Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
96/14.8TBSPS.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
ALCOOLEMIA
NEXO DE CAUSALIDADE
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
ÓNUS DA PROVA
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
SEGURADORA
SEGURO OBRIGATÓRIO
Data do Acordão: 11/24/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DOS SEGUROS - SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS / ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Doutrina:
- Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, 500-501.
- Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, 214.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 346.º, 349.º, 351.º, 563.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 607.º, N.º4, 662.º, N.º1, 663.º, N.º2, 674.º, N.º 3, 682.º, N.ºS 1, 2 E 3.
DEC.-LEI N.º 522/85, DE 31-12: - ARTIGO 19.º, AL. B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 01/07/2004, PROCESSO N.º 04B1536, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 07/05/2014, PROCESSO N.º 1253/07.9TVLSB.L2.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 09/07/2014, PROCESSO N.º 5395/08.5TBLRA.C1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 09/10/2014, PROCESSO N.º 582/11.1TBSTB.E1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 25/11/2014, PROCESSO N.º 6629/04. 0TBBRG.G1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .

*

ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA (AUJ) N.º 6/2002, DE 28/05/2002, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, 1.ª SÉRIE-A, DE 18/07/2002
Sumário :
I. No caso vertente, o que está em causa é saber se, no juízo probatório de não verificação do nexo de causalidade entre a alcoolemia revelada pelo R. e a produção do acidente, o tribunal a quo errou ao não lançar mão de presunções judiciais resultantes dos factos provados, o que convoca a questão de saber em que medida é que ao tribunal de revista cabe tal sindicância.

II. A matéria respeitante ao nexo de causalidade adequada, adotada no artigo 563.º do CC, envolve duas componentes: uma, de feição naturalística, respeitante ao nexo entre o facto-condição e o resultado por ele provocado; outra, de alcance estritamente normativo, tendente a saber se esse facto, em abstrato, é causa adequada daquele resultado.

III. Assim, enquanto que a componente naturalística, abarcando a fixação dos factos e a sua valoração probatória, escapa à sindicância do tribunal de revista, nos termos dos artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 1 e 2, do CPC, já a vertente normativa é passível de apreciação por este tribunal.

IV. No que respeita à competência do tribunal de revista para sindicar o uso de presunções judiciais pelas instâncias, tem vindo a entender-se, embora com alguma controvérsia, que o STJ só pode sindicar tal matéria quando o uso (ou não uso) de tais presunções seja suscetível de ofender qualquer norma legal, possa padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados.

V. Porém, não obstantes as considerações argumentativas da Recorrente em sede das regras da experiência comum e das evidências científicas, quanto aos efeitos da alcoolemia e à sua eventual incidência na concreta atuação do condutor, cuja apreciação compete às instâncias, não se divisa que o raciocínio desenvolvido pela Relação subjacente à reapreciação do impugnado ponto 19 dos factos provados na sentença tenha violado os parâmetros legais dos artigos 349.º e 351.º do CC ou, inclusivamente, enferme de manifesta ilogicidade, em termos de permitir a sua censura por este tribunal de revista.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. AA - Companhia de Seguros, S.A. (A.), intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, em 07/04/2014, contra BB (R.), a pedir a condenação deste a pagar-lhes as quantias de € 94.151,16, relativa a indemnizações e regularizações de um sinistro automóvel, e de € 1.444,51, a título de juros de mora, desde a interpelação do R. até à data da propositura da presente ação, perfazendo o total de € 95.595,67, acrescida de juros legais sobre a 1.ª daquelas quantias, desde essa propositura até efetivo pagamento.

Alega, para tanto, no essencial, que:

. A A. celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, relativamente ao veículo pesado de mercadorias com a matrícula ...-...-QV, com efeitos a partir de 08/05/2007;

. No dia 28/09/2007, ocorreu um acidente de viação que envolveu o referido veículo e um motociclo, o qual se deveu a culpa do R., condutor do pesado;

. O R. conduzia, além do mais, com uma taxa de alcoolemia de 0,75 grs/l, razão pela qual seguia desatento e em estado de euforia, invadindo a hemi-faixa de rodagem contrária, por onde circulava o motociclo, sem ter tido possibilidade de evitar o embate no pesado;

. Em consequência do acidente, a A. pagou as indemnizações em que foi condenada por sentenças transitadas em julgado, tendo ainda suportado despesas de peritagem, custas judiciais e honorários, no total do valor de capital peticionado;

. Assiste, por isso, à A. o direito a ser reembolsado desse valor, a título de regresso, nos termos do art.º 19.º, alínea c) do Regime do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel aprovado pelo Dec.-Lei n.º 522/85, de 31-12, conjugado com o art.º 81.º do CE, então em vigor;

. Para tal efeito, a A. interpelou o R. por cartas datadas de 15/11/ 2013, 06/01/2014 e 10/02/2014, mas este persiste no incumprimento dessa obrigação. 

2. O R. contestou, excecionando a prescrição e defendendo, em sede impugnativa, no sentido do acidente não se dever a culpa sua, pugnando pela respetiva absolvição do pedido.

3. Findo os articulados, realizou-se audiência prévia, no decurso da qual, após fixação do valor da causa em € 95.595,67, foi proferido despacho saneador a julgar improcedente a exceção de prescrição deduzida, procedendo-se, de seguida à identificação do objeto do litígio e à fixação dos temas da prova.

4. Realizada a audiência final, foi proferido a sentença de fls. 212-216/v.º, datada de 17/11/2015, a julgar a ação totalmente procedente, condenando o R. a pagar à A. a quantia de € 95.595,76, acrescida de juros, à taxa legal, sobre o montante de € 94.151,16, desde a data da instauração da ação (07/04/2014) até efetivo pagamento.

5. Inconformado com tal decisão, o R. apelou dela para o Tribunal da Relação de Coimbra, impugnando quer a decisão de improcedência da prescrição proferida no saneador, quer a decisão final em sede de facto e de direito, tendo sido proferido o acórdão de fls. 267-285, datado de 17/05/ 2016, no qual foi julgado improcedente o recurso no tocante à matéria da prescrição e, no mais, alterados alguns dos pontos da decisão de facto impugnados e revogada a decisão recorrida com a absolvição do R. dos pedidos. 

6. Desta feita, inconformada, a R. recorreu de revista, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - A Recorrente “AA” intentou o presente recurso por entender que o tribunal “a quo” não efetuou uma correta aplicação do direito, designadamente ao concluir pela falta do nexo de causalidade exigido pelo artigo 19.º, alínea c), do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31/10, e, consequentemente, pela improcedência da ação, absolvendo o R. do pedido contra si formulado;

2.ª -          Com efeito, da factualidade provada resulta que foi o R. quem, de modo exclusivo, deu causa ao acidente, não só por ter invadido a hemifaixa de rodagem destinada ao trânsito de veículos em sentido contrário, mas também por ter conduzido sob o efeito de álcool, acusando uma TAS de 0,75 gramas/litro, tendo, pois, ficado demonstrado o nexo de casualidade exigido entre a influência do álcool e o acidente;

3.ª - Em conformidade, o acórdão recorrido viola, por um lado, o disposto no artigo 19.º, alínea c), do Dec.-Lei n.° 522/85, de 31/12, e, por outro lado, o disposto nos artigos 349.º e 351.º ambos do CC, impondo-se, pois, a solução oposta;

4.ª - Importa salientar que, nos termos do disposto na alínea c) do artigo 19.º, do Dec.-Lei n.º 522/85 (em vigor à data do acidente) “Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso contra o condutor se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado”. A ação de regresso prevista neste normativo não é uma ação de indemnização por danos, mas sim uma ação em que a seguradora exige o reembolso do que pagou, porque o risco que contratualmente assumiu não se compadece com os comportamentos do segurado tipificados naquele texto legal (condutores que agem sob a influência do álcool);

5.ª - Relativamente aos efeitos da interferência do álcool nas capacidades e reflexos necessários à condução é fundamental termos presente os dados científicos que têm merecido a atenção da nossa doutrina e jurisprudência, sendo de referir a pretensão de alguma doutrina em fazer “funcionar” mesmo presunções judiciais automáticas (cfr. Prof. Sinde Monteiro, na anotação que fez ao Acórdão Unificador n.° 6/2002, nos Cadernos de Direito Privado, n.º 2, Abril/ Junho de 2003, pág. 52);

6.ª - Apreciando o caso concreto dos autos, facilmente se depreende que, o acidente ocorreu por culpa exclusiva do R. e por o mesmo se encontrar alcoolizado. Com efeito, o condutor alcoolizado, ora R., saiu da hemifaixa de rodagem por onde circulava, invadindo a hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito de veículos em sentido contrário, ou seja, por onde seguia o motociclo TL, sendo certo que foi dado como provado que o “local onde ocorreu o acidente, a estrada tem uma ligeira curvatura, com boa visibilidade e ligeira inclinação descendente, atento o sentido Castro Daire/S. Pedro do Sul", "o tráfego está assinalado com sinais de perigo A2 (lomba), B9a e B9b (entroncamentos), C14a (proibição de ultrapassar), semáforos limitadores de velocidade a 50 km/hora e sinais de informação H7 (passagem para peões), implantados em cada um dos sentidos da EN 228”, “a faixa de rodagem tem 5,30 metros de largura” e “à data do sinistro, o piso em asfalto, encontrava-se em bom estado de conservação”;

7.ª - Atenta a matéria de facto provada, nomeadamente no que à dinâmica do acidente diz respeito:

“11.º O condutor do motociclo circulava prestando atenção à condução e ao trânsito no local - 13.° PI;

12.º - Ao acercar-se do local onde veio a ocorrer o acidente, o condutor do TL viu que o condutor do QV, de forma abruta, com o objetivo de mudar de direção à sua direita, para a freguesia de Sul, antes do entroncamento para essa localidade, infletiu a direção do QV para a sua esquerda, de modo a ganhar ângulo para fazer tal manobra de uma única vez - 14.° e 15.° PI;

13.ª - Considerando a largura da faixa de rodagem e o comprimento do veículo pesado QV (3,5 metros), o réu obstruiu com a viatura que conduzia parte da faixa de rodagem por onde circulava o motociclo TL -16.° PI;

14.ª - Após, guinou novamente o QV para a sua direita, para voltar à sua hemi-faixa de rodagem e continuar a efetuar a manobra -18.° PI;

15.º - O condutor do motociclo TL, ao deparar com o veículo conduzido pelo réu a invadir a sua faixa de rodagem, tentou evitar a colisão frontal, desviando-se para a sua esquerda e eixo da via -19.° PI;

16.º - Porém, face à manobra do réu referida em 14, e a curta distância entre os dois veículos, o condutor do motociclo desviou a marcha do seu veículo para a sua direita para, desse modo, passar peia esquerda do QV e evitar o embate - 21.° e 22° PI;

17.º - O que não foi possível, uma vez que o QV ainda obstruía a hemi-faixa de rodagem por onde circulava o TL, tendo ocorrido o choque do TL com o vértice da traseira da caixa de carga, junto ao para-choques, do veículo QV - 23.° PI;

18.ª - Face ao choque do motociclo no canto esquerdo da caixa de carga do QV, o motociclo e o seu condutor foram projetados para a berma direita, em empedrado, que ladeia a EN 228 naquele local - 24.° PI;

19.º - O condutor do QV que não prestou a devida atenção ao trânsito e não dominou a marcha do veículo que conduzia de forma a evitar a colisão, circulava no momento dessa colisão com uma TAS de 0,75 gm/litro."

8.ª – E ainda às circunstâncias em que o sinistro ocorreu, designadamente que:

- no “local onde ocorreu o acidente, a estrada tem uma ligeira curvatura, com boa visibilidade e ligeira inclinação descendente, atento o sentido Castro Daire/S. Pedro do Sul”;

- "o tráfego está assinalado com sinais de perigo A2 (lomba), B9a e B9b (entroncamentos), C14a (proibição de ultrapassar), semáforos limitadores de velocidade a 50 km/hora e sinais de informação H7 (passagem para peões), implantados em cada um dos sentidos da EN 228”;

- "a faixa de rodagem tem 5,30 metros de largura”;

- e “à data do sinistro, o piso em asfalto, encontrava-se em bom estado de conservação”;

9.ª - Formulando um juízo de prognose ulterior, impõe-se a conclusão de que a influência do álcool no sangue foi a causa efetiva e adequada da produção do acidente, já que não ocorreu qualquer razão minimamente justificativa de tal conduta;

10.ª - No próprio acórdão que ora se coloca em crise se refere que:

“face à dinâmica do acidente dada como provada, não restam dúvidas sobre a sua responsabilidade - culpa - na produção do acidente, porquanto invadiu a faixa de rodagem destinada aos veículos que circulassem em sentido contrário ao que levava, transpondo um traço longitudinal contínuo (manobra já de si proibida), sem atentar que dessa forma colocava em risco os veículos que circulava em sentido contrário, designadamente o motociclo tripulado pela vítima - o que deu origem ao acidente. Assim, e independentemente da prova, conseguida, do nexo de causalidade entre a ingestão do álcool e a produção do acidente, sempre se dirá ter ficado apurado que foi o réu quem deu causa ao acidente, pelo que assiste à autora o pretendido direito de regresso”;

11.ª - É, pois, de prever que se não fosse o efeito do álcool nesta condução, o acidente não teria ocorrido;

12.ª - Concluímos assim do exposto - e de acordo com a matéria de facto provada -, que o R. ingeriu bebidas alcoólicas em excesso, conduzindo com uma TAS de 0,75 g/l e que foi por causa desse facto - de conduzir embriagado - que não dominou a marcha do veículo automóvel matrícula QV que conduzia, dando origem ao acidente em apreço;

13.ª - O ónus da prova que incidia sobre a Recorrente relativamente aos pressupostos condicionadores do exercício do direito de regresso foi por si cumprido;

14.ª - Ficou provada a factualidade suficiente e inequívoca de que o sinistro ocorreu por única e exclusivamente culpa do Réu que conduzia em estado etilizado. Conjugando a taxa de alcoolemia registada pelo R. (de 0,75 g/l), com os dados científicos irrefutáveis quanto à interferência do álcool nas capacidades e reflexos na condução, com as regras da experiência e com a própria dinâmica do acidente, impõe-se concluir que o acidente dos autos resultou, em concreto, da condução automóvel empreendida pelo réu sob o efeito do álcool;

15.ª - Na sua definição legal, presunções judiciais são as ilações que o julgador tira de um facto conhecido (facto base da presunção) para afirmar um facto desconhecido (facto presumido) (artigo 349.º do CC), segundo as regras de experiência da vida, da normalidade, dos conhecimentos das várias disciplinas científicas, ou da lógica;

16.ª - Nos termos gerais do funcionamento da presunção judicial, cabia ao condutor do QV, ora R., ilidir a presunção mediante contraprova, demonstrando que intercederam outros factos, justificativos do acidente, de molde a criar dúvida no espírito do julgador, sobrepondo-se um decurso atípico dos acontecimentos ao curso normal decorrente da condução sob a influência de álcool (à qual está ínsita um grau elevado de probabilidade típica do nexo causal); porém, o R. não demonstrou a existência de quaisquer outros factos que pudessem contribuir para a ocorrência do acidente em apreço;

17.ª - Não obstante o AUJ n.º 6/2002, de 28/05/02 (DR. Nº 164-I-A, de 18.7.02), ter consagrado a orientação dominante, nomeadamente que é exigível para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool, o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente, tal assento foi tirado contra 10 votos de vencidos, que entendem que a prova do nexo de causalidade entre a condução sob a influência do álcool e o acidente será "verdadeira prova diabólica, na medida em que, na prática, é impossível" (declaração de voto do Cons. Araújo Barros); Cons. Garcia Marques votou o Acórdão, mas abriu logo uma janela: "corram às presunções simples, naturais, judiciais ou de experiência que os artigos 349.º e 351.º do CC consentem, porque está assente que a condução com TAS alta importa normalmente diminuição da aptidão para conduzir bem, com o consequente agravamento do risco de acidente" (Heitor Consciência, Sobre Acidentes de Viação e Seguro Automóvel - Leis, Doutrina e Jurisprudência; 3.ª edição, Almedina, pág. 24 e seguintes);

18.ª - No caso dos autos, os factos certos de que o julgador da 1.ª instância partiu (factos base da presunção) foram: a circunstância do condutor apresentar uma TAS de 0,75 g/l no momento do sinistro e a própria dinâmica do acidente - o condutor invadiu a hemi-faixa de rodagem destinada à circulação em sentido oposto, numa estrada que tem uma ligeira curvatura, com boa visibilidade, cujo piso é asfaltado e, à data do sinistro, se encontrava em bom estado de conservação. A partir desses factos certos concluiu o Tribunal de 1.ª Instância o facto incerto, ou desconhecido (facto presumido): o condutor não conseguiu controlar o veículo que conduzia, dando origem ao acidente em causa;

19.ª - Coloca-se a questão de saber em que termos é que uma presunção judicial ou "hominis" é idónea a fazer tal prova. Como tem sido defendido na doutrina, o nexo de causalidade não é um facto em si, diretamente demonstrável; ele há-de resultar, de forma indireta, da análise que se faça aos factos naturalisticamente apurados e da sua inteleção ontológica, no plano das probabilidades;

20.ª - A relação causal entre o excesso de álcool no sangue e o acidente não se demonstra de forma direta, percetivelmente, mas por presunções a partir do conjunto de circunstâncias concretas (acórdão do STJ, de 07/11/2006, disponível em www.dgsi.pt). Daí que o tribunal possa e deva tomar em consideração as presunções judiciais decorrentes da experiência comum e das evidências científicas quanto às consequências da ingestão de álcool na condução (acórdão da TRE, de 25.11.2009, também disponível em www.dgsi.pt);

21.ª - A jurisprudência já explicitou que “a vertente abstracta do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia na condução automóvel e o acidente deduz-se logicamente dos factos assentes sob a envolvência das regras da experiência científica e comum, segundo as quais, respetivamente, a ingestão de álcool, para além de certo limite desconcentra a inteligência e a vontade exigidas na condução automóvel, potenciando a verificação acrescida de acidentes de trânsito, e que já entre 0,5 e 0,8 gramas perturba os reflexos e a coordenação psicomotora e gera a lentidão dos tempos de reacção e um período de euforia" (acórdão do STJ, de 01.07.2004, processo n.º 04B1536, disponível em www.dgsi.pt);

22.ª - Segundo orientação pacífica da jurisprudência do STJ, é legítimo o recurso à utilização pelas instâncias de presunções judiciais em que através delas se obtém a prova do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente – conforme o acórdão do STJ de 07.06.2011, acessível em www.dgsi. pt., no qual se refere que "... se é certo que a mera prova da taxa de alcoolemia é insuficiente para se considerar provado o nexo de causalidade, isso não implica que, em termos de apreciação crítica dos factos relevantes, o juiz esteja impedido de os relacionar e de, reportando-se aos factos em apreço, pela forma como ocorreu determinado acidente e, em face da inexistência de outra explicação razoável, conclua por aquele nexo. Trata-se afinal de inferir factos desconhecidos a partir de factos conhecidos (artigo 349.º CC)”;

23.ª - Como se considera também no acórdão do STJ, de 07.04. 2011, "... é inteiramente lícito às instâncias servirem-se, nesta sede, de presunções judiciais ou naturais, nelas fundando as suas conclusões acerca das circunstâncias que conduziram ao acidente, em regras ou máximas de experiência, por essa via completando, articulando e interligando o que directamente decorre da livre valoração das provas «atomisticamente» produzidas em audiência”;

24.ª - Jorge Sinde Monteiro (Cadernos de Direito Privado, n.º 2, Abril-Junho de 2003, pp. 40-52), também defende que, atenta a dificuldade da prova direta da verificação de um nexo de causalidade entre o excesso de álcool e o facto (ação ou omissão), que diretamente desencadeou o acidente, se conseguirá alguma facilitação mediante o recurso a presunções judiciais;

25.ª - Será, pois, de concluir que o recurso pelo Tribunal de 1.ª Instância a presunções é lícito e deve ser utilizado;

26.ª - No entendimento da Recorrente, a Relação de Coimbra esteve mal ao considerar que a resposta dada ao nexo de causalidade, construída por presunção, “é desautorizar a exigência da prova concreta”, mais referindo que “não [se] pode afirmar que o acidente se tenha ficado a dever ao facto de o réu apresentar uma TAS de 0,75gm/litro, não sendo legalmente admissível ultrapassar esta impossibilidade de afirmação do nexo de causalidade com recurso a qualquer presunção judicial", violando, assim, grosseiramente, o disposto nos artigos 349.º e 351.º ambos do CC e o disposto no art.º 19.º, alínea c), do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31/12;

27.ª - Por tudo o exposto, o acórdão recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que, considerando a matéria de facto provada, julgue provado o nexo de causalidade exigido entre a influência do álcool e o acidente e julgue admissível o recurso a presunções judiciais para prova do nexo causal, procedendo a ação e condenando-se, consequentemente, o Réu no pedido.

7. Não foram apresentadas contra-alegações.

           

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II – Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, no que aqui releva, o objeto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do CPC.

Dentro desses parâmetros, o objeto do presente recurso, interposto pela A. incide unicamente sobre a questão de saber se o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento, sindicável em sede de revista, no domínio de presunções judiciais, ao concluir pela não verificação do nexo de causalidade entre a condução do R. sob influência do álcool e a produção do acidente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 19.º, alínea c), do Regime do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel aprovado pelo Dec.-Lei n.º 522/85, de 31-12, em vigor à data do acidente.  


III – Fundamentação   


1. Factualidade dada como provada pelas Instâncias


Vem dada como provada pelas instâncias a seguinte factualidade:

1.1. A autora (A.) é uma sociedade que se dedica à atividade seguradora – correspondente à matéria do art.º 1.º da petição inicial;

1.2 No exercício da sua atividade, a A. celebrou com “Entreposto Comercial CC, Ld.ª” o contrato de seguro, do ramo auto-móvel, titulado pela apólice n.º 310…, nos termos da qual, a partir de 08/05/2007, segurou a cobertura da responsabilidade civil emergente da circulação do veículo automóvel pesado de mercadorias de marca Toyota Dyna, com a matrícula ...-...-QV – correspondente à matéria do art.º 2.º da petição inicial;

1.3. No dia 28 de setembro de 2007, cerca das 17H15, o veículo seguro na A. interveio num acidente de viação, na estrada nacional 228 (EN 228), ao km. 19,800, na freguesia de São Félix, concelho de S. Pedro do Sul, com o motociclo de marca Kawasaki, com a matrícula …-…-TL, conduzido pelo seu proprietário, DD – correspondente à matéria do art.º 3.º da petição inicial;

1.4. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas, o veículo de matrícula ...-...-QV, propriedade de “EE - Veículos Sociedade de Aluguer, Lda”, segura na A., e conduzido pelo ora R. BB, circulava na EN 228 no sentido Castro Daire/S. Pedro do Sul – correspondente à matéria do art.º 4.º da petição inicial;

1.5. Por seu turno, o veículo de matrícula TL, conduzido por DD, seguia em sentido inverso, isto é, S. Pedro do Sul/Castro Daire – correspondente à matéria do art.º 5.º da petição inicial;

1.6. À data do sinistro, o piso, em asfalto, encontrava-se em bom estado de conservação – correspondente à matéria do art.º 6.º da petição inicial;

1.7. A faixa de rodagem tem 5,30 metros de largura, destinando-se aos dois sentidos de trânsito, encontrando-se dividida em duas hemi-faixas de rodagem, separadas por uma linha longitudinal contínua M1, destinando-se cada uma delas ao trânsito em um dos sentidos – correspondente à matéria dos artigos 7.º e 8.º da petição inicial;

1.8. O local caracteriza-se como uma localidade, com acesso direto a habitações e comércio – correspondente à matéria do art.º 9.º da petição inicial;

1.9. O tráfego está assinalado com sinais de perigo A2 (lomba), B9a e B9b (entroncamentos), C14a (proibição de ultrapassar), semáforos limitadores de velocidade a 50 kms/hora e sinais de informação H7 (passagem para peões), implantados em cada um dos sentidos da EN 228 – correspondente à matéria do art.º 10.º da petição inicial;

1.10. No local onde ocorreu o acidente, a estrada tem uma ligeira curvatura, com boa visibilidade e ligeira inclinação descendente, atento o sentido Castro Daire/S. Pedro do Sul e do veículo conduzido pelo R. – correspondente à matéria do art.º 11.º da petição inicial;

1.11. O condutor do motociclo circulava prestando atenção à condução e ao trânsito no local – correspondente à matéria do art.º 13.º da petição inicial;

1.12. Ao acercar-se do local onde veio a ocorrer o acidente, o condutor do TL viu que o condutor do QV, de forma abruta, com o objetivo de mudar de direção à sua direita, para a freguesia de Sul, antes do entroncamento para essa localidade, inflectiu a direcção do QV para a sua esquerda, de modo a ganhar ângulo para fazer tal manobra de uma única vez – correspondente à matéria dos artigos 14.º e 15.º da petição inicial;

1.13. Considerando a largura da faixa de rodagem e o comprimento do veículo pesado QV (3,5 metros), o R. obstruiu com a viatura que conduzia parte da faixa de rodagem por onde circulava o motociclo TL – correspondente à matéria do art.º 16.º da petição inicial;

1.14. Após, guinou novamente o QV para a sua direita, para voltar à sua hemi-faixa de rodagem e continuar a efetuar a manobra – correspondente à matéria do art.º 18.º da petição inicial;

1.15. O condutor do motociclo TL, ao deparar com o veículo conduzido pelo R. a invadir a sua faixa de rodagem, tentou evitar a colisão frontal, desviando-se para a sua esquerda e eixo da via – correspondente à matéria do art.º 19.º da petição inicial;

1.16. Porém, face à manobra do réu referida em 1.14, e a curta distância entre os dois veículos, o condutor do motociclo desviou a marcha do seu veículo para a sua direita para, desse modo, passar pela esquerda do QV e evitar o embate – correspondente à matéria dos artigos 21.º e 22.º da petição inicial;

1.17. O que não foi possível, uma vez que o QV ainda obstruía a hemi-faixa de rodagem por onde circulava o TL, tendo ocorrido o choque do TL com o vértice da traseira da caixa de carga, junto ao para-choques, do veículo QV – correspondente à matéria do art.º 23.º da petição inicial;

1.18. Face ao choque do motociclo no canto esquerdo da caixa de carga do QV, o motociclo e o seu condutor foram projetados para a berma direita, em empedrado, que ladeia a EN 228 naquele local – correspondente à matéria do art.º 24.º da petição inicial;

1.19. O condutor do QV, que não prestou a devida atenção ao trânsito e não dominou a marcha do veículo que conduzia de forma a evitar a colisão, circulava no momento dessa colisão com uma TAS de 0,75 gm/litro - matéria relacionada com os artigos 25.º, 26.º, 27.º, 49.º e 52.º da petição inicia1, alterada restritivamente pela Relação (fls. 282);

1.20. Em consequência do embate, o condutor do motociclo TL sofreu, entre outras lesões, traumatismo do ombro esquerdo com fratura da clavícula, úmero e omoplata, do membro inferior esquerdo, com fratura dos ossos da perna, da mão esquerda e antebraço esquerdo, tendo sido conduzido pela ambulância do INEM ao Hospital de S. Pedro do Sul, e daí transferido, face à gravidade das lesões, para o Hospital de S. Teotónio, em Viseu – correspondente à matéria do art.º 32.º da petição inicial;

1.21. O condutor do motociclo esteve internado durante 41 dias no HST, onde foi submetido a várias operações cirúrgicas com colocação de osteossíntese no braço e perna esquerda, e efetuou tratamentos de fisioterapia durante um longo período – correspondente à matéria do art.º 33.º da petição inicial;

1.22. Em resultado do acidente, o condutor do TL sofreu incapacidades temporárias e permanentes, totais e parciais, gerais e profissionais, desde 28/09/2007 até 22/12/2008, e ficou com sequelas resultantes do acidente, que resultam numa IPP de 30+5 pontos – correspondente à matéria dos artigos 34.º e 35.º da petição inicial;

1.23. O motociclo TL sofreu danos na carenagem, peças e acessórios, cuja reparação foi orçamentada em € 6.638,00 – correspondente à matéria do art.º 36.º da petição inicial;

1.24. O capacete do sinistrado ficou danificado, não sendo suscetível de ser novamente utilizado – correspondente à matéria do art.º 37.º da petição inicial;

1.25. Em 30 de dezembro de 2008, o “Hospital de S. Teotónio de Viseu, EPE” intentou contra a autora uma ação declarativa de condenação para cobrança da quantia de € 4.461,09, acrescida de juros vincendos, correspondente às despesas com o internamento, intervenções cirúrgicas e tratamento médico na assistência ao condutor do veículo TL, DD, que correu termos no tribunal de S. Pedro do Sul com o n.º 440/08. 7TBSPS, tendo a ora A. sido condenada, em 29.05.2009, ao pagamento de € 4.631,31 ao ali autor – correspondente à matéria dos artigos 38.º e 39.º da petição inicial;

1.26. Em 7 de janeiro de 2010, o condutor do motociclo TL, DD, intentou ação contra a ora A., que correu os seus termos sob o n.º 13/10-4TBSPS, peticionando que esta fosse condenada a pagar, entre outras, as seguintes quantias: - € 30.000,00 a título de danos morais; - € 3.000,00 a título de danos biológicos; - € 6.638,00 a título de danos patrimoniais pela reparação do motociclo; e o que se viesse a liquidar em audiência de julgamento a título de danos patrimoniais futuros, nomeadamente pela perda de capacidade de ganho – correspondente à matéria do art.º 41.º da petição inicial;

1.27. Posteriormente, o condutor do motociclo apresentou incidente de liquidação relativo a danos patrimoniais futuros com a perda da capacidade de ganho, concluindo pelo pedido de condenação da ora A. a pagar-lhe, a esse título, a quantia de € 200.000,00 – correspondente à matéria do art.º 42.º da petição inicial;

1.28. Nesse processo foi proferida sentença a 11/10/2012, condenando a ora A. a pagar ao condutor do TL a quantia de € 75.820,80, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento sobre o montante de € 3.820,80, e desde a data da sentença até integral pagamento quanto ao remanescente – correspondente à matéria do art.º 43.º da petição inicial;

1.29. A A., tendo em conta as sentenças proferidas, pagou as quantias de € 4.631,31, em 05/08/2009, ao HST, EPE, e de € 76.651,27, em 22/01/2013, a DD – correspondente à matéria do art.º 47.º da petição inicial;

1.30. A A. despendeu ainda a quantia de € 12.868,58 com as despesas de peritagem, custas judiciais e honorários para regularização do sinistro – correspondente à matéria do art.º 48.º da petição inicial;

1.31. Face ao teor de álcool no sangue de que o R. era portador na altura do acidente, foi elaborado o auto de contra-ordenação n.º 25113420-2 – correspondente à matéria do art.º 50.º da petição inicial;

1.32. A A. interpelou o R. para lhe pagar a quantia em dívida por cartas datadas de 15/11/2013, 06/01/2013 e 10/02/2014 – correspondente à matéria do art.º 58.º da petição inicial.


2. Factos dados como não provados


Foi dado como não provado que:

2.1. O condutor do motociclo TI circulava a cerca de 40 km/hora – correspondente à matéria do art.º 12.º da petição inicial;

2.2. O R. se apercebeu que não teria tempo e espaço suficiente para fazer a manobra em virtude da aproximação do motociclo TL, e tentou abortar a manobra – correspondente à matéria dos artigos 17.º e 18.º da petição inicial;

2.3. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas nos factos provados, o R. conduzia a viatura QV no respeito pelas regras e sinais de trânsito, com a prudência e atenção que lhe eram exigidas – correspondente à matéria do art.º 9.º da contestação;

2.4. O acidente ocorreu devido à condução desatenta e negligente do condutor do TL – correspondente à matéria do art.º 10.º da contestação;

2.5. O semáforo limitador de velocidade situado antes do cruzamento para a localidade de Sul estava desativado – correspondente à matéria dos artigos 13.º e 14.º da contestação;

2.6. No momento da passagem pelos sinais luminosos, o condutor do TL passou a circular pela faixa contrária ao seu sentido de marcha, vindo a embater com a frente do motociclo na parte lateral esquerda do QV – correspondente à matéria dos artigos 15.º e 16.º da contestação;

2.7. O local do embate entre as viaturas situa-se do lado direito da faixa de rodagem, atento o sentido castro Daire/S. Pedro do Sul – correspondente à matéria do art.º 20.º da contestação.


3. Do mérito do recurso


A presente ação tem por objeto a pretensão da A. na condenação do R. no pagamento das quantias indemnizatórias que satisfez, emergentes do acidente de viação em referência, ocorrido em 28/09/2007, em relação ao qual este R. foi considerado único culpado, a título de “direito de regresso”, nos termos da alínea b) do artigo 19.º do Regime do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 522/85, de 31-12, então em vigor, no segmento respeitante à condução sob influência do álcool. 


A 1.ª Instância, considerando aplicável ao caso o disposto no artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21/08, concluiu que, “independentemente da prova, conseguida, do nexo de causalidade entre a ingestão do álcool e a produção do acidente”, sempre se apurara “que foi o réu quem deu causa ao acidente, pelo que assiste à autora o pretendido direito de regresso”.


Por sua vez, o Tribunal da Relação, divergindo de tal entendimento, considerou que o acidente em causa ocorreu ainda sob a vigência do Dec.-Lei n.º 522/85 e que, segundo a alínea b) do respetivo artigo 19.º, no sentido adotado pelo AUJ n.º 6/2002, de 28/05/2002, publicado no Diário da República em 18/07/2002, competia à A. provar o sobredito nexo de causalidade.

Nessa base, tendo também procedido à alteração restritiva da matéria dada por provada no ponto 19 da sentença, concluiu pela não verificação de tal nexo de causalidade, revogando, por isso, a decisão da 1.ª instância e absolvendo o R. dos pedidos.


Porém, a A. ora Recorrente, embora aceitando a aplicação do disposto na alínea b) do citado artigo 19.º, vem sustentar, em síntese, que os factos provados se mostram suficientes para, com base neles e por via de presunção judicial, se estabelecer o mencionada nexo de causalidade, invocando o erro grosseiro, por parte da Relação, no uso dessas presunções em violação do disposto mormente nos artigos 349.º e 351.º do CC. Sustenta ainda a Recorrente que a dimensão do nexo de causalidade aqui em apreço e o sobredito erro grosseiro no uso das presunções judiciais cabe nos poderes de sindicância deste tribunal de revista.


Vejamos


Em primeira linha, convém reter que, tal como foi decidido no acórdão recorrido, atenta a data do acidente em 28/09/2007, é aplicável ao caso o disposto na alínea b) do artigo 19.º do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31-12, o qual foi entretanto revogado pelo Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21-08, mas que só entrou em vigor 60 dias após a sua publicação (art.º 95.º deste diploma).

E segundo aquele normativo, no que aqui releva:

Satisfeita a indemnização, a seguradora (…) tem direito de regresso:

b) – Contra o condutor, se este tiver (…) agido sob a influência do álcool (…) 

É por demais conhecida a controvérsia então suscitada, nesse âmbito, de resto bem documentada no acórdão recorrido, quanto a saber se, para o exercício daquele direito, por parte da seguradora, bastava provar que o condutor exercia a condução com uma taxa de alcoolemia superior à admitida por lei, ou se, para além disso, seria necessária a prova do nexo de causalidade entre tal alcoolemia e a produção do acidente e, neste caso, sobre quem recaía o respetivo ónus de prova.

Tal controvérsia acabou por ser resolvida através do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) n.º 6/2002, de 28/05/2002, publicado no Diário da República, 1.ª Série-A, de 18/07/2002, no sentido de que:

«A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.»

Não obstante, a polémica suscitada na prolação desse aresto, bem espelhada nos votos de vencido, o certo é que constitui jurisprudência firmada que importa aqui acatar.


Posteriormente, o Dec.Lei n.º 522/85 foi revogado pelo Dec.Lei n.º 291/2007, de 21-08, cujo artigo 27.º, n.º 1, no que aqui interessa, prescreve que:

Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros (…) tem direito de regresso:

c) – Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida (…)

Como se refere no acórdão recorrido, ante o entendimento jurisprudencial anteriormente perfilhado, esta alteração legislativa aponta no sentido de que o exercício do direito de regresso pela seguradora não depende agora da verificação do nexo de causalidade adequada entre a alcoolemia e o acidente[1], o que constitui uma inovação em relação à lei anterior, não podendo, por isso, ser tida com lei interpretativa, de aplicação retroativa.


Posto isto, o que aqui se coloca é saber se, à luz do disposto na alínea b) do artigo 19.º do Dec.-Lei n.º 522/85 acima transcrita e face aos factos provados, é licito concluir, em sede de revista, pela verificação do referido nexo de causalidade.


Ora, a matéria respeitante ao nexo de causalidade adequada, como tal designada pela doutrina e tida como adotada no artigo 563.º do CC, envolve duas componentes: uma, de feição naturalística, respeitante ao nexo entre o facto-condição e o resultado por ele provocado; outra, de alcance estritamente normativo, tendente a saber se esse facto, em abstrato, é causa adequada daquele resultado[2].

Como, mais precisamente, se refere no acórdão do STJ, de 01/07/ 2004, proferido no processo n.º 04B1536[3]:

«(…) por um lado, no processo causal conducente a um acidente concorrem múltiplas circunstâncias, umas que se não tivessem ocorrido ele não teria eclodido, e outras que, mesmo não verificadas, não excluiriam a sua ocorrência.

E, por outro, não ser suficiente que o estado de alcoolemia (…) tenha sido condição conditio sine qua non do acidente, exigindo-se que ela seja adequada em abstracto a causá-lo.

      ………………………………………………………………

   Decorrentemente, o juízo sobre a causalidade integra, por um lado, matéria de facto, certo que se trata de saber se, na sequência de determinada dinâmica factual, um ou outro facto funcionou efectivamente como condição desencadeadora de determinado efeito.

   E, por outro, matéria de direito, designadamente a determinação, no plano geral e abstracto, se aquela condição foi ou não causa adequada do evento, ou seja, dada a sua natureza, era ou não indiferente para a sua verificação.»

Assim, enquanto que a componente naturalística, abarcando a fixação dos factos e a sua valoração probatória, escapa à sindicância do tribunal de revista, nos termos dos artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 1 e 2, do CPC, já a vertente normativa é passível de apreciação por este tribunal[4].


Sucede que o que aqui se discute é saber se, no juízo probatório de não verificação do nexo de causalidade entre a alcoolemia revelada pelo R. e a produção do acidente, o Tribunal da Relação errou ao não lançar mão de presunções judiciais resultantes dos factos provados, o que convoca também a questão de saber em que medida é que cabe ao tribunal de revista fazer tal sindicância.

Neste domínio, como correntemente tem sido entendido pela doutrina e pela jurisprudência, as presunções judiciais não se reconduzem a um meio de prova próprio, consistindo antes em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos de base da presunção) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos), nos termos do artigo 349.º do CC. A presunção centra-se, pois, num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência[5]. Tais presunções judiciais são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal, conforme o disposto no artigo 351.º do mesmo Código.

Hoje, face à competência alargada da Relação em sede da impugnação da decisão de facto, em conformidade com o preceituado no n.º 1 do artigo 662.º do CPC, é lícito à 2.ª instância, com base na prova produzida constante dos autos, reequacionar a avaliação probatória feita pela 1.ª instância, nomeadamente no domínio das presunções judiciais, nos termos do n.º 4 do artigo 607.º, aplicável por via do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo Código. Já em sede de revista, a sindicância sobre a decisão de facto das instâncias em matéria de presunções judiciais é muito circunscrita. Com efeito, nos termos do artigo 682.º, n.º 1 e 2, do CPC, ao STJ incumbe aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixado pelas instâncias, não podendo alterar a decisão de facto, a não ser no caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º ou de ampliação dessa decisão de facto ao abrigo do n.º 3 do indicado artigo 682.º.

Por sua vez, no domínio do erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, segundo o preceituado no n.º 3 do artigo 674.º, a revista só pode ter por fundamento “a ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe força de determinado meio de provas”. E, como já foi anteriormente dito, no que respeita, às presunções judiciais tem-se admitido, ainda que com alguma controvérsia, que o STJ só pode sindicar o uso de tais presunções pela Relação se este uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados[6].

Poderá assim ser sindicável em sede de revista o uso de presunções judiciais quando a lei o não admita, por violação, por exemplo, do artigo 351.º do CC, ou, quando admitindo-o, tal uso (ou não uso) ocorra fora do condicionalismo legal traçado no artigo 349.º do mesmo Código, que exige a prova de um facto de base ou instrumental e a ilação a partir dele de um facto essencial presumido.

Relativamente ao erro sobre a substância do juízo presuntivo formado com apelo às regras da experiência, o mesmo só será sindicável pelo tribunal de revista em casos de manifesta ilogicidade. Para tanto, importa que da decisão de facto ou porventura da respetiva motivação constem os factos instrumentais a partir dos quais o tribunal tenha extraído ilações em sede dos factos essenciais, nos termos dos artigos 349.º do CC e 607.º, n.º 4, do CPC, de forma a se poder, desse modo, aferir a ocorrência da sobredita ilogicidade. Mas está vedado ao tribunal de revista a indagação do erro intrínseco à própria apreciação crítica das provas produzidas em regime de prova livre.

No caso vertente, a 1.ª instância deu como provado, sob o ponto 19 da factualidade consignada na sentença, por referência à matéria alegada nos artigos 25.º, 26.º, 27.º, 49.º e 52.º da petição inicia1, o seguinte:

O condutor do QV conduzia sem prestar a devida atenção ao trânsito e sem ter o domínio da marcha do veículo que conduzia, devido ao estado de embriaguez em que se encontrava (sendo portador de uma TAS de 0,75 gramas/litro) e que influenciou a sua condução, reduzindo-lhe o grau de vigilância na condução e do campo visual, bem como ao facto de se encontrar com os reflexos alterados.

Significa isto ter dado como provado o nexo causal entre a alcoolemia de que o R. era portador e a produção do acidente.

E fundamentou tal segmento decisório nas circunstâncias de local e tempo em que o acidente ocorreu, bem como na sua dinâmica, considerando que:

«Destes elementos, e da visibilidade existente no local por todos afirmada, se extrai o estado de distração em que conduziu o R., sendo facto notório os efeitos adversos do álcool na atenção, reflexos e confiança na condução, que se deram por provados.»

        

Porém, tendo essa matéria sido impugnada na apelação interposta pelo R., o Tribunal da Relação, analisando criticamente a motivação da 1.ª instância, considerou o seguinte:

«Já quanto ao ponto 19 dos factos provados é absolutamente seguro considerar que o condutor do veiculo QV conduzia com uma TAS de 0,75 g/litro, da mesma forma que resulta verificável e verificado que o mesmo conduzia sem a necessária atenção e, bem assim, que não dominou o veículo por si conduzido, como podia e devia, de forma a ter evitado a colisão.

Sem embargo, não cremos que a prova forneça elementos de consideração e convicção para que se possa afirmar que foi a TAS, apelidada na resposta de “estado de embriaguez” que determinou a redução da atenção, do campo visual, do estado de vigilância, da qualidade dos reflexos e do domínio da viatura.

Podendo o estado de embriaguez em sentido técnico, isto é, quando a TAS registada foi superior a 0.50, estar associada a todos esses sintomas reproduzidos na resposta, não cremos que possa minimamente, no caso concreto, motivar-se por fundamentação a resposta que foi dada em qualquer elemento probatório, excepto o próprio registo da TAS.

Mas este registo não traz consigo, não comporta, qualquer presunção de verificação de tudo aquilo a que ela anda associada, importando que se tivesse provado a relação entre o estado medido através de instrumento próprio e a produção do acidente, relação que não poderia ser uma qualquer mas que teria de ser aquela através da qual se pudesse afirmar que o sinistro tinha ocorrido por causa do estado de alcoolémia em que o condutor se encontrava.

Observe-se, neste sentido, que na motivação desta resposta dada o tribunal recorrido limitou-se a fazer constar que “Destes elementos, e da visibilidade existente no local por todos afirmada, se extrai o estado de distracção em que conduzia o réu, sendo facto notório os efeitos adversos do álcool na atenção, reflexos e confiança na condução, que se deram por provados (à semelhança do que foi assente nos outros processos).”.

Na análise desta fundamentação resulta inequívoco que o nexo de causalidade que na resposta se estabeleceu foi construído por presunção, reclamando-se ser notório os efeitos adversos da ingestão de álcool, e atribuindo por força dessa notoriedade e nada mais, todos os efeitos que se deram por provados, tais como falta de atenção/distracção e confiança na condução, exclusivamente a esse estado de alcoolémia.

Porém, afirmá-lo dessa forma é desautorizar a exigência de prova concreta e não presumida (e ainda mais presumida por protestada notoriedade) para se dar por demonstrado o nexo de causalidade.

Significativo é apontar que nem o agente da autoridade que registou a ocorrência e submeteu a exame de despistagem de álcool no sangue se referiu a qualquer estado de alteração de qualquer das faculdades do réu, da mesma forma que os elementos de prova objectivos que remetem para a dinâmica do acidente não revelam neles mesmos qualquer indício que, segundo as regras de experiência comum, pudesse ser atribuído a quem visivelmente tivesse alteradas as suas faculdades de atenção, visão, reflexos ou domínio psicomotor devidas à ingestão de álcool.

Nestes termos o que se afirma na fundamentação da resposta ao ponto 19 da matéria de facto é que por ser notório, não no réu em concreto e naquele momento, mas no geral e abstracto, que a ingestão de álcool pode provocar alterações psicomotoras a quem tenha bebido, sempre que se seja registada uma TAS superior à legal, automaticamente se tem por concluído que o acidente resultou, causalmente desse registo de TAS.

Deste modo, embora podendo ser-se sugestionado pelo facto de o entendimento legal haver mudado, de forma a que hoje não se exige tal nexo de causalidade bastando para o direito de regresso vingar que se demonstre existir TAS superior à legal, sendo ainda mais significativo que a lei que produziu esta alteração tem data anterior à do acidente descrito nos autos, embora só tenha entrado em vigor, escassos dias depois, a verdade é que no rigor da aplicação dos normativos e interpretação dos elementos probatórios não podemos considerar, minimamente, que se tenha feito prova de que a causa do acidente resultou da TAS que o réu apresentava ou que essa TAS tenha influenciado decisivamente as condições psicomotoras do réu de forma a fundar-se nelas a produção do sinistro.

E isto mesmo é confirmado pela motivação dessa resposta quando nenhum elemento de prova concreto, para lá do registo da TAS, é apresentado como fundador da convicção.»

Nessa base, decidiu alterar aquele facto dado como provado pela 1.ª instância, no sentido de considerar provado apenas que:

“O condutor do QV que não prestou a devida atenção ao trânsito e não dominou a marcha do veículo que conduzia de forma a evitar a colisão, circulava no momento dessa colisão com uma TAS de 0,75 gm/litro.”

Em suma, o Tribunal da Relação, analisando a motivação dada pela 1.ª instância, no trecho acima transcrito, considerou como inequívoco que o juízo probatório sobre o nexo de causalidade ali afirmado fora “construído” por presunção, baseada apenas numa pretensa notoriedade dos efeitos adversos da ingestão de álcool e que todos os efeitos que se deram por provados, tais como falta de atenção/distracção e confiança na condução, se reportam exclusivamente a esse estado de alcoolemia.

Ademais teve como significativo o facto de nem o agente da autoridade que registou a ocorrência e submeteu o R. a exame de despistagem de álcool no sangue se referiu a qualquer estado de alteração de qualquer das faculdades daquele, da mesma forma que os elementos de prova objetivos que remetem para a dinâmica do acidente não revelam neles mesmos qualquer indício que, segundo as regras de experiência comum, pudesse ser atribuído a quem visivelmente tivesse alteradas as suas faculdades de atenção, visão, reflexos ou domínio psicomotor devidas à ingestão de álcool.

A isto, o Recorrente contrapõe que as circunstâncias de tempo e local em que ocorreu o acidente, bem como a dinâmica deste, explicitadas nas conclusões acima transcritas, à luz da experiência comum e das evidências científicas quanto às consequências da ingestão de álcool na condução, fazem presumir o alegado nexo de causalidade.

A este propósito, argumenta que, conforme jurisprudência citada, “a vertente abstrata do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia na condução automóvel e o acidente deduz-se logicamente dos factos assentes sob a envolvência das regras da experiência científica e comum, segundo as quais, respetivamente, a ingestão de álcool, para além de certo limite desconcentra a inteligência e a vontade exigidas na condução automóvel, potenciando a verificação acrescida de acidentes de trânsito, e que já entre 0,5 e 0,8 gramas perturba os reflexos e a coordenação psicomotora e gera a lentidão dos tempos de reação e um período de euforia”. E acrescenta que que «se é certo que a mera prova da taxa de alcoolemia é insuficiente para se considerar provado o nexo de causalidade, isso não implica que, em ter-mos de apreciação crítica dos factos relevantes, o juiz esteja impedido de os relacionar e de, reportando-se aos factos em apreço, pela forma como ocorreu determinado acidente e, em face da inexistência de outra explicação razoável, conclua por aquele nexo.»

Com efeito, foi o que fizeram as instâncias, ainda que em sentido divergente: a 1.ª instância, inferindo das circunstâncias do acidente e da taxa de alcoolemia que esta era causal do acidente; a Relação, considerando que tais circunstâncias eram insuficientes para extrair, por si só, tal efeito daquela taxa de alcoolemia.

Estamos, assim, em sede da componente naturalística do nexo de causalidade sustentada em presunções judiciais e não propriamente no tocante a saber se a referida taxa de alcoolemia é, em abstrato, idónea a provocar o resultado produzido.     

Nesse contexto, o acórdão recorrido não afasta a hipótese de se poder lançar mão de presunções judiciais, não violando, portanto, o disposto no artigo 351.º do CC. O que ali se considerou foi que as circunstâncias do acidente, por si só, não ofereciam base factual suficiente para presumir a ilação extraída pelo tribunal da 1.ª instância, ou seja, para concluir que a falta de atenção falta de atenção/distração e confiança na condução, por parte do R. decorressem do seu estado de alcoolemia.

Trata-se, por conseguinte, de um juízo de facto em sede de valoração da prova livre que não cabe a este tribunal de revista sindicar, nos termos do n.º 3 do artigo 674.º do CPC.

Por outro lado, não obstantes as considerações argumentativas da Recorrente em sede das regras da experiência comum e das evidências científicas, quanto aos efeitos da alcoolemia e à sua eventual incidência na concreta atuação do condutor, cuja apreciação compete às instâncias, não se divisa que o raciocínio desenvolvido pela Relação subjacente à reapreciação do impugnado ponto 19 dos factos provados na sentença enferme de manifesta ilogicidade em termos de permitir a sua censura por este tribunal de revista, com base em violação do disposto no artigo 349.º do CC.

Nem procede também o argumento de que, face à prova produzida pela A., competia ao R. o ónus da respetiva contraprova. Com efeito, nos termos doutrinados pelo AUJ n.º 6/2002, é sobre a A. que recai o ónus de provar o nexo de causalidade, restando ao R. opor contraprova a respeito desse facto de modo a torná-lo duvidoso e, se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova, nos termos do artigo 346.º do CC. Não há, pois, aqui, qualquer inversão legal do ónus da prova, sendo a contraprova ponderada em sede da própria valoração concreta do facto a provar.

Assim, fixada como está pela Relação, em termos restritivos, a matéria constante do ponto 1.19 da factualidade provada, não resta senão concluir, em sede de direito, pela não verificação do nexo de causalidade como pressuposto indispensável ao exercício do direito de regresso, por parte da A., nos termos e para os efeitos da alínea b) do artigo 19.º do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31-12.


IV - Decisão


Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.


As custas do recursos ficam a cargo da A./Recorrente.

Lisboa, 24 de novembro de 2016

Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

                           

Carlos Alberto Andrade Bettencourt de Faria 

_______________
[1] Vide, a este propósito, entre outros, o acórdão do STJ, de 09/10/2014, relatado pelo Juiz Cons. Fernando Bento, no processo n.º 582/11.1TBSTB.E1.S1, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[2] Vide, a este propósito, o acórdão do STJ, de 09/07/2014, relatado pelo Juiz Cons. Fernando do Vale, no processo n.º 5395/08.5TBLRA.C1.S1, entre outros ali citados, disponível na Internet – http://www.dgsi. pt/jstj.
[3] Relatado pelo Juiz Cons. Salvador da Costa, disponível na Internet – http://www.dgsi. pt/jstj.
[4] Vide, entre muitos outros, o acórdão do STJ, de 07/05/2014, relatado pelo Juiz Cons. Gabriel Catarino, no processo n.º 1253/07.9TVLSB.L2.S1, disponível na Internet – http://www.dgsi. pt/jstj.
[5] Sobre a noção de prova por presunção vide, por todos, Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, p. 214, e Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, pp. 500-501.  
[6] Neste sentido, vide, entre outros, o acórdão do STJ, de 25/11/2014, proferido no processo n.º 6629/04. 0TBBRG.G1.S1, relatado por Pinto de Almeida, acessível na Internet – http://www.dgsi. pt/stj.