitados e desenvolvidos a partir do fim do século XIX, tendo sido os mesmos divididos e dados de arrendamento a rendeiros que dos mesmos cuidavam, cultivavam, colhiam os seus frutos, neles construíram, com autorização dos “senhores”, as suas casas, e por tudo pagavam renda.

13. Por escritura lavrada no dia 16 de Abril de 2013, no Cartório Notarial de Salvaterra de Magos, denominada de “JUSTIFICAÇÃO” os réus declararam que “(…) com exclusão de outrem, são donos e legítimos possuidores, dos seguintes imóveis:

“Prédio rústico, sito na Rua da G…, freguesia da …, concelho de Coruche, com a área de trinta e dois mil e trinta e quatro metros quadrados, composto por terreno de cultura arvense, que confrontado norte onde termina em bico com a Rua da G… e a Rua do …, do sul com UU, do nascente com Rua da G… e do poente com Rua do …, prédio este inscrito na matriz cadastral da freguesia de …, sob parte do artigo 359, da secção AA, pendente de resolução”, ao qual atribuíram o valor de quinhentos euros; e

“Prédio rústico, sito na Rua da G…, freguesia da …, concelho de Coruche, com a área de trinta e cinco mil cento e cinco vírgula sessenta e cinco metros quadrados, composto por terreno de cultura arvense, que confronta do norte com Rua da G… e Rua da C…, do sul com Herdeiros de VV, do nascente com Rua da G… e do Poente com Rua da C…, inscrito na matriz cadastral da freguesia de …, sob parte do artigo 359, da secção AA, pendente de resolução”, ao qual atribuíram o valor de quinhentos euros”.

14. Mais declararam que os prédios vieram à sua posse “(…) em mil novecentos e oitenta e seis, em dia que não podem precisar, através de compra verbal, nunca reduzida a escritura pública, que fizeram a XX, viúva, residente na freguesia da …, já falecida, a qual por sua vez os havia adquirido por partilha e divisão meramente verbal que efectuou com os demais interessados e herdeiros de ZZ e AAA, também nunca reduzido a escrito, formalmente válido.”

15. Tendo declarado ainda que “(…) ignoram o título pelo qual os mencionados ZZ e AAA, adquiriram os prédios, mas sabem que aqueles os possuíam há muito mais de oitenta anos.”

16. Declararam ainda que “(…) têm possuído e usado aquelas parcelas de terreno, objecto do direito que agora justificam, tendo sempre e desde então agido como proprietários exclusivos das mesmas e nunca como compossuidores ou comproprietários do prédio originário, respeitando rigorosamente as suas estremas e divisórias, com total exclusividade e independência, e sempre praticaram sobre os mesmos todos os actos de posse de que estes eram susceptíveis, tais como, amanhando-o, colhendo os seus frutos e pagando as respectivas contribuições, tudo na convicção de exercerem um direito próprio, sem qualquer interrupção, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, sendo por isso uma posse pública, pacífica, continua e de boa fé.”

17. As parcelas de terreno identificadas em 13 encontram-se inscritas na matriz predial rústica da União das freguesias de Coruche, … e …, respetivamente, sob o artigo 442, da seção AA e sob o artigo 444, da seção AA.

18. Com data de 17 de fevereiro de 2009 foi remetida ao réu, que a recebeu, a carta cuja cópia se encontra a fls. 70 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.

19. Por Notificação Judicial Avulsa de 20 de Abril de 2009, PPP, procurador de III, deu conhecimento ao réu SS, do prazo de 30 dias para retirada de todos os seus bens e desocupação das parcelas de terreno identificadas em 13.

20. Na edição de 03 de janeiro de 2013 do jornal regional “O QQQ” foi escrita a notícia cuja cópia se mostra junta a fls. 109 a 111, cujo teor se dá por reproduzido.

21. No início do ano de 1986 os réus procederam ao corte das árvores e ao e arranque das raízes existentes nas parcelas de terreno identificadas em 13 – alterado na 2ª instância.

22. Bem como mandaram nivelar as duas parcelas de terreno com uma máquina caterpilar e um tractor.

23. Após a realização destes trabalhos de nivelamento, os réus iniciaram nas duas parcelas a plantação de dois pomares, um em cada parcela.

24. Os réus fizeram um furo numa das parcelas de terreno e têm uma horta.

25. Tendo desde o ano de 1986, continuamente cuidado do pomar e da horta, regando, podando, adubando, curando e colhendo a sua produção.

26. À vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, inclusive dos autores até 2009.

27. Os réus vedaram as duas parcelas de terreno, em data não concretamente apurada, mas há mais de cinco anos.

28. As parcelas de terreno identificadas em 13 integram-se na anteriormente designada por “Herdade da CCC”, composta pela herdade propriamente dita e pelos chamados “foros”.

29. Por volta dos anos de 2008/2009, em data não concretamente apurada, mas anterior a 17 de Fevereiro de 2009, os Autores colocaram marcos na estrema Poente - Rua da C… – da parcela inscrita na matriz predial rústica sob o artigo 444 da União das freguesias de Coruche, … e …, tendo aí comparecido o ora Réu SS que lhes referiu que o prédio era seu. Pouco tempo depois os marcos que os Autores tinham colocado foram arrancados.– Alterado na 2ª instância

E como não provada a seguinte matéria:

1. As duas parcelas de terreno identificadas em 13 dos factos provados vieram à posse dos réus no dia 20 de Janeiro de 1986, por compra verbal que fizeram nessa data, nunca reduzida a escrito, a EEE, viúva, residente que foi na freguesia da …, já falecida.

2. EEE, por sua vez adquiriu a posse destas duas parcelas de terreno há mais 40 anos, através de partilha e divisão, também verbal, que efectuou com os outros herdeiros de ZZ e AAA, ambos residentes que foram na freguesia da ….

3. EEE demarcou estas duas parcelas de terreno aquando daquela divisão.

4. A EEE colhia a produção florestal que estas duas parcelas de terreno produziam, nomeadamente pinheiros.

5. Na freguesia da … toda a gente tem a convicção que os réus são os donos das parcelas de terreno identificadas em 13 dos factos provados.

6. Os réus agiram como referido em 21 a 27 dos factos provados na convicção de que são os verdadeiros proprietários.


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Do Direito

Da nulidade do acórdão recorrido

Nos termos do disposto no art.º 615º nº 1 al. c) a sentença/acórdão será nula quando:

os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

Da simples leitura do preceito decorre que não é qualquer ambiguidade ou obscuridade que tem a virtualidade de tornar nula a decisão, mas apenas aquelas que impliquem a ininteligibilidade desta. Alberto dos Reis, in - Código de Processo Civil Anotado -, vol. V, pág 152, entendia que - a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes; num caso, não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro, hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos - ( sic ). Em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade; se determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo qual o pensamento do juiz - (também sic ). Na mesma senda segue o Ac deste STJ de 28-3-95, in BMJ nº 445, pág 388, ao considerar que - o acórdão será obscuro quando contenha algum passo cujo sentido seja ininteligível e será ambíguo quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes -. Cf., ainda, neste mesmo sentido, Jacinto R. Bastos, in - Notas ao Código de Processo Civil -, 1972, vol. III, pág 249.  

Só existe, com efeito, obscuridade quando o tribunal proferiu decisão cujo sentido um tal destinatário não possa alcançar. A ambiguidade só relevará se vier a redundar em obscuridade, ou seja, se for tal que, do respectivo texto ou contexto, não se torne possível alcançar o sentido a atribuir ao passo da decisão que se reclama de ambíguo. Ora não é esse o caso dos autos: a emissão do juízo jurídico-substantivo surge como plenamente clarividente ao concluir pelo entendimento de que, embora os RR., não tenham provado todos os factos que alegaram, tendentes a demonstrar a sua dominialidade sobre as parcelas reivindicadas pelos AA., os que resultaram provados são suficientes para demonstrar a existência «da prática reiterada, com publicidade de actos materiais correspondentes ao exercício do senhorio sobre as ditas parcelas», sendo que esse domínio material « faz presumir .. o animus possidendi, atento o disposto no nº 2 do art.º 1252 do CC.

Os dados factuais e jurídicos, bem como o discurso lógico-discursivo e decisório correspondente não padece de qualquer ambiguidade ou obscuridade, encontram-se inequivocamente enunciados e descritos no aresto aclarando. E o raciocínio no mesmo plasmado revela-se perfeitamente cristalino e clarividente para qualquer destinatário normal e médio, que é o suposto ser querido pela ordem jurídica. Aliás resulta da alegação e das conclusões da revista que os recorrentes compreenderam bem os fundamentos da decisão. Apenas não concordam com os mesmos nem com o sentido decisório final. No fundo, o que os recorrentes pretendem é reiterar a sua discordância com o julgado, procurando demonstrar a comissão de um hipotético «erro de julgamento». Não pretendem, realmente, que seja esclarecida qualquer nebulosidade ou falta de clareza, mas sim insurgir-se contra o conteúdo e sentido decisório adoptado pelo acórdão recorrido. Mas isso é questão de mérito e não de nulidade. Improcede pois a alegada nulidade do acórdão.


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Da ocorrência de usucapião por parte dos RR.

O acórdão recorrido, ao contrário do que tinha decidido a 1ª instância concluiu que a acção improcederia porquanto se verificava a excepção da prescrição aquisitiva, por usucapião, a favor dos RR.. Para tanto considerou que « é uma evidência que os Réus não demonstraram que pagam ou pagaram impostos sobre as ditas parcelas, tendo sido até notificados para o efeito pelo Tribunal “a quo”.

Sendo certo que o Réu só inscreveu as ditas parcelas na matriz, em seu nome, em 2013, conforme resulta das cadernetas prediais rústicas de fls. 244 e 245, ou seja, após ter eclodido o litígio dominial sobre as ditas parcelas que veio a dar aso a este Processo.

Mas como resulta da matéria de facto assente, os Réus, desde 1986, procederam ao corte das árvores e ao arranque das respectivas raízes, existentes nas ditas parcelas, mandaram proceder a trabalhos de terraplanagem e nivelamento das referidas parcelas, fizeram um furo numa delas, plantaram pomares e uma horta, continuando desde então a cuidar do pomar e da horta, efectuando os trabalhos inerentes, tendo vedado as ditas parcelas em momento anterior ao eclodir do dito litígio.

Tudo à vista de toda a gente, inclusive dos Autores, até ao ano de 2009.

Perante este quadro factual, que se compagina com a actuação dos Réus, como donos fossem, relativamente às ditas parcelas, à vista de toda a gente e com o conhecimento e sem oposição dos Autores por mais de 20 anos, entendemos estar demonstrada a prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do senhorio sobre as ditas parcelas, que, na concorrência com outros direitos, se deve presumir relativo direito mais amplo, ou seja do direito de propriedade.

Actuação essa que faz presumir, atento o disposto no n.º2 do art.º 1252º do Cód. Civ., o animus possidendi dos Réus sobre as parcelas em apreço.

Aqui chegados, estando demonstrada, por parte dos Réus, a posse do direito de propriedade sobre as ditas parcelas, ou melhor dizendo, a sua actuação sobre as referidas parcelas, como proprietários fossem, por mais de 20 anos, à vista de toda a gente e com o conhecimento e a não oposição, até 2009, por parte dos ora Autores, têm os Réus o direito a ver reconhecida a sua aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre as parcelas de terreno acima identificadas, cumprindo assim o ónus que lhes incumbia na presente acção.

Reconhecido que está o direito de propriedade dos Réus sobre as referidas parcelas de terreno, que adquiriram por usucapião, como está plasmado na Escritura de Justificação Notarial de fls. 42 a 47, improcede a presente acção».

Defendem os recorrentes que no caso, os actos materiais referidos são insuficientes para fundar uma posse em nome próprio, desligada dos anteriores possuidores e consequentemente com virtualidade para poder permitir o funcionamento da presunção prevista no nº 2 do art.º 1252 do CC . Alegam que tal presunção só poderia funcionar se os RR., tivessem demonstrado ser «iniciadores de uma posse desligada de anterior possuidor».

Ora tendo os RR., alicerçado o seu alegado direito de propriedade em «aquisição derivada da posse, numa compra verbal, através da qual ocorreu a alegada prática reiterada, com publicidade, de uso e fruição das referidas parcelas, nomeadamente vedando-o, limpando-o, colhendo os seus frutos, sem oposição de ninguém, conforme resulta provados nos pontos 14,15 e 16 dos factos provados» não podem beneficiar da presunção prevista no nº 2 do art.º 1252º do CC, porquanto nos casos de aquisição derivada prevalece a presunção do nº 2 do art.º 1257º do CC, ou seja que a posse continua no anterior possuidor.

Concluem assim que houve erro na aplicação do direito e que o acórdão recorrido deve ser revogado e a acção julgada procedente.

Os recorridos, por sua vez, sustentam o acerto da decisão recorrida e a aplicação da presunção constante no nº 2 do artigo 1552º do Código Civil, devendo ter-se como provada a posse do prédio, correspondente ao direito de propriedade; e que, estando preenchidos todos os requisitos exigidos para o efeito, o adquiriram por usucapião, improcedendo portanto a acção.

Como é sabido, para se adquirir, por usucapião, um direito susceptível de ser adquirido por essa via, é essencial ter a posse correspondente ao direito em causa, por certo lapso de tempo (que varia, segundo as circunstâncias da posse), nos termos do artigo 1287º do Código Civil; no caso presente, a posse correspondente ao direito de propriedade. Como decorre do disposto no artigo 1251º do mesmo Código, haverá essa posse quando se “actua por forma correspondente ao exercício” desse direito (corpus da posse), independentemente de se ser ou não titular do mesmo, e, segundo alguns, quando essa actuação (ou seja, o exercício de poderes de facto sobre a coisa, salvo se tratando-se de posse derivada, que se pode revelar por outras formas) seja acompanhada da “intenção de agir como beneficiário do direito” (artº 1253º, al. a), do Código Civil) – animus da posse. A posse pode ainda ser titulada ou não titulada, de boa ou de má-fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta, nas palavras do artigo 1258º do Código Civil, relevando as diversas modalidades, desde logo, para ser possível a aquisição por usucapião e, para além disso, para a determinação do prazo necessário para esse efeito[3] (cfr. artigos 1294º e segs. Código Civil).

No caso presente está em dúvida saber se, não tendo ficado provado que os actos alegados para demonstrar a actuação (objectiva) como proprietário foram praticados pelos recorrentes “em nome próprio”, “como se fossem seus verdadeiros proprietários” (facto constante do nº 6 dos factos não provados) ou em nome alheio, por ter sido inconclusiva a prova produzida (factos constantes dos nºs 1 a 4 dos factos não provados), pode proceder a invocação da aquisição do direito de propriedade por usucapião.

Ao contrário do que sustentam os recorrentes, e apesar dos RR. terem alegado que adquiriram os prédios por compra verbal, não ficou provado como ou a que título se iniciou a detenção do prédio pelos recorrentes. Não releva de forma nenhuma, a alegada aquisição por compra, que não ficou provada. Assim sendo, a posse só se poderia ter constituído na sua esfera jurídica através do apossamento, modalidade de aquisição originária e unilateral da posse e que se traduz, segundo o disposto na al. a) do artigo 1263º do Código Civil, na “prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito”[4]. Estando assente, no caso, a publicidade (cfr. ponto 26 da matéria de facto provada), – é condição de aquisição da posse “uma relação de facto” entre a pessoa e a coisa que se traduza nessa prática reiterada e efectiva de actos materiais “capazes de exprimirem o exercício do direito” (Pires de Lima – Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, reimp. da 2ª ed. revista e actualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, págs. 25-26). Como explica, por exemplo, Carvalho Fernandes (Direitos Reais, 4ª ed., Lisboa, 2003, pág. 297), para ocorrer o apossamento exige-se “uma intensidade particular da actuação material sobre a coisa. Assim, a necessidade de a prática de actos materiais ser reiterada significa, não só uma certa repetição da actuação material sobre a coisa, mas também, e sobretudo, a necessidade de ela ser significativa da intenção de se apoderar dela”, ou, nas palavras de Menezes Cordeiro, “para consubstanciar apossamento”, terá “de se processar uma actuação de acordo com as circunstâncias, que faculte um controlo duradouro da coisa considerada” (A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 2ª ed., Coimbra, 1999, pág. 104). Estando em causa saber se uma determinada pessoa adquiriu a posse correspondente ao direito de propriedade, e sabendo-se que “o proprietário goza não só dos direitos de uso e fruição, poderes materiais, como do direito de disposição, poder puramente jurídico, tal como o de administração da coisa” (cfr. artigo 1305º do Código Civil), esta exigência da prática de actos materiais como condição de aquisição da posse faz com que “só através de actos materiais, isto é, de actos que incidem directa e materialmente sobre a coisa se pode adquirir a posse, e nunca através de actos de disposição ou de administração”, porque eles podem ser praticados mesmo que a coisa seja possuída ou detida por um terceiro. Assim, e para continuar a utilizar as palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., págs. 26 e 27, “se alguém, por exemplo, paga habitualmente a contribuição predial e outros encargos relativos a determinado imóvel, não adquire, através desses actos, a posse do prédio. Trata-se, com efeito, de actos que podem ser praticados por qualquer pessoa, não pressupondo uma relação de facto sobre a coisa”.

Não é todavia exigível que se pratiquem “todos os actos materiais qualificativos do direito”. Citando Manuel Rodrigues (A Posse, Estudo de Direito Civil Português, Coimbra, 1981, nº 38, pág. 182 e segs., pág. 186), “o proprietário não é obrigado a usar, fruir e transformar continuamente e simultaneamente. Para se adquirir a posse do direito de propriedade basta, por isso, praticar actos materiais que correspondam a alguns daqueles poderes (…)”.

Ora da materialidade dada como provada pode concluir-se estar provado o apossamento (cfr. pontos 21 a 27 da matéria de facto provada). Apossamento esse com o conteúdo do direito de propriedade, porquanto todos esses actos materiais são próprios desse direito. Na verdade os actos de alteração da morfologia do solo (terraplanagens), de plantação de pomares, colheita e aproveitamento dos respectivos frutos, arrancamento de árvores, vedação/tapagem do prédio, tudo por iniciativa própria e sem oposição de ninguém são actos típicos de quem é proprietário (cfr. Art.º s 1305º, 1348º, 1356º e 1366º todos do CC).

Adquirida a posse, nomeadamente por esta via, é ainda indispensável à aquisição por usucapião que a posse se mantenha durante um determinado lapso de tempo. Está provado que os réus ocuparam o prédio no início do ano de 1986 (ponto 21) e que a actuação como proprietários se manteve ininterruptamente até 2009 (ponto 26). Manteve-se, portanto, por todo esse tempo a relação de domínio característica da posse, e, no caso como se referiu supra, correspondente ao direito de propriedade. Como se dispõe no nº 1 do artigo 1257º do Código Civil, “a posse mantém-se enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar”. Não há pois qualquer reparo a fazer, ao acórdão recorrido, quando considerou verificado o corpus da posse. E também não sofre reparo quando concluiu que estão reunidos os pressupostos da aplicação da presunção definida pelo nº 2 do artigo 1252º do Código Civil.

Contrariamente ao que defendem os recorrentes não houve violação das regras do ónus da prova constantes do art.º 343º do CC. Na verdade o regime definido pelo nº 1 do artigo 343º do Código Civil não colide com a presunção constante do nº 2 do artigo 1252º do mesmo diploma, apenas inverte o ónus da prova em relação a um dos pressupostos de constituição do direito de propriedade que, nos termos daquele nº 1, incumbiria ao réu[5]. O nº 2 do artigo 1252º do Código Civil inverte na verdade o ónus da prova quanto à existência de posse, assente na prova de que existe detenção; explica-se, como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado cit, III, pág. 8, por ser “difícil, se não impossível, fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente; e este pode, inclusivamente, não existir.” Esta razão de ser vale muito para além dos casos de “exercício da posse por intermediário”, e esteve presente no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal da Justiça de 14 de Maio de 1996 (www.dgsi.pt, proc. nº 085204), a cuja decisão – “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa” – é totalmente alheia a restrição aos casos de posse por intermediário; vale, portanto, para os casos em que (como aqui sucede) se desconhece o modo como começou a posse.
“Faltando o título, é a própria lei que então, em caso de dúvida, presume que o possuidor possui em nome próprio, ou, usando os termos legais em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto – nº 2 do art. 1252º C.”
(acórdão deste Supremo Tribunal de 24 de Junho de 2010 (www.dgsi.pt, proc. nº 106/06.2TBFCR.C1.S1).

Não se colocando qualquer dúvida quanto ao decurso do prazo necessário para a usucapião, dado que é de 20 anos o mais longo (cfr. o artigo 1296º do Código Civil), e tendo sido a usucapião invocada pelos recorridos na contestação (artigos 1296º e 303º do Código Civil), tem de improceder os pedidos formulados pelos AA. na presente acção, como bem se decidiu no acórdão recorrido e que assim se confirma.


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Concluindo

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Notifique.

Lisboa, em 15 de outubro de 2018.

José Manuel Bernardo Domingos (Relator)

João Luís Marques Bernardo

Fernando Oliveira Vasconcelos

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[1] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil antigo e 635º nº 2 do NCPC) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, hoje 636º nº 1 e 2 do NCPC). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa –1997, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 2000, págs. 103 e segs.
[2] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
[3] Acórdão deste Supremo Tribunal de 3 de Fevereiro de 1999, disponível em www.dgsi.pt, processo nº 98B1043.
[4] Acórdão deste Supremo Tribunal de 21 de Junho de 2007, proc. 07B1552, disponível in www.dgsi.pt..
[5] Cfr. Acórdão deste STJ de 30/09/2010, proc. nº  392/03.0TBCNF.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt...