Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1059/13.6TTCBR.C1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: CHAMBEL MOURISCO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Data do Acordão: 06/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

A conduta de um sinistrado ao conduzir um veículo motorizado, com uma cilindrada não superior a 50 cm cúbicos, numa estrada nacional, desrespeitando um sinal de trânsito que proibia o trânsito a peões, a animais e a veículos não automóveis, tendo embatido, em circunstâncias não concretamente apuradas, num veículo automóvel imobilizado na berma, com as luzes avisadoras de perigo ligadas, não pode ser considerada um comportamento temerário em alto e elevado grau, suscetível de integrar o conceito de negligência grosseira, passível de descaracterizar  o acidente.

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 1059/13.6TTCBR.C1.S1 (Revista) - 4ª Secção

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. AA intentou a presente ação emergente de acidente de trabalho contra Seguradoras Unidas, S.A., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe:

 - A quantia de € 766,61, a título de despesas médicas e medicamentosas já efetuadas desde a data do acidente até à presente data, acrescida do valor das despesas médicas e medicamentosas que venha a efetuar para a sua completa recuperação, cujo montante não é possível determinar na presente data, pelo que deverão ser liquidadas em sede de execução de sentença;

 - O valor da pensão anual e vitalícia de € 9.889,20, com início à data de 2/10/2015, valor que subsistirá até à data em que vier a ser revista a incapacidade que lhe foi atribuída, nos termos do artigo 22.º n.º 2 da Lei 98/2209 de 4 de setembro;

- O montante de € 20.053,10, correspondente à soma das indemnizações por incapacidade temporária (70% nos 12 primeiros meses - 1.04.2013 a 1.04.2014 – €7 .691,60 + 75% nos restantes - € 8.241,00 - 2.04.2014 a 1.04.2015+€ 4.120,50 - 2.04.2015 a 1.10.2015), acrescida de juros de mora à taxa legal, atualmente de 4%, desde o vencimento de cada prestação até efetivo e integral pagamento, que atualmente se líquida em € 3.508,21.

Para o efeito, alegou, em síntese, que foi vítima de acidente no dia 1 de abril de 2013, pelas 17,15 horas, ao Km ….., da EN ….., limites de …., …. quando efetuava o percurso do local de trabalho para a sua residência, conduzindo o seu veículo motorizado matrícula …-ES-…, tendo embatido no lado esquerdo traseiro do ligeiro de passageiros …-…-AE.

2. A Ré contestou, alegando que o acidente ocorreu devido a negligência grosseira do sinistrado, por este, aquando do embate, circular por uma via em que o trânsito era proibido ao veículo que conduzia, que tinha uma cilindrada inferior a 50 cm3.

3. O ISS – IP – Centro Distrital de …. e Centro Nacional de Pensões, deduziu pedido de reembolso do montante de € 24.554,01 – sendo € 18.772, 26, a título de pagamento de prestações por subsídio de doença, no período compreendido entre 01/04/13 a 30/03/16 e € 5.781,75, a título de prestações pagas por pensão de invalidez, a partir de 31/03/16 -, que pagou ao aqui sinistrado na sequência do acidente em causa nos autos.

4. A Ré Seguradora respondeu concluindo pela improcedência do pedido do ISS com a sua consequente absolvição do pedido.

5. Foi admitida a ampliação do pedido do ISS, no montante de € 5.607,60 correspondente ao valor da pensão de invalidez, paga ao Autor, desde abril de 2018 a dezembro de 2019

6. No apenso para fixação da Incapacidade foi considerado que o Autor se encontra afetado por uma Incapacidade Permanente Parcial – IPP de 0,732, com Incapacidade para o Trabalho Habitual – IPATH, tendo sido fixada a data da alta em 18.09.2019.

7. Foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente, tendo absolvido a Ré seguradora, dos pedidos formulados pelo Autor e pelo, ISS – IP – Centro Distrital  ….. e Centro Nacional de Pensões.

 8.  O Autor interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação que, por acórdão de 18/12/2020, retificado por acórdão de 12/2/2021, decidiu condenar a Ré a pagar ao Autor:

a) Uma pensão anual e vitalícia, no montante anual de € 7.102,64, desde 19 de setembro de 2013 (por ser o dia seguinte ao da alta), a pagar, adiantada e mensalmente, até ao 3.º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, sendo os subsídios de férias e de Natal, cada um no valor de 1/14 da pensão anual, respetivamente, pagos nos meses de junho e novembro;

b) - Um subsídio por situações de elevada incapacidade permanente no valor de € 4.609,97.

c) - Uma indemnização por ITA desde 02.04.2013 até 18.09.2019 no valor de € 47.278,50.     

d) - As despesas suportadas com assistência médica medicamentosa cuja quantificação se relega para liquidação de sentença.

e) Juros de mora, à taxa legal, sobre as prestações assinaladas em a), b) e c) desde o seu vencimento até pagamento.

A Ré foi ainda condenada a pagar, a título de reembolso, ao ISS, a quantia de € 18.772,26, a título de subsídio de doença, e a quantia de € 11.389,35 a título de pensão de invalidez, acrescidas dos juros moratórios à taxa legal desde a data da notificação da seguradora para contestar o pedido de reembolso, quantias estas que serão deduzidas nas prestações em que a seguradora foi condenada a pagar ao sinistrado em consequência do acidente de trabalho.

9. Inconformada com esta decisão, a Ré interpôs recurso de revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

1) A, ora, Recorrente não concorda com a decisão do Tribunal da Relação …. que revoga a douta sentença do Tribunal de Primeira Instância e não descaracteriza o acidente dos autos como de trabalho.

2) Uma vez que, face à matéria de facto dada como provada não poderia o acórdão recorrido concluir que não se verificou negligência grosseira do Recorrido, mas apenas negligência e que, mesmo que tivesse concluído pela verificação da negligência grosseira, tal não foi causa única e exclusiva da ocorrência do acidente dos autos.

3) O alegado desconhecimento da lei pelo ora Recorrido não pode servir de justificação para retirar a ilicitude dos seus atos, nomeadamente do facto de circular naquela estrada nacional quando o mesmo lhe era proibido por lei,

4) Já que, devido a existência do sinal C4E no nó de entrada para a EN ……, estava proibida a circulação de motociclos de cilindrada inferior a 50 cm3 – que era exatamente o motociclo conduzido pelo ora Recorrido e que esteve envolvido no acidente dos autos.

5) Ora, usando como argumento o desconhecimento da lei, o acórdão recorrido viola o disposto no artigo 6.º do CC.

6) Acresce que, o acidente dos autos ocorreu por negligência grosseira do ora Recorrido e por sua culpa única e exclusiva, em concreto, devido à sua conduta irresponsável e temerária ao circular na EN……, que o próprio acórdão recorrido equipara a autoestrada, com um veículo de cilindrada inferior a 50cm3, o que não lhe era permitido, e motivo pelo qual o ora Recorrido conduzia junto à berma da estrada – até porque embateu na traseira de um veículo se encontrava imobilizado na berma da estrada.

7) E ainda pelo facto de, tal como decorre da matéria de facto dada como provada, o veículo no qual foi o motociclo conduzido pelo ora Recorrido embater estar parado na berma há pelo menos alguns minutos e com a sinalização de perigo ligada (quatro piscas),

8) Nada mais se podendo concluir se não pela condução descuidada e censurável do ora Recorrido, pois se este tivesse visto e atentado ao veículo automóvel imobilizado com os quatro piscas na berma, teria travado e/ou se desviado daquele.

9) Assim, resulta da matéria de facto dada como provada que o acidente “sub judice” ocorreu por culpa única e exclusiva do ora Recorrido, devido à sua conduta altamente negligente e censurável.

10) Em face do exposto, e com o devido respeito, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação …… viola a lei substantiva, nomeadamente o artigo 6.º do CC e em especial o disposto na al. c), do n.º 1, do artigo 14.º da LAT, ao abrigo do disposto no artigo 674.º, n.º1, al. a), do CPC; ao não descaracterizar o acidente dos autos como de trabalho, ao contrário da douta decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância.

11) Por fim, acresce que, certamente por mero lapso de escrita e/ou de cálculo, a ser corrigido pelo Tribunal da Relação ….., foi indicado o valor de € 16.086,43, a título de pensão anual e vitalícia, quando a pensão anual e vitalícia correspondia a € 7.102,64. Mas caso assim o Tribunal “a quo” não entenda, o que apenas por mera cautela de patrocínio se equaciona, então é também o valor da condenação, em concreto o valor da pensão anual e vitalícia eventualmente devida ao ora Recorrido, objeto de recurso.

10. O Autor contra-alegou, tendo concluído:

- A decisão sub judice deve ser confirmada;

Com efeito,

- Não existiu negligência grosseira do sinistrado;

 Sem prescindir

- O facto de a condutora do veículo ter praticado contraordenação grave nos termos do disposto na al.g) do art.º 145º do C.E. por referência ao art.º 1º z) do mesmo diploma, é suficiente para impedir a descaracterização do acidente.

11. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que a revista deve ser negada.

12. Nas suas conclusões, a recorrente sustenta que o acórdão recorrido deve ser revogado e repristinada a sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, pois o acidente deve ser descaracterizado, por ter sido originado exclusivamente por negligência grosseira do sinistrado, que circulava de forma descuidada numa estrada interdita ao veículo que conduzia, embatendo num veículo automóvel imobilizado na berma, que tinha as luzes avisadoras de perigo ligadas.

A questão suscitada no n.º 11 das conclusões da recorrente, referente ao valor da pensão, está ultrapassada, uma vez que foi proferido acórdão, em 12/2/2021, que procedeu à retificação pretendida.

II

A) Fundamentação de facto:

O Tribunal da Relação fixou a seguinte factualidade:
1- O Autor nasceu em 00 de ... de 1961;

2- O Autor foi vítima de acidente, no dia 1 de abril de 2013, ao Km ….., da EN …., limites  ….., …., quando, conduzindo o seu veículo motorizado …-ES-…, …., embateu no lado esquerdo traseiro do ligeiro de passageiros …-…-AE;

3- À data, o Autor trabalhava nas instalações  …., da ..., para quem desempenhava funções correspondente à categoria profissional de …., mediante o salário anual global de €10.988,00 (700,00x14+108,00x11);

4- A responsabilidade infortunística, por acidentes de trabalho, dos trabalhadores da empregadora acima referida, encontra-se transferida para a aqui Ré, Companhia de Seguros - Seguradoras Unidas SA, (antes Tranquilidade);

5- Em consequência do acidente, o Autor sofreu várias lesões traumáticas, com fratura exposta dos ossos da perna direita, fratura cominutiva do polo distal da rótula direita e fratura luxação do acetábulo à direita, encontrando-se (à data da apresentação da p.i.) a aguardar cirurgia, para PTA (Prótese Total da Anca);

6- Na tentativa de conciliação realizada na fase não contenciosa dos autos, a Ré aceitou a existência de apólice vigente á data do acidente de viação, mediante a qual a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho dos trabalhadoras da ... estava para si transferida, bem como sendo a do Autor com base no salário global anual de €10.988,00 (700x14+108,00x11) mas declinou a responsabilidade por considerar que o autor circulava numa via em que o trânsito era proibido ao veículo que tripulava, invocando que á data, existia no nó de entrada da aludida via de transito, um sinal C4E que proíbe a circulação a peões, animais e veículos que não sejam automóveis nem motociclos com cilindrada superior a 50 cm3;

7- Na mesma diligência o sinistrado aceitou o acordo ali proposto, e designadamente quanto às circunstâncias do acidente, resultado do exame médico e prestações reclamadas;

8- O Instituto de Segurança Social/IP, Centro Nacional de Pensões, no período de abril de 2018 a dezembro de 2019 pagou ao Autor, a título de pensão de invalidez, o montante de €5.607,60 (cinco mil, seiscentos e sete euros e sessenta cêntimos);

9- O acidente a que se alude em 2), ocorreu a horas, que não se conseguiram apurar, em concreto, mas seguramente, cerca de 10/15 minutos, após as 17.00 horas;

10- Naquele dia, o Autor tinha despegado, pelas 17.00 horas e dirigia-se para a sua residência, sita na Rua ….., …..;

11- As lesões a que se alude em 5) já estabilizaram e determinaram-lhe, uma Incapacidade Temporária Absoluta para o Trabalho - ITA - desde a data do acidente, até 18/09/19;

12- Em 8/12/18, o Autor foi submetido a prótese total da Anca Direita;

13- À data do acidente em causa nos autos e desde a construção da EN…., nos moldes em que se encontra (duas vias de rodagem com duas faixas cada uma e separador central, conhecida por “Via Rápida”), existia, no nó de entrada da via de trânsito em causa (como em todos os demais de entrada na mesma e bem assim nas entradas da mesma via, em sentido contrário), um sinal C4E, que proíbe a circulação a peões, animais e veículos que não fossem automóveis, nem motociclos com cilindrada superior a 50 cm3;

14- O percurso efetuado naquele dia, era o percurso que o Autor utilizava habitualmente nas suas deslocações do seu local de trabalho para a sua residência;

15- Naquele dia, o Autor, circulava na via, em direção ….-…., próximo da berma do lado direito e, em circunstâncias não concretamente apuradas, embateu na traseira do lado esquerdo de um veículo, que, momentos antes, se tinha imobilizado na berma, após o que foi projetado, - a respetiva condutora ligou os (vulgo) 4 pisca “intermitentes”;

16-Após o acidente o Autor foi transportado para Serviço de Urgência ...... onde, no mesmo dia, foi sujeito a intervenção cirúrgica para redução incruenta da luxação da anca; RA + OS da rótula e RF e encavilhamento da tíbia direita e OS com placa 1/3 cana do perónio;

17-Foi novamente ao Bloco Operatório a 8 de abril de 2013 e 27.05.2013;

18-Tendo sido transferido para os cuidados dos CH..... a 16.04.2013, onde ficou internado até ao dia 9 de junho de 2013, data em que obteve alta com indicação de analgesia em SOS, marcha em canadianas, reabilitação física e revisão em consulta de Ortopedia;

19- Em consequência do acidente de que foi vítima, o Autor esteve em situação de incapacidade para o trabalho, por doença (baixa médica atribuída pelo ISS), ininterruptamente desde 01/04/13 até 30/03/16, tendo-lhe sido processado, pelo Instituto de Segurança Social /Centro Distrital  …., o subsídio de doença, no valor de €18.772,26;

20- O Autor esgotado o período máximo de concessão do subsídio de doença a que supra se alude, passou à situação de pensionista, com início a 31/03/16;

21- A prestação de invalidez, tem atualmente o montante € 207,01; (doc. juntos pelo ISS-folhas 224 a 226);

22- Com efeitos a 31/03/16 ao C.N.P. pagou ao Autor, a título de pensão e invalidez, o montante total de €5.781,75;

23- O veículo a que se alude no artigo 15º, encontrava-se imobilizado na berma da estrada, em virtude da sua condutora padecer de diabetes e ter sentido necessidade de colocar um pacote de açúcar debaixo da língua;

24- Pela GNR  …., foi levantado ao Autor, o Auto de CO. nº ….., pela prática de uma infração prevista no artigo 24º do Regulamento de Sinalização de Trânsito - RST - que proíbe o trânsito a peões, a animais e a veículos que não sejam automóveis ou motociclos: indicação de acesso interdito a peões, animais, veículos de tração animal, velocípedes, ciclomotores, motociclos e triciclos de cilindrada não superior a 50 cm3, quadriciclos, veículos agrícolas etc;

25- O Autor em consequência do acidente despendeu quantias em dinheiro em assistência médica e medicamentosa.

B) Fundamentação de Direito:

Como já se referiu, a recorrente pugna pela revogação do acórdão recorrido e pela repristinação da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, pois, em seu entender, o acidente deve ser descaracterizado, por ter sido originado exclusivamente por negligência grosseira do sinistrado, que circulava de forma descuidada numa estrada interdita ao veículo que conduzia, embatendo num veículo automóvel imobilizado na berma, que tinha as luzes avisadoras de perigo ligadas.

Vejamos a argumentação do acórdão recorrido, que culminou com a revogação da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, que absolveu a, ora, recorrente dos pedidos contra si formulados:

A lei não se basta, pois, para a descaracterização do acidente, com uma simples imprudência, uma mera negligência ou com uma distração. É necessário um comportamento temerário em alto e relevante grau, ostensivamente indesculpável, reprovado por um elementar sentido de prudência [que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão], e que constitua a única causa do acidente.

No caso, o sinistrado cometeu uma contraordenação tipificada como leve por não ter observado o sinal vertical C4 e que se encontrava colocado no acesso à EN …. e que proíbe o trânsito a peões, a animais e a veículos que não sejam automóveis ou motociclos (indicação de acesso interdito a peões, animais e veículos que não sejam automóveis nem motociclos com cilindrada superior a 50 cm3).

Como o sinistrado tripulava um velocípede com motor de cilindrada inferior a 50 cms cúbicos estava-lhe interdito circular pela referida EN ….. no troço desta estrada que é conhecido com “via rápida  …..”.

Mas pelo facto de circular em desobediência ao referido sinal vertical, poder-se-á concluir que agiu ou se comportou com negligência grosseira?

Com negligência certamente, pois estava obrigado a ver o sinal e a saber que o seu velocípede com motor não podia entrar e passar a circular na EN …….

Todavia, conforme se lê no ac. STJ de 07.05.2014, in www.dgsi.pt/jstj, “em face de uma violação das regras de circulação rodoviária que a lei qualifique como “grave” ou “muito grave”, não pode concluir-se que isso implica necessária e automaticamente a existência de negligência grosseira em sede de acidentes de trabalho, uma vez que não são coincidentes os critérios para aferir da culpa num e noutro domínio”

Mais se escreveu no referido aresto que “….negligência grosseira deve ser apreciada em concreto - em função, nomeadamente, das condições do próprio sinistrado - e não com referência a um padrão abstrato de conduta.

Todas as circunstâncias relevantes devem ser consideradas em cada caso, nomeadamente, sendo caso disso, a particular fragilidade do lesado (v.g. idosos), a sua qualificação formal para conduzir (v.g. estar, ou não, habilitado para conduzir), a velocidade e o tipo de veículo envolvido no acidente (com ou sem motor e inerente grau de perigosidade), etc”.

No caso o trânsito não estava totalmente proibido na EN …...

Por essa estrada circulavam motociclos com cilindrada superior a 50 cms cúbicos e outros veículos automóveis.

Nestas circunstâncias, o sinistrado, pessoa de baixas habilitações literárias (tinha a profissão de ……) que por aquela estrada estava habituado a circular na ida e vinda do seu trabalho, com muita probabilidade estaria convencido que podia circular por essa via com a sua …. de cilindrada inferior a 50 cms cúbicos, o que mitiga em muito a sua culpa.

Aliás é a própria lei que tipifica a infração como leve, punível apenas com coima e não também com sanção acessória de inibição de conduzir como acontece com as contraordenações graves e muito graves.

Situação diferente seria a de o trânsito estar totalmente proibido nessa via (nos dois ou em um único sentido) ou pelo menos totalmente proibido ao trânsito de todos os motociclos, o que levaria uma pessoa com os conhecimentos do sinistrado a pensar que também ela não poderia circular nessa via dadas as semelhanças entre os veículos de duas rodas.

Assim, tal com se decidiu no aresto do STJ citado “olhando para o conjunto das circunstâncias envolvidas nos factos, não cremos que se lhe possa assacar uma “atitude especialmente censurável de leviandade ou de descuido”, nem que no facto se encontrem plasmados traços “particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez.

Em suma, não é possível afirmar, para os efeitos da disposição legal em questão, que o A. tenha agido com negligência grosseira, sendo certo que o ónus da prova dos correspondentes factos impendia sobre a demandada, por terem natureza impeditiva do direito à reparação, nos termos do artigo 342.º n.º 2, do Código Civil

Mas ainda que assim não se entenda, sem prescindir, diremos ainda que o evento infortunístico não pode ser atribuído exclusivamente à conduta do sinistrado.

O acidente ocorreu na EN …. que começa na …. na freguesia …. na N …. e termina em … junto da ponte-açude, atravessando os concelhos  …, ……, …. e …...

Todo o seu trajeto se desenrola ao longo da margem sul do Rio …...

Nos últimos quilómetros entre …. e …. a estrada tem perfil de auto estrada com duas faixas de rodagem, cada uma delas com duas vias, com separador central.

Este troço é vulgarmente conhecido por “Via Rápida  ….”.

Por ser uma estrada ou via equiparada a auto estrada, a paragem ou estacionamento na sua berma é proibida, constituindo a infração a esta proibição contraordenação grave nos termos do disposto na al. g) do n.º do artº 145.º do C. Estrada.

Deste modo, à condutora do veículo automóvel estava vedado parar na berma da via.

É certo que o veículo automóvel se encontrava imobilizado na berma, em virtude da sua condutora padecer de diabetes e ter sentido necessidade de colocar um pacote de açúcar debaixo da língua (facto 23).

Se bem que este facto seja suscetível de poder fazer diminuir ou até excluir a culpa da condutora na prática da infração, não é de excluir, à míngua de outros factos, a possibilidade da condutora poder parar noutro local, ou seja, fora da “via rápida  ….”, pois tudo depende da mais ou menor urgência da necessidade ingerir açúcar.

Por isso, não é descartar em absoluto alguma culpa da condutora da viatura automóvel quando parou numa via em que essa paragem na berma estava e é proibida.

E como se decidiu no Ac. STJ de 26.10.2017 proc0 156/14.5TBSRQ.L1.S1, Consultável em WWW.dgsi.pt “o concurso da culpa do condutor do outro veículo interveniente no acidente, ainda que em diminuto grau, é suficiente para impedir a descaracterização do acidente, pois a verificação desta depende da demonstração de que o acidente resultou, em exclusivo, da conduta culposa do sinistrado”.

Em jeito de conclusão dir-se-á:

- Inexistiu negligência grosseira por parte do sinistrado.

- Mesmo que se conclua pela sua verificação, esta negligência não foi causa exclusiva do evento infortunístico.

- Assim, o acidente não se encontra descaracterizado dando, em consequência, lugar à reparação. (fim da transcrição parcial da fundamentação do acórdão recorrido).

*

A noção legal de negligência grosseira dada pelo n.º 3, do art.º 14.º do Regulamentação do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais consiste num comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.

O Procurador-Geral Adjunto, Carlos Alegre (Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Almedina, pág. 63) sublinha que o legislador ao qualificar a negligência de grosseira está a afastar, implicitamente, a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contras.

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem sido consistente ao exigir que estejamos perante uma conduta do sinistrado que se possa considerar temerária em alto e relevante grau e que não se materialize em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão, competindo à entidade que invoca a descaracterização do acidente por negligência grosseira do sinistrado, alegar e provar os respetivos factos.

Atendendo ao caso concreto dos autos, vejamos a factualidade relevante, com vista a apurar se estamos perante uma situação em que o acidente deva ser descaracterizado nos termos do art.º 14, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, ou seja, se o mesmo proveio exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.

No dia 1 de abril de 2013, o Autor, terminada a jornada de trabalho pelas 17 horas, dirigiu‑se para a sua residência, sita na Rua ….., ….., conduzindo o seu veículo motorizado de matrícula …-ES-…, ….., com uma cilindrada inferior a 50 cm cúbicos.

O percurso efetuado naquele dia, era o percurso que o Autor utilizava habitualmente nas suas deslocações do seu local de trabalho para a sua residência. Cerca de 10/15 minutos, após as 17.00 horas, ao Km ……, da EN ……, limites  ….., ….., quando circulava em direção …..-……, próximo da berma do lado direito, em circunstâncias não concretamente apuradas, embateu com o veículo que conduzia no lado esquerdo traseiro do ligeiro de passageiros de matrícula …-…-AE. Este veículo tinha sido imobilizado na berma da estrada, com as luzes avisadoras ligadas, momentos antes do embate, em virtude de a sua condutora padecer de diabetes e ter sentido necessidade de colocar um pacote de açúcar debaixo da língua.

À data do acidente e desde a construção da EN…., nos moldes em que se encontra (duas vias de rodagem com duas faixas cada uma e separador central, conhecida por “Via Rápida”), existia, no nó de entrada da via de trânsito em causa (como em todos os demais de entrada na mesma e bem assim nas entradas da mesma via, em sentido contrário), um sinal C4E, que proíbe a circulação a peões, animais e veículos que não fossem automóveis, bem como motociclos com cilindrada igual ou inferior a 50 cm3.

Perante estes factos não existem dúvidas que o sinistrado não respeitou o sinal de trânsito C4E, que proíbe o trânsito a peões, a animais e a veículos não automóveis, na EN…., pois conduzia um motociclo com cilindrada igual ou inferior a 50 cm3.

O referido sinal C4E destina-se a permitir uma maior fluidez do trânsito e a sua violação não é considerada uma contraordenação muito grave ou grave.

Por outro lado, nos termos do art.º 24 º, do Código da Estrada o condutor deve regular a velocidade do veículo que conduz de modo a poder pará-lo no espaço livre e visível à sua frente.

A conduta do sinistrado, embora tenha violado as regras estradais, não pode ser considerada temerária em alto e relevante grau ao ponto de se qualificar de negligência grosseira.

Sublinhe-se que nos termos do ponto 15 dos factos provados o embate ocorreu em circunstâncias não concretamente apuradas, não resultando do conjunto dos factos qual foi a dinâmica que envolveu o embate.

Assim, não se verificando, a nosso ver, que o embate proveio de negligência groseira do sinistrado, não importa para os presentes autos apurar se terá ou não havido culpa da condutora do veículo ligeiro de passageiros de matrícula …-…-AE, que parou numa via em que só excecionalmente é possível fazê-lo.

 

III

Decisão:

Face ao exposto acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas a cargo da recorrente.

Anexa-se sumário do acórdão.

Lisboa, 8 de junho de 2021.

Chambel Mourisco (Relator)

Nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 20/2020, de 1 de maio, declaro que as Exmas. Senhoras Juízas Conselheiras adjuntas Maria Paula Moreira Sá Fernandes e Leonor Maria da Conceição Cruz Rodrigues votaram em conformidade.