Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
341/18.0T8ABT.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE PARTILHA
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
CONTRATO-PROMESSA
VALIDADE
CASAMENTO
DIVÓRCIO
RECONCILIAÇÃO
BENS COMUNS DO CASAL
PRINCÍPIO DA IMUTABILIDADE
REGIME DE BENS
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
COMPORTAMENTO CONCLUDENTE
ATO INÚTIL
INTERPELAÇÃO
CITAÇÃO
MORA
CONHECIMENTO OFICIOSO
MATÉRIA DE DIREITO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
CONHECIMENTO PREJUDICADO
Data do Acordão: 10/07/2020
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA DA RÉ. PROCEDENTE A REVISTA DO AUTOR
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - É válido o contrato-promessa de partilha de bens comuns do casal outorgado na pendência da ação de divórcio, para produzir efeitos depois do divórcio, no qual seja assegurada a paridade entre os cônjuges na divisão dos bens comuns, nos termos do art. 1730.º, n.º 1, do CC.

II - A apreciação oficiosa de questões de direito, nos termos do art. 5.º, n.º 3, do CPC, deve fazer-se no quadro dos factos que sejam atendíveis, face ao disposto nos n.os 1 e 2 do mesmo artigo, e sempre com respeito pelo que tenha sido anteriormente decidido e não tenha sido impugnado pela parte interessada (art. 635.º, n.º 5).

III - A circunstância de os cônjuges outorgantes do contrato-promessa de partilha de bens comuns do casal terem contraído, entretanto, novo casamento entre ambos não determina, por si, a ineficácia ou qualquer outra forma de extinção daquele contrato-promessa, mantendo este as suas virtualidades enquanto instrumento jurídico que, uma vez executado, permite apurar quais os bens atribuídos a cada um dos cônjuges e que no segundo casamento são de considerar como bens próprios de cada um.

IV - Verificando-se que no contrato-promessa não foi fixado prazo essencial para a celebração do contrato prometido, nem foi indicado qual dos outorgantes (que entretanto se reconciliaram e voltaram a casar) ficaria incumbido de diligenciar pela realização da escritura pública de partilha, a inércia de ambos na outorga do contrato prometido não configura uma situação de incumprimento imputável a qualquer deles.

V - Instaurado processo de inventário para partilha dos bens comuns (na sequência do segundo divórcio), a invocação pela ré, interessada nesse inventário, da nulidade do contrato-promessa de partilha referido em I., com fundamento na violação das regras da imutabilidade do regime de bens (art. 1714.º, n.º 1) e da paridade na sua repartição (art. 1730.º, n.º 1), revela, de forma concludente, a vontade de não cumprir aquele contrato, satisfazendo uma das condições (o incumprimento-mora) previstas no art. 830.º, n.º 1, do CC, para a procedência do pedido de execução específica.

VI - Perante as divergências manifestadas pela ré promitente de forma tão solene relativamente à validade e aos efeitos do contrato-promessa de partilha, a exigência da sua prévia interpelação para a outorga da escritura pública de partilha, como condição para o exercício do direito de execução específica, revelar-se-ia um ato desnecessário e, além disso, inútil.

VII - Ainda que assim não fosse, a citação da ré para a presente ação (que visa a declaração de validade do contrato e a sua execução específica) instaurada pelo autor pelo facto de no referido processo de inventário ter sido determinada a remessa dos interessados para os meios comuns, para discussão da validade e efeitos do contrato-promessa de partilha, sempre implicaria, nos termos do art. 805.º, n.º 1, do CC, a sua constituição em mora relativamente ao cumprimento de tal contrato, para efeitos de aplicação do regime da execução específica previsto no art. 830.º, n.º 1.

Decisão Texto Integral:
I – AA demandou BB em ação declarativa com processo comum, pedindo, a título principal, que se declarasse válido o contrato-promessa de partilha celebrado com a R., em 16-4-91, e operasse a sua execução específica, com adjudicação ao A. as frações nele descritas e realização dos respetivos registos prediais.

Alegou que, na perspetiva do decretamento do divórcio em processo que estava em curso, celebrou com a R., em 16-04-91, um contrato-promessa de partilha dos bens comuns, visando a futura partilha.

Do referido contrato-promessa consta, designadamente, que à R. seria adjudicada uma fração autónoma de um prédio urbano e ao A. duas frações autónomas de outro prédio urbano, liquidando o A. à R. a quantia de PTE …000$00 referente a bens que levaria a mais na partilha acordada, e assumindo ainda a responsabilidade pela liquidação do passivo resultante de empréstimo bancário hipotecário contraído pelo casal para aquisição dos imóveis que seriam adjudicados ao A., o qual também ali se comprometeu a liquidar as prestações que se fossem vencendo até à outorga da escritura definitiva de partilhas, tendo o A. procedido ao pagamento do montante de PTE …..$00 ao Montepio Geral por conta do empréstimo hipotecário.

O divórcio entre ambos foi decretado por sentença transitada em julgado em 24-1-92, mas a R. recusa-se a dar cumprimento ao contrato-promessa, declarando não pretender fazer a partilha nos termos ali acordados.

A R. contestou e alegou que o contrato-promessa é nulo por impossibilidade do objeto e por ofensa da regra da metade prevista no art. 1730° do CC. Invocou ainda a prescrição dos direitos emergentes do contrato-promessa, tendo em conta o período de tempo decorrido desde a sua outorga.

Foi proferida sentença que julgou a ação procedente e:

a) Declarou válido o contrato-promessa de compra de partilha outorgado entre o A. e a R. em 16-04-91;

b) Julgou procedente o pedido de execução específica do contrato-promessa de partilha e adjudicou ao A. a fração autónoma G, correspondente ao 1° andar para habitação, composto por 4 divisões assoalhadas, cozinha, duas casas de banho, hall e duas varandas, terraço e com uma divisão no sótão de 50 m2, matricialmente inscrito sob o art. 4407-G, da freguesia de S. ...... e descrito na CRP de ….. com o nº 00304-G e a fração autónoma E correspondente a garagem na cave, definida pelo nº 6 do mesmo prédio acima identificado, com a superfície coberta de 15 m2, inscrita sob o art. matricial 4407-E e descrito na CRP de …. com o nº 00304-E;

c) Autorizou a realização, pelas partes, dos respetivos registos prediais, designadamente a aquisição do A. em consequência da adjudicação em partilha.

A R. interpôs recurso de apelação que a Relação julgou parcialmente procedente: confirmou a sentença que declarou válido o contrato-promessa de partilha, mas revogou-a na parte em que declarou o incumprimento do contrato-promessa por parte da R. e fez operar a sua execução específica.

A R. interpôs recurso de revista excecional (relativamente ao segmento do acórdão que considerou válido o contrato) concluiu que:

1. O acórdão sufragou o entendimento da 1ª instância de que o contrato promessa de partilha celebrado com as partes no estado de casados não era nulo, dado que o mesmo respeitava a regra da metade prevista no art. 1730º do CC, o objeto do contrato era determinado ou determinável e estava subordinado à condição suspensiva do decretamento do divórcio;

2. Esta posição está em contradição com o Ac. do STJ, de 26-5-93 – recurso nº 83628 – no qual se decidiu que o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultante da lei, abrange não só as cláusulas constantes das convenções ou as normas do regime legalmente fixado, relativas à administração ou dissipação de bens, mas também a situação concreta dos bens dos cônjuges que interessa à relação entre eles e, daí, não poderem os cônjuges realizar entre si contratos-promessa enquanto não se acharem divorciados;

3. Tal posição está em contradição com o decidido no Ac. do STJ, de 2-2-93 – Recurso nº 82337 – no qual se decidiu que a partilha entre cônjuges dos bens comuns do casal, na pendência do matrimónio, a não ser nos casos especiais previstos na lei, é um ato que está fora da disponibilidade das partes;

4. Está igualmente em contradição com o Ac. da Rel. de Lisboa, de 9-12-93, no qual se decidiu que é nulo o contrato-promessa de partilha dos bens do casal, celebrado pelos cônjuges, por ofender a amplitude da imutabilidade dos regimes de bens matrimoniais;

5. E também em contradição com o decidido no Ac. da Rel. de Lisboa, de 21-3-96 – Recurso nº 1474/6/95, no qual se defendeu que é nulo o contrato-promessa de partilha celebrado entre cônjuges tendo em vista futuro divórcio de ambos;

6. Sendo que, na constância do matrimónio não são permitidas nem a partilha, nem a promessa de partilha dos bens do casal, ainda que esta última seja para cumprir depois de dissolvido o casamento, a violação da proibição de os cônjuges celebrarem entre si negócios jurídicos que possam alterar o regime de bens do casamento acarreta a nulidade dos negócios celebrados;

7. O acórdão recorrido, ao aderir à tese da 1ª instância, viola o princípio da imutabilidade do regime de bens a que alude o art. 1714º do CC e contraria os arts. 410º, 1714º, 1717º e 1720º, do CC, devendo ser declarada a nulidade do contrato-promessa em causa nos autos.


O A. interpôs recurso de revista relativamente ao segmento do acórdão que julgou improcedente o pedido de execução específica do contrato-promessa de partilha, alegando, no essencial, que:

1º) O direito à meação no acervo patrimonial de matrimónio dissolvido por divórcio pertence, respetivamente, a cada um dos ex-cônjuges, como bem próprio seu, em novo casamento que venha depois a celebrar, ainda que com o seu anterior cônjuge, sob o regime da comunhão de adquiridos, porquanto não se preenche a hipótese legal do art. 1724º, al. b), do CC, senão que a do art. 1722º, nº 1, al. a), visto que não constitui bem adquirido, a título oneroso, na constância do casamento, mas bem adquirido antes do casamento, jamais podendo qualificar-se como bem comum, ainda que o novo casamento seja contraído pelos mesmos cônjuges do primeiro;

2º) Uma obrigação subordinada a um prazo, contratualmente estipulado, para o respetivo cumprimento, no caso de não ser cumprida, constitui ipso factum o devedor em mora, sem necessidade de interpelação, a qual apenas tem cabimento se não tiver sido fixado prazo (sendo logicamente impossível que a obrigação com prazo se converta em obrigação sem prazo, só porque não foi cumprida dentro do prazo, o que, se fosse concebivelmente admissível, teria, com o benefício do infrator, um deletério efeito perverso em matéria de cumprimento e não cumprimento das obrigações);

3º) Num contrato-promessa bilateral de partilha subsequente a divórcio, que contém uma cláusula estipulando um determinado prazo para a outorga da escritura, decorrido que seja o prazo fixado, sem que tenha sido outorgada a escritura, não tendo sido convencionado um especial dever de promover a celebração da escritura, a cargo, exclusivamente, de uma só das partes, ambos os contraentes ficam constituídos em mora, pelo que qualquer deles poderá requerer, contra o outro, a execução específica do contrato, pois não é necessária prévia interpelação, dada a fixação do prazo certo que a execução coativa da prestação apenas pressupõe a existência de uma situação de mora no cumprimento, que já se verifica, por não ter sido observado o prazo fixado;

4º) Uma vez que os contraentes do contrato-promessa de partilha subsequente a divórcio, tempos após a dissolução do vínculo matrimonial pelo divórcio, celebraram entre si novo casamento, o prazo de prescrição suspendeu-se na data das suas segundas núpcias, só voltando a correr depois de dissolvido esse segundo matrimónio;

5º) Esteve, pois, esse prazo, que se iniciara no dia 20-2-92, suspenso entre as datas de 16-4-03 e de 4-7-13, pelo que as obrigações emergentes desse contrato-promessa só se viriam a extinguir, por prescrição, no dia 16-4-22.

Foi admitida a revista excecional interposta pela R., de modo que nada obsta a que se aprecie o mérito de ambos os recursos.

Cumpre decidir.


II - Factos provados:

1. O A. e a R. contraíram casamento, entre si, no dia …-4-83, sem convenção antenupcial.

2. No dia 16-04-91, o ora A. e a ora R. celebraram um contrato, que denominaram de «contrato promessa de partilhas», na perspetiva de um divórcio por mútuo consentimento, e tendo em vista a partilha após o divórcio, com as seguintes cláusulas:

“- Cláus. primeira:

Os outorgantes acabam de assinar a documentação necessária tendo em vista a decretação do divórcio por mútuo consentimento entre ambos;

- Cláus. segunda:

A relação dos bens do casal é a que consta do doc. nº 6 junto à petição de divórcio e cujo duplicado, devidamente assinado por ambos os outorgantes, fica fazendo parte integrante do presente acordo;

- Cláus. terceira:

Ambos acordam na divisão dos bens nos seguintes termos:

- À ora R. ficarão a caber os seguintes bens móveis, que se encontram já na sua posse, melhor identificados na cláus. 3.1-A do contrato-promessa junto aos autos, com a petição inicial, enquanto doc. nº 2;

- Cláus. quarta:

Os bens imóveis serão partilhados do seguinte modo:

- À ora R., ficará a caber e será adjudicado o imóvel indicado na relação em terceiro lugar, ou seja, a fração autónoma correspondente à letra «D» do imóvel inscrito sob o art. 4407-D, da freguesia de S. ......;

- Ao ora A. ficarão a pertencer e serão adjudicados os imóveis indicados em 1º e 2º lugar, a saber, as frações autónomas correspondentes às letras «G» e «E» do prédio urbano matricialmente inscrito sob o art. 4407, da freguesia de 5. ......;

- Cláus. quinta:

O ora A. liquidou, nesta data, à ora R., a quantia de ….000$00, pela qual esta lhe confere a correspondente a integral quitação, nada mais tendo a reclamar a este título, referente a bens de natureza imóvel que o primeiro levou a mais da partilha ora acordada;

- Cláus. sexta:

Em face da adjudicação acordada, o ora A. assume, nesta data, a responsabilidade total pela liquidação do passivo que, neste momento, ascende a ……….$00 resultante de empréstimo hipotecário contraído pelo casal na aquisição dos imóveis indicados em 1º e 2º lugar na relação dos bens imóveis, comprometendo-se expressamente a liquidar as prestações que se forem vencendo até à outorga da escritura definitiva de partilhas;

- Cláus. sétima:

A escritura terá lugar no prazo máximo de um mês após o trânsito em julgado da sentença que decrete o divórcio entre ambos, ou se por motivos registrais tal não foi possível, no prazo máximo de um mês após a conclusão do registo dos prédios a favor dos outorgantes;

- Cláusu. oitava:

Ambos os contraentes se declaram de boa-fé e se obrigam a assinar toda a documentação registral e notarial ou de qualquer outra espécie que se mostre necessária ao bom cumprimento do presente acordo”.

3. Os imóveis que seriam adjudicados, ao ora A. e que constam da Cláus. quatro do contrato-promessa aludido em 2., correspondem respetivamente à fração autónoma, designada pela letra «G», correspondente ao 1º andar para habitação, composto por 4 divisões assoalhadas (sala e 3 quartos), cozinha, duas casas de banho, hall e 2 varandas na frente, terraço na retaguarda com uma divisão no sótão com 50 m2, matricialmente inscrito sob o art. 4407-G da freguesia de 5, ...... e descrito na CRP de ……… com o n° 003U4-G, e à fração autónoma, designada pela letra «E», correspondente a garagem na cave, definida pela número seis, do mesmo prédio urbano acima identificado,   com a superfície coberta  de  15 m2, inscrito  sob o art. matricial 4407-E e descrito na CRP de …… com o nº 00304-E,

4. Por sentença proferida em 8-1-92, na ação de divórcio por mútuo consentimento nº 49/91 do Tribunal Judicial de …., transitada em julgado em 20-1-92, foi decretado o divórcio entre o A. e a R.

5. O ora A. tem residido na fração «G», identificada, ininterruptamente, desde 16-04-91, até ao momento,

6. As partes nunca celebraram a escritura de partilha referente ao contrato-promessa aludido, nem nenhuma delas promoveu ou diligenciou pela marcação da escritura, pese embora cada uma delas tenha começado, a seguir à celebração do contrato-promessa, a usar e a fruir exclusivamente dos bens que lhes haveriam de caber por partilha.

7. Ambas as partes, após o divórcio aludido, começaram a viver juntos, na mesma casa, tendo-se reconciliado.

8. A. e R. casaram novamente, entre si, em ..-4-03, mas divorciaram-se por sentença proferida pelo 3° Juízo do Tribunal Judicial de ……, em …-7-13, transitada em julgado em 19-9-13.


III – Decidindo:

1. Suscitam-se, no essencial, as seguintes questões:

- Apreciação da validade do contrato-promessa de partilha que as partes outorgaram na pendência do casamento, antes do seu primeiro divórcio.

- Verificação dos requisitos para o decretamento da execução específica do contrato-promessa de partilha, mais concretamente se houve incumprimento de ambos os contraentes;

- Verificar se o facto de estar na génese da presente ação a invocação da nulidade do contrato-promessa por parte da R. no processo de inventário cuja instância foi suspensa implica, por si, a verificação de uma situação de incumprimento do contrato por parte da R.;

- Ou, ao menos, se a citação da R. para a presente ação de execução específica do contrato-promessa implica a sua constituição em mora, para efeitos do art. 830º, nº 1, do CC.


2. Quanto à validade do contrato-promessa de partilha de bens comuns:

2.1. A R. veio alegar na contestação a nulidade do contrato-promessa de partilha outorgado com o A., por ter sido celebrado na pendência do primeiro casamento de ambos.

Tal ocorre mesmo depois de ter sido confrontado com decisões desfavoráveis das instâncias que, na linha da orientação jurisprudencial dominante, consideraram válido esse contrato, questão que apenas persiste pelo facto de ter sido admitida a revista excecional interposta pela R., nos termos do art. 672º, nº 2, al. c), do CPC.


2.2. Relativamente a bens indivisos, nada obsta, em princípio, a que seja outorgado um contrato-promessa de partilha mediante o qual os interessados se obrigam a outorgar a partilha mediante condições previamente acordadas. Tal corresponde a um dos reflexos da liberdade contratual que encontra também sustentação na norma geral do art. 410º, nº 1, do CC.

Tratando-se, no entanto, da partilha de bens comuns do casal, existem limitações específicas a tal princípio, a primeira das quais emerge do preceituado no art. 1714º, nº 1, do CC, que consagra a imutabilidade do regime de bens na pendência do casamento. A outra, a respeito do conteúdo do contrato, terá de ultrapassar as exigências previstas no art. 1730º, nº 1, do CC, norma que, visando prevenir acordos prejudiciais a qualquer dos cônjuges, consagra a regra segundo a qual, nos casamentos em que vigora um regime de comunhão, cada elemento deve participar em metade do ativo e do passivo.

Com tais limitações, o legislador pretendeu prevenir os riscos em que poderiam incorrer os cônjuges em posição de maior debilidade, evitando a produção de efeitos que traduzissem um desequilíbrio de prestações em resultado de algum desequilíbrio real nas relações ou de qualquer outro fator perturbador da livre determinação (v.g. chantagem, ascendente psicológico, etc.).

A partir da regra constante do art. 1714º, nº 1, do CC, suscitou-se uma primeira polémica em torno da validade do contrato-promessa de partilha celebrado ainda na pendência do casamento. Já a partir do preceituado no art. 1730º, nº 1, houve que apreciar uma outra questão em que a validade do contrato-promessa de partilha outorgado na vigência do casamento, ou mesmo depois da sua extinção pelo divórcio, se relaciona com o teor das cláusulas inseridas no contrato.

As dúvidas surgiram especialmente ao nível da jurisprudência, no confronto com uma diversidade de situações onde convergem aspetos de natureza subjetiva, ligados à posição de cada cônjuge, ou de ordem objetiva, atinentes ao conteúdo e alcance de determinadas cláusulas preparatórias da futura partilha dos bens.


2.3. A análise da jurisprudência acerca da validade de contratos-promessa de partilha de bens comuns do casal outorgados na vigência do casamento, máxime, antes do decretamento do divórcio, permite concluir que, depois de uma primeira fase em que prevaleceu a tese da invalidade, por violação do princípio da imutabilidade (v.g. Acs. do STJ, de 2-2-93, 082237, com sumário em www.dgsi.pt e texto em CJSTJ, t. I, p. 113, ou de 26-5-93, 083628, sumariado em www.dgsi.pt e texto em CJSTJ, t. II, p. 134), se consolidou na doutrina e na jurisprudência uma outra tendência no sentido da afirmação da validade de tais contratos, desde que a produção dos efeitos seja diferida para depois do divórcio e seja assegurado a cada um dos cônjuges o direito a prestações que correspondam sensivelmente a metade desse património.

A síntese da doutrina é feita por Esperança Mealha, em Acordos Conjugais para Partilha dos Bens Comuns, pp 94 e ss., com menção de Pereira Coelho, Guilherme e Oliveira, Nuno Salter Cid ou Rita Lobo Xavier. A evolução da jurisprudência é enunciada em Direito da Família, coord. de Clara Sottomayor, p. 385, e por Rute Teixeira Pedro, “Do exercício da autonomia privada na partilha do património comum do casal”, in Autonomia e heteronomia no Direito da Família e no Direito das Sucessões, pp. 359 e ss.

Exemplificativamente, decidiu-se no Ac. do STJ, 22-2-07, 07B312, www.dgsi.pt, que:

“1. O contrato promessa de partilha de bens, celebrado pelos cônjuges, no decurso da ação de divórcio, subordinado à condição suspensiva do decretamento do divórcio, é válido.

2. No entanto, o mesmo estará ferido de nulidade se violar a “regra da metade”, por atribuir a um dos cônjuges quotas de bens manifestamente desproporcionais relativamente ao outro”.

Esta solução já fora aplicada nos Acs. do STJ de 23-3-99, 99A121, e de 29-5-01, 01A3693, ambos em www.dgsi.pt, ou de 9-12-99, CJSTJ, t. III, p. 132, e foi seguida, depois, no Ac. do STJ, de 15-12-11, 2049/06, onde a nulidade do concreto contrato-promessa apenas foi reconhecida pelo facto de atribuir a um dos cônjuges prestações “manifestamente desproporcionais”.

Tratando-se de aspetos que variam em função de cada concreta relação e dos correspondentes litígios que surgem, podemos concluir que, por regra, os riscos que o legislador pretendeu evitar, especialmente através do que ficou consagrado nos arts. 1714º e 1730º do CC, se mostrarão ultrapassados quando, de modo cumulativo, os efeitos jurídico-patrimoniais projetados apenas se possam concretizar depois de cessada definitivamente a relação conjugal e, face ao teor do que foi convencionado, não exista motivo algum para afirmar que algum dos cônjuges venha a obter vantagens indevidas, ou seja, que mediante a promessa de partilha antes da extinção do casamento, algum dos cônjuges acabe por receber uma prestação excessiva relativamente ao que lhe seria devido por aplicação da regra constante do nº 1 do art. 1730º do CC.

Deste modo, em função daquele entendimento maioritário e atualizado, a que se adere, o que é relevante para a apreciação da nulidade ou validade de cada contrato-promessa de partilha é a observação do resultado que a sua execução diferida é suscetível de determinar para cada cônjuge, de modo que, se não houver motivos para pôr em causa a futura divisão paritária dos bens comuns, não existem fundamentos para afirmar a nulidade do contrato. Ou seja, se os elementos disponíveis permitirem antecipar que a partilha prometida respeita os referidos princípios que estruturam a relação conjugal, o contrato-promessa de partilha será válido.


2.4. No caso concreto, a matéria de facto é bastante reveladora no sentido do respeito pelos parâmetros legais.

Em primeiro lugar, consta do próprio contrato que o mesmo visou a produção de efeitos jurídicos apenas depois do divórcio que viria a ser decretado no processo que estava pendente.

Em segundo lugar, não existem elementos que permitam concluir que a partilha prometida belisque a regra que impõe a divisão paritária do ativo e do passivo, nos termos previstos no nº 1 do art. 730º do CC. Ao invés, o acordo estabelecido quanto à futura partilha, a operar depois do divórcio, revela que cabia ao A. adiantar à R. uma quantia reportada ao diferencial entre o valor de bens imobiliários, comprometendo-se ainda a liquidar o empréstimo hipotecário contraído por ambos para aquisição dos imóveis destinados ao A.

Ora, a par do teor do contrato, nada foi alegado pela R., nem resulta provado de qualquer modo pela observação dos elementos que constam dos autos, que aquele contrato-promessa de partilha importe para o A. prestações desproporcionais (excessivas) relativamente ao que lhe seria devido ou que tenha sido determinado por algum motivo obscuro que se tenha revelado prejudicial para a R.

A situação dos autos corresponde precisamente a uma das que foram configuradas como válidas por Guilherme de Oliveira, na RLJ 129º, p. 287 (“o contrato-promessa prevê quais são os bens que vão integrar cada uma das meações quando se fizer o contrato prometido, depois da dissolução do casamento”), levando-o a concluir que “supondo que respeita a regra da metade imposta pelo art. 1730º, e sendo certo que não se pretende uma integração imediata nas meações, mas antes uma integração diferida para depois do divórcio … o contrato-promessa é válido”., 

Neste contexto, em função da jurisprudência e doutrina atualizada, a que se adere, consideramos, tal como decidiram as instâncias, que não existe qualquer motivo para questionar a validade do referido contrato.

Deste modo improcede a revista excecional interposta pela R.


3. Quanto à execução específica do contrato-promessa de partilha:

3.1. Superada a discussão sobre a validade do contrato-promessa de partilha e incidindo sobre o recurso interposto pelo A., constatamos que a questão determinante gira em torno da verificação das condições materiais para ser declarada a execução específica de tal contrato, nos termos em que o A. o veio pedir na presente ação.

Sobressai das alegações do seu recurso de revista o inconformismo relativamente ao facto de a Relação ter concluído que claudicava o direito potestativo de execução específica por inverificação de uma situação de incumprimento (mora) da parte da R.

Para o efeito, a Relação considerou que o prazo fixado no contrato-promessa de partilha não era de natureza essencial e que a não outorga da escritura pública não podia ser imputada à R. Já o A. recorrente considera que se tratava de um prazo essencial para ambas as partes, de tal modo que, transcorrido o mesmo, ambos os outorgantes se constituíram em mora, nada obstando, por esse exclusivo motivo, à procedência da ação de execução específica.

O objeto do recurso de revista interposto pelo A. circunscreve-se, pois, à verificação, ou não, de uma situação de incumprimento do contrato-promessa por parte da R., por forma justificar o exercício da ação de execução específica.


3.2. É certo que a matéria de direito é de apreciação oficiosa, nos termos do art. 5º, nº, 3, do CPC. Todavia, a intervenção do Tribunal, mais a mais quando se trata de um tribunal de revista, como é este Supremo Tribunal de Justiça, não deixa de estar largamente condicionada pelo modo como as partes se defenderam ao longo do processo, sendo ainda delimitada pelo objeto de recurso tal como emerge das alegações do recorrente, nos termos do art. 635º do CPC.

A este respeito, verifica-se que a R. suscitou na contestação não apenas a questão da invalidade do contrato-promessa de partilha por violação da regra da imutabilidade do regime de bens e da paridade na divisão dos bens comuns (arts. 1714º, nº 1, e 1730º, nº 1, do CC), mas ainda a da nulidade do mesmo contrato por ser legalmente impossível, nos termos do art. 280º do CC, sustentando este último vício no facto de com a celebração do segundo casamento de ambos ter ocorrido a revogação tácita do contrato.

Mais concretamente a R. alegou que:

“8.º Como acima veio exposto, autor e ré, casaram em 1983, tendo-se divorciado em 1992, casando novamente em 2003 e divorciando-se desta feita em 2013.

9.º Ao casarem em 2003 novamente entre si, sem que tivessem realizado o contrato definitivo a que aludia o contrato-promessa, o autor e a ré, manifestaram claramente a sua intenção de que os bens ora em causa permanecessem no património comum.

10.º Integrando assim os bens no património comum do novo casal, por via do casamento de 2003, resulta claro que se torna impossível a realização do contrato promessa realizado, por manifesta alteração dos pressupostos que serviram de base ao mesmo.

11.º Após o casamento de 2003, os bens objeto do contrato de partilha ora em causa, já não existiam enquanto património de um casal em processo de divorcio, mas sim como património comum de um casal unido pelo matrimónio.

12.º Resulta assim claro que, nos termos do art. 280º do CC, o objeto do contrato-promessa é um objeto inexistente por legalmente impossível, tornando assim nulo o referido negócio jurídico, o que desde já se invoca.

13.º Termos em que se invoca a exceção perentória de nulidade do contrato por impossibilidade do objeto e, em consequência, ser a ré absolvida do pedido”.

Porém, a sentença de 1ª instância considerou improcedente a primeira causa de invalidade do contrato-promessa. Por seu lado, a Relação confirmou essa decisão e, suprindo a omissão de pronúncia por parte da 1ª instância, e acrescentou ainda que também improcedia a segunda causa de invalidade, nos termos seguintes:

“… não se pode afirmar, como faz a recorrente, que o objeto do contrato-promessa se tornou impossível por «alteração das circunstâncias», a saber, a celebração do segundo matrimónio, ou que o contrato-promessa perdeu o seu objeto, pois o direito á meação de cada um dos outorgantes (recorrente e recorrido) no património comum da primeira relação matrimonial não se extinguiu com a celebração do segundo matrimónio. Eventualmente, poderia ter ocorrido uma recíproca perda de interesse dos outorgantes na realização da partilha prometida, o que, todavia, não se confunde quer com a falta de objeto do negócio jurídico, quer coim a impossibilidade do objeto do negócio jurídico.

Em face do exposto, não procede a argumentação de que a «função do contrato-promessa deixou de ter cabimento por motivos estruturais, funcionais e até de valor teleológico» e que o «contrato-promessa se extinguiu por via da celebração de um segundo matrimónio»”.

Ora, no posterior recurso de revista a R. cingiu-se àquela primeira invalidade, com o resultado que já anteriormente se apreciou, omitindo qualquer referência às demais questões que suscitara na contestação ou a que aludira nas alegações de recurso de apelação (nulidade do contrato por impossibilidade legal, nos termos do art. 280º do CC, revogação tácita do contrato por via do segundo casamento, alteração das circunstâncias traduzidas no segundo casamento, extinção da condição a que alegadamente ficara sujeito o contrato-promessa de partilha por causa da celebração do segundo casamento).

Esta a primeira limitação quanto a uma eventual intervenção deste Supremo Tribunal que pudesse ser mais no art. 635º do CPC, designadamente o disposto no seu nº 5 (cf. Acs. do STJ, de 16-6-16, 623/05, e de 18-12-13, 1801/10, www.dgsi.pt).

Por certo que as referidas regras não impedem que sejam apreciadas questões de conhecimento oficioso, como ocorre com os casos de nulidade do contrato. Porém, essa e outras questões suscetíveis de interferir ex officio na resolução do litígio, nos termos do nº 3 do art. 5º do CPC, hão de resultar de factos que estejam acessíveis ao Tribunal, por resultarem da alegação das partes nos termos do seu nº 1, ou da sua consideração com base no seu nº 2.

Neste contexto, estamos confinados a apreciar se se verifica ou não uma situação de incumprimento da sua parte que a sujeite aos efeitos do direito potestativo de execução específica acionado pelo A.


3.3. A validade do contrato-promessa de partilha constitui obviamente um pressuposto sem o qual não pode ser deferida a respetiva execução específica. A par disso, é necessário a que tal efeito potestativo não se oponha a natureza da obrigação assumida pelos promitentes, nos termos da parte final do nº 1 do art. 830º do CC, impedimento que manifestamente também não se verifica.

Com efeito, a partilha de bens comuns do casal é uma decorrência da extinção do vínculo conjugal, nos termos do art. 1689º do CC. Por isso, não havendo motivo algum para assacar ao contrato-promessa outorgado a sua nulidade, nos termos anteriormente assumidos, os efeitos da prometida a divisão do património comum poderiam ser alcançados através da posterior realização da escritura pública de partilha. E assim, na falta de colaboração de algum dos promitentes, a substituição da vontade do promitente faltoso é suscetível de ser declarada mediante sentença judicial, nos termos previstos pelo art. 830º, nº 1 do CC (execução específica do contrato).

No mais, não existe qualquer especificidade da promessa de partilha em comparação com o regime a que obedece a execução específica de outros contratos-promessa, com destaque para o mais frequente contrato-promessa de compra e venda que serve de paradigma aos demais.

Deste modo, podemos transpor para a análise do presente caso tudo quanto a respeito do contrato-promessa de compra e venda vem sendo considerado pela abundante e elaborada doutrina civilística e pela não menos abundante, diversificada e aprofundada jurisprudência dos Tribunais Superiores, com realce para a que vem emanando deste Supremo Tribunal de Justiça.


3.4. Com relevo para a resolução do caso, importa que nos concentremos na verificação ou não de uma situação de “incumprimento da promessa” por parte de algum dos outorgantes, exigência legal que decorre do nº 1 do art. 830º do CC e da remissão que para tal preceito consta do nº 3 do art. 442º.

A verificação de uma tal situação pode ser decorrência direta do confronto com alguma cláusula contratual estabelecida a tal respeito. Assim pode ocorrer quando as partes preveem antecipadamente a outorga do contrato prometido (in casu, a escritura pública de partilha) numa determinada data, ou num prazo fixo a contar de determinada data, com indicação do outorgante que ficará incumbido dessa marcação e da realização das diligências preparatórias ou da convocação do outro outorgante para o ato. Outrossim, quando as partes antecipadamente convencionam um determinado programa contratual (cláusula resolutiva expressa), prevenindo os efeitos que decorram de determinados comportamentos ou omissões.

Por contraposição ao que foi decidido pelas instâncias, o A. considera que, no caso concreto, se pode considerar que foi estabelecido um prazo essencial para a outorga do contrato prometido, cujo decurso implicou a verificação de uma situação de incumprimento imputável a ambos os outorgantes. Porém, não existem razões para modificar o entendimento que, a tal respeito, foi adotado pelas instâncias, negando a verificação de uma tal situação.

Com efeito, segundo o teor da cláus. 7ª, “a escritura terá (teria) lugar no prazo máximo de um mês após o trânsito em julgado da sentença que decrete o divórcio entre ambos, ou se por motivos registrais tal não foi (fosse) possível, no prazo máximo de um mês após a conclusão do registo dos prédios a favor dos outorgantes”.

Diversos argumentos podem ser usados para concluir que não se tratava de um prazo essencial.

A essencialidade não transparece da referida cláusula, a qual revela, ao invés, que se tratava de prazos indicativos, prevenindo duas situações que ainda bem sequer estavam claras: um prazo de um mês depois do divórcio (em data incerta, e que poderia ser contado a partir de data posterior, ainda mais incerta, perante eventuais dificuldades encontradas ao nível do registo predial dos imóveis a partilhar.

Acresce que, além da contagem do prazo de um mês ser remetida para uma data ainda incerta, tão pouco se estipulou qual dos cônjuges ficaria incumbido de proceder à marcação da escritura pública, necessariamente precedida de diligências tendentes ao arrolamento de elementos documentais imprescindíveis.

A indefinição quanto ao futuro, especialmente quanto ao momento em que poderia considerar-se reunidas as condições para a outorga da escritura pública de partilha, obviamente retira qualquer possibilidade de atribuir à referida cláusula contratual as características de essencialidade que suportem a possibilidade de encontrar nela motivo para imputar a qualquer dos cônjuges, ou a ambos, a mora no cumprimento do prometido.

Por conseguinte, a falta de antecipação de cada uma das obrigações assumidas pelos cônjuges impede que se extraia da cláusula o efeito pretendido pelo A.

Ademais, a essencialidade do prazo sempre seria, em todo o caso, negada pela evidências. As circunstâncias posteriores claramente indiciam que nenhum dos outorgantes, agindo de boa fé, poderia considerar que algum prazo essencial fora designado: afinal, depois do divórcio, os outorgantes reconciliaram-se e passaram a viver de novo junto em união de facto que evoluiu para a realização de um segundo casamento, o qual persistiu até que veio a ser dissolvido por novo divórcio, factos suficientemente demonstrativos de que nenhum dos outorgantes revelou qualquer interesse na preparação ou na marcação da escritura pública.

É verdade que, para determinadas situações em que se manifeste o desinteresse prolongado de um dos contraentes relativamente à realização do contrato prometido, se tem considerado que tal pode revelar uma situação de incumprimento definitivo, nos termos e para efeitos do art. 808º do CC (v.g. Acs. do STJ, de 30-10-01, CJ, t. III, p. 102, e de 13-3-03, CJ, t- II, p. 12).

No caso, porém, nem essa conclusão parece legítima, considerando que, para além de o desinteresse ter sido de ambos os promitentes, as circunstâncias referidas (reconciliação e segundo casamento) sempre tornariam inviável a sua invocação unilateral, atentas as regras da boa fé (art. 762º, nº 2, do CC). E por outro lado, nenhum dos promitentes perspetivou esta solução, a qual não encontra na matéria de facto suficiente demonstração.

Aquilo que a matéria de facto revela é que, atento o reatamento das relações e a celebração de um segundo casamento, ficaram em suspenso os efeitos do contrato-promessa de partilha por motivos que a ambos os sujeitos aproveitavam. Decretado o primeiro divórcio que marco para a concretização da escritura pública de partilha dos bens comuns do casal, o contrato-promessa ficou numa situação indefinida, marcada pelo natural desinteresse de cada um dos cônjuges na realização imediata da partilha, sem, no entanto, terem procedido à sua revogação expressa. Quanto à sua revogação tácita, a falta de elementos já levou a Relação a afastar essa solução, aspeto que foi apreciado no acórdão recorrido e que não foi impugnado por qualquer das partes.


3.5. No entanto, importa considerar uma outra solução que a doutrina civilística e numerosa jurisprudência têm considerado noutras situações, especialmente em sede de apreciação dos comportamentos dos sujeitos vinculados por contrato-promessa de compra e venda.

Aqui entra precisamente a regra segundo a qual, dentro do objeto do recurso, ou seja, em sede de apreciação da eventual situação de incumprimento contratual (mora), deve o tribunal proceder oficiosamente à indagação e aplicação das regras de direito, nos termos do art. 5º, nº 3, do CPC.

O contrato-promessa, máxime o de compra e venda, continua a constituir uma fonte inesgotável de questões de direito civil e de direito das obrigações, fruto quer da complexidade do regime jurídico (sujeito a diversas modificações, alvo de diversos estudos e monografias e objeto de diversos acórdãos de uniformização de jurisprudência), quer da diversidade de cláusulas através das quais as partes procuram regular os seus direitos e obrigações, quer ainda da diversidade de comportamentos de cada um dos sujeitos entre a data da outorga do contrato e a sua execução.

Ora, refletindo sobre uma variedade de situações que envolvem ações ou omissões dos sujeitos vinculados através de contratos-promessa, tanto a jurisprudência como a doutrina (nacional e estrangeira) vêm extraindo das normas ligadas à verificação e qualificação das situações de cumprimento ou de incumprimento moroso ou definitivo uma solução que culmina pela afirmação da existência de incumprimento definitivo ou mora, conforme os casos, em casos de “comportamentos concludentes”.

Tal ocorre especialmente para efeitos de integração da previsão normativa do art. 808º do CC, sobre a verificação do incumprimento definitivo de contrato-promessa, como bem o ilustra o recente Ac. do STJ, de 4-6-20, ECLI 3564.18, que concluiu que “se ao longo de mais de 15 anos, os RR. não só não envidaram quaisquer esforços para adquirirem à entidade expropriante a propriedade da parcela prometida vender, por forma a conseguirem outorgar o contrato definitivo de compra e venda com o autor, como se furtaram sempre a isso, não obstante terem plena consciência de que a aquisição da parcela em causa era essencial para o autor e de, com a assinatura do contrato, já terem recebido deste a totalidade do preço acordado, impõe-se concluir que todo este comportamento evidencia, por parte dos réus, uma inequívoca e manifesta vontade de não celebrar o contrato prometido, o que os coloca em situação de incumprimento definitivo”.

Porém, semelhante juízo pode ser estabelecido a respeito da verificação ou não de uma situação de mora no cumprimento ou incumprimento moroso, nos termos e para efeitos do disposto no art. 804º do CC, com reflexos designadamente ao nível da satisfação do pressuposto legal do incumprimento necessário para o exercício de direitos configurados nos arts. 442º e 830º do CC.

A título meramente exemplificativo, tal a quantidade de acórdãos que podem ser analisados ou a diversidade e a qualidade de estudos doutrinários que sobre o tema incidiram, verificamos que no Ac. do STJ, de 25-2-14, 1987/1996, www.dgsi.pt, proferido no âmbito de uma ação de execução específica, a interposição de uma ação de reivindicação contra o outro promitente foi considerada comportamento concludente para efeitos de verificação de incumprimento de contrato-promessa de compra e venda. Depois de se afirmar que a execução específica depende da verificação do incumprimento do réu, nele se asseverou que “a interposição de uma ação de reivindicação, em que se pede aos promitentes-compradores a restituição do imóvel prometido vender e que estes ocupam desde a data da celebração do contrato-promessa, e em que se declara, simultaneamente, que não será celebrada a escritura de compra e venda, consiste numa declaração inequívoca de que os autores não têm intenção de cumprir o contrato definitivo, o que legitima os promitentes-compradores a perderem toda a esperança de que o contrato venha a ser espontaneamente cumprido e a recorrer à execução específica, como de facto fizeram na reconvenção”.

Já no Ac. do STJ, de 23-11-17, 212/12, www.dgsi.pt, a mesma conclusão foi extraída do facto de um do promitente-vendedor ter procedido unilateralmente à mudança de fechadura de um imóvel que fora objeto de contrato-promessa e que estava sob detenção legítima do promitente-comprador, nele de afirmando que “independentemente da estipulação, ou não, de um prazo pelas partes e da sua natureza, em face de um comportamento do devedor que exprima inequivocamente a vontade de não cumprir a obrigação principal, verifica-se, desde logo, um quadro de incumprimento definitivo. A recusa tanto pode ser expressa e categórica como pode ser valorada a partir de outras atitudes inequívocas e concludentes daquele comportamento, como seja a dedução em juízo de um pedido de restituição do imóvel objeto do contrato-promessa pelos herdeiros do promitente-vendedor, o que legitima o promitente-comprador a recorrer às sanções previstas para o incumprimento do contrato-promessa, designadamente, a restituição do sinal em dobro nos termos do art. 442º do CC”.

Por seu lado, no Ac. do STJ, de 29-1-14, 954/05, www.dgsi.pt, foi decidido, em sede de conversão de situação de mora em incumprimento definitivo, que “a vontade de não cumprir pode resultar de comportamentos concludentes apreensíveis pela atuação da parte inadimplente, em função dos deveres contidos na sua prestação, sendo de atender ao grau e intensidade dos atos por si perpetrados na inexecução do contrato” e que, no caso então analisado, “os factos revelam uma vontade séria e determinada, por parte dos recorrentes (promitentes-vendedores) de não quererem cumprir o programa negocial justificando-se a invocada perda do interesse contratual o que permite considerá-los inadimplentes de forma definitiva, sem necessidade de notificação admonitória”.


3.6. O relevo a atribuir a comportamentos concludentes com o significado de implicarem a constituição em mora ou mesmo o incumprimento definitivo é a lição que se extrai ainda de estudos ou monografias de diversos autores, sendo destacar, para a resolução do caso presente, o que é referido por Brandão Proença em Do Incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral, com múltiplas menções de outros autores nacionais e estrangeiros e identificação de diversas decisões dos Tribunais Superiores.

A pp. 87 e ss. esse autor atribui relevo para extração de efeitos jurídicos da mora ou do incumprimento definitivo de contrato-promessa não apenas à declaração séria do promitente de que não irá cumprir o prometido, como ainda a outros comportamentos concludentes que se manifestem, por exemplo, através de uma declaração de resolução ou de denúncia do contrato por parte do contraente incumpridor, da apresentação de uma proposta com condições objetivamente inaceitáveis ou apresentação de reivindicações arbitrárias, assim como do estabelecimento de negociações paralelas com terceiro ou da inércia relativamente à realização de diligências preparatórias indispensáveis à celebração do contrato definitivo. Culmina com o relevo atribuído a uma “conduta declarativa séria e categórica” da outra parte que não deixa dúvidas sobre a omissão futura (p. 93), especialmente quando está em causa a resolução do contrato.

Pertinentes são também as observações feitas por Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, 12ª ed., p. 154, quando refere que a execução específica é, em última instância, no plano funcional, a mesma coisa que a ação de cumprimento e que através de tal instrumento processual o credor pretende obter o cumprimento funcional da promessa, para concluir que “pressuposto da execução específica é a mora ou atraso no cumprimento da obrigação de contratar, ainda que não imputável ao devedor faltoso” (p. 155).

A matéria relacionada como incumprimento das obrigações em geral foi retomada e desenvolvida por Brandão Proença, em Lições de Cumprimento e não Cumprimento das Obrigações, 3ª ed., destacando em diversos passos que equivale ao incumprimento a declaração à contraparte de que não tenciona cumprir, numa manifestação de fuga ao vínculo contratual ou de recusa de cumprimento do programa contratual (pp. 334 e 335). Considera que tal efeito emerge com especial evidência, ainda que de modo oblíquo, da reação do contraente traduzida através “de alegações de inexistência ou invalidade contratual, sob a forma de manifestações subjetivas de desinteresse … ou ir implícita na atitude mais radical de repúdio ou rejeição do próprio contrato, revelada através de pretensões de anulação, resolução, denúncia ou impugnação do vínculo assumido” (p. 338), sendo relevante que o comportamento constitua uma “manifestação intencional, pessoal e unilateral” e ser “clara, unívoca e séria” (pp. 342 e 343). Em tais circunstâncias, concluiu o referido autor, “a partir do momento em que o comportamento do devedor (máxime declarativo e de repúdio ou não) provoca «a disfunção da relação, alertando o credor fiel para o perigo efetivo do incumprimento ou criando-lhe a convicção fundada do fracasso da vinculação” o mesmo credor fica legitimado “ao exercício mais racional dos direitos de indemnização e (ou) resolução do contrato, mas sem que se excluam as possibilidades de uma ação de cumprimento ou da sua execução específica” (p. 351).


3.7. O presente processo retrata uma situação verdadeiramente particular: depois da outorga do contrato-promessa de partilha de bens comuns do casal os outorgantes contraíram entre si segundo casamento, de modo que o interesse na celebração do contrato prometido ficou na penumbra do segundo casamento, e apenas ressurgiu depois de ter sido decretado o segundo divórcio que deu origem ao inventário para partilha dos bens comuns do casal.

Foi nesse processo de inventário que primeiro se estabeleceu a discussão em torno da identificação dos bens que integravam o acervo comum dos cônjuges no segundo casamento, o que naturalmente exclui os bens que cada um levou para o dito casamento a título de bens próprios (sendo bens próprios, nos termos do art. 1722º, nº 1, als. a) e c), do CC, não apenas os bens que cada um tinha ao tempo da celebração do segundo casamento, como ainda os bens adquiridos na constância do segundo casamento por virtude de direito próprio anterior, in casu, por virtude do direito que a cada um fora concedido através do contrato-promessa de partilha).

Nada na matéria de facto apurada permite configurar uma situação de ineficácia ou de outra qualquer forma de extinção superveniente desse contrato-promessa, nem tal eventualidade integra o objeto do presente recurso de revista interposto pelo A.

Na verdade, para além de a presente ação ter sido sequencial à discussão que se estabeleceu no referido processo de inventário no qual foi proferida decisão a remeter os interessados para os meios comuns, a revogação tácita do contrato-promessa já foi afastada, por falta de elementos, no precedente acórdão da Relação, não podendo obviamente ser aqui retomada, como já se referiu supra.

Tão pouco se configura, em termos que possa ser apreciada oficiosamente, uma situação que seja reconduzida à perda de interesse na outorga do contrato prometido, porque na realidade se desconhece, por falta de alegação ou de prova, quais as razões que terão levado a que nenhum dos cônjuges tivesse dado sequência ao contrato-promessa de partilha, procedendo à efetiva separação do património comum logo a seguir ao primeiro divórcio ou, ao menos antes da celebração do segundo casamento.

Aliás, sempre poderá dizer-se que a manutenção dos efeitos daquele contrato, malgrado o facto de os outorgantes terem, entretanto, contraído novo casamento, mantém as suas plenas virtualidades, uma vez que, mediante o cumprimento voluntário da promessa, ou, como veio a ocorrer, através da execução específica promovida pelo A. na presente ação, acaba por ser possível determinar quais os bens que cada um levou para o segundo casamento e quais os bens que neste segundo casamento de ambos integram o acervo comum do casal.

Por conseguinte, tendo em conta, por um lado, a falta de suscitação oportuna pela R. da ineficácia ou extinção superveniente do contrato promessa de partilha (v.g. por revogação) e, por outro, a absoluta ausência de alegação e de prova de quaisquer outros factos suscetíveis de integrar qualquer outro impedimento à execução específica que fosse de conhecimento oficioso (máxime o abuso de direito, nos termos do art. 334º do CC), termos de lidar com o concreto contrato-promessa de partilha como contrato que, além de ser válido, mantém ainda a potencialidade de determinar a sua execução específica, verificada que seja a situação de incumprimento por parte da R.


3.8. Observemos, antes de mais, o que decorre da matéria de facto apurada:

- O A. e a R. estavam casados entre si e no dia ...-04-91 celebraram um contrato-promessa de partilhas, na perspetiva do divórcio por mútuo consentimento que estava pendente, convencionando, além do mais, que “a escritura terá lugar no prazo máximo de um mês após o trânsito em julgado da sentença que decrete o divórcio entre ambos …”;

- O divórcio veio a ser declarado por sentença de …-1-92, transitada em julgado em 20-1-92;

- Porém, ambas as partes, após o divórcio, começaram a viver juntos, na mesma casa, tendo-se reconciliado, e, em …-4-03, casaram novamente, entre si, vindo a divorciar-se, de novo, por sentença de …-7-13, transitada em julgado em 19-9-13;

- As partes nunca celebraram a escritura de partilha referente ao contrato-promessa aludido, nem nenhuma delas promoveu ou diligenciou pela marcação da escritura, pese embora cada uma delas tenha começado, a seguir à celebração do contrato-promessa, a usar e a fruir exclusivamente dos bens que lhes haveriam de caber por partilha; concretamente, o A. tem residido na fração «G», identificada, ininterruptamente, desde 16-04-91, até ao momento.

Porém, os elementos documentais que constam dos autos revelam ainda o seguinte:

- Decorre da decisão judicial certificada a fls. 98 e ss., extraída do processo de inventário nº 1294/14.0…-A, que está em discussão nesse processo, em fase de relação de bens, a qualificação jurídica dos bens que foram objeto do contrato-promessa de partilha a que estes autos se reportam como bens comuns do casal formado aquando da realização do segundo casamento ou como bens próprios do A. nos termos que ficaram clausulados no contrato-promessa de partilha cuja execução específica pretende para produzir efeitos nesse processo de inventário;

- Ora, em tal inventário foi invocada pela ora R. a nulidade do contrato-promessa de partilha, em termos semelhantes aos que ocorreram na presente ação. Com efeito, como decorre da citada decisão judicial, a ora R., em sede de reclamação contra a relação de bens, veio invocar que o contrato-promessa de partilha “não tem qualquer validade”, pelos mesmos fundamentos que veio invocar na contestação que apresentou nesta ação, designadamente pelo facto de ter sido outorgado na pendência do primeiro casamento e por alegadamente ofender a regra da metade. Foi, aliás, por causa dos fundamentos que foram invocados e em face da inviabilidade de decidir essas questões no âmbito do processo de inventário que os interessados foram remetidos para os meios comuns, sendo declarada a suspensão da instância inventarial;

- Foi na sequência de tal despacho datado de 30-1-18 que, em 1-5-18, veio a ser instaurada a presente ação, através da qual o A. pretende fazer vingar os efeitos jurídicos do contrato-promessa de partilha de 16-04-91, com efeitos que se projetarão no inventário de partilha que se encontra pendente, subsequente ao segundo divórcio, e no qual foi declarada a suspensão da instância, nos termos que estão assinalados na decisão certificada a fls. 52 e ss.


3.9. Tendo em consideração as referidas circunstâncias, de onde sobressai, em sede do processo de inventário, a recusa frontal da R. em aceitar a validade do contrato-promessa de partilha (defesa que repetiu na presente ação), estão reunidas todas as condições para afirmar que a atuação da R. constituiu um “comportamento concludente” no sentido de se declarar o incumprimento do contrato-promessa de partilha, tornando desnecessária e, além disso, inútil a realização de qualquer outra diligência (máxime, a sua interpelação para a realização da escritura pública de partilha).

Se, como aqueles elementos o evidenciam e a presente ação o reforça, a R. negou qualquer valor jurídico ao contrato-promessa, por considerá-lo afetado de nulidade, tanto assim que na reclamação apresentada no processo de inventário se insurgiu contra a possibilidade de serem qualificados como bens próprios do A. os imóveis a que respeita a presente ação, nenhuma virtualidade teria para a apreciação do direito potestativo de execução específica uma atuação complementar do A. no sentido de a confrontar explicitamente com a necessidade de ser realizado o contrato prometido cujo cumprimento notória, antecipada e inequivocamente recusa.

O carácter concludente do comportamento da R. é tanto mais evidente quanto é certo que a recusa de outorga do contrato prometido não decorre de atos cuja interpretação pudesse suscitar dúvidas, nem emerge apenas das entrelinhas de declarações dispersas ou equívocas. Tão pouco resulta de uma resposta vaga a alguma declaração extrajudicial que lhe tenha sido dirigida pelo A. Pelo contrário, traduz a expressão da sua vontade manifestada por uma das formas mais solenes, in casu, a invocação, no processo de inventário, da nulidade do contrato-promessa, para sustentar uma posição segundo a qual todos os bens que eram comuns no primeiro casamento de ambos comuns continuam a ser no segundo casamento, negando, assim, ao contrato-promessa de partilha em causa nesta ação qualquer efeito, desde logo, pela falta de uma condição básica: a sua validade.

Em suma, a R. afirmou perentoriamente - e continua a afirmar nesta ação – a nulidade do contrato-promessa de partilha, sendo, assim, manifesta a sua recusa de cumprimento do contrato prometido. Considera que a sua concretização é contrária aos seus interesses centrados na manutenção no património comum de todos os imóveis que naquela promessa foram identificados para integrarem a meação do A., como se entre o primeiro casamento e o segundo divórcio não tivesse existido o contrato-promessa de partilha, o primeiro divórcio e o segundo casamento.

Ora, o mesmo resultado que a doutrina e a jurisprudência atribuem a determinados comportamentos de um dos promitentes, tais como a recusa explícita e inequívoca em cumprir, no sentido de dispensar a sua notificação para consolidar uma situação de incumprimento definitivo ou de mora no cumprimento e, assim, permitir declarar a imediata resolução do contrato-promessa ou a extração de outros efeitos legalmente previstos ou acordados pelas partes (devolução do sinal em dobro, pagamento do valor do bem imóvel ou retenção do sinal prestado ou acionamento da execução específica), por maioria de razão deve ser atribuído a casos, como o presente, em que a R. emitiu, através da sua defesa no processo de inventário, um juízo solene quanto à invalidade do contrato-promessa e à inviabilidade de extrair dele qualquer efeito jurídico-patrimonial.

Este é um dos casos em que, de modo manifesto, a mera verificação do comportamento do outro promitente, a ora R., no contrato-promessa é suscetível de ser interpretada com um sentido equivalente ao do incumprimento, sem necessidade de onerar o A. com qualquer diligência suplementar de interpelação daquela para o cumprimento do contrato prometido que antecipada e solenemente rejeitou e continua a rejeitar.

Recusa-se, pois, a solução apontada pela Relação quando concluiu que faltava para a procedência do pedido de execução específica a demonstração do incumprimento (mora) do promitente demandado, nos termos do art. 830º, nº 1, do CC.


3.10. Todavia, se acaso não pudesse ser admitida a anterior conclusão acerca da do incumprimento da R., nem assim sobreviveria o acórdão recorrido sustentado unicamente na falta de verificação de uma situação de mora imputável à R.

Em tal eventualidade, caberia retomar a posição que foi assumida na sentença de 1ª instância na qual se considerou que, embora nenhuma das partes estivesse em situação de mora ou de incumprimento definitivo (atentas as vicissitudes que a matéria de facto revela, de que sobressai a outorga de um segundo casamento entre os mesmos sujeitos), a situação de mora - fundamental para o acionamento da execução específica do contrato-promessa – ocorreu, ao menos, com a citação para a presente ação.

As partes estão de acordo, e os factos assim o confirmam, que não foi fixado qualquer prazo contratual de natureza essencial ou perentória para a outorga da escritura pública de partilha. Foi fixado para o efeito o prazo de um mês posterior ao trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio, mas nenhuma das partes ficou onerada com a marcação da escritura pública, nem o restante clausulado ou o circunstancialismo que rodeou o contrato permite afirmar que, decorrido aquele prazo, alguma das partes, ou ambas, incorresse em mora ou, mais do que isso, em incumprimento definitivo.

Atentos os posteriores desenvolvimentos que, como se referiu, foram marcados não apenas pela reconciliação de facto entre os cônjuges, pela vivência em comum de ambos e ainda pela celebração de um segundo compromisso conjugal, é legítimo afirmar que o referido contrato-promessa ficou numa espécie de “limbo”: nenhuma das partes pretendeu extrair desse contrato efeitos que poderiam determinar a concretização da partilha dos bens comuns, mas o mesmo manteve-se em vigor, na medida em que não foi objeto de revogação ou de qualquer outra forma de extinção dos seus efeitos, sem que qualquer dos cônjuges pudesse ser considerado, naquelas circunstâncias, em situação de mora no cumprimento.

Sem embargo da afirmação já feita de que a verificação do incumprimento decorre da oposição solene manifestada pela R. no processo de inventário para partilha dos bens comuns, do que não se duvida é que a constituição em mora para efeitos de declaração da execução específica sempre seria efeito necessário da citação da mesma R. para a presente ação, nos termos do art. 805º, nº 1, do CC. A defesa que a R. veio apresentar e em que continua a apostar reforça a ideia da sua recusa de cumprimento que justifica a invocação, por parte do A., do direito potestativo visando obter do tribunal a execução específica do contrato, mediante a substituição da declaração negocial da ora R.

Repare-se que não é apenas nestes casos que a citação para a ação determina o preenchimento de uma condição de procedência dessa mesma ação. Tal ocorre ainda, por exemplo, nos casos em que a ação visa a declaração de resolução de contratos, nos termos do art. 436º, nº 1, do CC, ou quando se mostra necessário demonstrar a legitimidade do credor cessionário e a eficácia da cessão de crédito perante o devedor demandado, atento o disposto no art. 583º, nº 1 (Acs. do STJ, de 10-3-16, 703/11, e de 6-11-12, 314/2002, em www.dgsi.pt). Assim também no que respeita à exigibilidade de obrigações, atento o disposto no art. 610º, nº 2, al. b), do CPC.

Por conseguinte, podemos concluir que a constituição em mora sempre teria ocorrido com a citação da R. para a presente ação, satisfazendo, sem reservas, qualquer impedimento à verificação do requisito legal – incumprimento - para que possa ser declarada a execução específica do contrato, nos termos do nº 1 do art. 830º do CC.

4. Um fator impede, no entanto, que seja apreciada de imediato a pretensão de execução específica.

Na sua contestação, a R. invocou a prescrição do direito de execução específica, tendo em conta o período que decorreu desde o fim do prazo de 1 mês fixado no contrato celebrado em 16-04-91.

Tal exceção - que se defrontará com a norma do art. 318º, al. a), do CC - foi julgada improcedente na sentença de 1ª instância, mas a R. impugnou-a no anterior recurso de apelação, sem que, no entanto, tenha sido apreciada pela Relação, por ter sido considerada prejudicada em face da constatação – errada - de que não se verificavam as condições para o reconhecimento do direito potestativo de execução específica.

Deste modo, como vem sendo assumido por este Supremo Tribunal de Justiça, em face do disposto no art. 679º do CPC, que exclui a aplicação do art. 665º ao recurso de revista, mais não resta do que remeter os autos à Relação para apreciação dessa questão.


IV – Face ao exposto, acorda-se em:

a) Julgar improcedente a revista excecional interposta pela R., confirmando o acórdão da Relação na parte em que declarou a validade do contrato-promessa de partilha dos bens comuns;

b) Julgar procedente a revista interposta pelo A., revogando o acórdão recorrido, na parte em que julgou improcedente o pedido de execução específica por inverificação de uma situação incumprimento do contrato-promessa de partilha, repondo, nesta parte, a decisão de 1ª instância que considerou verificado o incumprimento do contrato, nos termos e para efeitos de declaração da execução específica, ao abrigo do nº 1 do art. 830º do CC;

c) Determinar a remessa dos autos à Relação para que seja apreciada a exceção de prescrição que foi invocada pela R. e cuja apreciação foi considerada prejudicada pelo acórdão recorrido.

Custas de ambas as revistas a cargo da R.

Notifique.

Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade do Cons. Tomé Gomes e voto de vencida da Consª Maria da Graça Trigo, a qual vai em anexo.


Lisboa, 7-10-20


Abrantes Geraldes

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo (com voto de vencida anexo)


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Declaração de voto de vencida


Votei pela procedência do recurso da ré e pela improcedência do recurso do autor, antes de mais pelo fundamento resultante das seguintes considerações:

- O contrato-promessa de partilha dos bens comuns do casal, cuja execução específica foi peticionada, foi celebrado entre as partes em 1991 tendo em vista regular os termos da partilha por divórcio, que viria a ser decretado no ano subsequente;

- A partilha prevista nesse contrato-promessa não chegou a ser concretizada, uma vez que os membros do casal se reconciliaram, vindo a contrair novo casamento em 2003;

- O segundo casamento foi dissolvido por divórcio em 2013;

- Perante esta cronologia factual, afigura-se-me que o contrato-promessa celebrado em 1991 não pode ser invocado como vinculando as partes relativamente à partilha dos bens comuns do casal subsequente ao segundo divórcio por, em razão da reconciliação do casal e da celebração do segundo casamento, a causa do negócio ter desaparecido;

- Com efeito, ainda que a causa do negócio jurídico não disponha de consagração normativa expressa, na senda da doutrina especializada[1] considero que “a causa releva como elemento da estrutura do negócio jurídico e traduz a função do negócio jurídico”, fundando-se “no princípio geral nos termos do qual a todos os atos jurídicos deve corresponder uma função própria, que tem de ser conforme ao Direito, no sentido de ser merecedora de tutela jurídica”[2];

- Variando a formulação doutrinal das características inerentes à causa do negócio jurídico (assim como a indicação das normas legais nas quais tais exigências encontram suporte ou manifestação, apontando-se comumente para as previsões dos artigos 280.º, 281.º e/ou 294.º do Código Civil), afigura-se pertinente a seguinte enunciação: a causa do negócio jurídico tem de existir, de ter relevância jurídica e de ser lícita[3];

- Por estar em jogo um elemento estrutural do negócio jurídico, a falta genética de alguma destas características ou requisitos da causa (existência; relevância jurídica; licitude) determina a nulidade do negócio[4];

- Ora, no caso dos autos, reafirma-se que, com a reconciliação dos membros do casal e a celebração do segundo casamento, a causa do contrato-promessa de partilha realizado em função da dissolução do primeiro casamento, deixou de existir;

- Ainda que a natureza do vício da inexistência superveniente de causa não seja isenta de dúvidas, certo é que, assim como a superveniência da impossibilidade ou da ilicitude do objecto do negócio jurídico determina a aplicação (por interpretação extensiva ou por analogia) do regime da nulidade, deve este regime ser aplicável à presente situação;

- Com efeito, estamos, em meu entender, perante uma situação em que, desaparecida a causa do contrato-promessa, desapareceu a função própria do mesmo contrato e, com ela, a razão de ser para a ordem jurídica tutelar o cumprimento das obrigações assumidas.


Mesmo que, porventura, não se admitisse tal solução – seja por não se reconhecer autonomia dogmática à figura da causa do negócio jurídico, seja por dela não se extraírem as consequências supra expostas – considero que sempre a execução específica do contrato-promessa dos autos seria inexigível por, atenta a reconciliação do casal após o primeiro divórcio e a celebração do segundo casamento, essa exigência configurar um exercício abusivo do direito.


Além de que, reconhecer a validade e eficácia do contrato-promessa de partilha celebrado em função do primeiro divórcio, mais não será do que atribuir-lhe valor de convenção antenupcial em relação ao segundo casamento sem que, contudo, tenha sido respeitada qualquer das modalidades de forma legal admitidas.[5]

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[1] Ver, por todos, Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 5ª ed., Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010, págs. 377 a 388.

[2] Nas palavras de Ana Filipa Morais Antunes, A causa do negócio jurídico no direito civil, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2016, págs. 106 e seg.
[3] Idem, págs. 93 a 95 e pág.107.
[4] Assinale-se que, relativamente à hipótese de falta de causa genética, há quem admita que a consequência possa ser até a inexistência jurídica. Neste sentido, cfr. Francisco M. Brito Pereira Coelho, “Causa objectiva e motivos individuais no negócio jurídico”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Vol. II – A Parte Geral do Código e a Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 2006, págs. 432 e seg.
[5] Dispunha o artigo 1710.º do CC, na redacção em vigor ao tempo da celebração do segundo casamento (introduzida pelo Decreto-Lei n.º 163/95, de 13 de Julho) que “As convenções antenupciais só são válidas se forem celebradas por escritura pública ou por auto lavrado perante o conservador do registo civil.”