Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2855/21.6T8BCL.G1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: PROCESSO PENAL
RECURSO PENAL
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
REVISTA EXCECIONAL
COIMA
INADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 05/04/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. A aplicação subsidiária das normas do processo civil em processo penal exige, nos termos do artigo 4.º do CPP, que se identifique uma lacuna de regulamentação (um “caso omisso”) e que essa lacuna não possa ser preenchida por aplicação analógica das disposições do CPP.

II. A jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça tem insistido na afirmação da autonomia e completude do regime de recursos em processo penal, assumido pelo legislador, que, com o CPP de 1987, deixou de ser dependente do regime de recursos em processo civil, como antes, no CPP de 1929, acontecia.

III. Nem o artigo 400.º do CPP, subsidiariamente aplicável em processos de contraordenação, nem o artigo 75.º, n.º 1, do RGCO necessitam de integração, sendo de afastar a existência de lacuna.

IV. Esta autonomia, completude e autossuficiência evidencia-se quanto aos recursos ordinários e aos recursos extraordinários; no essencial, e na sua preordenação à realização de finalidades próprias do processo penal, diversas das do processo civil, o regime do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, incluindo a oposição de julgados, o recurso contra jurisprudência fixada e o recurso no interesse da unidade do direito (artigos 437.º-448.º do CPP), abrangem boa parte dos casos a que, no processo civil, se refere o n.º 1 do artigo 672.º do CPC, não sendo identificável uma lacuna relativamente às situações elencadas nas alíneas a) e b) deste preceito, respeitantes à “relevância jurídica” ou à “relevância social” da questão objeto do recurso.

V. Acrescem, no mesmo sentido, razões de ordem constitucional relativas ao recurso, também garantido no processo de contraordenação (artigo 32.º, n.ºs 1 e 10, da Constituição). Como se tem assinalado, o regime de recursos em processo penal efetiva, de forma adequada, a garantia do duplo grau de jurisdição, enquanto componente do direito de defesa em processo penal.

VI. A decisão recorrida, proferida em recurso de decisão de aplicação de uma coima ambiental, não admite recurso de revista excecional (artigo 672.º, n.º 1, do CPP), motivo pelo qual é rejeitado.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:




I - Relatório

1. Por sentença de 16-02-2022, proferida nos presentes autos, no Juízo Local Criminal ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi julgado improcedente o recurso de impugnação apresentado por “ADB - Águas de Barcelos, SA”, e mantida a condenação desta na coima de 24.000,00 € (vinte e quatro mil euros), pela prática de uma contraordenação prevista e punível nos termos das disposições conjugadas dos artigos 81.º, n.º 3, al. c), do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31-05, e artigo 22.º, n.º 4, al. b), da Lei n.º 50/2006, de 29-08.

2. Inconformada, a arguida interpôs recurso da sentença para o Tribunal da Relação de Guimarães, instância em que, por acórdão de 23-05-2022, foi julgado totalmente improcedente, e, consequentemente, confirmada a sentença recorrida.

3. Vem agora a arguida interpor recurso de revista excecional do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães para o Supremo Tribunal de Justiça, “ao abrigo do disposto no artigo 432.º e ss. do Código de Processo Penal (“CPP”) e artigo 672.º, n.º 1, al. a) e b) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4.º do CPP e do princípio do contraditório”, com motivação de que extrai as seguintes conclusões:

“A.  O presente recurso tem por objeto o Douto Acórdão recorrido.

B.    Está em causa a condenação da ADB à prática de contraordenação ambiental muito grave prevista no artigo 81.º, n.º 3, al. c) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio pelo alegado “incumprimento das obrigações impostas pelo respetivo título”.

C.   Pese embora o Tribunal de 1.ª instância se ter declarado “impossibilitado de considerar idóneos os resultados espelhados no auto de notícia”, o mesmo considerou que a ADB praticou o ilícito de mera ordenação social pelo qual veio a ser condenada pela entidade administrativa competente, baseando-se em factos distintos daqueles que deram origem ao processo de contraordenação.

D.  Fazendo-o quando nem a própria entidade competente para a fiscalização considerou bastantes os factos distintos daqueles que deram origem ao processo de contraordenação (nomeadamente os resultados previamente apresentados pela ADB), para desencadear, por si só, o procedimento de contraordenação sub judice.

E.   Tendo, desta forma, e tal como consta do Dispositivo constante da Sentença do tribunal de 1.ª instância, julgado recorrendo à alteração da factualidade provada com o intuito de manter a condenação da ADB.

F.   O Douto Tribunal recorrido veio confirmar a legalidade daquela decisão.

G.   A imputação dessa mesma contraordenação com base nos resultados que a ADB havia, no cumprimento das obrigações decorrentes da Licença, previamente apresentado à entidade administrativa competente, faz com que, em plena violação da reserva da atividade administrativa prevista no artigo 111.º da CRP e do princípio constitucional da não autoincriminação, o poder jurisdicional se substitua ao juízo da entidade administrativa competente.

H.   Qualquer ato administrativo (no caso, a Decisão de condenação proferida pelo IGAMAOT) deve, no cumprimento do artigo 153.º do Código do Procedimento Administrativo, ser devidamente fundamentado, não só para garantir o direito de defesa da ADB, mas também o interesse público e uma função de autocontrole da própria administração, explicitando as razões de facto e de direito que levaram o autor à prática da decisão administrativa.

I.    A factualidade provada alterada sobre a qual a ADB não teve a oportunidade de se pronunciar, pode ter sido gerada por causas que não são da responsabilidade da arguida e que, por essa razão, conduzem à exclusão de ilicitude e culpa.

J.    Refira-se que o facto de existir uma ideia de “menor dignidade” da matéria contraordenacional, relativamente à matéria criminal, não pode significar uma menor dignidade de tratamento jurídico quando estão em causa questões processuais e procedimentais essenciais para assegurar a tutela dos direitos da ADB enquanto interessada, seja em sede do procedimento administrativo do qual emergiu a decisão de contraordenação, seja em sede do respetivo processo contencioso de impugnação da mesma. 

K.   O artigo 32.º, n.º 10 da CRP dispõe que “Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa” - o que significa que a própria Constituição não faz a distinção entre matérias de parente “pobre”, como as contraordenacionais, e matérias de parente “nobre”, como as criminais.

L.    Ao confirmar a legalidade daquela decisão, o Douto acórdão recorrido vedou à ADB qualquer oportunidade de se defender junto da entidade administrativa quanto àquela matéria que resultou da alteração de factualidade – o que resulta, para além da violação do princípio constitucional da separação de poderes, na violação do direito de defesa da ADB com a abrangência imposta pelo artigo 32.º, n.º 1 e 5 da CRP, no sentido de que nenhuma decisão deve ser proferida, sem que previamente tenha sido precedida de ampla e efetiva possibilidade de ser contestada ou valorada pelo sujeito processual contra o qual aquela é dirigida.

M.  Dito isto, a questão jurídica fundamental objeto da presente revista é a seguinte: pode uma entidade administrativa praticar um ato administrativo sancionatório (no caso, uma contraordenação e respetiva sanção), com base numa fundamentação de facto à qual o Arguido teve oportunidade de responder em sede procedimental e o Tribunal de 1.ª instância, na apreciação dessa mesma decisão administrativa, alterar a fundamentação de facto sem que o Arguido nunca tenha tido a possibilidade de se pronunciar sobre a nova fundamentação que o Tribunal entendeu selecionar para manter a validade da decisão administrativa condenatória?

N.   Assumindo que em Portugal, em cada ano, seja no domínio ambiental, seja nos dos demais setores regulados, as entidades administrativas aplicam milhares de contraordenações e respetivas coimas, esta é, pelo impacto que tem na garantia de defesa dos administrados e na atuação da Administração Pública, enquanto entidade sancionatória, uma questão de gigantesca relevância jurídica que apenas em sede de recurso de revista o Supremo Tribunal de Justiça poderá apreciar e decidir.

O.   Se esta revista não for admitida ou à mesma não for dado provimento, o Estado de Direito está ferido de morte, na medida em que, a partir de agora, sempre que uma entidade administrativa fundamentar de maneira imperfeita a sua decisão administrativa, poderá o tribunal substituir, no plano dos factos, e até no do direito, a fundamentação que serviu de base à decisão administrativa sem que sobre a nova fundamentação o respetivo arguido tenha tido oportunidade de se defender.

P.   Não há maior atropelo ao princípio da defesa dos direitos dos administrados previsto no artigo 266.º, n.º 1 da CRP, designadamente no plano do direito de participação procedimental ou de audiência previa previstos no artigo 12.º e 121.º do Código do Procedimento Administrativo, do que a situação acabada de relatar.

Nestes termos e nos melhores de Direito (…):

a) Deve o presente recurso de revista ser admitido e, em consequência,

b) Deve o recurso interposto ser julgado procedente, sendo revogado o adouto acórdão recorrido, com as respetivas consequências legais.”

4. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto suscitado a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, nos seguintes termos:

“(…)

5 – Suscita-se a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, em razão da irrecorribilidade da decisão do Tribunal da Relação de Guimarães.

Com efeito, sob a epígrafe Âmbito e efeitos do recurso, dispõe o artigo 75.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, diploma que instituiu e regula o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo, doravante designado por R.G.C.O: 1 - Se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões. (…).

Configura-se, nestes termos, legalmente inadmissível a interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão proferida pelo tribunal da Relação em matéria de contraordenações.

Ciente de tal limitação, a recorrente ADB - Águas de Barcelos, S.A. procura sustentar, no segmento expositivo da motivação de recurso, que a referida norma do artigo 75.º do R.G.C.O. «… se refere ao recurso ordinário e, não ao recurso extraordinário.» (cfr. ponto 25).

E por isso se abalançou à interposição de recurso de revista excepcional, previsto no artigo 672.º do Código de Processo Civil (C.P.C.), invocando, como fundamento, estar em causa questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito, e estarem ainda em causa interesses de particular relevância social, enquadrados, uma e outro, nas alíneas a) e b) do n.º 1 dessa disposição legal, aplicável, na sua perspectiva, por força do disposto no artigo 4.º do C.P.P.

É de entender, porém, não ser admissível o recurso de revista excepcional de que foi lançada mão.

Como ainda muito recentemente, 18 de Maio de 2022, se decidiu em acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.º 48/17.6GCALM.L1-A.S1, da 3ª Secção: [transcrição]

Igual sorte deverá ter o recurso em presença.

Com efeito, a evolução do regime de recursos no âmbito do processo penal (…) torna evidente que a opção do legislador foi no sentido de tornar o regime dos recursos no processo penal autossuficiente e completamente autónomo do regime de recursos no processo civil.

“O regime de recursos em processo penal, tanto na definição do modelo, como nas concretizações no que respeita a pressupostos, à repartição de competências pelos tribunais de recurso, aos modos de decisão do recurso e aos respectivos prazos de interposição, está construído numa perspectiva de autonomia processual, que o legislador pretende própria do processo penal e adequada às finalidades de interesse público a cuja realização está vinculado.” (Acórdão de 11.10.2005, do S.T.J. publicado com o n.º 9/2005, no D.R. n.º 233, I Série-A, de 06/12/2005.)

Esta intenção do legislador é patente na redacção que foi atribuída aos artigos 399.º, 400.º e 432.º, do C.P.P., de que resultam, de forma taxativa, os casos em que é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, afirmando-se a prevalência do princípio da suficiência do processo penal. (…)

Assim,  face à clara intenção do legislador, manifestada ao longo das várias alterações que foram sendo introduzidas no C.P.P., de tornar o sistema de recursos em processo penal autossuficiente, de forma a não ser necessário recorrer às regras do C.P.C., bem como de limitar os casos em que é admissível recurso para S.T.J., tem que se entender que o C.P.P. esgota a disciplina da matéria da admissibilidade do recurso para o S.T.J., não sendo, pois, possível recorrer às regras do C.P.C., por não se verificar nessa matéria qualquer lacuna.

O regime estabelecido em processo penal, relativamente à admissibilidade de recurso para o S.T.J., revela-se coerente, autónomo, sem que  apresente qualquer espaço vazio; é um sistema que funciona completamente por si, na previsão, nos procedimentos e nos resultados da sua execução, apresentando-se como regime tendencialmente completo, que funciona com autonomia, e que permite realizar, por inteiro, de modo razoável e de acordo com a Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), a função para que foi concebido.

Não deixando espaços de regulamentação em aberto que importe preencher, não existe, pois, lacuna de regulamentação, a tornar justificado o recurso ao disposto no artigo 672.º do C.P.C., por força do artigo 4.º do C.P.P., para que possa ser interposto recurso para este Supremo Tribunal.

E tal entendimento não se recorta desconforme aos normativos constitucionais a que importa atender.

O que se impõe é que seja assegurado o recurso das decisões penais condenatórias e ainda de quaisquer decisões que afetem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente reconhecidos, sem que isso signifique a necessidade de prever um duplo grau de recurso ou triplo grau de jurisdição.

Como referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, em Constituição da República Portuguesa Anotada: “a existência de três níveis na estruturação dos tribunais judiciais não implica obviamente que todas as causas passem por todos eles. Ressalvados os princípios relativos à garantia do direito ao recurso e ao segundo grau de jurisdição, (...) a lei dispõe de ampla liberdade de conformação – observado naturalmente o princípio da proporcionalidade – na delimitação da amplitude da competência dos tribunais de recurso, em geral, e do STJ, em particular".

Este tem sido, aliás, o entendimento do Tribunal Constitucional que tem considerado que o direito ao recurso em processo penal deve ser entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição, não devendo ser perspetivado como uma faculdade de recorrer, sempre e em qualquer caso, da primeira decisão condenatória, ainda que proferida em recurso, posto que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas, e que a limitação do direito ao recurso, nestas situações, não é inconstitucional, e mostra-se conforme com o disposto no artigo 2.º do Protocolo n.º 7 da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (aprovado, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 22/90, de 27 de Setembro, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 51/90, de 27 de Setembro.”

Assim, e pelo que antecede, emite-se parecer no sentido de dever ser rejeitado, por legalmente inadmissível, o recurso interposto para este Supremo Tribunal por ADB - Águas de Barcelos, S.A.”.

5. A recorrente “ADB - Águas de Barcelos, S.A” respondeu ao parecer, nos termos do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, dizendo:

“1. A posição expressa pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público, se por um lado tem o mérito de proceder àquilo a que poderíamos chamar um entendimento tradicional do sistema de recurso em processo penal, por outro revela-se insuficiente no quadro geral da tutela jurídica efetiva que decorre da interação dos diferentes mecanismos de recurso à luz da Constituição da República Portuguesa.

2. Na ótica tradicional, o presente recurso não deve ser admitido.

3. Porém, numa ótica integrada, atualista e que relacione as regras processuais e os princípios constitucionais nesta matéria, o recurso em apreço não pode deixar de ser admitido.

4. A via de recurso apresentado pela ADB não se destina nem se confunde com a utilização dos mecanismos de recurso ordinários, cujo âmbito material é bem conhecido.

5. De forma diferente, o que está em causa no presente recurso somente, em sede de revista, pode ser atendido, sendo que a sua função não pode ser segregada ou limitada pela simples natureza da matéria em si (isto é, se é uma questão civil, comercial ou penal), na medida em que como, aliás, parece óbvio, em qualquer destas áreas existem questões com relevância jurídica e social que impõem uma apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça.

6. - É isto, e apenas isto, que a Recorrente pretende.

7. Esta pretensão da Recorrente em nada colide com a estrutura existente ao nível dos recursos em processo penal, uma vez que se baseia numa articulação entre os diferentes mecanismos processuais que existem nessa estrutura (ou nesse modelo), cada um dos quais com o seu âmbito e função específicos.

8. Por esta razão, não pode o presente recurso de revista deixar de ser admitido, pois esta é a única via que garante que a tutela jurisdicional efetiva exista, de facto, e seja assegurada, neste caso, em sede do processo penal/contraordenacional.

9. Do acima exposto - que no fundo complementa as razões já anteriormente apresentadas pela ADB em sede de Alegações - encontra-se justificada, de forma objetiva, a necessidade e a fundamentação do recurso de revista interposto.”

6. O processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.

II. Fundamentação

a) O acórdão recorrido

7. O acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de Guimarães, que conheceu do recurso interposto pela arguida “ADB - Águas de Barcelos, S.A.” da sentença do Juízo Local Criminal ..., de 16 de fevereiro de 2022, que julgou improcedente a impugnação judicial de decisão do processo de contraordenação, mantendo a condenação da recorrente na coima de 24 000,00 € (vinte e quatro mil euros), pela prática de uma contraordenação prevista e punível nos termos das disposições conjugadas dos artigos 81.º, n.º 3, alínea c), do DL n.º 226-A/2007, de 31 de Maio, e artigo 22.º, n.º 4, al. b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, julgou as seguintes questões suscitadas no recurso:

“I – erro de julgamento da matéria de facto relativos aos pontos 6. e 7. dos factos provados e da matéria “A ETAR de Areias de São Vicente é uma ETAR compacta provisória como solução transitória indispensável para garantir a funcionalidade das atuais redes de saneamento até à conclusão integral do Plano de Investimentos da Águas de Barcelos.” que deve a matéria de facto provada.

II – violação do princípio da legalidade, pelo facto do tribunal “a quo” não ter conhecido que a ETAR de Areias de São Vicente é uma ETAR provisória.

III – violação do princípio da autoincriminação.

IV – violação do princípio da separação dos poderes.”

7.1. A 1.ª instância deu como provados os seguintes factos: 

1. A ADB - Águas de Barcelos, S.A. é detentora da Licença de Rejeição de Águas Residuais n.º L010479.2015.RH2, emitida em 31/07/2015 e válida até 31/07/2017. 

2. Consta da referida licença que os valores limite de emissão (VLE), em percentagens mínimas de remoção, na descarga do efluente final a ser obedecido pelo respectivo titular são os seguintes: CBO: 70%; CQO 75%; e SST: 90%. 

3. Nos termos daquela Licença, a frequência de amostragem é mensal para os parâmetros CBO, CQO e SST, com envio trimestral à ARH/APA. 

4. A ADB - Águas de Barcelos, S.A. comunicou, relativamente ao ano de 2015, os VLE (em percentagem) da ETAR de Areias de São Vicente seguintes:





VLE



Resultado (em percentagem)



Afluente
Bruto
Efluente
Final







CBO 70%
105 30 71% 01/2015
960 95 90% 02/2015
850 110 87% 03/2015
720 90 88% 04/2015
320 260 19% 05/2015
260 150 42% 06/2015
330 180 45% 07/2015
280 230 18% 08/2015
220 170 23% 09/2015
300 190 37% 10/2015
420 180 57% 11/2015
420 130 69% 12/2015

206 122 41% 01/2015
1290 189 85% 02/2015






CQO 75%
1534 272 82% 03/2015
997 221 78% 04/2015
604 501 17% 05/2015
500 218 56% 06/2015
584 423 28% 07/2015
450 619 00% 08/2015
408 368 10% 09/2015
659 384 42% 10/2015
978 397 59% 11/2015
694 267 62% 12/2015








SST 90%
101 55 46% 01/2015
1045 83 92% 02/2015
1397 128 91% 03/2015
662 85 87% 04/2015
210 178 15% 05/2015
235 102 57% 06/2015
236 231 02% 07/2015
179 217 00% 08/2015
200 141 30% 09/2015
187 127 32% 10/2015
432 121 72% 11/2015
158 129 18% 12/2015

5. A ADB - Águas de Barcelos, S.A. comunicou, relativamente ao ano de 2016, os VLE (em percentagem) da ETAR de Areias de São Vicente seguintes: 







VLE
Afluente
Bruto
Efluente
Final
Resultado (em percentagem)





CBO 70%
260 125 52% 01/2016
680 62 91% 02/2016
200 120 40% 03/2016
48 100 00% 04/2016
290 440 00% 05/2016
230 350 00% 06/2016
380 400 00% 07/2016
390 270 31% 08/2016





CQO 75%
473 234 51% 01/2016
1119 162 86% 02/2016
383 261 32% 03/2016
100 204 00% 04/2016
594 905 00% 05/2016
445 658 00% 06/2016
766 767 00% 07/2016
681 534 22% 08/2016





SST 90%
201 85 58% 01/2016
700 95 86% 02/2016
167 119 86% 03/2016
63 101 29% 04/2016
200 653 00% 05/2016
151 247 00% 06/2016
471 328 30% 07/2016
309 233 25% 08/2016

6. A ADB - Águas de Barcelos, S.A. exerce actividade tratamento de águas residuais para a qual tem a obrigação de conhecer e cumprir com as normas que a regulam, designadamente o cumprimento das condições da Licença de Rejeição de Águas Residuais de que é titular.

7. Não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz.

8. Consta da declaração de IRC, relativa ao ano de 2016, da ADB - Águas de Barcelos, S.A. que esta teve um prejuízo de 1 458 501,65 € (um milhão quatrocentos e cinquenta e oito mil e quinhentos e um euros e sessenta e cinco cêntimos).

7.2. E como não provados os seguintes:

a) No dia 21/09/2016, pelas 16h, a ETAR de Areias de São Vicente – Barcelos, verificou-se nos afluentes as características seguintes: CBO: 287 mg O2/L à entrada e 124 mg/O2/L à saída (56,79%); CQO: 689 mg O2/L à entrada e 411 mg O2/L à saída (40,35%); SST: 310 mg O2/L à entrada e 310 mg O2/L à salda (0%).

b) A ETAR em causa foi construída pela ADB - Águas de Barcelos, S.A. como solução provisória, para permitir a exploração da rede construída enquanto o seu Plano de Investimentos não era concluído.

c) A ETAR de Areias de São Vicente tem um tratamento limitado, pouco ou nada flexível, à recepção de descargas pontuais com cargas e elevadas, bem como ao aumento brusco e abrupto do caudal em consequência da precipitação.

d) As dificuldades financeiras da ADB - Águas de Barcelos, S.A., advindas do incumprimento das obrigações contratuais por parte do Município de Barcelos, não lhe permitiram concluir o seu Plano de Investimento (construção de uma estação elevatória de considerável dimensão, acrescida de uma conduta e de alguns troços de rede gravítica, para complementar a já existente).

7.3. O Tribunal da Relação fundamentou e decidiu o recurso nos seguintes termos:

“A recorrente insurge-se com o facto de ter sido dado como provada a matéria constante dos pontos 6) e 7) por entender que tais factos não são factos, antes se traduzem na emissão de um juízo normativo derivado de um raciocínio lógico dedutivo. (…)

Salvo o devido respeito, a matéria elencada nesses dois pontos consubstancia matéria de índole factual: a atividade empresarial a que se dedica a recorrente, o conhecimento das regras a que se obrigou na sua atividade de tratamento de águas residuais e o elemento subjetivo da sua conduta, que consistiu na circunstância de em determinado período temporal, contrariamente com o que sucedeu noutros, não ter cumprido com os deveres contratuais, como resulta da demais matéria de facto dada por provada.

Não há deste modo que alterar os referidos pontos 6) e 7) dados como provados na decisão recorrida.

No que concerne à pretendida passagem da matéria dada como não provada na alínea b): “A ETAR em causa foi construída pela ADB - Águas de Barcelos, S.A. como solução provisória, para permitir a exploração da rede construída enquanto o seu Plano de Investimentos não era concluído”, para o elenco da matéria provada, tal não constitui nenhuma situação de erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410º nº 2 alínea c), pois não resulta do texto da sentença recorrida, nem viola as regras de experiência comum, nem resulta ainda de qualquer documento autêntico ou autenticado que tivesse de ser ponderado, mas apenas é referido em documentos particulares emitidos pelo própria recorrente, que o tribunal “a quo” considerou insuficientes no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, não havendo assim lugar a que este tribunal “ad quem” altere tal matéria de facto.

Acrescente-se que o Mm.º. Juiz “a quo” apreciou na sentença e deu como não provado, que a ETAR de Areias de São Vicente tem um tratamento limitado, pouco ou nada flexível, à receção de descargas pontuais com cargas e elevadas, bem como ao aumento brusco e abrupto do caudal em consequência da precipitação, bem como que as dificuldades financeiras da ADB - Águas de Barcelos, S.A., advindas do incumprimento das obrigações contratuais por parte do Município de Barcelos, não lhe permitiram concluir o seu Plano de Investimento (construção de uma estação elevatória de considerável dimensão, acrescida de uma conduta e de alguns troços de rede gravítica, para complementar a já existente)”.

Não teria assim essa matéria relativa a uma eventual “solução provisória” ser   consequentemente considerada na análise do elemento subjetivo, sendo ainda que nenhuma matéria de facto permite concluir pela existência de um nexo causal entre a alegada “solução provisória” e o comportamento contraordenacional da arguida. O tribunal “a quo” entendeu e bem que “relativamente aos pontos 6. e 7., os mesmos resultam da exteriorização das ações da recorrente, que, conforme se depreende dos seus atos, bem como dos relatórios por si elaborados, demonstrou ter noção e conhecimento das normas legais a que se encontra obrigada a cumprir, bem como dos deveres de cuidado no seu cumprimento que sobre si recaem. Por outro lado, é, ainda, patente que a mesma tem capacidade para os cumprir, pois períodos houve em que a recorrente observou com o estipulado nas respetivas Licença de Rejeição de Águas Residuais”.

O tribunal recorrido considerou assim e também concordamos com tal posição que se a atividade da arguida consistia no tratamento de águas residuais, tinha naturalmente por força da atividade económica que desenvolvia, a obrigação de conhecer e cumprir com as normas que a regulam e a que se obrigou, e podia e devia dar cumprimento às condições da Licença de Rejeição de Águas Residuais de que era titular. 

Face às regras de experiência comum, entende de uma forma natural que a arguida agiu com negligência, sendo aliás que era já a esse título que a conduta era imputada à arguida pela entidade administrativa.

De tudo isso resulta que a fundamentação constante na sentença recorrida foi proferida de um modo cristalino e convincente, não podendo de modo algum ser tida por arbitrária, ilógica ou que tenha abstraído de conhecer de circunstâncias relevantes que não podia ignorar.

Inexiste assim qualquer erro na apreciação da prova ou violação do princípio da legalidade.


*


Da alegada violação do princípio da não autoincriminação e da separação dos poderes. 

Pretende a recorrente que o facto de o Tribunal a quo ter condenado a ADB na prática da contraordenação que lhe foi imputada pela Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT), não com base nos resultados de análise resultantes do ato inspetivo daquela entidade administrativa (colheitas de efluente recolhidas pelo IGAMAOT no dia 27.09.2016), mas com base nos resultados comunicados pela ADB, faz com que o Tribunal a quo tenha procedido à valoração de um meio de prova proibido, violando a sentença recorrida o princípio da não autoincriminação previsto no artigo 32.º, n.º 10 da CRP, considerando que se baseou em provas que a própria entidade administrativa competente (IGAMAOT) não se fez servir para a imputação daquele ilícito de mera ordenação social, violou a reserva da atividade administrativa que a Constituição da República Portuguesa (“CRP”) e a Lei guardam para a Administração Pública.

Apreciando.

Como resulta do teor da sentença recorrida o tribunal “a quo” não deu como provado que no dia 21 de setembro de 2016, pelas 16h, a ETAR de Areias de São Vicente – Barcelos, verificou-se nos afluentes as características seguintes: CBO: 287 mg O2/L à entrada e 124 mg/O2/L à saída (56,79%); CQO: 689 mg O2/L à entrada e 411 mg O2/L à saída (40,35%); SST: 310 mg O2/L à entrada e 310 mg O2/L à salda (0%). Não foi essa a matéria que levou o tribunal recorrido a manter a condenação efetuada pela autoridade administrativa, mas sim a restante matéria dada como provada constante dos quadros relativos aos anos de 2015 e 2016.

Ora, essa matéria de que a arguida também era acusada constava já da decisão proferida pela autoridade administrativa IGAMAOT, pelo que não se pode de forma alguma considerar ter existido violação do princípio da separação dos poderes, pois o tribunal recorrido apreciou essa matéria de que a arguida também era acusada e deu-a por provada.

Essa matéria fazia parte do objeto do processo, a que o tribunal recorrido cabia dar resposta.

Por último e relativamente à invocada violação do princípio da não autoincriminação, também falece razão o douto recurso apresentado.

A arguida entende que foi violado o princípio da não autoincriminação previsto no artigo 32.º, n.º 10 da CRP.

Antes de mais, diga-se que o nº 10 desse artigo constitucional o que prevê é que “Nos processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”.

Como bem salienta a ilustre Magistrada do Ministério Público na 1ª Instância “Como é conhecido, o direito à não autoincriminação, reconhecido no ordenamento jurídico penal português, embora sem consagração constitucional expressa - ainda que geralmente acomodado nas garantias processuais consagradas nos artigos 20.º, n.º 4, e 32º números 2 e 8, da CRP - afirma-se no princípio mais geral de que nenhum arguido deve ser coagido a colaborar com a justiça nos casos em que é incriminado. Exprime-se, desde logo, no direito ao silêncio e têm incidência material numa tripla dimensão: o direito de o arguido não prestar declarações sobre os factos que lhe sejam imputados; o direito de não ter que entregar documentos ou outros elementos de prova e o direito de não ter que atuar de determinadas formas (por exemplo, indicar o local onde aqueles elementos se encontrem ou a identidade e a localização de quaisquer testemunhas).

Ora, qualquer que seja a concreta densidade processual penal do direito à não autoincriminação e mesmo admitindo que é invocável no direito sancionatório não penal - o que, face ao teor nitidamente restritivo do n.º 10 do artigo 32º da CRP, só como hipótese de trabalho se pondera - é seguro afirmar que a factualidade de que o pretende concretamente extrair o não permitiria.

Em primeiro lugar porque estavam em causa relatórios que estava obrigada a produzir regulamente e entregar à Agência Portuguesa do Ambiente, entidade pública encarregada de controlar as condições de descarga das águas residuais que a recorrente tinha obrigação de tratar, nas condições estabelecidas na Licença que tinha obtido para o efeito - cf. n.º 4 e 14 da Condições Específicas da Licença. Depois, porque esses documentos foram entregues voluntariamente pela recorrente às Senhoras Inspetoras do IGAMAOT no decurso do procedimento, que, de qualquer outra forma, a eles poderiam aceder”.

Efetivamente como resulta da Licença de Utilização dos Recursos Hídricos – Rejeição de Águas Residuais relativa à ETAR de Areias de S. Vicente, no seu Capítulo “Condições Específicas” consta expressamente no artigo 13º que “O titular da licença obriga-se a implementar o programa o programa de autocontrolo descrito no Anexo e a enviar à Entidade Licenciadora os dados obtidos com o formato e periodicidade definidos no mesmo, sendo que por força do artigo 14º “O titular obriga-se a manter um registo atualizado dos valores do autocontrolo, para efeitos de inspeção ou fiscalização por parte das entidades competentes, conforme o modelo apresentado em Anexo”.

Por sua vez, desse Anexo consta que “os resultados do programa de autocontrolo, bem como as cópias dos boletins analíticos deverão ser reportados à Entidade Licenciadora com uma periodicidade trimestral”.  

Não há deste modo qualquer violação do princípio da não autoincriminação, pelo facto da entidade administrativa ter obtido tais documentos, a que a arguida estava, por força do Licenciamento, obrigada a enviar e a conservar.

Improcede assim in totum a pretensão da arguida.”

b) Apreciação

8. Vem, pois, a recorrente “ADB - Águas de Barcelos, SA” interpor recurso do acórdão da Relação que, em recurso, confirmou decisão do tribunal de primeira instância que julgou improcedente a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa em processo de contraordenação apresentada por “ADB - Águas de Barcelos, SA”, com a manutenção da condenação desta na coima de 24.000,00 € (vinte e quatro mil euros), pela prática de uma contraordenação ambiental muito grave prevista e punível nos termos das disposições conjugadas dos artigos 81.º, n.º 3, al. c), do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31-05, que estabelece o regime da utilização dos recursos hídricos, e 22.º, n.º 4, al. b), da Lei n.º 50/2006, de 29-08, que aprova a lei-quadro das contraordenações ambientais.

Há que, antes de mais, apreciar e decidir da admissibilidade do recurso, conhecendo-se, assim, também, da questão prévia suscitada pelo Ministério Público neste Supremo Tribunal de justiça.

9. A recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça, em processo penal, é definida pelo artigo 432.º do Código de Processo Penal, nos seguintes termos:

1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;

d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.

2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º”.

10. A decisão recorrida foi proferida pela Relação em recurso de decisão de um processo de contraordenação, cujo regime é definido pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, que estabelece o regime geral das contraordenações (adiante RGCO).

Resulta dos artigos 73.º, n.º 1, e 75.º, n.º 1, do RGCO, que, em processo de contraordenação, a Relação conhece apenas da matéria de direito, não cabendo recurso das respetivas decisões.

Com efeito, vigorando, no direito das contraordenações o princípio da irrecorribilidade das decisões, a competência para a impugnação judicial das decisões das autoridades administrativas, salvo exceções que não interessa aqui observar, pertence exclusivamente aos tribunais de 1.ª instância, que decidem definitivamente, se não se verificarem as situações previstas no artigo 73.º, n.ºs 1, 2 e 3, do RGCO, em que é admissível recurso para a Relação.

11. No entanto, nos termos do disposto no artigo 75.º n.º 1, do acórdão da Relação não cabe recurso, o que implica a respetiva definitividade, sendo nessa instância que terão de ser decididas todas as questões; por isso, em nenhuma circunstância seria admissível recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça.

Porém, a recorrente ADB - Águas de Barcelos, SA sustentando que a referida norma do artigo 75.º do RGCO “(…) se refere ao recurso ordinário e, não ao recurso extraordinário.” (cfr. ponto 25 do segmento expositivo da motivação de recurso), lança mão do recurso de revista excecional, previsto no artigo 672.º do CPC, invocando, como fundamento, estar em causa questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito, e estarem ainda em causa interesses de particular relevância social, enquadrados, respetivamente, nas alíneas a) e b) do n.º 1 do referido dispositivo legal, que considera aplicável por força do disposto no artigo 4.º do CPP.

Desta perspetiva, a aplicação do CPC resultaria de uma dupla remissão (dupla subsidiariedade) efetuada pelo artigo 41.º do RGCO, segundo o qual sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal, e do artigo 4.º do CPP, que estabelece que, nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, se observam as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.

12. Aceitando que o que está em causa só em processo de revista pode ser atendido, pretende o recorrente lançar mão do regime da revista excecional, próprio do processo civil.

Pretende, assim, ver aplicado o artigo 672.º, n.º 1, al. a) e b), do CPC, por força do artigo 4.º do CPP.

Como se extrai diretamente da letra do preceito, em conjugação com o artigo 671.º, o artigo 672.º do CPC visa “atenuar os efeitos da regra geral consagrada no n.º 3 do artigo 671.º da inadmissibilidade de recurso de revista em situações de dupla conforme introduzindo exceções justificadas pela necessidade de tutela interesses de ordem social ou jurídica, neste caso ligados à melhor aplicação do direito ou à segurança e estabilidade na interpretação normativa” (assim, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Almedina, 2020, p. 430).  “A admissão da revista excecional pressupõe, portanto, a existência de dupla conforme; ou, dito de outra forma, a dupla conforme impede o recurso de revista, salvo se for excecionalmente admitida”, sendo necessário que se verifiquem os requisitos gerais de admissibilidade do recurso de revista (Maria dos Prazeres Beleza, Restrições à admissibilidade do recurso de revista e revista excecional, a Revista, Supremo Tribunal de justiça, n.º 1, 2022, pp.27 e 35).

Dispõe o artigo 672.º que:

«1 - Excecionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando:

a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b) Estejam em causa interesses de particular relevância social; (…)».

A aplicação do artigo 4.º do CPP, na convocação das normas do processo civil, pressupõe, na sua formulação, que a falta de previsão, no processo penal, dos casos excecionais de recorribilidade, previstos no n.º 1, alíneas. a) e b) do artigo 672.º do CPC, constitui uma lacuna.

13. Constitui jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça a de que nem o artigo 400.º do CPP, nem o artigo 75.º, n.º 1, do RGCO necessitam de integração, nem entram em contradição com qualquer outra norma do ordenamento processual penal, sendo de afastar a presença de lacuna da lei ou de regulamentação ou de lacuna decorrente de contradição normativa. No sentido de inexistência de lacuna e de não aplicação da revista excecional em matéria penal, pronunciaram-se, nomeadamente, na jurisprudência mais recente, os acórdãos do STJ, de 06-10-2016, Proc. n.º 535/13.5JACBR.C1.S1 (Nuno Gomes da Silva), de 04-12-2019, Proc. n.º 354/13.9IDAVR.P2.S1 (Manuel Augusto de Matos), de 12-01-2022, Proc. n.º 3519/16.8T8LLE.E1.S1 (Ana Barata Brito) e de 18-05-2022, Proc. n.º 48/17.6GCALM.L1-A.S1 (Conceição Gomes), e, em matéria contraordenacional o acórdão de 07-01-2016, Proc. n.º 204/13.6YUSTR.L1-A.S1 (Isabel Pais Martins), todos publicados in www.dgsi.pt.

A jurisprudência deste Tribunal tem insistido na afirmação da autonomia e completude do regime de recursos em processo penal, assumido pelo legislador, que, com o CPP de 1987, deixou de ser dependente do regime de recursos em processo civil, como antes, no CPP de 1929, acontecia.

Expendeu-se, a este propósito, no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 9/2005, de 11-10-2005 (publicado no DR, I-A Série, de 06-12-2005):

“O regime de recursos em processo penal, tanto na definição do modelo como nas concretizações no que respeita a pressupostos, à repartição de competências pelos tribunais de recurso, aos modos de decisão do recurso e aos respectivos prazos de interposição, está construído numa perspectiva de autonomia processual, que o legislador pretende própria do processo penal e adequada às finalidades de interesse público a cuja realização está vinculado.

O regime de recursos em processo penal, tributário e dependente do recurso em processo civil no Código de Processo Penal de 1929 (CPP/29), autonomizou-se com o Código de Processo Penal de 1987 (CPP/87), constituindo actualmente um regime próprio e privativo do processo penal, tanto nas modalidades de recursos como no modo e prazos de interposição, cognição do tribunal de recurso, composição do tribunal e forma de julgamento.

No CPP/29, o recurso em processo penal seguia a forma do processo civil, sendo processado e julgado como o agravo de petição em matéria cível (artigo 649.º do CPP/29); não existia, então, como regra, regulamentação própria e autónoma, privativa do processo penal.

A autonomização do modelo de recursos constituiu mesmo um dos momentos de reordenamento do processo penal no CPP/87. A lei de autorização legislativa (Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro), que concedeu autorização para a aprovação de um novo Código de Processo Penal, definiu expressamente como objectivo a construção de um modelo, que se pretendia completo, desde a concepção das fases do processo até aos termos processuais da reapreciação das decisões na concretização da exigência - que é de natureza processual penal no plano dos direitos fundamentais - de um duplo grau de jurisdição. A lei consagrou imposições determinantes no que respeitava ao regime de recursos, apontando para uma perspectiva autónoma e para uma regulação completa.

Os pontos 70 a 75 do n.º 2 do artigo 2.º da lei de autorização (sentido e extensão), referidos especificamente às orientações fundamentais em matéria de recursos, impunham, decisivamente, a construção de um modelo com autonomia, desligado da tradição da referência aos recursos em processo civil.

Por seu lado, a nota preambular do CPP/87, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, qualifica o regime de recursos como «inovador», estabelecido na perspectiva da obtenção de um amplo efeito («potenciar a economia processual numa óptica de celeridade e eficiência e, ao mesmo tempo, emprestar efectividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico»), assim autonomizado como modelo próprio para realizar finalidades específicas do processo penal.

A intenção e a autonomia do modelo mantêm-se após a reformulação do regime de recursos na reforma de 1998 (Lei n.º 58/98, de 25 de Agosto), a formulação reguladora das diversas modulações nos recursos (tribunal singular, tribunal colectivo e tribunal do júri; matéria de facto e matéria de direito; tribunais da relação e Supremo Tribunal de Justiça; oralidade e audiência no tribunal de recurso) continua a constituir um sistema com regras próprias e específicas do processo penal (cf. a exposição de motivos da proposta de lei n.º 157/VII, n.os 15 e 16).

A autonomia do modelo e das soluções processuais que contempla coloca-o a par dos regimes de recursos de outras modalidades de processo, independente e com vocação de completude, com soluções que pretendem responder, por inteiro e sem espaços vazios, às diversas hipóteses que prevê.

Não obstante alguma proximidade ou «analogia semântica» nos nomina de designação entre as categorias de recursos (uma «civil processualização» do recurso em processo penal, como refere Damião da Cunha, in Caso Julgado Parcial, 2002, a pp. 528 e 529), a similitude não se verifica, no rigor das coisas, no plano da regulamentação e no modo operativo; nem o recurso em processo penal para o Tribunal da Relação constituiu uma apelação em processo civil, como o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça constitui, mais que um recurso de revista (revision), uma espécie autónoma de revista (revista alargada) em que o poder de cognição se estende a importantes domínios atinentes ao complexo material ainda pertencente ao âmbito - alargado - da matéria de facto.”

14. Esta autonomia, completude e autossuficiência evidencia-se quanto aos recursos ordinários e aos recursos extraordinários. No essencial, e na sua preordenação à realização de finalidades próprias do processo penal, diversas das do processo civil, o regime do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, incluindo a oposição de julgados, o recurso contra jurisprudência fixada e o recurso no interesse da unidade do direito (artigos 437.º-448.º do CPP), abrangem boa parte dos casos a que, no processo civil, se refere o n.º 1 do artigo 672.º do CPC, não sendo identificável uma lacuna relativamente às situações elencadas nas alíneas a) e b) deste preceito, respeitantes à “relevância jurídica” ou à “relevância social” da questão objeto do recurso (assim, Helena Moniz, A autonomia dos recursos em processo penal (a revista excecional e outros institutos do processo civil), a Revista, STJ, n.º 2, https://arevista.stj.pt/?page_id=1078).

15. Ao que vem de se dizer acrescem ainda, no mesmo sentido, razões de ordem constitucional relativas ao recurso, também garantido no processo de contraordenação (artigo 32.º, n.ºs 1 e 10, da Constituição).

16. Como se tem assinalado (cfr. acórdão de 1.3.2023, Proc. 685/10.0GDTVD.L2.S1, em www.dgsi.pt), o regime de recursos em processo penal efetiva, de forma adequada, a garantia do duplo grau de jurisdição, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição (cfr. Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed., 2007, Vol. I, p. 516), enquanto componente do direito de defesa em processo penal (por todos, os acórdãos do Tribunal Constitucional 64/2006, 659/2011 e 290/2014; neste sentido também, entre outros, o acórdão de 15.02.2023, Proc. 1964/21.6JAPRT.P1.S1, cit., e a jurisprudência nele mencionada, bem como o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 14/2013, n.ºs 11 e 12, de 09.10.2013, DR 1.ª série, de 12.11.2013), reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos (artigo 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e artigo 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais).

Em «jurisprudência ampla, sucessiva e reiterada», vem o Tribunal Constitucional reafirmando que o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição «não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição» ou de «um duplo grau de recurso», em relação a quaisquer decisões condenatórias. Citando o recente acórdão n.º 57/2022: «(…) não decorre do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição o direito a um triplo grau de jurisdição em matéria penal, dispondo o legislador de liberdade de conformação na definição dos casos em que se justifica o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça (ver, entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 189/2001, 336/2001, 369/2001, 49/2003, 377/2003, 495/2003 e 102/2004, acessíveis, assim como os demais adiante citados, a partir da ligação http://www.tribunalconstitucional.pt), posto que os critérios consagrados não se revelem arbitrários, desrazoáveis ou desproporcionados. Acresce que este Tribunal tem também reiteradamente entendido não ser arbitrário, nem manifestamente infundado, reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada (cfr., entre outros, os acórdãos n.º 189/2001, 451/2003, 495/2003, 640/2004, 255/2005, 64/2006, 140/2006, 487/2006, 682/2006, 645/2009, e 174/2010).»

Como foi decidido no acórdão do TC n.º 377/2003, do art.º 20.º, n.º 1, da Constituição (acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva), que o recorrente expressamente invoca, “não resulta que os interessados tenham de ter assegurados todos os graus de recurso abstratamente configuráveis ou um direito irrestrito ao recurso”; “o direito de recurso conta-se entre “todas as garantias de defesa” conferidas pelo art.º 32.º, n.º 1 da CRP. Todavia, no domínio do processo penal, esse direito ao recurso basta-se com a existência de um duplo grau de jurisdição.”

Assim, também desta perspetiva não se identifica qualquer lacuna que devesse apelar à aplicação das regras do recurso em processo civil.

17. Do exposto se conclui assim que a decisão recorrida não admite recurso de revista excecional, motivo pelo qual tem de ser rejeitado.

Dispõe o artigo 420.º, n.º 1, al. b), do CPP que o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão, de acordo com n.º 2 do artigo 414.º, segundo o qual o recurso não é admitido quando, entre outros motivos, a decisão for irrecorrível.

18. Não sendo o recurso admissível, não cumpre conhecer das questões suscitadas pelo recorrente, o que fica prejudicado.


III - Decisão

19. Pelo exposto, decide-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça rejeitar o recurso interposto pelo arguido “ADB - Águas de Barcelos, SA”.

Nos termos do artigo 420.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, condena-se a recorrente na importância de 4 UC.


Supremo Tribunal de Justiça, 4 de maio de 2023.


José Luís Lopes da Mota (relator)

Paulo Ferreira da Cunha

Maria Teresa Féria de Almeida