Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5553/19.7T8LSB-Q.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Data do Acordão: 09/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/NÃO DECRETAMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O prazo máximo de prisão preventiva previsto no art. 215.º, n.º 1, al. d) e n.º 2, do CPP, cujo prazo máximo de prisão preventiva é de 2 anos, não foi ultrapassado, sabendo que o arguido esteve em prisão preventiva à ordem destes autos desde 04.04.2019 até 22.07.2019 e entre 01.06.2020 até a atualidade.
II - O requerente vem agora alegar que a prisão é ilegal porque não é motivada por facto pelo qual a lei a permite, invocando o disposto no art. 22.º, n.º 2, al. b), do CPP. Ora, sabendo que o arguido foi condenado em 1.ª instância pelo crime de tráfico de estupefacientes agravado, e sabendo que tal constitui conduta punida por lei, e que a prisão preventiva foi determinada por se considerar que se mantinha o perigo de fuga e o perigo de continuação da atividade criminosa dado que desde o primeiro despacho que a aplicou “nenhum facto ou circunstância ocorreu suscetível de alterar os pressupostos que a determinaram” (cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa a fls. 282/verso e ss, e fls. 289/verso correspondente à transcrição), estão verificados todos os pressuposto legais para que necessariamente tenhamos que concluir que a prisão foi determinada por facto pelo qual a lei a permite.
III - As alegações do arguido de que, por um lado, o Mandado de Detenção Europeu não devia ter sido executado porque as condições da prisão são degradantes e desumanas seria um argumento a alegar num eventual recurso da decisão (prolatada em Tribunais do país executante) que executou aquele mandado, pelo que não constitui fundamento de um pedido de providência de habeas corpus à luz do disposto no art. 222.º, n.º 2, do CPP; por outro lado, a alegação de que as condições da prisão são completamente desadequadas ao estado de saúde do requerente também não constitui fundamento de admissibilidade da providência de habeas corpus à luz da lei.
Decisão Texto Integral:



Processo n.º 5553/19.7T8LSB-Q.S1

Habeas Corpus

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I Relatório

1. AA, arguido nos autos principais (que correm no Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Central Criminal de … – Juiz …), preso no Estabelecimento Prisional de …, vem, por intermédio de advogado, requerer a providência de habeas corpus por prisão ilegal, com base no disposto no art. 222.º, n.ºs 2, als. b), do Código de Processo Penal (CPP) e com os seguintes fundamentos:

«do Mandado de Detenção Europeu:

1 - em 16-3-2016 o Procurador da Republica junto do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) emitiu Mandado de Detenção Europeu (MDE) contra o requerente, onde consta ipsis verbis que “o presente Mandado foi emitido por uma autoridade judiciaria competente. Solicita-se a detenção do individuo abaixo indicado e a sua entrega às autoridades judiciárias... "

2 - em 11-3- 2019 o requerente foi detido em … .

3 - em 2-4-2019 a Policia Judiciária comunicou ao Tribunal, Juiz … Central Criminal … que: "no dia 04-04-2019.. as autoridades espanholas irão entregar às n/ autoridades... o cidadão AA… no CCPA do … /… às 12H00... sendo de imediato conduzido ao Juízo Central Criminal de …-Juiz …, onde deverá chegar a partir das 14H30;

4 - em 4-4-2019 pelas 15 Horas o. Req. foi presente a Tribunal - Juiz …, aí identificado e ordenada a prisão preventiva.

5 - o requerente foi conduzido a uma cela do Estabelecimento Prisional da … no fim da tarde de 4-4-2019; do artº 3° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia:

6 - estão "...proibidos os tratos desumanos ou degradantes... " segundo os artigos 3o da CEDH e 25°-2 da Constituição da Republica Portuguesa;

7 - em 4-4-2019 o Req. entrou no Estabelecimento Prisional da … numa cela suja, fria e húmida, sem ventilação, sem acompanhamento médico e sobrelotada;

8 - face às condições prisionais impostas pelo Estado Português correu termos o processo Requete n°. 53931/19 AA contra Portugal no Tribunal Europeu dos Direitos Homem, de conhecimento oficioso;

9 - neste processo a Exma Senhora Procuradora Geral da Republica adjunta no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem reconheceu as más condições prisionais e o Req. recebeu uma indemnização simbólica-documento 1;

10 - sucede que além das más condições prisionais o Req. padece nesta fase de cancro …; segundo biópsia em duplo sextante do Hospital … o Req. sofre de …. da … score de Gleason 6- doc 2:

11 - a próprias expensas foi o Req. submetido a biópsia no Hospital pois o EP… / Estado Português não suportam despesas nem tratamentos médicos;

12 - o Req, encontra-se recluso numa cela minúscula do Estabelecimento Prisional de … sem ventilação, com sobrelotação prisional e sem tratamento médico condigno suportado pelo Estado Português; a alimentação é péssima sem qualidade e em quantidade insuficiente;

13 - Portugal foi condenado pelo Tribunal de Estrasburgo no affaire PETRESCU -application n° 23190/19 de 3-12-2019 pelas más condições prisionais, de conhecimento oficioso, publicado em: http://gddc.ministeriopublico.pt/faq/acordaos-relativos-portugal

14 - O sistema prisional Português não respeita a dignidade humana mínima do Homem: atenta contra os direitos básicos do Homem consignados nos Direitos Fundamentais da Constituição da República Portuguesa, da Convenção Europeia e da Carta;

15 - na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia os arts. l°.-3, 5o e 6o -1 da Decisão Quadro 2002/584/JAI do Conselho são interpretados no sentido de que perante elementos objectivos, fiáveis, precisos e devidamente actualizados que confirmam a existência de deficiências sistémicas ou generalizadas que grassam no estabelecimento prisional e que a pessoa presa corre um risco real de trato desumano ou degradante na fórmula do art°. 4° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000/C 364/01) Portugal não a pode manter em cativeiro; na verdade,

16 - nos casos PÃL ARANYOSI e ROBERT CALDARARU C-404/15 e C-659/I5 PPU o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que uma pessoa não pode ser entregue a outro Estado membro quando resulte risco real de trato desumano ou degradante (Acórdão Torreggiani c. Itália, TEDH, 8-1-2013, § 65.); ora,

17 - Portugal foi condenado pelas más condições prisionais sob o proc. 53931/19 da COUR; corre ainda o processo 51230/20 a ser apreciado oportunamente pelos Senhores Juizes de Estrasburgo; o reconhecimento pelo Estado Português das más condições prisionais implica que o Mandado de Detenção Europeu nunca deveria ter sido cumprido; aliás, a entrega do Req. a Portugal deveria ter sido suspensa pelas autoridades de Espanha e este aqui libertado!!!!

18 - o processo 53931/19 do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem é superveniente, de conhecimento oficioso deste Alto Tribunal, impõe-se na ordem jurídica comunitária e implica a libertação do Req. qua lale o Acórdão PÃL ARANYOSI e ROBERT CALDARARU C-404/15 do TJUE;

19 - no ACÓRDÃO (Grande Secção) de 5-4-2016 sobre «Reenvio prejudicial -Decisão-Quadro 2002/584/JAI — Mandado de detenção europeu — Motivos de recusa de execução - Proibição dos tratos desumanos ou degradantes — Condições de detenção no Estado-Membro de emissão» relativo aos cidadãos Pál Aranyosi (C-404/15) e Robert Cãldãraru (C-659/15 PPU), o TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção) decidiu que:

«Os artigos 1.9, n.°3, 5o e 6º, n.° 1, da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e entrega entre os Estados-Membros devem ser interpretados no sentido de que, perante elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados que confirmem a existência de deficiências, quer sejam sistémicas ou generalizadas, quer afeiem determinados grupos de pessoas ou ainda determinados centros de detenção, no que respeita às condições de detenção no Estado-Membro de emissão, a autoridade judiciária de execução deve verificar, de maneira concreta e precisa, se existem motivos sérios e comprovados para considerar que a pessoa objeto de um mandado de detenção europeu, emitido para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena privativa de Uberdade, correrá, em razão das condições da sua detenção nesse Estado-Membro, um risco real de trato desumano ou degradante, na acepção do artigo 4.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, em caso de entrega ao referido Estado-Membro. Paru o efeito, deve pedir o fornecimento de informações complementares à autoridade judiciária de emissão, que, depois de ter requerido, se necessário, a assistência da autoridade central ou de uma das autoridades centrais do Estado-Membro de emissão, na acepção do artigo 7.º da referida decisão-quadro, deve comunicar essas informações no prazo fixado nesse pedido, A autoridade judiciária de execução deve adiar a sua decisão quanto à entrega da pessoa em causa até obter as informações complementares que lhe permitam afastar a existência de tal risco. Se a existência desse risco não puder ser afastada num prazo razoável, esta autoridade deve decidir se há que pôr termo ao processo de entrega."

20 - à data da entrega do Req. pelas Autoridades de … a Portugal a realidade do sistema prisional Português não foi colocada pela defesa em … que a desconhecia in totum nem se apurou quais as condições prisionais do EPP… e do EP…; e o Tribunal português descurou de avaliar a situação até hoje; todavia,

21 - actualmente, por força do Processo 53931/19 - AA contra Portugal e do qffaire PETRESCU c. Portugal de 3-12-2019, de conhecimento oficioso, o Req. é vítima de tratamento desumano conforme ali reconhecido expressamente pela COUR;

22 - os Senhores Juizes da COUR EUROPEENNE consideram hoje que existe sob o Affaire PETRESCU uma jurisprudência bem firme que se impõe na ordem jurídica Portuguesa, que todos os Órgãos de Soberania nacionais devem acatar in totum face à ratificação da Convenção Europeia sob o art° 8° da Constituição da República Portuguesa;

23 - a consequência deste tratamento desumana, a doença cancerosa de que padece e a ausência do respeito pelo Principio do "devido processo legal" é a imediata libertação Req, como aliás o T.J.U.E. concluiu no parágrafo 102 Acórdão PálAranyosi (C-404/15) e Robert Cãldãraru:

"Em todo o caso, se a autoridade judiciária de execução concluir, no termo do controlo mencionado nos n.os 100 e 101 do presente acórdão, que esta obrigada a pôr termo à detenção da pessoa procurada, cabe-lhe então, por força dos artigos 12,° e 17,°, n.° 5, da decisão-quadro, fazer acompanhar a libertação provisória dessa pessoa de todas as medidas que considere necessárias para evitar a sua fuga e para garantir que as condições materiais necessárias à sua entrega efetiva continuam reunidas enquanto não for tomada uma decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu.. "

24 - a situação actual do Req. é dramática: vegeta numa cela sem ventilação, em espaço inferior a 3m2 de área útil, passa fome graças ao orçamento do Governo de Portugal de um euro e vinte e nove cêntimos (1,29 €) por dia por recluso para três refeições, não existe higiene, os banhos ocorrem em balneário colectivo sem privacidade, não existe distanciamento entre reclusos, são frequentes as agressões de um grupo de Guardas prisionais a reclusos, ocorrem vários suicídios no BP…, é manifesta a sobrelotação prisional, com reclusos amontoados nos corredores e celas; não existe acesso a Internet para consultar os "sites" do Governo e dos Tribunais nem apoio psíquico; a cela minúscula é fria e húmida nos meses de inverno e sufocante no verão, esvoaçam pombos pela janela que fazem proliferar doenças; a doença … cancerosa de que padece, o risco de contrair COVI.D-19, de perder a Vida é real e permanente, o que aliado à ausência de higiene e condições mínimas de dignidade humana impõem a imediata libertação;

25 - a sobrelotação prisional qua tale a alimentação insuficiente, sem qualidade o risco de vida e a idade do Req. de … anos constituem tratamento degradante sob as luzes dos art°s 3o da CEDH e 4o da Carta dos Direitos Fundamentais que este Alto Tribunal deve acolher face à Jurisprudência do Tribunal Justiça e da COUR. (affaires PETRESCU contra Portugal e MURSIC c. Croácia) e se sobrepõem aos arts. 220 e 222 do CPP.;

Do artigo 222-2-b) do C.P.P.:

26 - esta norma impõe que o Habeas Corpus seja " fundado na ilegalidade da prisão proveniente de facto pelo qual a Lei a não permite"

27 - o facto base da presente providencia é o tratamento desumano a que o Req, está sujeito desde que, foi preso numa cela sem condições mínimas de dignidade humana;

28 - o reconhecimento expresso pelo Estado Português das más condições prisionais, de conhecimento oficioso e o pagamento de quantia simbólica não altera o statu quo em que o Req. se encontra;

29 - sob as luzes dos arts 1o- 3 e 5, 6o-1 da Decisão Quadro 2002/584/JAI de 13/6/2002, do Acórdão ''Pál Aranyosi" (C-404/15)e "Roberí Cáldãraru" do TRIBUNAL DE JUSTIÇA da UNIÃO EUROPEIA e 3o da Convenção Europeia dos Direitos do Homem- proc. 53931/19 "AA contra Portugal", o art° 222-2-b) do CPP deve ser interpretado no sentido de que o Req. se encontra preso em condições indignas, ilegais, contra as normas e Jurisprudência supra mencionada; daí a petição de liberdade pois não foi cumprido o Principio do "devido processo legal"...

30 - o art° 449º- 1-g) do CPP permite a Revisão de Sentença com base em Sentença vinculativa proferida por uma instancia internacional,."; mutatis mutandis face ao teor da Sentença da COUR EUROPEENNE no proc. 53931/19 e sob as luzes do caso "Pál Aranyosi" (C»404/15)e "Robert Caldararu" do TJUE, o art° 222-b) do CPP deve ser interpretado no mesmo sentido;

31 - uma interpretação a contrario traduz inconstitucionalidade do art° 222-2-b) do CPP por violação dos artsº 1°, 8o, 28°, 32° da Constituição da Republica Portuguesa, Io- 3 e 5, 6o-1 da Decisão Quadro 2002/584/J AI de 13-6-2002, 3o da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 4o da CARTA; termos em que, face ao supra exposto:

Requer-se a Vossa Excelência, ao abrigo dos artigos 222-2-b) do CPP, 1o- 3 e , 6°- 1 da Decisão Quadro 2002/584/J Aí de 13/6/2002, 3o da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, do Acórdão "Pál Aranyosi" (C-404/15 "Robert Cãldâraru" do TRIBUNAL DE JUSTIÇA da UNIÃO EUROPEIA, do Proc. 53931/19 "AA contra Portugal" e do Principio do "devido processo legal", que o Requerente AA seja libertado, fazendo-se a Lídima JUSTIÇA!»

2. Foi prestada informação, de acordo com o disposto no art. 223.º, n.º 1, do CPP, nos seguintes termos:

«O arguido AA, vem interpor a presente providência excepcional de habeas corpus, alegando “…tratamento desumano a que (…) está sujeito desde que foi preso numa cela sem condições mínimas de dignidade humana”, circunstância que, associada à sua idade e ao seu estado de saúde (doente oncológico), consubstancia uma violação do disposto no artigo 222.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal.

Assim, em obediência ao que se dispõe no artigo 223.º, n.º 1, do citado diploma legal, informa-se o Colendo Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que:

- No âmbito do processo n.º 93/13.0… determinou-se, em 16.10.2018, a separação de processos quanto aos arguidos AA e BB (fls. 27848 a 27849-E), uma vez que o arguido não tinha sido notificado da acusação nem da pronúncia;

- Em cumprimento do referido despacho judicial, instauraram-se os presentes autos com o n.º 5553/19.7T8LSB, sendo arguidos AA e BB, distribuído no Juízo Central Criminal de … ao Juiz …;

- Em 04.04.2019, na sequência da execução de um Mandado de Detenção Europeu (MDE) pendente contra o arguido AA, este viria a ser detido pelas autoridades … (fls. 27852 e 27863 a 27870), constituído arguido (fls. 27871), notificado para, querendo, requerer a abertura de instrução (fls. 27874) e submetido a interrogatório judicial Tribunal Judicial da Comarca de …;

- Em 25.04.2019, o arguido interpôs recurso do despacho que o sujeitou à medida de coacção de prisão preventiva (fls. 28033 a 28050 e 28071), o qual foi admitido pelo despacho de fls. 28072 e autuado em separado (despacho de fls. 28094);

- Por decisão sumária, de 09.07.2019, proferida pelo Tribunal da Relação de … o recurso foi julgado improcedente (fls. 28225 a 28232);

- Por requerimento entrado em juízo a 21.5.2019, o arguido requereu a abertura de instrução (fls. 28076 a 28093);

- Por acórdão do Colendo Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de Julho de 2019 foi julgado improcedente, por falta de fundamento, a petição de habeas corpus, que o requerente AA apresentou nestes autos;

- Por despacho de fls. 28101, de 29.05.2019, determinou-se a remessa dos autos ao TCIC (fls. 28102 e 28103) e foi admitida a abertura de instrução por despacho de 05.05.2010 (fls. 28105 a 28111);

- Foi designada data para a realização do debate instrutório, e após a sua realização (fls. 28171 a 28183), foi proferida decisão instrutória (fls. 28248 a 28386), pela qual o arguido: não foi pronunciado pela prática de um crime associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 28.°, n.º 2, do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro, tendo sido pronunciado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21.°, n.º 1 e 24.°, al. c) do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro. Foi ainda revogada a medida de coacção de prisão preventiva, e o arguido AA foi sujeito às medidas de coacção de apresentações periódicas, às segundas-feiras, no OPC da sua área de residência, proibição de se ausentar do distrito da sua residência, bem como para o estrangeiro sem autorização do Tribunal e proibição de contactos com os demais arguidos do processo;

- O Ministério Público em 03.10.2019 interpôs recurso (fls. 28473 a 28507) para o Tribunal da Relação de …, da decisão instrutória, pedindo a alteração da qualificação jurídica e correspondente pronúncia do arguido pelo crime de promoção e liderança de associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 28.°, n.ºs 1 e 3 da Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e a sujeição do arguido à medida de coacção de prisão preventiva;

- Em 11.12.2019 o Tribunal da Relação de … decidiu e passamos a transcrever:

«1 – Revogamos o despacho de não pronúncia proferido pelo Tribunal recorrido e ao abrigo e nos termos dos arts. 303º, nº 1 e 358º, nºs 1 e 3 do C. P. Penal, com o cumprimento do contraditório, determinamos que o tribunal recorrido proceda à alteração da qualificação jurídica do crime de Adesão a Associação Criminosa, p. e p. pelo artº 28º, nº. 2 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22.01, pelo qual foi o arguido AA acusado e despronunciado, para o crime de Promoção e Liderança de Associação Criminosa, p. e p. pelos n.ºs 1 e 3 da mesma disposição legal e, bem assim, apreciar da existência dos necessários indícios fortes e suficientes do crime a fim de submeter o arguido a julgamento.

2 - Revogamos o despacho recorrido, no que concerne à revogação da medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido e substituição pelas medidas de coação de apresentações periódicas à segunda feira, proibição de se ausentar do distrito da sua residência e para o estrangeiro sem autorização do Tribunal e proibição de contactos com os demais arguidos do processo, e, em consequência, determinamos que o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva, para além do TIR já prestado.» Mais determinou que após trânsito sejam passados os competentes mandados (fls. 29738 a 29785);

- Na sequência de arguição de nulidades, pedidos de suspensão dos mandados de detenção, dedução de pedidos de recusa dos Senhores Juízes Desembargadores, recurso interposto para o Tribunal Constitucional, foi proferido, em 29.4.2020, no Tribunal da Relação de … novo Acórdão no apenso de recurso 5553119.7T8LSB-…, do qual consta:

“O histórico do processo revela que o arguido tem vindo a protelar de forma manifestamente ostensiva o trânsito da decisão que determinou a alteração da medida de coação impondo a de prisão preventiva. Por outras palavras, é manifesto que os requerimentos e recursos interpostos pelo arguido AA, até ao presente, manifestamente infundados, apresentam-se como meios dilatários de obstar à baixa do processo à 1ª instância, e cumprimento do julgado.” Mais determinou a imediata extracção do translado, prosseguindo estes autos os seus termos no tribunal recorrido, para onde serão imediatamente remetidos, a fim de ser executado o julgado, considerando-se para todos os efeitos o trânsito condicional da decisão proferida. Esta decisão transitou em julgado condicionalmente em 29.04.2020;

- Em 16.12.2019 os autos (principais) foram remetidos ao Juízo Central Criminal de … para julgamento (fls. 28668);

- Por despacho de 19.12.2019, o Juiz … declarou-se impedido de intervir na fase de julgamento por ter determinado a prisão preventiva do arguido AA e, com base na ordem de serviço n.º 3/2017 da Sra. Juíza Presidente do Tribunal da Comarca de … determinou a remessa dos autos "à (re)distribuição" (despacho de fls. 29670);

- Os autos foram distribuídos ao Juiz 12, que, por despacho de 20.12.2019 (fls. 29672), se declarou incompetente para prosseguir os trâmites dos presentes autos, entendendo ser competente o Juiz que de acordo com as regras do regime de substituição deveria substituir o Juiz …, ou seja, o Juiz …;

- Por despacho de 10.02.2020 (fls. 29692), o Juiz … determinou a remessa do processo ao Juiz …, que a partir de então passou a tramitar os autos;

- O arguido AA veio a interpor recurso do despacho de fls. 29679 a 29684 (proferido pelo Juiz …) para o Tribunal da Relação de … que por acórdão de 26.05.2020, decidiu o prosseguimento dos autos para a fase de julgamento, declarando o Juiz … o competente para tal;

- Em 15.06.2020, o Juiz …, proferiu despacho que indeferiu o requerimento apresentado pelo arguido onde este arguiu a nulidade de todos os actos praticados por aquele desde que "recebeu" os autos, que seja declarado nulo o "mandado de detenção" e se proceda à recolha do mesmo; e ordene a remessa dos autos ao Juiz 12, face ao Acórdão do Tribunal da Relação de … de 26.5.2020;

- Por despacho de 23.06.2020 (fls. 29894), o Juiz 12 solicitou a remessa dos autos ao Juiz …, após o conhecimento do acórdão do Tribunal da Relação de … que declarou a competência deste Juiz …;

- Por despacho de 26.06.2020 (fls. 29899) o Juiz … determinou a remessa dos autos ao Juiz …;

- Por despacho de 30.06.2020 (fls. 29908), o Juiz …, atento o ordenado pelo Tribunal da Relação de …, no acórdão de 11.12.2019, que julgou parcialmente provido o recurso interposto pelo Ministério Público, onde se decidiu, para além do mais:

“1 - Revogamos o despacho de não pronúncia proferido pelo Tribunal recorrido e nos termos dos arts. 303.º, n.º 1 e 358º, n.ºs 1 e 3, do C.P.Penal, com o cumprimento do contraditório, determinamos que o Tribunal recorrido proceda à alteração da qualificação jurídica do crime de adesão a associação criminosa, p. e p. pelo artº 28º, n.º 2, do D.L. n.º 15/93, de 22.01, pelo qual foi o arguido AA acusado e despronunciado, para o crime de promoção de liderança de associação criminosa, p. e p. pelos nºs 1 e 3 da mesma disposição legal e, bem assim, apreciar da existência dos necessários indícios fortes e suficientes do crime a fim de submeter o arguido a julgamento.” (e ainda a prisão preventiva do arguido AA).

E que por acórdão de 29.04.2020, o mesmo Tribunal da Relação de …, ordenou: “(…) ao abrigo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 670.º, do CPP, aplicável ex vi do disposto no art.º 4.º, do Código de Processo Penal, em determinar a imediata extracção de traslado, nos termos supra referidos, prosseguindo estes autos os seus termos no tribunal recorrido, para onde serão imediatamente remetidos, a fim de ser executado o julgado, considerando-se para todos os efeitos o trânsito condicional da decisão proferida”, decidiu este Juiz … que a circunstância de ainda não se ter iniciado o julgamento do arguido AA pelos factos relativamente aos quais este arguido já se encontrava pronunciado e ser de toda a conveniência que todos os factos imputados a este arguido sejam apreciados conjuntamente, que os autos fossem remetidos ao TCIC como havia sido ordenado pelo Tribunal da Relação;

- Em 23.07.2020, o Mm.º Juiz de Instrução Criminal proferiu decisão instrutória e manteve a prisão preventiva a que o arguido AA já se encontrava sujeito (fls. 29996 a 30051);

- Em 03.08.2020, o arguido veio arguir a nulidade da decisão instrutória (fls. 30059) e simultaneamente interpor recurso da mesma (fls. 30060 a 30064);

- Em 13.08.2020, por despacho de fls. 30067 a 30081, foram indeferidas as nulidades arguidas e não foi admitido o recurso interposto pelo arguido;

- Da não admissão do recurso foi apresentada reclamação junto do Tribunal da Relação de …, que decidiu pelo indeferimento da reclamação (fls. 30236 a 30239);

- Foi apresentado pedido de incidente de recusa de Juiz (do TCIC) – fls. 30089/30090, pelo arguido AA. O Mm.º Juiz pronunciou-se, cfr. fls. 30096 a 30098, e por acórdão do Tribunal da Relação de …, foi indeferido o pedido de recusa (fls. 30188 a 30201);

- Em 21.08.2020, os autos foram remetidos a este Tribunal (Juízo Central Criminal de …), tendo o processo sido recebido por este Juiz …, e designada data para a realização da audiência de discussão e julgamento e manteve-se a prisão preventiva – cfr. fls. 30127 e 30128;

- Os mandados de detenção para sujeição do arguido à medida de coacção de prisão preventiva foram emitidos na sequência dos acórdãos do Tribunal da Relação de … de 11.12.2019 e de 29.04.2020, que determinaram que os autos (apenso de recurso) fossem imediatamente remetidos à 1.ª instância a fim de ser executado o julgado, considerando-se para todos os efeitos o trânsito condicional da decisão proferida, ou seja, a decisão que determinou a sujeição do arguido à medida de coacção de prisão preventiva. O que, aliás, veio a ser reiterado pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça por acórdão de 25.06.2020, em incidente de Habeas Corpus apresentado pelo arguido AA, decidindo que: «Os mandados de detenção foram emitidos em cumprimento de uma decisão de um Tribunal superior (acórdão com trânsito em julgado, ainda que condicional, em 29.04.2020). Ora, ao abrigo do disposto no artigo 4°, n.º 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ) uma decisão proferida, em via de recurso, por um tribunal superior, transitada em julgado (ainda que condicional) e que determinou que os autos (apenso de recurso) fossem "imediatamente remetidos" à 1.ª instância "a fim de ser executado o julgado, considerando-se para todos os efeitos o trânsito condicional da decisão proferida", tem de ser cumprida pela 1.ª Instância.», no caso, pelo então, Juiz …;

- Igualmente, o mesmo acórdão do Tribunal da Relação de … de 11.12.2019 e de 29.04.2020 determinou que o arguido fosse pronunciado para o crime de promoção de liderança de associação criminosa, previsto e punido pelos nºs 1 e 3 da mesma disposição legal e, bem assim, apreciar da existência dos necessários indícios fortes e suficientes do crime a fim de submeter o arguido a julgamento, tendo o TCIC acatado tal decisão superior, proferindo o despacho de pronúncia de fls. 29996 a 30051;

- Por acórdão datado de 06.04.2021, foi o arguido AA condenado, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, al. c), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 11 (onze) anos de prisão;

- Por decisão proferida nessa mesma data e, mais tarde, por despacho datado de 02.07.2021, foi mantido o estatuto coactivo do arguido;

- O arguido AA interpôs recurso da decisão condenatória, tendo o mesmo sido admitido e, por despacho datado de 07.07.2021, determinada a subida dos autos ao Venerando Tribunal da Relação de …, onde se encontram actualmente.

Pelo exposto, e em face do ora explanado, é nosso entendimento de que não existem nos autos factos que permitam concluir pela existência de prisão ilegal – nomeadamente, ter sido motivada por facto pelo qual a lei a não permite [cfr. artigo 222.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal] –, o que V. Ex.ª melhor decidirá.»

3. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, teve lugar a audiência, nos termos dos arts. 223.º, n.º 3, e 435.º, do CPP.

Há agora que tornar pública a respetiva deliberação e, sumariamente, a discussão que a precedeu.

II Fundamentação

1. Nos termos do art. 31.º, n.º 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, o interessado pode requerer, perante o tribunal competente, a providência de habeas corpus em virtude de detenção ou prisão ilegal. “Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade” constituindo uma “garantia privilegiada” daquele direito (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa — Anotada, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, 4.ª ed., anotação ao art. 31.º/ I, p. 508).

Exigem-se cumulativamente dois requisitos: 1) abuso de poder, lesivo do direito à liberdade, enquanto liberdade física e liberdade de movimentos e, 2) detenção ou prisão ilegal (cf. neste sentido, ibidem, anotação ao art. 31.º/ II, p. 508). Nos termos do art. 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), a ilegalidade da prisão deve ser proveniente de aquela prisão “a) ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.

2.1. Compulsados os elementos existentes nestes autos, verificamos que:

- o requerente, após cumprimento do mandado de detenção europeia pelo Reino de …, foi constituído arguido, prestou termo de identidade e residência a 04.04.2019, e após o primeiro interrogatório judicial de arguido detido (realizado na mesma data) foi sujeito a prisão preventiva (após mandados de condução ao Estabelecimento Prisional  da zona prisional da … na mesma data – cf. fls. 46) com fundamento na existência de fortes indícios pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, nos termos do s arts. 21.º, n.º 1, e 24.º, al. c), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, e de um crime de associação criminosa (com vista ao tráfico de estupefacientes), nos termos do art. 28.º, n.º 2, do mesmo diploma legal (tal como tinha sido acusado), e na existência de perigo de fuga e de continuação da atividade criminosa (cf. fls. 44 e 44/verso);

- depois o arguido requereu a abertura de instrução, tendo sido prolatada a decisão instrutória a 22.07.2019 (cf. fls. 122 e ss), tendo sido o arguido pronunciado pelo crime de tráfico de estupefacientes agravado tal como vinha acusado, mas foi prolatado despacho de não pronúncia pelo crime de associação criminosa (com vista ao tráfico de estupefacientes); em consequência, no mesmo despacho foi revogada a aplicação da medida de coação de prisão preventiva — por se considerar que não existia perigo de fuga [dado que apesar de as notificações no âmbito destes autos terem sido expedidas para uma morada do arguido em Portugal, o arguido terá tido autorização de residência em … desde 2014 (cf. fls. 186 e 187)], mas entendendo que o perigo de continuação da atividade criminosa não deixou de existir, embora atenuado (cf. 187/verso); manteve-se o termo de identidade e residência e foi aplicada a medida de coação de apresentação periódica (à segunda-feira) no órgão de polícia criminal da área da sua residência e a medida de proibição de se ausentar do distrito da sua residência e de contatos com os demais arguidos; o arguido foi libertado a 22.07.2019;

- o Ministério Público interpôs recurso desta decisão e, por acórdão do Tribunal da Relação de …, de 11.12.2019 (cf. fls 244/verso e ss), foi revogado o despacho de não pronúncia, o arguido foi pronunciado pelo crime de promoção e liderança de associação criminosa (nos termos do art. 28.º, n.ºs 1 e 3, do Dec. Lei n.º 15/93) e decidida a aplicação da medida de coação de termos de identidade e residência e de prisão preventiva; em consequência, o arguido voltou a ser preso a 01.06.2020, sem que, segundo os elementos juntos a estes autos,  nesta altura, esta prisão tivesse sido precedida de qualquer entrega do arguido por outro Estado em execução de Mandado de Detenção Europeu.

- o requerente foi condenado, por acórdão de 06.04.2021, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, nos termos dos arts. 21.º, n.º 1 e 24.º, al. c), do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22.01, na pena de prisão de 11 anos (cf. informação), tendo sido mantida a medida de coação por despacho de 02.07.2021 (cf. idem); o arguido interpôs recurso desta decisão e suscitou incidente de recusa do Senhor Juiz Desembargador (a correr termos neste Supremo Tribunal de Justiça e a aguardar as informações solicitadas por ofício).

2.2. Perante estes elementos, vejamos se está verificado algum dos fundamentos da procedência de um pedido de habeas corpus, isto é, a prisão ter sido ordenada por entidade incompetente, ter sido determinada por facto que a lei não permite ou estar ultrapassado o prazo máximo de privação da liberdade.

Quanto ao primeiro fundamento referido, o requerente já o suscitou em anteriores providências de habeas corpus tendo sido decidido por este Supremo Tribunal de Justiça:

- no acórdão de 25.06.2020 (proc. n.º 5553/19.7T8LSB-F.S1, Relatora: Cons. Margarida Blasco) que:

«Os mandados de detenção foram emitidos em cumprimento de uma decisão de um Tribunal superior (acórdão com trânsito em julgado, ainda que condicional, em 29.04.2020). Ora, ao abrigo do disposto no artigo 4º, n.º 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ) uma decisão proferida, em via de recurso, por um tribunal superior, transitada em julgado (ainda que condicional) e que determinou que os autos (apenso de recurso) fossem “imediatamente remetidos” à 1ª instância “a fim de ser executado o julgado, considerando-se para todos os efeitos o trânsito condicional da decisão proferida”, tem de ser cumprida pela 1.ª Instância.

Ou seja, o acórdão de 29.04.2020 proferido pelo TRL- 3.ª secção criminal tinha de ser cumprido por Juiz da 1.º Instância a fim de se dar cumprimento àquela decisão e proceder à “alteração da medida de coação, impondo a de prisão preventiva.”.

Entende o peticionante que este Juiz de 1.ª instância não deve ser o Juiz (…) pois a distribuição não seguiu as regras normais, pelo que o mesmo é incompetente para tramitar os autos e ter passado os mandados de detenção. (...)

Não se verifica, deste modo, a incompetência material do juiz, para efeitos do disposto na alínea a) do n.º 2, do artigo 222.º, do CPP.» (sublinhados no original), e

- no acórdão 11.11.2020 (proc. n.º 5553/19.7T8LSB-L.S1, Relator: Cons. Manuel Augusto Matos) reafirmou-se (após transcrição do anterior acórdão) que:

«Aderindo inteiramente a esta fundamentação, que secundamos, entendemos nós também que improcede a invocada incompetência material/funcional da autoridade judicial que emitiu os mandados de detenção do arguido, agora requerente.

Como se considerou no acórdão deste Supremo Tribunal de 06-02-2019, proferido no processo n.º 127/06.5IDBRG-G.S1 - 5.ª Secção, «[a] norma da al. a) do n.º 1 do art. 222.º do CPP não tem em vista a incompetência funcional, apenas havendo incompetência se a entidade que efectuou ou ordenou a prisão não tem o estatuto requerido para ordenar a prisão, ou seja, não tem o estatuto de juiz, sublinhamos, com competência em matéria criminal» (do sumário) [1]

É, pois, evidente, que a prisão foi ordenada por autoridade judicial competente.

E também é evidente que o prazo máximo de prisão preventiva previsto no art. 215.º, n.º 1, al. d) e n.º 2, do CPP, cujo prazo máximo de prisão preventiva é de 2 anos, não foi ultrapassado, sabendo que o arguido esteve em prisão preventiva à ordem destes autos desde 04.04.2019 até 22.07.2019 e entre 01.06.2020 até a atualidade.

Pelo que, necessariamente temos que concluir que a prisão não se mantém para além dos prazos máximos estabelecidos na lei.

Todavia, o requerente vem agora alegar que a prisão é ilegal porque não é motivada por facto pelo qual a lei a permite, invocando o disposto no art. 22.º, n.º 2, al. b), do CPP. Ora, sabendo que o arguido foi condenado em 1.ª instância pelo crime de tráfico de estupefacientes agravado, e sabendo que tal constitui conduta punida por lei, e que a prisão preventiva foi determinada por se considerar que se mantinha o perigo de fuga e o perigo de continuação da atividade criminosa dado que desde o primeiro despacho que a aplicou “nenhum facto ou circunstância ocorreu suscetível de alterar os pressupostos que a determinaram” (cf. acórdão do Tribunal da Relação de … a fls. 282/verso e ss, e fls. 289/verso correspondente à transcrição), estão verificados todos os pressuposto legais para que necessariamente tenhamos que concluir que a prisão foi determinada por facto pelo qual a lei a permite.

As alegações do arguido de que, por um lado, o Mandado de Detenção Europeu não devia ter sido executado porque as condições da prisão são degradantes e desumanas seria um argumento a alegar num eventual recurso da decisão (prolatada em Tribunais do país executante) que executou aquele mandado, pelo que não constitui fundamento de um pedido de providência de habeas corpus à luz do disposto no art. 222.º, n.º 2, do CPP; por outro lado, a alegação de que as condições da prisão são completamente desadequadas ao estado de saúde do requerente também não constitui fundamento de admissibilidade da providência de habeas corpus à luz da lei.

Aliás, alegações idênticas foram apresentadas em anterior pedido de habeas corpus:

«(...) 13-estão proibidos os tratos desumanos ou degradantes: artsº 3º da CEDH e 25º-2 da CRP; face às condições prisionais impostas pelo Estado Português corre termos a Requete nº. 53…31/19 AA contra Portugal, no Tribunal Europeu, de conhecimento oficioso;

14 - os arts. 1º.-3, 5º e 6º -1 da Decisão Quadro 2002/584/JAI do Conselho devem ser interpretados no sentido de que perante elementos objectivos, fiáveis, precisos e devidamente actualizados que confirmam a existência de deficiências sistémicas ou generalizadas que grassam no estabelecimento prisional e que a pessoa presa corre um risco real de trato desumano ou degradante na fórmula do artº. 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000/C 364/01) Portugal não a pode manter em cativeiro; na verdade,

15 - Portugal foi condenado pelos Senhores Juízes de Estrasburgo no affaire PETRESCU - application nº 23190/19 de 3-12-2019 pelas más condições prisionais, de conhecimento oficioso e publicado em http://gddc.ministeriopublico.pt/faq/acordaos-relativos-portugal

16 - nos processos contra PÃL ARANYOSI e ROBERT CALDARARU C-404/15 e C-659/15 PPU o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que uma pessoa não pode ser entregue a outro Estado membro quando resulte risco real de trato desumano ou degradante (§ 88 e ss- Acórdão Torreggiani contra Itália, do TEDH de 8-1-2013, § 65.)

17 - o Req. vegeta numa cela sem ventilação com outro recluso, em espaço inferior a 3m2 de área útil, passa fome graças ao orçamento do Governo de Portugal de um euro e vinte e nove cêntimos (1,29 €) por dia por recluso para três refeições, não existe higiene, os banhos ocorrem num balneário colectivo sem privacidade, não existe distanciamento entre reclusos que não usam máscaras, são frequentes as agressões de um grupo de Guardas prisionais a reclusos, ocorrem vários suicídios no EP…, é manifesta a sobrelotação prisional, com reclusos amontoados nos corredores e celas; não existe acesso a Internet para consultar os “sites” do Governo e dos Tribunais nem apoio psíquico; a cela minúscula é fria e húmida nos meses de inverno e sufocante no verão, esvoaçam pombos pela janela que, perante a ausência de máscaras, fazem proliferar doenças entre os reclusos; o risco de contrair COVID-19 e perder a Vida é real;

18 - a sobrelotação prisional qua tale a alimentação insuficiente e sem qualidade, o risco de vida e a idade do Req. de … anos constituem tratamento degradante sob as luzes dos artºs 3º da CEDH e 4º da Carta dos Direitos Fundamentais que este Alto Tribunal deve apreciar e julgar face à Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e da COUR. (affaires PETRESCU contra Portugal e MURSIC contra Croácia) e se sobrepõem aos arts. 220 e 222 do CPP; pelo que:

Vossas Excelências, ao abrigo dos artigos 27º-4, 32º- 1 da CRP, 5º-1-c), 3, 6º- 1 da CEDH. 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e 222º- 2- a) e c) do CPP, deferindo o Habeas Corpus e o Req. libertado, farão a Lídima Justiça!»” (cf. acórdão de 11.11.2020, citado supra).

E perante isto, este Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de novembro de 2020, decidiu que:

«Relativamente a pretensas violações da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia ou da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, cumpre dizer que, acompanhando novamente o mesmo acórdão:

«Como assinala E. Maia Costa, os textos internacionais relativos aos direitos humanos preveem genericamente um recurso para os tribunais com carácter urgente contra a privação da liberdade ilegal, mas tal garantia não se confunde com o habeas corpus .

A CRP, no artigo 27º, n.º 1, reconhece e garante o direito à liberdade individual, à liberdade física, à liberdade de movimentos. 

O direito a não ser detido, preso ou total ou parcialmente privado da liberdade não é um direito absoluto.

À semelhança da CEDH, a CRP, no citado artigo 27º, n.º 2, admite expressamente que o direito à liberdade pessoal sofra restrições. Sobressaindo, desde logo, a privação da liberdade decretada em sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão. No caso da prisão as restrições à liberdade “só podem decorrer de sanção penal”.»

5. Finalmente, as condições em que o peticionante alegadamente se encontra não constituem fundamento para a providência de habeas corpus já que, manifestamente, não se integra em qualquer uma das situações taxativamente previstas no artigo 222.º, n.º 2, do CPP.

6. Como já se disse, e agora se reafirma, a providência de habeas corpus está reservada, quanto mais não fosse por implicar uma decisão verdadeiramente célere – mais precisamente «nos oito dias subsequentes» ut art.º 223.º, n.º 2, do CPP – aos casos de ilegalidade grosseira, porque manifesta, indiscutível, sem margem para dúvidas, como o são os casos de prisão «ordenada por entidade incompetente», «mantida para além dos prazos fixados na lei ou decisão judicial», e como o tem de ser o «facto pela qual a lei a não permite».

Ora, no caso presente, a medida de coacção de privação da liberdade foi aplicada ao arguido, agora peticionante, após a sua pronúncia como autor de crimes relativamente aos quais, de acordo com o disposto no artigo 202.º, n.º 1, do CPP, é admissível a imposição da prisão preventiva (artigo 2012.º, n.º 1, do CPP).

Sendo que, como já se afirmou, esta medida de coacção foi imposta aos requerentes pela autoridade judiciária competente por factos fortemente indiciadores da prática de crimes pelos quais a lei permite a sua aplicação.

Em face do exposto, conclui-se pela não verificação de qualquer situação geradora de ilegalidade da prisão preventiva imposta ao requerente pois a privação da liberdade foi motivada por facto que a lei permite, foi ordenada por autoridade competente e não semostram ultrapassados os prazos fixados pela lei.»

Assim, por acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, já transitado em julgado, foi decidido, perante alegações idênticas que não estava preenchido nenhum dos fundamentos previstos no art. 222.º.

De tudo o exposto, o requerente não está preso ilegalmente, assim se indeferindo esta petição de habeas corpus.

III Decisão

1. Termos em que acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus requerida por AA por falta fundamento (art. 223.º, n.º 4, al. a), do CPP).

Custas pelo requerente, com 3 UC de taxa de justiça.

Supremo Tribunal de Justiça, 23 de setembro de 2021

Os Juízes Conselheiros,

                           

Helena Moniz (Relatora)

Eduardo Loureiro

António Clemente Lima

__________________________________________________


[1] [nota 7 no original] Sumários de Acórdãos das Secções Criminais – 2019.