Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
156/19.9T9STR-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: EDUARDO LOUREIRO
Descritores: HABEAS CORPUS
RECLAMAÇÃO
EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
INCONSTITUCIONALIDADE
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 06/24/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Nos termos do art. 613.º, n.º 1, do CPC, aplicável em processo penal por via do art.4.º do CPP, «Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa». O que significa que, decidida a causa, não é possível ao tribunal que a emitiu alterar a decisão.
II - Concede, porém, a lei que, excepcionalmente, possa a decisão ser alterada. O que, em processo civil – art. 613.º, n.º 2, do CPC – acontecerá quando se justifique rectificar erros materiais – art. 614.º, do CPC –; reformá-la quanto a custas e multa ou, dela não cabendo recurso, corrigir erros manifestos na aplicação do direito ou na fixação dos factos – art. 616.º, n.ºs 1 e 2, do CPC –; e suprir nulidades – art. 615.º, n.ºs 1 e 2, do CPC
III - Mais restritivo é o regime do processo penal: admitindo – aliás, por aplicação subsidiária da lei de processo civil –, a reforma quanto a custas e o suprimento de nulidades – mesmo se por referência ao elenco constante do art. 379.º, n.º 1, não inteiramente sobreponível ao do art. 615.º, n.º 1 ,do CPC –, arreda inapelavelmente – pelo menos, no entendimento jurisprudencial (claramente) dominante neste Supremo Tribunal de Justiça – a possibilidade da reforma quanto a erro manifesto, de direito ou de facto, e, no tocante à rectificação de erros materiais – para o que dispõe da norma, específica, do art. 380.º –, apenas admite eliminação do «erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade» até ao ponto em que «não importe modificação essencial» do decidido.
IV - Proferido acórdão a indeferir providência de habeas corpus, não pode ser atendido ulterior requerimento de arguição de inconstitucionalidade por logo ali esgotado o poder jurisdicional do tribunal quanto à matéria da causa e por a pretensão deduzida – no fim de contas, a reapreciação do pedido de habeas corpus, em ordem a, dando-se o dito por não dito, revogar o decidido –, nem caber no âmbito do suprimento de uma nulidade, nem se acomodar na previsão do art. 380.º, al. b), do CPP – e assim, desde logo por o seu, hipotético, deferimento implicar modificação essencial do decidido – e por não se tratar de pedido de reforma quanto a custas ou multa.
Decisão Texto Integral:



Proc. n.º 156/19.9T9STR-A.S1

5ª Secção

Habeas Corpus

acórdão


Acordam na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

A.   
1. AA, inteirado do acórdão de 2.6.2021 que lhe indeferiu a pretensão de habeas corpus, apresentou no mesmo dia requerimento do seguinte teor:
─ «[…].
AA, requerente nos presentes autos incidentais e extraordinários, notificado do douto Acordão proferido que indeferiu o peticionado, vem, muito respeitosamente, expor e requerer a V. Excelências como se segue:

Fundamentalmente, a Decisão proferida assenta em ser considerado que não é desde o momento da detenção, mas sim do Despacho judicial que decide a medida de coação privativa da liberdade, que se inicia a contagem do prazo a que alude o artº 215º-2 do CPP e, por via disso, que se não encontra mantida a privação da liberdade para além dos prazos fixados, designadamente, o prazo de 6 meses aludido naquela disposição legal, mais propriamente no que reporta a dedução da Acusação, em 6 meses.

Porque, como se diz, existirá entendimento indisputado na jurisprudência do STJ, a militar a favor da génese da contagem do prazo a partir do Despacho judicial e não da detenção, da privação da liberdade, que, convenhamos, crê-se de forma unânime, se reportará ao momento em que o individuo ficou cerceado da liberdade nos contornos que obnubilam o exercício dos seus diversos direitos fulcrais e até básicos.

É, então, esse indisputado entendimento que urge alterar, com ordem de razões prementes, válidas, fundamentais e adequadas, tornando-o disputado e dialogado, analisado e decidido, tornando-o controverso.

O aresto agora proferido atém-se na consideração de que "a detenção não é uma medida de coação, não se confundindo com a prisão preventiva, cujo decretamento é da competência de um juiz de instrução" (CPP – Comentado, 2ª edição, pág.897 – Conselheiro Maia Costa).

E, realmente, assim é, a detenção não é uma medida de coação, desde logo porque a detenção é realizada por entidades plurais e, por vezes de forma esdrúxula, e a medida de coação é decidida e aplicada, quando privativa da liberdade, por juiz de instrução criminal.

Mas diferentemente do que se diz (na 2ª edição pretérita da obra referida), a detenção e a prisão preventiva confundem-se numa circunstância e até no infausto efeito que de ambas emerge, o cidadão fica privado da liberdade, em latitude diversa é certo, e expetativas, mas a verdade é que deixou de estar livre em ambas as situações, deixou de ter o domínio do facto acerca da sua conduta e sua ação, da sua vontade.

É, por isso, que realmente se confundem, neste preciso segmento, que, além e diverso da formalidade, se confundem e muito, atenta a similitude no que é mais fundamental - deixou de ser livre.

Portanto, neste âmbito da diversidade conceptual entre ambos os institutos privativos da liberdade existe a tónica comum que deve ser elevada em face das diferenças de latitude, existe privação da liberdade, existe privação da liberdade.

E esse é o fator que as agrega e que as confunde, porque as diferenças entre a detenção e a prisão preventiva não são mais acutilantes que as semelhanças, a semelhança concreta de cercearem a liberdade do individuo.

Posto isto, prosseguindo na escalpelização doutrinária da concetualização de ambas as figuras restritivas da liberdade, é premente entender-se o que é feito posteriormente à concatenação pretérita vertida na 2ª edição da obra citada e com a autoridade evidenciada pelo Sr. Conselheiro Maia Costa (agora na 4ª edição e na página 894): "A detenção que for seguida de decretamento de prisão preventiva conta como início de execução desta medida, uma vez que a privação da liberdade ocorre desde aquele primeiro momento".

É esta a verdade.

Não existe forma de contrariar tamanha afirmação; é insuscetível de ser preconizado que o primeiro momento desde a detenção não implique privação da liberdade.

Aqui chegados, urge prosseguir, no sentido do que deve ser testemunhado pela figura jurídica do habeas corpus.

Acima de tudo não se visa reagir contra a medida de coação propriamente dita, seja a prisão preventiva ou a obrigação de permanência na habitação.

Visa reagir e testemunhar a exigência Constitucional contra o direito à liberdade, sendo uma garantia específica e concreta e extraordinária prevista para a defesa de direitos fundamentais, uma especial garantia Constitucional do direito à liberdade, uma ode à liberdade (em sentido semelhante CRP – Anotada, Coimbra Editora, 4ª edição revista e atualizada, pág. 508 – Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira).

Porque para reagir quanto, simplesmente, a medida de coação, existem Recursos ordinários.

O Habeas corpus reage à falta da liberdade, em qualquer das formas de ser a mesma beliscada.

Entender a literalidade do artº 215º-2 e 222º-2-c) no âmbito de se consagrar que o que está em causa é apenas o momento da decisão judicial que determina a medida de coação privativa da liberdade é esvaziar o intuito do próprio habeas corpus, é deixar sem tutela fundamental o direito à liberdade, é não haver tutela Constitucional no quadro da violação do direito fundamental, meramente menosprezando os efeitos do que seja uma detenção.

Na esteira da função legal fundamental, "A interpretação que se deve aceitar é a interpretação conforme a Constituição e não a interpretação conforme a lei e contra a Constituição" (Obra acima citada, pág. 510).

E é este o verdadeiro paradigma da aplicação da lei processual penal na atualidade, aplica-se a lei, por ser lei, embora contrária à Constituição, salvo, naturalmente, o muitíssimo devido respeito (exemplos não faltam quanto à livre apreciação da prova, por exemplo).

A interpretação do preceituado nos artºs enfocados, 215º-2 e 222º-2-c) do CPP, quando consagra como momento inicial para a contagem do prazo respetivo o Despacho judicial do Senhor JIC deixa literalmente de fora da garantia Constitucional importante momento em que, convenhamos, já existe privação da liberdade, que não pode, de modo algum ficar sem a tutela Constitucional emergente de um Estado de Direito moderno e democrático.

É impensável, salvo o muito devido respeito, deixar fora do âmbito de aplicação da norma o período de detenção, que, consabidamente, pode ser mais ou menos pronunciado (entre a detenção e o Despacho que aplica a medida de coação chegam a mediar períodos temporais que tornariam incompreensível a exclusão da aplicação da norma – a apresentação judicial deve iniciar-se em 48 horas e não existe preceito legal que determine o tempo de eclosão do Despacho judicial).

Assim, é justamente a questão da conformidade Constitucional que se invoca, defendendo a inconstitucionalidade das normas acima sinalizadas e indicadas, no entendimento das mesmas feito, para traduzir que violam as garantias de Defesa, o processo justo e equitativo, o direito à liberdade, os preceitos contemplados nos artºs 32º-1, 27º-1-2, 28º-4, 16º- 2, 18º da CRP e 6º da CEDH.

Aliás, no seguimento do que se alegou, ainda que sumária e sinteticamente, perante desde logo a posição expressada pela Exmª Senhora Procuradora Geral Adjunta, que nesse sentido se pronunciou.

Portanto, em suma, credenciando-se a Decisão e o Aresto agora proferido, na fundamentação legal através de tais normas, se invoca a inconstitucionalidade das mesmas nos sobreditos termos.


*

Além de tal circunstância, o douto Acordão proferido reflete ainda outras circunstâncias, como seja a problemática da notificação da Acusação e a transmissão processual para fase seguinte.

Em relação à primeira dessas circunstâncias a Defesa não contrapõe efeito algum quanto à oportunidade da notificação da Acusação, embora não deixe de se significar que se caminha a passos largos para mais uma atitude processual evitável no moderno Estado de Direito Democrático (quem está privado da liberdade tem o direito a ser notificado da Acusação contra si deduzida no mais curto espaço de tempo…).

Quanto à segunda das situações a Defesa concorda em tudo quanto é dito acerca do facto de ultrapassada uma fase processual e o prazo respetivo se dever atender, então, ao prazo subsequente, ou seja, o prazo já da Decisão Instrutória e não da dedução da Acusação.
Mas, com uma breve e pronunciada discrepância, é que esse mesmo prazo foi ultrapassado e, por isso, se debater esse prazo concreto e não o subsequente, porque o prazo se inicia no momento da detenção, da privação da liberdade e não do Despacho judicial do JIC.

É, portanto, esse o momento que releva, o prazo para a dedução da Acusação, porque, evidente será que reconhecido estar o mesmo ultrapassado, a consequência é a libertação do arguido requerente e não a escolástica atinente ao momento processual subsequente vertido no artº 215º-2 do CPP.

São tais as razões que devem motivar a alteração de Decisão.

Vivem-se dias complexos em termos valorativos e societários.

A obrigação da justiça penal não é formal, é material.

É também pela mesma via, que deliberando nos termos dos nºs 3 e 4, al. a) do artº 223º do CPP esse Altíssimo Tribunal aplicou norma legal igualmente (como as já mencionadas) inconstitucional, no entendimento que da mesma fez.

Não deixa de ser fator reflexivo ter de se apor a inconstitucionalidade de tais normas ao próprio Supremo Tribunal de Justiça, o que se faz, muito respeitosamente e salvaguardando o intemporal respeito devido, mas no intuito declarado de se assumir uma visão prática do processo penal, respigando o contributo da doutrina mais relevante e conforme à leitura do texto Constitucional, para que fique ao serviço de todos aqueles para quem a justiça é um valor essencial (é semelhante ao texto do preâmbulo da obra citada onde o Sr. Conselheiro Maia Costa se pronuncia quanto à valência do momento da detenção para a contagem do prazo).

É premente desformalizar a justiça penal.

Aproximá-la do cidadão.

Em suma, se argui a inconstitucionalidade dos preceitos legais acima seriados, por violação dos princípios e normas legais indicados.

P. Deferimento
[…].».

2. Notificado o Ministério Público para pronúncia, veio dizer o seguinte pela pena da Senhora Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal:
─ «[…].
A - DA ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
O arguido AA refere que a providência de Habeas Corpus reage à falta da liberdade, em qualquer das formas em que a mesma é beliscada, entendendo que a literalidade do artº 215º, nº 2, e do art. 222º, nº 2, al. c), ambos do Cod. Proc. Penal, no sentido “(…) de que o que está em causa é apenas o momento da decisão judicial que determina a medida de coação privativa da liberdade é esvaziar o intuito do próprio habeas corpus, é deixar sem tutela fundamental o direito à liberdade, é não haver tutela Constitucional no quadro da violação do direito fundamental, meramente menosprezando os efeitos do que seja uma detenção (…)”.

O arguido AA refere que esta interpretação "(…) deixa literalmente de fora da garantia Constitucional importante momento em que, convenhamos, já existe privação   da   liberdade,   que   não   pode,   de   modo   algum   ficar   sem   a   tutela   Constitucional emergente de um Estado de Direito moderno e democrático (…)”, sendo impensável deixar fora do âmbito de aplicação da norma legal o período de detenção.

O arguido AA entende que o prazo para a dedução de acusação inicia-se no momento da detenção, da privação da liberdade, e não do despacho judicial do JIC que aplica a medida de coacção, tendo tal prazo sido ultrapassado, o que deveria ter determinado a sua libertação, pelo que deliberando da forma como o fez, este Supremo Tribunal aplicou uma norma legal inconstitucional, por violar as garantias de defesa, o processo justo e equitativo, e o direito à liberdade, contemplados nos arts. 32º, nº 1, 27º, nº 1, e nº 2, 28º, nº 4, 16º, nº 2, e 18º, todos da CRP, e no art. 6º da CEDH.

B – APRECIAÇÃO

Entende-se que não assiste razão ao arguido AA uma vez que o acórdão proferido em 02/06/2021 apreciou devidamente todas as questões invocadas na providência de Habeas Corpus por si instaurada, com fundamento no art. 222º, nº 2, al. c), do Cod. Proc. Penal.

Com efeito, analisado o acórdão proferido nestes autos, verifica-se que este Supremo Tribunal, explicitou de forma clara e inteligível, os fundamentos de direito que determinaram a decisão proferida de indeferimento da providência de Habeas Corpus, tendo em atenção o objeto da mesma, invocado pelo arguido AA, não existindo nenhum fundamento para se considerar que tenha sido aplicada uma norma legal inconstitucional, relativamente à forma como foram interpretados e aplicados os arts. 215º, nº 2, e 222º, nº 2, al. c), ambos do Cod. Proc. Penal.

Por outro lado, entende-se que o pedido formulado extravasa a finalidade adjectiva atribuída às partes pretendendo o arguido AA com o presente requerimento que este Supremo Tribunal se pronuncie de novo sobre a matéria constante do acórdão, o que lhe está completamente vedado.

Com efeito, o arguido AA viu negada a providência de Habeas Corpus que instaurou, e vem agora invocar que o acórdão que indeferiu este seu pedido, por falta de fundamento bastante, nos termos do art. 223º, nº 3 e nº 4, al. a), do Cod. Proc. Penal, aplicou uma norma legal inconstitucional, no sentido da interpretação que foi feita aos preceitos legais em causa.

Contudo, em face do decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02/06/2021, que negou provimento à providência de Habeas Corpus, encontra-se esgotado o poder jurisdicional deste Tribunal, não podendo por isso retomar-se a discussão sobre o seu objecto.

C - CONCLUSÕES
1. O acórdão pronunciou-se sobre todas as questões que lhe cumpria conhecer, e procedeu a uma correcta apreciação e aplicação das disposições legais aplicáveis, não existindo qualquer fundamento legal para que seja considerado que o mesmo aplicou uma norma legal inconstitucional.

2. O poder jurisdicional deste Tribunal encontra-se esgotado não podendo por isso retomar-se a discussão sobre o seu objecto.
[…].».

B.
Apreciando e decidindo:

3. O arguido, sujeito a medida de coacção de prisão preventiva decretada no Inq. n.º 156/19.9T9STR do DIAP ………, inconformado com a decisão de indeferimento do pedido de habeas corpus que formulou, vem requerer, ora, que se declare a inconstitucionalidade, por ofensa «[d]as garantias de Defesa, [d]o processo justo e equitativo, do direito à liberdade, dos preceitos contemplados nos art°s 32º-1, 27º-1-2, 28º-4, 16º-2, 18° da CRP e 6o da CEDH»,  dos art.os 215º n.º 2, 222º n.º 2 al.ª c) e 223º n.os 3 e 4 al.ª a), todos do CPP, na interpretação de que deles fez o acórdão proferido nos autos no sentido de os prazos máximos de prisão preventiva fixados na primeira das normas se contarem do momento em que, em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, foi judicialmente decretada a medida de coacção e não do início da detenção que, nos termos do art.º 254º n.º 1 al.ª a) do CPP, a precedeu, nessa conformidade recusando a sua libertação imediata com fundamento em excesso do máximo de prisão permitida por lei à data da acusação.
Com o que pretende – não o chega a dizer, mas outra consequência lógica e útil não se descortina – que se reequacionem os fundamentos da decisão proferida, a substituir por outra que, interpretando as normas em conformidade com a Constituição, reconheça o excesso do máximo da prisão e decrete a pretendida libertação.

Veja-se:

4. Nos termos do art.º 613º n.º 1 do CPC, aplicável em processo penal por via do art.º 4º do CPP, «Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa». O que significa que, decidida a causa, não é possível ao tribunal que a emitiu alterar a decisão.
Concede, porém, a lei que, excepcionalmente, possa a decisão ser alterada. O que, em processo civil – art.º 613º n.º 2 do CPC – acontecerá quando se justifique rectificar erros materiais –  art.º 614º do CPC –; reformá-la quanto a custas e multa ou, dela não cabendo recurso, corrigir erros manifestos na aplicação do direito ou na fixação dos factos – art.º 616º n.os 1 e 2 do CPC –;  e suprir nulidades – art.º 615º n.os 1 e 2 do CPC.

Mais restritivo é o regime do processo penal: admitindo – aliás, por aplicação subsidiária da lei de processo civil –, a reforma quanto a custas e o suprimento de nulidades – mesmo se por referência ao elenco constante do art.º 379º n.º 1, não inteiramente sobreponível ao do art.º 615º n.º 1 do CPC –, arreda inapelavelmente – pelo menos no entendimento jurisprudencial (claramente) dominante neste Supremo Tribunal [1] – a possibilidade da reforma quanto a erro manifesto, de direito ou de facto, e, no tocante à rectificação de erros materiais – para o que dispõe da norma, específica, do art.º 380º –, apenas admite eliminação do «erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade» até ao ponto em que «não importe modificação essencial» do decidido.

5. Isto presente e olhando, de novo, para o requerimento do arguido, é muito evidente que não aqui pode ser atendido por, exactamente, colidir com a ideia do art.º 613º n.º 1 citado de que, proferido, o acórdão de 2.6.2021, ficou imediatamente esgotado o poder jurisdicional do tribunal quanto à matéria da causa, e por a pretensão deduzida – no fim de contas, a reapreciação do pedido de habeas corpus, em ordem a, dando o dito por não dito, revogar o decidido –, nem caber no âmbito do suprimento de uma nulidade – que, aliás, nada a esse propósito vem suscitado ou requerido –, nem se acomodar na previsão do art.º 380º al.ª b) do CPP – e assim, desde logo por o seu, hipotético, deferimento implicar modificação essencial do decidido, ou não se transmutasse uma decisão de indeferimento em decisão de deferimento – e por – quase que não era preciso sublinhá-lo! – não se tratar de um pedido de rectificação por custas ou multa.

Por tudo o que – repete-se – não pode deixar o requerimento de ser indeferido.
Como, aliás, doutamente sustenta a Senhora Procuradora-Geral Adjunta na resposta que subscreveu.

6. Mas mesmo que nada assim fosse e que, de contrário, fosse admissível, e fundado, o pedido de declaração de inconstitucionalidade e de desaplicação, ou de aplicação conforme à Constituição, das normas questionadas, a verdade é que nem nessa hipótese – em que aqui apenas se concede a benefício de raciocínio – a pretensão de libertação poderia ser deferida.
Com efeito:

Em apoio da decisão de indeferimento da providência da habeas corpus disse-se, entre o mais, o seguinte no acórdão de 2..6.2021:
─ «9. Ora, volvendo ao caso, é muito evidente que o prazo máximo de 6 meses de duração da prisão preventiva correspondente à fase pré-acusatória se iniciou no momento em que foi decretada a medida de prisão preventiva do Requerente, é dizer, no dia 19.11.2020.
Como prazo substantivo que é […], conta-se nos termos dos art.º 296º e 279º al.ª c) do Código Civil, por isso que terminando às 24.00 horas do dia 19.5.2021, o correspondente, no último mês, ao do início.
Como ficou assente em 5. supra, a acusação foi proferida nesse mesmo dia 19 – aliás, na primeira hora dele –, portanto, perfeitamente dentro do prazo sempre referido e com a consequência de, no sistema faseado de prazos máximos da medida de coacção desenhado no art.º 215º do CPP, logo se ter transitado para o acumulado seguinte, o de 10 meses sem que haja decisão instrutória – sendo a instrução requerida, naturalmente – ou o de 1 ano e 6 meses, sem que haja condenação em 1ª instância.
E foi, de resto, naquele momento da acusação que se verificou a transição de fases e não no da sua notificação ao Requerente – que, aliás, à data dedução do pedido de habeas corpus, em 25.5.2021, ainda não tinha ocorrido –, isso pois que, conforme jurisprudência que se crê unânime, foi aquele e não este o marco escolhido pela lei para o efeito, como se vê, por todos no AcSTJ de 21.6.2012 - Proc. n.º 62/12.8YFLSB.S1 que, de novo se cita: "A norma processual não faz depender a passagem do prazo de uma fase para a seguinte da notificação do acto processual que escolheu como marco processual, servindo de terminus de cada uma das fases. Como se refere no acórdão de 02-06-2010 - Proc. nº 649/09.1JDLSB-D.S1 - 3ª Sec., 'a lei não exige, para este efeito, a notificação ao arguido, mas a simples e imediata prática do acto, porque o prazo é de injunção para as autoridades e o limite do prazo da lei é determinado pela prática do acto a quem é imposto – o Ministério Público. A notificação da acusação tem como finalidade o conhecimento ao destinatário para que possa exercer direitos processuais próprios, que dependem da sua vontade, tendo, pois, uma função processual própria e autónoma e diversa da consideração do acto, em si, como termo final de um prazo máximo dirigido às autoridades de investigação e de acusação'".».

Razões por que, tendo o acto acusatório sido praticado antes de esgotado o prazo máximo  de prisão preventiva, nenhum tempo-limite desta fixado por lei foi ultrapassado e nenhuma ilegalidade se configura que possa integrar a previsão do art.º 222º n.º 2 al.ª c) do CPP e que, consequentemente, possa fundar o decretamento da providência de habeas corpus.
Providência que, nessa perspectiva, tem de ser indeferida.

11. Mas não só por essas razões a pretensão do Requerente está votada ao insucesso, que igualmente se lhe opõe a ideia da actualidade da ilegalidade da prisão que, como referido, constitui, igualmente, pressuposto do decretamento da providência.
Com efeito – e trata-se, por mais uma vez, de asserção que se crê colher a unanimidade da jurisprudência –, sobre ter que padecer de algum dos vícios enumerados no n.º 2 do art.º 222º n.º 2 do CPP, a ilegalidade da prisão fundante da providência extraordinária do habeas corpus há-de ser actual, isto é, há-de persistir no momento em que é necessário apreciar o pedido […].
Ora, mesmo que, por absurdo, se admitisse que no prazo computável até ao momento da acusação se deveria ter contabilizado o dia de detenção sofrido pelo Requerente e que, no momento da acusação estavam já esgotados os 6 meses do máximo de duração da prisão preventiva, a verdade é que, no presente momento – e, aliás, logo no da apresentação da petição de habeas corpus, que como assente supra, teve lugar a 25.5.2021, quando a acusação tinha sido deduzida em 19 anterior – não se verifica qualquer excesso de privação de liberdade que, estando-se já na fase delimitada pelo despacho de pronúncia ou pela condenação em 1ª instância, os prazos relevantes são, como já referido, respectivamente, o de 10 meses – art.º 215º n.os 1 al.ª b) e 2 – ou o de 1 ano e 6 meses – art.os 215º n.os 1 al.ª c) –, dentro dos quais o tempo de prisão preventiva já decorrido – aliás reexaminada e mantida, esta, por despacho de 20 p. p., nos termos do art.º 213º n.º 1 al.ª b) do CPP – perfeitamente se contém.».

Ora, como linearmente – pensa-se – decorre dos segmentos transcritos, foram dois, e não apenas um, os fundamentos de indeferimento do pedido da habeas corpus, o primeiro, o de não ter sido excedido o prazo máximo da prisão preventiva até ao momento da acusação – o que afastou, logo, a actuação do art.º 222º n.º 2 al.ª c) do CPP –, o outro, o da não actualidade da ilegalidade da prisão – que, mesmo que excesso de prisão tivesse havido na fase anterior, tal não se verificava na fase em curso no momento da decisão que, delimitada, conforme viesse a ser o caso, pelo acto de pronúncia ou pelo de condenação em 1ª instância, estava (muito) longe de esgotar os acumulados legais de 10 meses e de 1 ano e 6 meses de privação de liberdade, respectivamente.
E fundamentos, de resto, alternativos, isto é, fundamentos aptos, cada um, a produzir autonomamente o efeito denegatório da pretensão.
E fundamentos, ainda, que, se mesmo assim, se quiserem hierarquizados, com irrecusável primazia para o segundo que, em qualquer circunstância, sempre teria obstado à procedência do habeas corpus que o primeiro, hipoteticamente, pudesse viabilizar.

Razões por que, também por aqui, não pode o requerimento ser deferido, como imediatamente se vai decidir.

C.  
Termos em que, acordam em indeferir o requerimento de 2.6.2021 apresentado pelo arguido AA.
Custas pelo requerente, com taxa de justiça de 2 UC's.

*

Digitado e revisto pelo relator (art.º 94º n.º 2 do CPP).

*

Supremo Tribunal de Justiça, em 2.6.2021.



Eduardo Almeida Loureiro (Relator)



António Gama



Clemente Lima

_______________________________________________________


[1] Veja-se, por todos, o Acórdão do Pleno das Secções Criminais de 6.2.2014 - Proc. n.º 414/09.0PAMAI-B.P1-A.S1.