Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1855/17.5T8SNT-A.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CONCURSO DE CREDORES
CRÉDITO DA SEGURANÇA SOCIAL
PENHOR
CRÉDITO PRIVILEGIADO
CREDITO LABORAL
CRÉDITO FISCAL
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Em sede de graduação de créditos sobre a insolvência, o art. 204.º, n.º 22, do CRCSPSS (Lei n.º 110/2009, de 16-09) deve ser objecto de interpretação restritiva, a fim de a prevalência dos «créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora» dotados de privilégio mobiliário geral, de acordo com o art. 747.º, n.º 1, al. a), do CC, «sobre qualquer penhor» se aplicar apenas em caso de confronto dual ou bilateral entre créditos pignoratícios e créditos da Segurança Social.
II - Quando a graduação se estenda para concurso com créditos de outra natureza (confronto multilateral), igualmente privilegiados, a prevalência dos vários tipos de crédito em conflito, uma vez sendo eles “garantidos” (no caso, pela garantia real do penhor) e “privilegiados” (mobiliários gerais: créditos laborais e créditos fiscais, juntamente com esses créditos da Segurança Social) nos termos do art. 47.º, n.º 4, al. a), do CIRE, para efeitos de aplicação dos arts. 174.º e 175.º do CIRE, deve seguir a ordem de prioridade determinada pelos critérios legais gerais: arts. 666.º, n.º 1, 747.º, n.º 1, al. a), e 749.º, n.º 1, do CC, 333.º, n.º 1, al. a), n.º 2, al. a), do CT, e 204.º, n.º 1, do CRCSPSS.
Decisão Texto Integral:



Processo n.º 1855/17.5T8SNT-A.L1.S1 
Revista Excepcional – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, ... Secção

Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO

1. «Eurocolt Resources, Unipessoal,Lda.» foi declarada insolvente por sentença proferida em em5/6/2017, transitadaemjulgado.

Foifixado o prazo de 30 dias para reclamação de créditos.

Foram apreendidos bens móveis, especificados no inventário apresentado em anexo ao Relatório elaborado pelo Administrador de Insolvência (de acordo com o art. 155º do CIRE), e a quantia de € 75.000,00 depositada emconta bancáriada insolvente.

A «Novo Banco, S.A.» deduziu impugnação da não inclusão na lista de créditos do crédito por si reclamado (prestação de garantia bancária, no valor de € 152.314,45). Não foideduzida qualquer outra impugnação.

Em 4/12/2017, o AI juntou relação de créditos reconhecidos.

Em 15/5/2018, o Fundo de Garantia Salarial requereu o reconhecimento da sua sub-rogação, relativamente a créditos reconhecidos a trabalhadores.

Em 24/9/2018, o AI juntou nova relação de créditos reconhecidos, rectificada quanto à inclusão de crédito a favor da «Novo Banco, S.A.» no referido valor de € 152.314,45, que qualificou como garantido por penhor quanto ao montante de € 75.000,00 e como comum quanto ao remanescente € 77.314,45, emergente de garantia bancária.
Em 1/10/2018, o Fundo de Garantia Salarial requereu o reconhecimento da sua sub-rogação, relativamente a créditos reconhecidos a trabalhadores.
Em 22/10/2018, a «Novo Banco, S.A.» comunicou o pagamento da quantia de € 150.000,00, em execução da garantia por siprestada.


2. O Juiz ... do Juízo de Comércio ... (Tribunal Judicial da Comarca ...) proferiu sentença (art. 140º CIRE), com o seguinte dispositivo decisório:

“A) Nos termos dos arts. 130.º n.º 3 e 131.º, n.º 3, do CIRE, homologar a lista de credores reconhecidos apresentada em 24.09.2018 ,sob a ref. Citius ..., cujo teor se dá por integralmente reproduzido, e em consequência julgar verificados os créditos dela constantes e demais qualificações atribuídas.
B) Julgar o Fundo de Garantia Salarial sub-rogado nos direitos e privilégios creditórios dos trabalhadores, na medida dos pagamentos especificados nas certidões juntas aos ofícios de 15.05.2018, ref. Citius ... e 01.10.2018, ref. Citius ..., cujo teor se dá por reproduzido, acrescidos dos juros de mora vincendos.
C) Graduar os referidos créditos, para pagamento pelo produto da venda dos bens integrados na massa insolvente, nos seguintes termos:
1. Pelo valor da verba de € 75.000,00, dar-se-á pagamento pela seguinte ordem: 1.º Instituto da Segurança Social, quanto aos créditos privilegiados; 2.º Novo Banco, S.A., quanto ao crédito garantido por penhor; 3.º Trabalhadores, pelos montantes não adiantados pelo FGS, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes; 4.º Fundo de Garantia Salarial; 5.º Autoridade Tributária, quanto aos créditos privilegiados de IRS e IRC; 6.º Créditos comuns, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes; 7.º Créditos subordinados, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes;
2. Pelo produto da venda dos demais bens apreendidos dar-se-á pagamento pela seguinte ordem: 1.º Trabalhadores, pelos montantes não adiantados pelo FGS, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes; 2.º Fundo de Garantia Salarial; 3.º Autoridade Tributária e Instituto da Segurança Social, quanto aos créditos privilegiados, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes; 4.º Créditos comuns, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes; 5.º Créditos subordinados, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes.
As dívidas da massa insolvente, incluindo as custasdo processo de insolvência, são pagas prioritariamente sobre os demais (cfr. arts. 51.º, 172.º, n.º 1, do CIRE).”

3. Inconformada, a credora «Novo Banco, S.A.» interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL).
Foi proferida Decisão Sumária (arts. 652º, 1, c), 656º, CPC), que, identificando como questão a decidir saber “se um crédito garantido por penhor deverá ser graduado antes de um crédito da Segurança Social”, julgou improcedente a apelação, mantendo-se a sentença proferida.
Sustentou, em síntese: “– No que concerne à respectiva graduação de créditos, o CIR nada dispõe, pois, o seu art. 172º apenas alude ao pagamento aos credores, fazendo menção nos artigos seguintes ao pagamento aos credores garantidos, credores privilegiados, credores comuns e aos credores subordinados. – Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747º do Código Civil, prevalecendo sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior, nos termos do art. 204º introduzido pela Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro, comas alterações de que foi alvo. – Houve efectivamente uma vontade expressa do legislador no sentido de estabelecer um regime excepcional para a Segurança Social, no que ao seu confronto com o penhor respeita.”
Novamente inconformada, veio a «Novo Banco, S.A.» apresentar Reclamação para a Conferência (art. 652º, 3, CPC). Na sequência, foi proferido acórdão pelo TRL, no qual, entendendo-se “não conter a decisão proferida qualquer vício legal que a inquine”, se julgou “manter a decisão singular proferida”.

4. Ainda sem se resignar, a credora «Novo Banco, S.A.» interpôs recurso de revista excepcional, tendo por fundamento as als. a) e c) (oposição com o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 25/5/2017, processo n.º processo n.º 703/13.0TBMDL-K.G1) do art. 672º, 1, do CPC.
          Tal motivou que a Formação Especial do STJ, a que alude o art. 672º, 3, do CPC, proferisse acórdão que admitiu a revista excepcional ao abrigo do art. 672º, 1, a), do CPC.

5. Neste contexto, relevam as seguintes Conclusões que finalizam as alegações de recurso:

“II – O thema decidendum da presente revista excepcional consiste em saber, numa situação de conflito entre créditos garantidos por penhor – como é o caso do crédito reconhecido ao Novo Banco, S.A. – e créditos da Segurança Social, Trabalhadores e Fazenda Nacional que gozam, simultaneamente, de privilégio mobiliário geral, qual dos créditos deve ser graduado em primeiro lugar.

(…)

VII – É verdade que nas suas alegações de recurso (julgadas improcedentes pelo douto acórdão-recorrido), o Recorrente sustentou, numa primeira linha, que o penhor deveria prevalecer sobre todo e qualquer privilégio mobiliário geral, particularmente, porque o penhor financeiro – “facti specie” em que se enquadra o seu crédito – é objecto de regulamentação e protecção especialíssima podendo o seu titular executar o objecto da garantia sem proceder à notificação prévia do prestador da garantia ficando, inclusivamente, dispensado de reclamar os seus direitos no processo de insolvência aberto – cfr. artigos 8.º, n.º 2, 9.º e 10.º do Decreto-Lei nº 105/2004, de 8 de Maio, Directiva n.º 2002/47/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Junho de 2002 e artigo 16.º, n.º 3 do CIRE.

VIII – Não obstante e a título subsidiário, o ora Recorrente também defendeu que, caso assim não se entendesse, numa situação de confronto entre vários privilégios mobiliários gerais e um crédito garantido por penhor – precisamente a situação que se verifica nos autos – sempre o seu crédito, atenta a contradição insanável verificada entre os artigos 666.º, n.º 1 e 749.º, n.º 1 do Código Civil, 666.º, 737.º e 747.º do Código Civil, 204.º nº 1 do CRCSPSS, 333.º, n.º 2 alínea a) do Código de Trabalho e 747.º n.º 1 alínea a) do Código Civil, teria de ser graduado em primeiro lugar.

IX – O douto acórdão-recorrido foi proferido em contradição com o douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 25/05/2017, proferido no processo n.º 703/13.0TBMDL-K.G1, doravante acórdão-fundamento – cfr. Doc. 1 que se junta e dá por reproduzido para os legais e devidos efeitos.

X – O núcleo factual essencial (os créditos reconhecidos e a graduar, num e noutro caso, são os mesmos, a saber, garantia pignoratícia de uma instituição bancária, privilégios mobiliários gerais da Segurança Social, Trabalhadores e Fazenda Nacional) e a legislação aplicada (artigos 666.º, nº 1 e 749.º, n.º 1 do Código Civil, 666.º, 737.º e 747.º do Código Civil, 204º nº 1 do CRCSPSS e 747.º n.º 1 alínea a) do Código Civil) bem como a questão fundamental de direito (interpretação da lei no sentido de determinar a ordem de prioridade de graduação dos identificados créditos) são, em ambas as situações, idênticas.

XI – Porém, as respostas jurídicas divergem – cfr. alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

XII – Com efeito, enquanto o douto acórdão-recorrido conclui, interpretando o artigo 204.º do CRCSPSS que “(…) Perante tal preceito, verificamos que houve efectivamente uma vontade expressa do legislador no sentido de estabelecer um regime excepcional para a Segurança Social, no que ao seu confronto com o penhor respeita, ainda que de forma desarmónica, como a apelida o apelante. O crédito garantido por penhor é derrogado pela prevalência na graduação do privilégio mobiliário geral conferido à segurança social. A justificação para tal opção do legislador terá a ver com importância que assume para o Estado, a sustentabilidade da Segurança Social perante o seu carácter previdencial (…)” – vide douto acórdão-recorrido.

XIII – Em sentido oposto, o douto acórdão-fundamento decidiu que “(…) Sem menosprezar a importância fundamental das contribuições para a sustentabilidade da Segurança Social, e sem minimizar o interesse público por ela prosseguido, o certo é que o próprio legislador as situa em terceiro lugar na ordem de pagamentos, nas situações em que os créditos delas derivados concorrem com créditos dos trabalhadores e com créditos do Estado. Vistas as coisas sob a perspectiva dos interesses do Banco Apelante temos de reconhecer que, com a concessão do crédito à Insolvente decerto permitiu que ela prosseguisse com a laboração, gerando receitas que terão acabado por entrar nos cofres da Segurança Social, através das contribuições pagas por si e pelos seus trabalhadores, e do Estado, através dos impostos, e temos de reconhecer ainda, pelas regras da experiência comum, e atento o seu objecto comercial, que se soubesse da existência das reclamadas dívidas talvez não concedesse o crédito, pelo menos sem outras garantias mais consistentes – daí a relevância do acesso à informação em situações como esta. Finalmente, cumpre fazer evidenciar que, actualmente, a Segurança Social já dispõe da possibilidade de garantir os seus créditos por um qualquer dos meios de garantia previstos nos arts. 601.º e sgs. do C.C. – cfr. art. 20.º da Lei n.º 110/2209. Deve, pois, proceder a pretensão do Apelante, impondo-se revogar a decisão no que respeita ao seu crédito, dando-se-lhe prioridade de pagamento, na parte (25%) em que é garantido pelo penhor” – vide douto acórdão-fundamento.

XIV – Entende o Recorrente que a contradição jurisprudencial apontada deve ser resolvida no sentido do douto acórdão fundamento, revogando-se, consequentemente, o douto acórdão-recorrido.

XV – A aplicação do n.º 2 do artigo 204.º do CRCSPSS restringe-se às situações de confronto entre um crédito garantido por penhor e um privilégio mobiliário geral da Segurança Social.

XVI – Diversamente, nas situações como a sub judice, em que se confrontam vários privilégios mobiliários gerais (da Segurança Social, do Estado e dos Trabalhadores) com um penhor, a resposta para a graduação dos créditos deverá buscar-se no regime geral previsto nos artigos 666.º, n.º 1 e 749.º, n.º 1 do Código Civil.

XVII – Do qual resulta que o crédito garantido por penhor prevalece sobre o crédito da Segurança Social.

XVIII – Se outra tivesse sido a intenção do legislador, a mesma teria sido expressamente consagrada.

XIX – O douto acórdão deverá, pois, ser revogado e substituído por outro que gradue, com prioridade sobre todos os outros, o crédito do Novo Banco, S.A. incontroversamente garantido por penhor.

XX – Ao decidir nos termos em que o fez o tribunal de 1.ª instância interpretou erradamente e violou os artigos 666.º, n.º 1, 749.º, n.º 1 do Código Civil, 204.º, números 1 e 2 do CRCSPSS e artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.”

Consignados os vistos nos termos legais, cumpre apreciar e decidir.


II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS

1. Objecto do recurso

Estamos perante acórdão recorrido que se pronuncia sobre a decisão proferida em incidente insolvencial que corre por apenso, como é o de reclamação, verificação e graduação de créditos (arts. 128º e ss, 132º do CIRE). Deste modo, a impugnação em sede de revista não está submetido ao regime atípico e restritivo previsto pelo art. 14º, 1, do CIRE; antes, a impugnação recursiva para o STJ está sujeita aos termos gerais, aplicando-se, para tanto, as regras do processo civil, de acordo com a remissão operada pelo art. 17º, 1, do CIRE, o que ditou e dita a aplicação do regime comum da revista (normal e excepcional).

Vista a admissão da revista excepcional, a questão delimitada e a decidir respeita à graduação de créditos sobre a insolvência, entre aqueles que são da titularidade do credor reclamante-entidade financeira bancária, garantido por penhor, e os que são da titularidade dos trabalhadores, da Fazenda Pública/Autoridade Tributária e da Segurança Social, enquanto beneficiários de privilégio mobiliário geral, de modo a decidir qual a posição do credor pignoratício na ordem de pagamento desses créditos relativamente à quantia apreendida de € 75.000,00 em depósito bancário titulado pela insolvente.

*

Na resolução da questão decidenda, cabe ao tribunal de recurso dar uma solução para a ou as questões jurídicas que fazem parte do objecto do recurso, tal como delimitado (e eventualmente acrescido dos seus pressupostos necessários e adjuvantes na qualificação jurídica), não estando submetido a considerar, dialogar e rejeitar todos ou alguns dos argumentos apresentados pelas partes recorrentes (art. 5º, 3, CPC).

2. Factualidade relevante

Com relevo, os factos a considerar são os que se expuseram e constam do Relatório que antecede, assim como os que se referem no acórdão recorrido como tendo sido delineados na sentença de 1.ª instância, a saber:

1. Pelo(a) Sr(a). Administrador(a)da Insolvência foi elaborada, nos termos do artigo 129.º, n.os 1 a 3, do CIRE, a relação de créditos reconhecidos rectificada, apresentada em 24.09.2018, sob a ref. Citius ..., da qual consta, entre outros, crédito a favor de Novo Banco, S.A., emergente da prestação de garantia bancária, no valor de € 152.314,45, sendo € 150.000,00 de capital e € 2.314,45 de juros, garantido quanto ao montante de € 75.000,00 por penhor financeiro sobre depósito bancário do mesmo valor.

2. Foram apreendidos os bens móveis especificados no inventário apresentado em anexo ao relatório elaborado nos termos do art. 155.º, do CIRE, e ainda a quantia de € 75.000,00 de depósito bancário titulado pela insolvente.

3. O Fundo de Garantia Salarial efectuou os pagamentos relativos a prestações salariais que ficaram em dívida pela insolvente especificados nas certidões juntas aos ofícios de 15.05.2018, ref. Citius ... e 01.10.2018, ref. Citius ..., cujo teor se dá por reproduzido.

3. Direito aplicável

Chega ao conhecimento do STJ a questão da graduação entre si dos créditos sobre a insolvência, a fim de ser definida a ordem com que serão satisfeitos por bens apreendidos e integrados na massa insolvente.

Estando em confronto um crédito pignoratício, seria de aplicar à primeira vista os arts. 666º, 1 («O penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro.»), e 749º, 1 («O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.»), do CCiv.

Porém, há que atender a outros preceitos conflituantes, a saber:

— o art. 204º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (Lei 110/2009, de 16 de Setembro: CRCSPSS)

«1 – Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil. / 2 – Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.»;

— o art. 333º do CT:

«1 – Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios: a) Privilégio mobiliário geral; (…). /  2 – A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte: a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes de crédito referido no n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil; (…).».

Em confronto, ainda, com o art. 747º, 1, do CCiv.:

«Os créditos com privilégio mobiliário graduam-se pela ordem seguinte:

a) Os créditos por impostos [cfr. art. 736º, 1, CCiv.], pagando-se em primeiro lugar o Estado e só depois as autarquias locais;

b) Os créditos por fornecimentos destinados à produção agrícola;

c) Os créditos por dívidas de foros;

d) Os créditos da vítima de um facto que dê lugar a responsabilidade civil;

e) Os créditos do autor de obra intelectual;

f) Os créditos com privilégio mobiliário geral, pela ordem segundo a qual são enumerados no artigo 737.º.»

Aplicando este complexo normativo, seria óbvia a preferência do crédito da Segurança Social sobre o crédito garantido pelo penhor, em virtude da opção que nesse conflito dual ou bilateral o art. 204º do CRCSPSS evidencia.

Porém, quando a graduação se estenda para créditos com outra natureza (conflito multilateral), igualmente privilegiados, teremos que sair da perspectiva dicotómica que esse mesmo preceito configura e afinar um critério que nos permita solucionar a prevalência dos vários tipos de crédito em conflito, uma vez sendo eles “garantidos” (no caso, pela garantia real do penhor) e “privilegiados” (mobiliários gerais) nos termos do art. 47º, 4, a), do CIRE, para efeitos de aplicação dos arts. 174º e 175º do CIRE.

3.2. A conhecida divisão da jurisprudência superior nesta matéria foi apontada pelo Acórdão proferido pela Formação:     

“É por demais conhecida a problemática respeitante à graduação de créditos providos de garantia de penhor em concorrência com créditos da Segurança Social ou/e com créditos resultantes de impostos devidos ao Estado, uns e outros beneficiando de privilégio mobiliário geral, a qual se tem vindo a arrastar, ao longo dos anos, com orientações divergentes na jurisprudência e na doutrina, num esforço de conseguir uma interpretação sistemática, integrada e coerente, do quadro normativo traçado nos artigos 666.º, n.º 1, 747.º, n.º 1, alínea a), e 749.º do CC e do artigo 10.º do Dec.-Lei n.º 103/80, de 9-05, entretanto revogado e substituído pelo artigo 204.º do CRCSPSS, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16-09.

Assim, a partir da década de 1990, parece ter começado a vingar, no STJ e no STA, a tese segundo a qual, no âmbito do referido quadro normativo, os créditos resultantes de impostos e os créditos da Segurança Social prevalecem sobre os créditos garantidos por penhor, tal como se ajuizou, por exemplo, no acórdão do STJ, de 20/09/1999, proferido no processo 99A200 (acessível no sítio da dgsi), com citação de relevante doutrina em seu abono.            

No entanto, outros anteriores arestos do STJ e mais recentes das Relações, também com apoio doutrinário avalizado, como bem se dá notícia no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09/05/2019, proferido no processo n.º 2540/16.0T8STB-A.L1-2 (acessível no sítio da dgsi), apontam no sentido da prevalência do crédito garantido por penhor em detrimento dos créditos de impostos e da Segurança Social, realçando a natureza real da sequela do penhor em contraponto com a mitigada prevalência dos privilégios mobiliários gerais, consagrada no artigo 749.º, n.º 1, do CC.  

Neste contexto, pese embora a pertinência do argumento relativo à natureza especialíssima do regime reeditado pelo art. 204.º do CRCSPSS, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16-09. salientada, por exemplo, nos acórdãos da Relação de Coimbra de 28/05/2019, proferido no processo n.º 3810/17.6T8VIS-B.C1, e de 11/01/2021, proferido no processo n.º 182/18.5T8TCS-A.C1, ambos acessíveis no sítio da dgsi, bem como no citado acórdão da Relação de Lisboa de 09/05/2019, o certo é que continua a persistir uma linha de orientação jurisprudencial divergente, tal como se dá conta no acórdão-fundamento convocado, no sentido propugnado pelo Banco Recorrente.

Acresce que, recentemente, foi proferido o acórdão do STJ de 22/09/2021, no processo n.º 775/15.2T8STS-C.P1.S1, no qual se considerou que “o n.º 2 do art. 204.º do CRCSPSS, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16-09, deve ser interpretado restritivamente, sendo aplicável apenas quando a graduação de créditos envolve exclusivamente créditos pignoratícios e créditos da Segurança Social.”

Pois bem.

Este recente Acórdão do STJ, proferido em 22/9/2021, desta 6.ª Secção (com competência específica nas matérias da insolvência), veio assim argumentar no sentido de compatibilizar as normas jurídicas envolvidas no conflito[1]:

“Supomos que a resolução da (aparente) contradição normativa em causa só pode ser encontrada numa interpretação restritiva do n.º 2 do art. 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social e numa ponderação de interesses segundo as regras que embasam a normalidade do sistema de preferências creditórias. Não se antolha qualquer outra solução satisfatória. De resto, com maior ou menor detalhe, é nesse sentido que se direciona a (vasta) jurisprudência que sustenta que numa situação como a que aqui temos pela frente deverá ser reconhecida prioridade ao crédito pignoratício sobre o crédito da Segurança Social (e preferindo a este o crédito dos trabalhadores).    

Deste modo, quando a graduação implique unicamente uma díade formada pelo crédito pignoratício e pelo crédito da Segurança Social a solução não poderá desconsiderar o estabelecido no n.º 2 do citado art. 204.º: o crédito da Segurança Social prefere ao crédito pignoratício. (…) Não pode haver dúvidas de que no confronto desses dois tipos de créditos a lei pretendeu dar prioridade ao crédito destinado a cumprir um desígnio social sobre um crédito destinado a cumprir um desígnio puramente (pelo menos na esmagadora maioria dos casos) particular e quase sempre brotado do espaço empresarial [Como nos dizem Pires de Lima-Antunes Varela (Código Civil Anotado, I, anotação ao artigo 666.º), “O penhor encontra-se industrializado e é de constituição rara como acto de direito civil”. Isto, aliás, ajusta-se ao caso vertente, pois que os credores pignoratícios são empresas bancárias.]. Na ponderação dos dois interesses em jogo, o legislador entendeu definir desse modo as coisas, privilegiar o público (social) sobre o particular, e não cabe ao intérprete discutir essa opção. Trata-se aqui, todavia, de um singular desvio à regra que vale para a normalidade, pois que essa regra (tal como fixada no Código Civil) estabelece o princípio da prioridade do penhor sobre todo e qualquer privilégio creditório mobiliário geral.          

Mas quando de permeio se encontram créditos de trabalhadores, do Estado e das autarquias locais por impostos [E seja qual for a interpretação que se dê à remissão a que se fez referência em nota anterior nunca os créditos do Estado e das autarquias locais são preteridos pelo crédito da Segurança Social. O mais que pode acontecer é andarem ao par.] já aquela opção não terá sido mantida pelo legislador.

E isso, bem vistas as coisas, nada tem de estranho ou contraditório.

Pois que não são apenas os créditos da Segurança Social que são de interesse público e social. Também os interesses creditórios do Estado e das autarquias locais por impostos são, por definição, interesses públicos e sociais, da mesma forma que os interesses creditórios laborais não deixam de se resolver em interesses públicos e sociais indiretos ou reflexos, na medida em que são relacionáveis com prestações que o setor público pode ser chamado a suportar para com os trabalhadores e suas famílias em situação de carência económica.
E daqui que se possa intuir que em caso de concurso desses outros créditos com os da Segurança Social o legislador tenha optado por uma solução que não inverta o paradigma que ele próprio estabeleceu como regra em atenção aos diversos interesses em jogo.
Sendo tudo isto assim, como nos parece que é, cremos ser razoável supor que nesta última hipótese (concurso que coenvolve créditos pignoratícios, créditos dos trabalhadores, créditos do Estado e das autarquias locais e créditos da Segurança Social) o legislador se limitou a deixar a solução das preferências para as regras que enformam a traça normal dos créditos em confronto, procurando desse modo obviar à preterição desproporcionada (em beneficio injusto da Segurança Social) dos interesses de um conjunto mais alargado de outros credores, nomeadamente dos trabalhadores.
Está aqui encontrado um racional que justifica uma interpretação restritiva do n.º 2 do art. 204.º do citado Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, cuja letra diz mais do que aquilo que terá sido o propósito ou o querer do legislador [Tem lugar a interpretação restritiva quando se chega à conclusão de que a letra da lei está para além do seu verdadeiro sentido. Vem a propósito, aliás com proveito para o caso, citar a seguinte passagem de Oliveira Ascensão (ob. cit., p. 375): “Formou-se um brocardo, que circula como moeda válida no foro: ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus. Tal afirmação não tem qualquer verdade, pois ela levaria a que nos sujeitássemos inteiramente à letra da lei. Pode aparecer uma afirmação genérica, e verificar-se depois que a regra supõe uma distinção que o texto omitiu fazer”.]. O que significa que se impõe restringir a aplicação dessa norma aos casos em que apenas estejam em concurso créditos pignoratícios e créditos da Segurança Social. E não já quando, para além destes, concorram na mesma graduação créditos dos trabalhadores, do Estado e das autarquias locais. O que, diga-se de passagem, retira fundamento à crítica frequentemente avançada por quem defende ponto de vista diferente, e que é a de que não faz sentido que a posição relativa do crédito da Segurança Social fique dependente da circunstância aleatória de haver ou não créditos em concurso dos trabalhadores, do Estado ou das autarquias locais.
E tais regras (as que enformam a traça normal dos créditos em confronto) determinam que o penhor prevalece sobre o privilégio creditório mobiliário geral da Segurança Social e sobre o privilégio mobiliário geral dos trabalhadores, e este último sobre o da Segurança Social. E compreende-se perfeitamente que o penhor deva ter preferência sobre os privilégios mobiliários gerais [Já as preferências estabelecidas entre os próprios privilégios creditórios mobiliários resultam da avaliação que a lei faz das prioridades dos interesses em jogo, embora (e como apontam Pires de Lima-Antunes Varela, ob. cit., anotação ao artigo 747.º) não se deixe de fazer intervir, em certa medida, o arbítrio.], na medida em que constitui uma garantia de natureza real (firmada necessariamente por contrato, e sobre que a parte credora estabeleceu as suas legítimas expetativas garantísticas), que beneficia de sequela e é oponível erga omnes, enquanto o privilégio mobiliário geral (que não tem natureza real) está talhado para conferir uma mera preferência de pagamento relativamente aos créditos comuns.
É tudo isto que representa a normalidade do sistema em sede de preferências creditórias, sendo de presumir, em caso de conflito de normas e na dúvida, que o legislador adotou a solução que está estabelecida como constituindo a normalidade, e não a solução decorrente da exceção (desvio) a essa normalidade.”

             

Esta linha argumentativa e seu resultado são de sufragar[2] e a eles se aderem para a resolução da revista, de acordo com o art. 663º, 5, 2ª parte, ex vi art. 679º, do CPC.[3]


3.3. Aplicando ao caso.
Verifica-se que, no que respeita à graduação dos créditos para pagamento pelo valor da verba de € 75.000,00, concorrem na mesma graduação crédito do banco garantido por penhor, créditos com privilégio mobiliário geral emergentes de contrato de trabalho, créditos com privilégio mobiliário geral do Fisco por impostos e da Segurança Social (por “contribuições, quotizações e juros”).

De acordo com o exposto – e aplicação dos arts. 666º, 1, 747º, 1, a), e 749º, 1, do CCiv., 333º, 1, a), 2, a), do CT, e 204º, 1, do CRCSPSS –, a ordem de prioridade que compete a esses créditos é aquela que deriva desses critérios legais gerais: em primeiro lugar, o crédito pignoratício (titulado pelo credor reclamante e aqui Recorrente); em segundo lugar, os créditos laborais e, nos termos decididos, o Fundo de Garantia Salarial; em terceiro lugar, os créditos fiscais e da Segurança Social (sem prejuízo da sua priorização, por força da melhor interpretação do art. 747º, 1, a), do CPC).

Merecem, por isso, ter vencimento as Conclusões da Recorrente.


III) DECISÃO

Em conformidade, acorda-se em julgar procedente a revista admitida como excepcional, revogando-se o acórdão recorrido quanto ao decidido sobre o segmento da sentença de 1.ª instância impugnada, devendo, quanto ao respectivo dispositivo decisório sob C), os créditos graduados em segundo lugar, titulados pela ora Recorrente, passarem a ocupar o primeiro lugar da graduação, com prejuízo dos créditos do Instituto da Segurança Social.
Em consequência, modifica-se e reordena-se esse mesmo dispositivo decisório pela forma que segue:
“Graduar os referidos créditos, para pagamento pelo produto da venda dos bens integrados na massa insolvente, nos seguintes termos:
1. Pelo valor da verba de € 75.000,00, dar-se-á pagamento pela seguinte ordem: 1.º Novo Banco, S.A., quanto ao crédito garantido por penhor; 2.º Trabalhadores, pelos montantes não adiantados pelo FGS, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes; 3.º Fundo de Garantia Salarial; 4.º Autoridade Tributária, quanto aos créditos privilegiados de IRS e IRC; 5.º Instituto da Segurança Social, quanto aos créditos privilegiados; 6.º Créditos comuns, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes; 7.º Créditos subordinados, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes”.

Custas da revista pelos Credores Recorridos.


STJ/Lisboa, 5 de Abril de 2022




Ricardo Costa (Relator)

Luís Espírito Santo

António Barateiro Martins (Vencido, nos termos da declaração que se junta, após Sumário)



SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).


___________________



Voto de Vencido

Julgaria improcedente o recurso e confirmaria a graduação efetuada no acórdão recorrido.
Quando concorrem e têm em simultâneo que ser graduados créditos garantidos por penhor, créditos garantidos por privilégio mobiliário geral do Estado, da Segurança Social e dos Trabalhadores, o disposto no art. 204.º/2 do CRCSPSS (idêntico ao anterior art. 10.º/2 do DL 103/80, de 09-05) – segundo o qual o privilégio mobiliário geral da Seg. Social “prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior” – coloca-nos perante um verdadeiro “imbróglio jurídico”.
Os vários preceitos legais aplicáveis dão soluções simples e lineares para as várias hipóteses de “concursos/graduações bilaterais” (entre tais 4 créditos), mas quando se agregam as soluções dos vários “concursos/graduações bilaterais” (e estão simultaneamente presentes um crédito da SS com privilégio mobiliário geral e um crédito garantido por penhor) é impossível encontrar uma solução/graduação que seja coerente com as graduações dos vários “concursos bilaterais”: é impossível, num raciocínio linear, conciliar a aplicação conjunta/simultânea do disposto no art. 204.º/2 do CRCSPSS com o disposto nos art. 333.º/2/a) do C. Trabalho, 204.º/1 do CRCSPSS e 749.º e 666.º, ambos do C. Civil.
Efetivamente, em hipótese de “concurso/graduação quadrilateral” (entre os 4 créditos referidos), para o crédito da S.S. (que goza de privilégio mobiliário geral) ficar à frente do crédito que goza de penhor, isso significa uma de duas coisas: ou ficam os créditos dos Trabalhadores e do Estado (que gozam de privilégio mobiliário geral) atrás do penhor e, então, ficam também atrás do crédito da SS (que goza de privilégio mobiliário geral), o que não respeita o que resulta dos art. 333.º/2/a) do C. Trabalho e 204.º/1 do CRCSPSS; ou ficam os créditos dos trabalhadores e do Estado (que gozam de privilégio mobiliário geral) à frente do crédito da SS (que goza de privilégio mobiliário geral), o que, ficando o penhor em 4.º e último lugar, não respeita o que resulta dos arts. 749.º e 666.º do C. Civil.
Para ultrapassar tal “imbróglio”, foram tentados dois caminhos:
- a inconstitucionalidade do art. 10.º do DL 103/80 – idêntico ao atual art. 204.º do CRCSPSS – por violação dos princípios da igualdade e da confiança ínsitos no art. 2.º da CRP e decorrentes de Estado de Direito, o que assim não foi considerado pelo Tribunal Constitucional;
- uma interpretação restritiva do art. 204.º/2 do CRCSPSS, segundo a qual tal preceito apenas será aplicável no caso de estarem em confronto créditos da SS e créditos garantidos por penhor.
É justamente este último caminho que é seguido na posição que faz vencimento.
Caminho que não acompanho – em linha com o que já defendi em acórdão que relatei, em 21/05/2019, na Relação de Coimbra – por tal interpretação restritiva fazer depender a posição relativa do crédito da SS da circunstância, aleatória, de também estarem ou não a concurso (para além do penhor) créditos do Estado ou dos Trabalhadores (com privilégio mobiliário geral).
Ademais, continuo a entender que o disposto no art. 204.º/2 do CRCSPSS (e, antes, no art. 10.º/2 do DL 103/80 de 9/05) exprime o valor decisivo e a importância que hoje assume para o Estado e para os cidadãos a sustentabilidade da Segurança Social, a qual, pela sua enorme repercussão social, sobreleva aos direitos conferidos pelos restantes créditos: o legislador – ciente de que, sem um preceito como o do art. 204.º/2 do CRCSPP, o penhor ficaria sempre no primeiro lugar de qualquer graduação (entre os 4 referidos créditos) – veio dizer que o privilégio mobiliário geral da Seg. Social “prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”, ou seja, o legislador, no art. 204.º/2 do CRCSPSS, veio dizer que o privilégio mobiliário geral da Seg. Social é que passa a fica sempre à frente e em primeiro lugar (e para tal disse que passa a ficar à frente, a “prevalecer”, sobre o crédito/garantia que até ali ficava sempre à frente e em primeiro lugar: o penhor).
Daí que confirmaria a graduação do acórdão recorrido, com o identificado crédito da SS em 1.º lugar e com o crédito garantido por penhor logo a seguir, em 2.º lugar.

(António Barateiro Martins)

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[1] Processo n.º 775/15.2T8STS-C.P1.S1, Rel. JOSÉ RAINHO, in www.dgsi.pt (com sublinhados nossos).
[2] Encontra-se uma precursora decisão de teor coincidente no Ac. do STJ de 22/4/1999, processo n.º 98B1084, Rel. HERCULANO NAMORA, com Sumário in www.dgsi.pt (“I – O n.º 2 do artigo 10º, DL 103/80, de 9/5 só dispõe para o caso de concurso entre créditos do CRSS e os garantidos por penhor, situação em que aqueles prevalecem sobre estes. II – Quando, além daqueles, concorrem créditos de impostos ao Estado, há que respeitar a norma do n.º 1, daquele artigo 10º, conjugada com a do artigo 749º, Código Civil, graduando-se em primeiro lugar o crédito pignoratício, seguindo-se o do Estado, por impostos, e, por fim, o crédito do C.R.S.S.”).                                              
O lastro desta interpretação do STJ, não obstante as conhecidas divergências, encontra incorporação significativa na jurisprudência (quanto à mais recente) das Relações (sempre in www.dgsi.pt): Relação de Lisboa, v. Acs. de 8/2/2022, processo n.º 857/21.1T8VFX-A. L1-1, Rel. ISABEL FONSECA, de 9/11/2021, processo n.º 211/11.3TYLSB-C.L1-1, Rel. RENATA LINHARES DE CASTRO, e de 24/11/2020, processo n.º 1536/10.0TYLSB-G.L1-1, Rel. AMÉLIA SOFIA REBELO; Relação do Porto, v. o Ac. de 11/9/2018, processo n.º 1211/17.5T8AMT-E.P1, Rel. VIEIRA E CUNHA; Relação de Guimarães, v. os Acs. de 8/7/2020, processo n.º 159/15.2T8VLN-B.G1, Rel. FERNANDO FERNANDES FREITAS, e de 13/10/2016, processo n.º 764/11.6TBBCL-I.G1, Rel. MARIA DOS ANJOS NOGUEIRA; Relação de Évora, de 5/11/2015, processo n.º 284/14.7TBRMR-A.E1, Rel. MÁRIO SERRANO.
[3] Em sentido convergente, com salvaguarda da excepcionalidade da norma contemplada pelo art. 204º, 2, do CRCSPSS (também na versão do art. 10º do DL 103/80, de 9 de Maio), v. SALVADOR DA COSTA, “O concurso de credores no processo de insolvência"”, Revista do CEJ n.º 4 (número especial), 2006, 1º semestre, pág. 99, ANTÓNIO CARVALHO MARTINS, Concurso de credores. Reclamação, verificação e graduação de créditos, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2001, nt. 147 – pág. 109, RUI PINTO, A ação executiva, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 853, FÁBIO CASTRO RUSSO/NUNO SOUSA E SILVA, “Artigo 749”, Comentário ao Código Civil. Direito das obrigações. Das obrigações em geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 1000, ALEXANDRE DE SOVERAL MARTINS, Um curso de Direito da Insolvência, Vol. I, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, págs. 394-395 e nt. 153, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Artigo 749º”, Código Civil comentado. II. Das obrigações em geral, Almedina, Coimbra, 2021, págs. 909-910 e nt. 7.