Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A3958
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: REIS FIGUEIRA
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
FRACÇÃO AUTÓNOMA
ARRENDAMENTO
PARTE COMUM
OBRAS DE CONSERVAÇÃO ORDINÁRIA
RESPONSABILIDADE
Nº do Documento: SJ200401130039581
Data do Acordão: 01/13/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 665/03
Data: 05/28/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : 1) O artº. 12º do RAU não pode ter o sentido de obrigar o senhorio de fracção autónoma arrendada a fazer obras de conservação ordinária em partes comuns do prédio, porque isso iria conflituar com o que se estabelece no artº. 1424º do CC para a propriedade horizontal.
2) Sendo o arrendado fracção autónoma de um prédio em propriedade horizontal, o dever do senhorio fazer obras de conservação cabe ao se nhorio apenas se a sua necessidade se situa na própria fracção, porque, se se localiza em parte comum, o senhorio não pode ser obrigado a fazer aí obras, nem as pode fazer.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" e sua mulher B intentaram contra C e sua mulher D acção com processo ordinário, pedindo:
a) se decrete a resolução do contrato de arrendamento celebrado em 21/02/98 com os RR;
b) se condene estes a despejarem de imediato os arrendados, deixando-os livres e devolutos de pessoas e coisas;
c) se condenem os RR a pagarem aos AA as rendas vencidas até à propositura, no montante de 2.979.158 escudos, bem como nas rendas vincendas, desde 21/03/01 até à data da efectiva entrega dos arrendados devidamente devolutos;
d) se condenem os RR a pagarem juros de mora, vencidos até à propositura, no montante de 102.842 escudos, bem como os que se vencerem até efectivo pagamento a incidirem sobre as quantias em que os RR venham a ser condenados;
e) no caso de se entender que o contrato de arrendamento é nulo, se declare a sua nulidade
f) condenando-se os RR a reconhecerem aos AA o direito de propriedade e posse das referidas fracções
g) e condenando-se os RR a restituírem as fracções aos AA, livres de pessoas e coisas;
h) e condenando-se os RR a reconhecerem aos AA o direito a fazerem suas as importâncias recebidas a título de rendas, desde 21/02/98 até 20/02/00
i) e condenando-se os RR a pagarem aos AA as mensalidades já vencidas e não pagas, de Fevereiro de 2000 a Janeiro de 2001, no valor mensal de 229.166 escudos; no total de 2.750.000 escudos, e ainda todas as que se forem vencendo até efectiva restituição pelos RR aos AA das referidas fracções
j) e condenando-se os RR a pagarem juros de mora vencidos até à propositura, no montante de 93.252 escudos, bem como nos que se vencerem até efectivo pagamento, a incidir sobre as quantias em que venham a ser condenados.

Contestada a acção, por excepção e impugnação, os RR formularam o seguinte pedido reconvencional:
a) deve declarar-se extinto, por compensação, o eventual crédito do A sobre os RR, com o crédito de montante superior de que estes são titulares aquele;
b) deve condenar-se o Autor a indemnizar os RR por todos os prejuízos que a sua conduta lhe causou, na parte em que exceda a compensação referida, cujo cálculo definitivo se relega para execução de sentença
c) deve condenar-se o Autor a pagar aos RR juros de mora, desde a notificação da presente reconvenção, sobre a indemnização referida, à taxa aplicável aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais.

Na primeira instância foram julgadas provadas e procedentes a acção e a reconvenção, e assim:
a) decretada a resolução do contrato de arrendamento celebrado em 21/02/98 com os RR (e referido na alínea a) dos factos provados);
b) condenados os RR no despejo imediato dos arrendados, deixando-os livres de pessoas e coisas
c) condenados os RR no pagamento das rendas vencidas, no montante de 2.979.158 escudos, bem como nas vincendas, desde 21/03/01 até à data da efectiva entrega dos arrendados livres de pessoas e coisas
d) condenados os RR a pagarem os juros de mora sobre a quantia referida das rendas, vencidos no montante de 102.842 escudos, e vincendos até efectiva entrega
e) condenados os AA a pagarem aos RR, a título de indemnização pelos danos sofridos com a deterioração da mercadoria, perda da margem de lucro respectiva, contratação de dois funcionários para movimentarem a mercadoria, e aquisição de 400 paletes com o formato euro para possibilitar essa movimentação, o montante que se vier a liquidar em execução de sentença, declarando-se desde já compensado o crédito reconhecido aos AA (referido em c) e d)) com o crédito de valor superior de que são titulares perante este pelos factos referidos e relegado para execução de sentença.

Do assim decidido recorreram de apelação ambas as partes.
A Relação de Guimarães julgou improcedentes ambos os recursos e confirmou a sentença.
Da decisão da Relação recorrem, agora apenas, os Autores A e mulher de revista para este STJ.
Alegando, concluíram, limitadamente à parte em que foram condenados:
1) As inundações provieram das partes comuns do edifício, nomeadamente pelo terraço e pela rede de drenagem e saneamento, pelo que o pagamento dos prejuízos seria da responsabilidade do condomínio: artºs. 483º, 1421º e 1424º do CC.
2) O contrato de arrendamento foi celebrado em 21/02/98. Ora, desde o início de 1996 até 20/02/98, as fracções encontravam-se cedidas pelo A marido ao R marido, gratuita e temporariamente, enquanto aquele não encontrasse uma pessoa que pretendesse arrendá-Ias.
3) Ora, os comodantes não respondem pelos vícios ou limitações do direito nem pelos vícios da coisa (artº. 1134º do CC), ou seja: desde o início de 1996 até 20/02/98, os recorrentes não são responsáveis pelos eventuais prejuízos provocados aos ora recorridos pelas hipotéticas infiltrações de água nas fracções.
4) Assim, as mercadorias constantes das facturas juntas com a contestação (doc. 12, 13, 14 15 e 16), bem como todos os prejuízos alegados pelos recorridos até 20/02/98, não podem ser imputados aos recorrentes.
5) Os RR C e mulher são pessoas juridicamente distintas da sociedade "E, Lda".
6) As mercadorias que os recorridos dizem ter-se deteriorado (e que constam das facturas juntas com a contestação, como doc. 12 a 88) pertencem à sociedade "E, Lda".
7) Todas as facturas juntas aos autos foram emitidas a favor dessa sociedade.
8) Os recorridos, para provarem que tiveram que destruir mercadorias, requerimento feito por essa sociedade ao Chefe da 2ª Repartição de Finanças de Braga a comunicar que iria proceder à destruição de mercadorias; o outro, é o auto de destruição. Tais documentos comprovam que a mercadoria destruída pertencia à sociedade e não aos recorridos.
9) Os recorridos só são parte legítima se tiverem interesse em demandar: artº. 26º do CPC.
10) Como as mercadorias pertenciam à sociedade, os RR não têm legitimidade para pedir o ressarcimento dos aludidos prejuízos, uma vez que ficou provado que as mercadorias pertenciam à sociedade: violado o artº. 483º do CC.
11) Só a sociedade teria tal legitimidade, uma vez que foi ela a única lesada.
12) Os recorridos são parte ilegítima (para o pedido reconvencional): violados os artºs. 26º, 494º, e), e 498º do CPC, e 483º do CC.
13) Violado ainda o artº. 847º do CC, porquanto recorrentes e recorridos não são reciprocamente credores e devedores, uma vez que os recorrentes são credores dos recorridos pelo valor das rendas e os recorridos não são credores dos recorrentes, uma vez que os prejuízos não são dos recorridos, mas da sociedade.
14) Violados os artºs. 483º, 847º, 1134º, 1421º, 1424º, do CC e artºs. 26º, 494º, e), 498º, 515º, 516º, do CPC.
15) Pelo que os AA ora recorrentes devem ser absolvidos do pedido reconvencional.

Os recorridos contra-alegaram em apoio do julgado, tendo suscitado uma questão prévia, já decidida por despacho do Relator.

Factos provados.
1. Encontra-se junto a fls. 7 e 8 um documento denominado "Contrato de Arrendamento Comércio", mediante o qual entre o aqui Autor A e o aqui Réu foi celebrado um contrato de arrendamento relativo ao armazém sito na R. José da Cunha nº. ..., Real, Braga, correspondente à fracção DI e à fracção DN, contrato esse efectuado pelo prazo de um ano e seguintes, com início em 21 de Fevereiro de 1998 e término em 21 de Janeiro de 1999, prorrogado por períodos iguais e sucessivos, mediante a renda anual de 2.750.000$00, paga até ao dia 21 de Fevereiro de cada ano, destinando-se as fracções arrendadas a armazém, podendo ser exercido qualquer outro ramo de comércio que a lei autorize.
2. Os RR. são comerciantes, com sede nesta cidade de Braga, que exploram com intuitos evidentemente lucrativos, o comércio de venda por grosso de brinquedos, géneros alimentares, louças, vidros, electrodomésticos, produtos de limpeza e outras utilidades domésticas.
3. Para exercício dessa actividade, o R. marido celebrou com o A. o contrato junto aos autos e referido em a).
4. No locado, os RR. guardam os artigos objecto da sua actividade comercial.
5. Na zona de terraço que serve de cobertura à fracção correspondente aos locados existem telas de impermeabilização.
6. O A. foi o construtor do prédio em que se integram os locados.
7. Os AA., por si, antepossuidores e anteproprietários, estão na posse da fracção DI, correspondente a uma loja, destinada a comércio, situada no rés do chão do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua José da Cunha, com o nº. ... de polícia, freguesia de Real, concelho de Braga, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº. 00028-DI e inscrito na matriz respectiva sob o artigo 567-DI, e da fracção DN, correspondente a uma loja destinada a armazém, que está afecta ao comercio exercido pelos RR. na loja supra referida, situada na sub-cave do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua José da Cunha, com o nº. ... de polícia, freguesia de Real, concelho de Braga, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº. 00028-DN e inscrito na matriz respectiva sob o artigo 567-DN, desde há mais de 20, 30 e 50 anos, com o conhecimento de toda a gente, sem violência inicial ou ulterior, de boa fé e com ânimo de exclusivos donos dessas fracções.
8. E desde há mais de 20 anos, por si e antecessores, tem fruído e possuído esses prédios, pagando os respectivos impostos, por forma ininterrupta e sem a oposição de ninguém, na convicção de exercerem um direito próprio.
9. As referidas fracções advieram ao domínio e posse dos AA., por as haverem construído nos lotes de terreno 50 a 53 de que eram donos e legítimos possuidores.
10. A renda mensal actual das referidas fracções, é de 229.166$00.
11. A renda sempre foi paga de forma anual.
12. A renda deveria ser paga nos escritórios do senhorio.
13. Os RR. deixaram de pagar as rendas desde Fevereiro de 2000.
14. A actividade comercial dos RR. é exercida, indistintamente em qualquer das fracções dos autos, as quais, juntamente com uma outra que, igualmente, vem sendo ocupada pelos RR., formam urna área comum e como que um armazém único.
15. Parte do locado referente à fracção DN é coberta por um terraço que é parte do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua José da Cunha e descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o nº. 000028.
16. Os RR. tinham armazenado no local artigos do seu comércio artigos de valor superior a cem mil contos, artigos estes que se destinavam a ser vendidos, com o inerente lucro, ao público.
17. Em consequência de infiltrações parte dos artigos aí armazenados pelos RR ficaram molhados e sem possibilidade de serem comercializados.
18. Esses artigos seriam vendidos com uma margem de lucro superior a 200%.
19. As águas que penetraram no armazém dos RR. provieram, designadamente, do respectivo terraço de cobertura.
20. Devido à existência de fissuras nas respectivas telas de isolamento, e à circunstância de, em alguns locais, a mesma se encontrar levantada e arrancada.
21. As águas que penetraram nos armazéns dos RR. provieram, ainda, da própria rede de drenagem e saneamento existente no respectivo chão.
22. Aquando da ocorrência de chuvas mais fortes as tampas de saneamento e drenagem existente no chão do armazém levantam, permitindo a saída da água que aí circulava e causando a inundação de todo o respectivo soalho.
23. O R. marido mandou proceder a uma verificação do estado do terraço bem como da rede de drenagem.
24. O A. não fez quaisquer obras de reparação, circunstância que determinou que, com o Inverno de 1997 - designadamente, em 19.11.1997 -, o armazém dos RR voltasse a ser atingido por águas que ali penetraram através do tecto e percorreram as paredes bem como pela água proveniente das tampas de drenagem e saneamento do chão, encharcando, por completo, o armazém onde os RR guardavam artigos do seu comércio, e provocando a sua deterioração e inutilização.
25. Os RR. deram ao A. marido conhecimento da necessidade de realização de obras de impermeabilização.
26.Nos anos de 1997, 1998, 1999 e 2000 voltaram a ocorrer novas inundações no armazém dos RR. causadas pelos mesmos factos, com a consequente deterioração e inutilização de parte da mercadoria aí armazenada pelos RR..
27. Por força das infiltrações, os RR. têm-se visto impedidos de fruir a área do escritório do armazém, pois que a água provocou curto circuitos nas ligações eléctricas do tecto.
28. As inundações ocorridas nos armazéns provocaram, designadamente, a, deterioração e inutilização das mercadorias referidas nas fotografias juntas de fls. 114 a 122.
29. Com a sucessiva repetição das inundações ao logo dos anos as próprias paredes do arrendado passaram a ter uma permanente infiltração de água, sendo frequente, mesmo para além dos períodos das chuvas, a existência de água a pingar do tecto do armazém e aí acumulada por força daquelas infiltrações, obrigando os RR. a estarem, constantemente, a mover a mercadoria de um lado para o outro, bem como a colocar, por todo o armazém, bacias para a aparar a água que vai pingando do tecto.
30. Para a movimentação da mercadoria referida, os RR. tiveram de contratar mais dois funcionários.
31. Para evitar o acumular dos seus prejuízos, os RR. tiveram que adquirir paletes em madeira onde passaram a colocar a mercadoria depositada no armazém, procurando, dessa forma, evitar, ou pelo menos, minorar, o contacto da mesma com a água que se vai acumulando no solo ou que é proveniente das tampas da rede de drenagem/saneamento.
32. No armazém dos autos, os RR. têm cerca de 400 paletes de madeira que, especificamente, tiveram que adquirir ou mandar fazer para o mencionado fim, com o que suportaram um custo de cerca de 600.000$00 (seiscentos mil escudos), pois que cada palete no formato euro tem um valor unitário de 1.500$00 (mil e quinhentos escudos).
33. Cansado da situação criada, o R. marido comunicou ao A., no início do ano de 2000, que não mais pagaria a renda enquanto não fossem realizadas obras no armazém que evitassem as permanentes inundações e infiltrações de água, bem como lhe fossem pagos os prejuízos por si sofridos durante todo este tempo com a mercadoria deteriorada e inutilizada, e acima referidos.
34. Os AA. e os RR. eram amigos.
35. No início do ano de 1996, os AA., na qualidade de donos e legítimos possuidores das referidas fracções, cederam gratuita e temporariamente as referidas fracções ao R. marido, até que arranjassem alguém que pretendesse arrendar as fracções.
36. Nesse início de ano de 1996, o R. marido alertou os AA. que existia humidade numa das fracções em questão, e, o A. marido após ter verificado que de facto existia alguma humidade numa das fracções, colocou telas de impermeabilização na zona do terraço que lhe serve de cobertura.
37. Em Novembro de 1997, o A. marido encontrou uma pessoa que pretendia arrendar as fracções, pelo que escreveu ao R. marido para que este desocupasse as fracções e lhas entregasse.
38. Em resposta a essa carta, o R. marido comunicou ao A. marido que estava interessado em arrendar as referidas fracções.
39. O R. marido sempre teve baixada eléctrica e electricidade nos locados.
40. Desde 1986 que as fracções arrendadas possuem licença de utilização.
41. Foi registada na Conservatória do Registo Predial, em 19/01/1996, a subdivisão da Fracção DJ do referido prédio em 4 novas fracções, entre as quais as fracções DM e a fracção DN.
42. Desde 1995 que os AA. possuem a licença de utilização destas duas fracções.
43. A R. mulher vivia e vive dos rendimentos auferidos pelo R. marido no exercício daquela sua actividade lucrativa, sendo os lucros obtidos pelo R. marido aplicados no pagamento de despesas em alimentação, vestuário, luz eléctrica e água da residência dos RR..

Questões postas.
As questões postas no recurso, definidas pelas conclusões das alegações dos recorrentes, são:
a) saber se a responsabilidade pelas inundações é do condomínio, e não dos AA, por provirem de zonas comuns;
b) saber se, entre inícios de 1996 e 20/02/98, não há qualquer responsabilidade dos AA, por serem simples comodantes e não locadores;
c) saber se, pertencendo as mercadorias à sociedade e não aos RR, estes não têm legitimidade para pedir indemnização;
d) nem, por isso também, os AA e os RR são reciprocamente credores e devedores.

Apreciando.
As questões postas a este Tribunal foram também postas à Relação, que as decidiu conforme consta de fls. 455 e 456.
Apreciemos.
Comecemos, naturalmente, pela questão da ilegitimidade (dos RR para o pedido reconvencional, por as mercadorias danificadas não serem deles, mas da sociedade "E, Lda.").
Esta questão foi, para a Relação, uma questão nova.
De facto, notificados do pedido reconvencional, os AA, na tréplica, não suscitaram a ilegitimidade dos RR para o referido pedido reconvencional. Antes, nada disseram sobre a propriedade das mercadorias. No saneador foram as partes julgadas legítimas. Os AA recorreram do saneador (recurso recebido com subida diferida), como depois da sentença final.
É apenas no recurso de apelação para a Relação que os AA suscitam, pela primeira vez, a questão da ilegitimidade dos RR para o pedido reconvencional, por as mercadorias danificadas não lhes pertencerem a eles, mas à sociedade.
Ora, não consta da listagem dos factos provados que as mercadorias danificadas pertencessem à sociedade referida (e não aos RR) - e a base instrutória serviu-se dos factos alegados pelas partes nos articulados: não foi alegado nos articulados que as mercadorias pertenciam à sociedade. Ora, o Tribunal só pode servir-se dos factos articulados pelas partes: artº. 664º do CPC.
No entanto, alegado foi, e provado ficou: que o R marido era comerciante; que a Ré mulher subsistia dos rendimentos dessa actividade, integrados na economia comum do casal; que os RR (e não a sociedade) tinham armazenado no local artigos do seu comércio, que se destinavam a ser vendidos ao público, com o inerente lucro, artigos que vieram a ficar danificados com as inundações.
A questão da propriedade dessas mercadorias nunca foi objecto de controvérsia entre as partes, só tendo sido, pela primeira vez, suscitada pelos AA no recurso de apelação para a Relação. Para a Relação, essa questão era, portanto, uma "questão nova". Como dos factos provados não consta que as mercadorias sejam efectivamente propriedade da sociedade e não dos RR, não pode mais questionar-se a legitimidade dos RR para o pedido reconvencional.

Passemos agora à segunda questão.
O contrato de arrendamento é de 21/02/98. Antes desta data os RR ocupavam as fracções sem qualquer título; ou, no máximo, a título de comodato.
Houve inundações antes e depois dessa data: houve inundações no Inverno de 1997 (designadamente em 19/11/97), em 1998, em 1999 e em 2000.
Antes de 21/02/98, os RR não eram arrendatários das fracções, mas sim delas comodatários. De facto, é isso que resulta dos factos provados sob os nºs. 35, 37 e 38: "no início de 1996, os AA cederam gratuita e temporariamente as fracções aos RR, até que arranjassem quem as quisesse arrendar", o que significa que, até ao arrendamento em 21/02/98, o acordo ou contrato existente (se de acordo ou contrato se pode falar) foi de comodato. Comodato é o contrato gratuito mediante o qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que dela se sirva, com a obrigação de a restituir: artº. 1129º do CC. Ora, no comodato, o comodante não responde pelos vícios ou limitações do direito ou pelos vícios da coisa: artº. 1134º do CC.
Concluímos assim que, entre inícios de 1996 e 20/02/98, nenhuma responsabilidade pode ser assacada aos AA por inundações nesse período ocorridas. O acórdão recorrido ignorou a existência de dois períodos (antes e depois de 21/02/98), com regimes diferentes, dando a ambos o tratamento que, na sua óptica, seria devido apenas ao segundo.
A decisão de condenar os AA no que se liquidar em execução de sentença, proferida nas instâncias, tem necessariamente de conhecer esta limitação: não pode abranger o período anterior a 21/02/98, data do contrato de arrendamento.

Apreciemos agora a primeira questão: a Relação resolveu a primeira questão suscitada dizendo que os AA não fizeram intervir o condomínio.
Mas isso não é razão para julgar o recurso improcedente quanto a essa primeira questão: se o condomínio não interveio, decerto que o decidido não faz caso julgado para ele. Mas faz para AA e RR.
O prédio encontra-se em propriedade horizontal. Provado ficou que as inundações provieram de partes comuns: do terraço de cobertura, devido à existência de fissuras nas respectivas telas de isolamento e à circunstância de em alguns locais se encontrar levantada e arrancada; e da própria rede de drenagem e saneamento - que não são partes próprias de qualquer fracção, mas partes comuns: artº. 1421º, nº. 1, b) e d) do CC.
Como se disse, se o condomínio não interveio, decerto que o decidido não faz caso julgado para ele (por exemplo: o condomínio não pode ser aqui condenado). Mas faz caso julgado para AA e RR.
E a posição dos AA é de que não podem ser responsabilizados por falta de obras em zonas comuns, porque eles não são o condomínio, são apenas alguns dos condóminos. De facto, o artº. 12 do RAU não pode ter o sentido de obrigar o senhorio de fracção autónoma arrendada a fazer obras em partes comuns do prédio, porque isso iria conflituar com o que se estabelece na lei para a propriedade horizontal: artº. 1424º do CC. Donde resulta que, sendo o arrendado fracção autónoma de um prédio em propriedade horizontal, o dever de o senhorio efectuar obras de conservação, nos termos do artº. 12º do RAU, cabe ao senhorio, apenas se a sua necessidade se localiza na própria fracção; porque, se se localiza em parte comum, não pode o senhorio ser obrigado a fazer obras (nem as pode fazer) nessa parte comum: artº. 1424º do CC.
Procede portanto o recurso dos AA, por esta razão.

Tanto faz tornar prejudicada a última questão posta: a impossibilidade de fazer operar a compensação, por não haver reciprocidade de créditos e débitos.
De facto, os AA e os RR não são reciprocamente credores e devedores, porque, pela razão que se acabou de dizer, os RR não são credores dos AA: a responsabilidade pelos prejuízos resultantes das inundações não é dos AA, porque, provindo de zonas comuns de prédio em propriedade horizontal, não era aos AA que cabia fazer as obras necessárias - pelo que os RR não são credores dos AA.

Decisão.
Pelo exposto, acordam em conceder a revista e assim em revogar a parte da decisão que condenou os AA no pedido reconvencional, ficando dele os AA absolvidos.
Custas do recurso pelos RR.

Lisboa, 13 de Janeiro de 2004
Reis Figueira
Barros Caldeira
Faria Antunes