Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
26422/18.2T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DANOS FUTUROS
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
PRINCÍPIO DA DIFERENÇA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 09/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – Em sede de ressarcimento do dano patrimonial futuro, e tendo o dano repercussão sobre a necessidade de aquisição ou produção de rendimentos, por parte do lesado, deve ser ressarcido atribuindo um capital que se venha a esgotar no final da vida do lesado - “vida do lesado”, e não apenas a respectiva “vida activa”, já que, mesmo na situação de pensionista, existem, na normalidade da vida, trabalhos e actividades que se desenvolvem e que envolverão um esforço necessariamente superior.

II – A indemnização pela perda da capacidade de trabalho atingirá um montante tendencialmente equivalente à respectiva perda total e efectiva, tendo por norte “a medida da diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos” – artº 566º nº 2 CCiv, sem prejuízo de um apelo fundamental à equidade – artº 566º nº 3 CCiv.

III – “O juízo prudencial e casuístico em matéria de dano não patrimonial deve ser mantido, salvo se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos padrões que se entende deverem ser adoptados numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade .

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça*


                  

Referências

AA, BB e CC intentaram a presente acção com processo de declarativo e forma comum contra Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A., formulando o seguinte pedido de condenação da Ré:

-A pagar à Autora indemnização no montante de € 12.499,28 (doze mil e quatrocentos e noventa e nove Euros e vinte e oito cêntimos) a título de danos patrimoniais emergentes, que incluem despesas com consultas, tratamentos dentários e perícias;

- A pagar à Autora os montantes que esta tiver que despender com medicação, tratamentos e consultas médicas que sejam necessárias para reduzir ou eliminar lesões geradas pelo acidente, quer as já detectadas quer as eventualmente ainda não detectadas;

- A pagar à Autora indemnização no montante de € 49.945,70 (quarenta e nove mil e novecentos e quarenta e cinco Euros e setenta cêntimos) a título de danos patrimoniais futuros já determinados, na vertente de lucros cessantes;

- A pagar à Autora os montantes de lucros cessantes ainda não determináveis, mas que eventualmente se verifiquem no futuro;

- A pagar à Autora indemnização no montante de € 85.000,00 (oitenta e cinco mil Euros) a título de danos não patrimoniais;

- A pagar ao 2.º Autor indemnização no montante de € 5.000,00 (cinco mil Euros) a título de danos não patrimoniais;

- A pagar à 3.ª Autora indemnização no montante de € 6.500,00 (seis mil e quinhentos Euros) a título de danos não patrimoniais.

Invocam, para o efeito, o acidente de viação em que a 1ª Autora foi atropelada por um veículo automóvel, cujo proprietário havia transferido para a Ré a respectiva responsabilidade pelos danos derivados da circulação do veículo, Ré essa que, aliás, assumiu inteira responsabilidade pela ocorrência do sinistro.

Mais invocam os danos patrimoniais e não patrimoniais para eles AA. decorrentes do evento em causa e que contabilizam nos montantes peticionados.

A Ré contestou fundamentalmente impugnando a razoabilidade ou adequação desses referidos montantes.


As Decisões Judiciais

Na sentença proferida na Comarca, foi julgado o pedido formulado na acção parcialmente procedente e condenada a Ré a pagar à 1ª Autora a quantia global de € 21.879,28, fundada nas seguintes parcelas - € 12 000 (danos não patrimoniais), € 6 000 (dano biológico), € 3 879,28 (despesas ocorridas por força do acidente).

A decisão foi alterada na Relação para € 20 000 (dano biológico/não patrimonial futuro) e € 60 000 (danos não patrimoniais), mantendo-se o mais decidido.

Conclusões da Revista da Ré:

1ª - O Supremo Tribunal de Justiça arbitrou as seguintes indemnizações a título de dano biológico:

- Incapacidade de 3 pontos, € 8 500,00, 20-12-2017;

- Incapacidade de 5 pontos, com dificuldades acrescidas na realização de tarefas que impliquem esforço e força, € 10 000,00, 27-04-2017

- Incapacidade de 2 pontos, 15 anos de idade, € 6 000,00, 16-03-2017;

- Incapacidade de 7 pontos, sem afectação da capacidade e do exercício da actividade profissional habitual, 35 anos de idade, € 10 000,00, 06-10-2016;

- Incapacidade de 5 pontos, compatível com o exercício da actividade profissional, 32 anos de idade, € 10.000,00, 02-06-2016;

- Incapacidade de 2 pontos, compatível com actividade profissional, embora com limitações, 25 anos de idade, € 11.000,00, 02-06-2016;

- Incapacidade de 3 pontos, compatível com actividade habitual, com esforços suplementares, 42 anos de idade, € 15.000,00, 07-04-2016;

- Incapacidade de 3 pontos, compatível com o exercício da actividade habitual mas implicando esforços suplementares, 28 anos de idade, € 20.000,00, 17-12-2015;

- Incapacidade de 4 pontos, implicando esforços suplementares numa actividade normal, 10 anos de idade, € 12.500,00, 11-02-2015.

2ª - Nestes casos julgados, um valor médio de € 103.000,00:34 = € 3.029,41 por ponto ou € 302.941,00 pelos 100 pontos.

3ª - Verifica-se uma clara desproporção entre o montante arbitrado pelo douto acórdão recorrido e os montantes normalmente arbitrados pelo Supremo Tribunal de Justiça para casos análogos, afigurando-se-nos que estamos igualmente perante um valor exorbitante que urge corrigir.

4ª – A valer o critério do douto acórdão impugnado a 100 pontos corresponderia a título de dano biológico o valor de € 1.000.000,00 social e economicamente absolutamente incomportável, e para a sociedade (comunidade) de segurados impossível de garantir;

5ª - A indemnização a arbitrar à recorrida a título de dano moral deverá ser fixada em não mais de € 15.000,00.

6ª - O douto acórdão recorrido aplicou erradamente o disposto nos arts. 483º, nº 1, 496º e 566º, nº 3 do Código Civil.


Por contra-alegações, a 1ª Autora sustenta:

a) Não deve o recurso interposto ser admitido, dado que a admissão violaria o disposto no número 3 do artigo 671.º, em conjugação com o disposto no número 2 do artigo 629.º e o disposto no número 1 do artigo 672.º, todos do CPC; e, caso assim não se entenda

b) Não deve ser dado provimento ao recurso, dada a deficiência e falta de especificação das alegações e conclusões apresentadas, assim como a irrelevância do valor que a recorrente considera ser o normalmente atribuído pelo dano morte quando dissociado de outras circunstâncias que o legislador prevê especificamente que sejam ponderadas na fixação da indemnização por danos morais e outras, relativas ao caso concreto, que os Tribunais estão obrigados a ponderar.

Factos Apurados

Do Acordo das Partes

A) No dia … de Julho de 2017, pelas 20h00, a Autora começou a atravessar a Rua …, em …, na passadeira localizada perto da esquina da mesma com a Rua …..

B) A Rua …. conta com duas faixas no sentido ascendente (em direcção ao Centro Comercial …) e duas no sentido descendente (em direcção ao Largo …).

C) A Autora começou a atravessar a passadeira após paragem dos veículos que circulavam em ambos os sentidos.

D) Quando se encontrava na passadeira, a Autora foi embatida pelo motociclo com matrícula ...-...-UN, marca …. (…), com mais de 250kg de peso.

E) O referido motociclo era conduzido por DD.

F) DD firmou com a Ré o “acordo de seguro”, denominado “Direct”, do ramo automóvel, pelo qual transferiu a esta, que aceitou, os riscos apontados na apólice n.º …295, junta por cópia a fls. 180-181 e cujo integral teor se dá aqui por reproduzido, nomeadamente a responsabilidade civil automóvel emergente da circulação do motociclo ...-...-UN.

G) A Ré assumiu a responsabilidade pela ocorrência do sinistro.

H) O condutor explicou o atropelamento com o facto de ter sido encadeado pelo sol.

I) O corpo da Autora foi projectado e percorreu uma distância entre 3 metros e 5 metros antes de embater na via de alcatrão.

J) O embate e posterior queda deram-se sem que a Autora tivesse tempo para fazer uso dos braços para proteger a cara e o corpo.

L) O INEM foi accionado e, após imobilização da Autora com colar cervical, esta foi transportada em ambulância para a urgência do Hospital …

M) Em consequência do embate a Autora sofreu dores cujo quantum doloris foi fixado no grau 4 de 7.

N) E ficou com um dano estético permanente fixado em grau 4 de 7.

O) CC nasceu a … de Janeiro de 2016 e é filha de BB e de AA.

P) A 1.ª Autora despendeu:

a) em consultas no Hospital de … e medicação, respectivamente, € 34,00 e € 15,28;

b) em avaliações de dano corporal € 1.130,00.


Da Discussão da Causa:

1) Em consequência do embate a Autora sofreu:

a) Traumatismo cranioencefálico;

b) Trauma da hemiface direita;

c) Trauma do joelho direito e esquerdo;

d) Hipertensão;

e) Dor lombar e nos joelhos;

f) Hematoma periorbitário direito, com condicionamento do encerramento da fenda palpebral;

g) Hematoma da hemiface direita;

h) Ferida incisa na região supra-orbitária direita, com exposição óssea;

i) Ferida incisa no mento;

j) Escoriação do cotovelo direito;

k) Escoriação dos joelhos;

l) Escoriação na face interna do pé direito;

m) Queixas álgicas generalizadas, com maior intensidade na região dos joelhos, bilateralmente, assim como na região lombar;

n) Hematoma subaracnóideo sulcal, do tipo pós-traumático, a nível occipital;

o) Dor facial, sobretudo pré-auricular e do lábio inferior;

p) Alteração da oclusão habitual;

q) Obstrução da fossa nasal direita;

r) Ferida inciso-contusa supraciliar direita, com exposição óssea;

s) Ferida incisa do lábio inferior esquerdo;

t) Visão turva e diplopia binocular na posição neutra do olhar;

u) Enfisema palpebral superior e inferior;

v) Dor na órbita direita;

w) Dor à palpação da pirâmide nasal;

x) Perda total do 21.º dente, provocada pelo trauma, com hemorragia recente do alvéolo;

y) Fracturas nos 11.º, 12.º e 22.º, ficando os mesmos fora do posicionamento da arcada e correndo o risco de perda de vitalidade;

bb) Feridas cutâneas;

cc) Fratura do complexo zigomáticomaxilar com afundamento marcado;

dd) Fractura dos ossos próprios do nariz (OPNs) e do septo;

ee) Fractura parasagital do palato e do terço médio com envolvimento das apófises pterigóides.

2) A Autora realizou 3 (três) TACs: dois TAC cranioencefálicas e uma TAC maxilo-facial.

3) A Autora realizou radiografias várias.

4) A 15 de Julho de 2017, a Autora foi submetida, sob anestesia geral, para:

i) Colocação de Barras de Erich na arcada dentária superior;

ii) Abordagem vestibular superior direita, infraorbitária e translesional por ferida supraciliar direita para exposição de focos de fractura;

iii) Redução de fractura do complexo zigomaticomaxilar com gancho de Ginest e osteossíntese do pilar zigomaticomaxilar com placa de 4 furos, rebordo orbitário com placa curva e sutura zigomáticofrontal com placa 4 furos;

iv) Redução de fractura dos ossos próprios do nariz com colocação de gg e merocell à direita + merocell à esquerda. Colocação de tala de alumínio de contenção externa;

v) Plastia de ferida supraciliar direita e infralabiais.

5) A Autora retirou tamponamento nasal às 72 h de pós-operatório.

6) Os cuidados pós-alta indicados foram:

i) Cumprir a medicação prescrita;

ii) Fazer dieta mole até à data da consulta;

iii) Não assoar nem fungar;

iv) Não fazer esforços nem pôr a cabeça para baixo durante 4 semanas.

7) A medicação prescrita foi:

i) Antibióticos;

ii) Analgésicos;

iii) Solução para lavagem de boca;

iv) Pomada oftalmológica.

8) A Autora esteve internada entre 14 de Julho de 2017 e 18 de Julho de 2017.

9) Nos momentos seguintes ao embate, quando a Autora avaliou a sua capacidade de movimento do corpo, receou ter ficado impossibilitada de andar, receio que se adensou durante o tempo em que esperou pela ambulância e mais ainda quando lhe foi colocado o colar cervical pelos elementos do INEM.

10) A Autora sofreu um défice funcional temporário total em 5 dias.

11) A Autora sofreu um défice funcional temporário parcial em 142 dias.

12) O período de repercussão total temporária na actividade profissional fixa-se em 55 dias.

13) O período de repercussão parcial temporária na actividade profissional fixa-se em 92 dias.

14) A Autora ficou a padecer de uma afectação permanente da integridade físico-psíquica de 2 pontos.

15) A Autora foi obrigada a permanecer, durante mais de um mês, em posições que impedissem que, em momento algum, tivesse a cabeça para baixo.

16) Durante esse mês a Autora saiu de casa apenas para actos médicos.

17) Durante o tempo de internamento, a Autora e o 2.º Autor não permitiram que a 3.ª Autora visitasse a primeira, de forma a poupar a criança ao choque causado pela aparência da Autora.

18) Quando a Autora saiu do internamento e durante as duas semanas seguintes, a 3.ª Autora ficou com a Avó, Mãe do 2.º Autor.

19) Quando a 3.ª Autora regressou a casa a 1ª Autora apresentava cicatrizes, inchaços, hematomas e pontos perfeitamente visíveis.

20) E por isso a 3.ª Autora olhava assustada para a 1.ª Autora e chorava.

21) Na primeira semana após ter voltado a pernoitar em casa dos pais, a menor ficava agarrada ao pai, 2.º Autor.

22) Só passado uma semana é que se aproximou da 1.ª Autora.

23) A 1.ª Autora era e é uma mulher preocupada com a sua aparência física, que cuidava e valorizava como fonte de auto-estima que lhe dava maior confiança na sua vida pessoal e profissional.

24) Foi colocada uma barra oral metálica.

25) Em consequência do que a Autora deixou de sorrir como antes.

26) Nas primeiras semanas, evitava de todo abrir a boca por causa das dores e para impedir que alguém conseguisse ver o interior da mesma.

27) Quando não conseguia evitar abrir a boca, passou a colocar uma mão à frente da mesma.

28) Depois da reconstrução temporária das peças dentárias perdidas e fracturadas e de ser retirada a barra metálica, a Autora manteve um sorriso fechado e adquiriu o hábito, perante familiares ou estranhos, de colocar a mão à frente da boca quando sorri e quando fala com pessoas que se encontram a curta distância.

29) A Autora continua em tratamentos dentários.

30) Durante um mês a Autora não conseguiu conduzir.

31) Após o período de internamento, a Autora foi a várias consultas médicas, tanto para tratamento como para acompanhamento.

32) Para as quais era transportada pelo 2.º Autor ou pela sua mãe durante o período em que não conseguiu conduzir.

33) A Autora foi a consultas no consultório do médico dentista Dr. EE.

34) À data da propositura da presente acção – 27.11.2018. – a Autora havia sido aconselhada a colocar um aparelho dentário.

35) O qual se manteria por pelo menos mais um ano e meio.

36) E proceder à colocação de implante definitivo em lugar do dente perdido e de facetas definitivas nas peças fracturadas.

37) Os factos referidos no ponto 1) e as dores e das inibições impediram a Autora de ajudar na lide da casa e no acompanhamento da filha menor, quer na vertente afectiva, quer na vertente pedagógica e escolar, quer na vertente lúdica e social.

38) A Autora, desde até antes de obter a sua licenciatura, desejava ardentemente ser Mãe.

39) A 3.ª Autora estava, à data, dependente dos pais e muito apegada a estes.

40) Após o embate e durante 3 meses a Autora não pôde ter a 3.ª Autora ao colo pelo risco de esta a atingir nas zonas da cara e do corpo ainda sensíveis e não a conseguia deitar para dormir, como fazia praticamente todas as noites antes do embate.

41) A Autora deixou de poder fazer refeições que apreciava, à base de alimentos sólidos, tendo, durante um mês e meio, por imposição médica, só fez dieta mole.

42) Na data da propositura da presente acção - 27.11.2018. - os médicos autorizaram a Autora a realizar uma dieta mais abrangente.

43) Mas a Autora não consegue morder e mastigar normalmente alimentos duros como maçãs, por ser difícil a habituação às peças dentárias artificiais e por ainda sentir alguns dos restantes dentes a abanar.

44) A 1.ª Autora vive desde 2012 com o 2.º Autor em comunhão de mesa, cama e habitação como se de marido e mulher se tratassem, à vista de todos.

45) Em consequência do embate, das lesões e dores provocadas e dos tratamentos, a Autora e o 2.º Autor estiveram impossibilitados de ter relações sexuais um com o outro durante dois meses.

46) Antes do embate a Autora não padecia de inibição sexual.

47) Devido à sua actual aparência ao nível da face, a Autora sente-se limitada e diminuída.

48) Tal consciência resultou em tristeza e na falta de segurança.

49) Antes do embate a Autora estava presente em convívios sociais, como jantares de aniversário de amigos e conhecidos e aqueles que o unido de facto promove com parceiros de negócios e clientes.

50) As consciências das alterações na sua aparência, nomeadamente ao nível da face, fizeram com que deixasse de estar presente com a mesma regularidade e, quando está presente, passou sentir-se mais constrangida.

51) A Autora exerce as funções de auditora e tem de estar presente nas instalações dos clientes.

52) O 2.º Autor, depois do contacto de uma das colegas da Autora que a acompanhava na altura do embate, dirigiu-se ao local onde o mesmo ocorrera.

53) Quando o 2.º Autor chegou ao local, a Autora estava imobilizada com colar cervical e a ser acompanhada pelos profissionais do INEM.

54) O 2.º Autor temeu pela vida da 1.ª Autora.

55) O 2.º Autor temeu que a 1.ª Autora não pudesse voltar a andar, ainda que sobrevivesse.

56) A face da Autora apresentava diversos cortes com sangue e dentes em falta ou partidos,

57) o que causou choque ao 2.º Autor.

58) Enquanto a Autora esteve impossibilitada de conduzir, o 2.º Autor ajudou-a nos tratamentos, assegurou o transporte para consultas médicas e as compras de medicação, ao mesmo tempo que continuava a desenvolver a sua actividade profissional.

59) Durante 3 meses foi o 2.º Autor quem transportou a 3.ª Autora de e para a escola, para festas de aniversário, para visitas a familiares.

60) O 2.º Autor sentiu a relação do casal afectada.

61) A Autora tornou-se mais sensível.

62) O 2.º Autor, a pedido da Autora, deixou de insistir para que esta o acompanhe a eventos profissionais.

63) Devido ao embate e lesões causadas, a 1.ª Autora deixou de ir levar e buscar a 3.ª Autora à escola e de estar presente em eventos, situações e circunstâncias em que, antes do embate, era presença habitual.

64) A 1.ª Autora despendeu em tratamentos dentários € 2.700,00.

65) A Autora está a frequentar o mestrado em Contabilidade e Fiscalidade Avançada no ISCTE, tendo já completado a componente lectiva e iniciado a componente da dissertação, prevendo-se que obtenha o grau de mestre.

66) A Autora é candidata a Revisora Oficial de Contas, tendo concluído com sucesso os quatro exames na respectiva Ordem Profissional, que são requisito da inscrição como ROC.

67) Os factos referidos em 65) e 66) irão resultar num aumento dos rendimentos anuais derivados do trabalho em metade do que aufere actualmente.

68) A consolidação médico-legal das lesões é fixável em 7 de Dezembro de 2017.

69) A 1.ª Autora auferiu de rendimentos:

i) no ano de 2016, € 18.727,53;

ii) no ano de 2017, € 17.790,00;

iii) no ano de 2018, € 10,400,00.


Factos Não Provados

a) Na especialidade de cirurgia maxilo-facial, foi necessária colocação de implante provisório e reabilitação provisória com uma coroa do 21.º dente.

b) Na mesma especialidade e devido às fracturas nas peças dentárias 11.º, 12.º e 22.º, foi necessário proceder à sua reconstrução provisória.

c) os quais provocaram dor.

d) No momento imediatamente anterior ao embate e nos momentos imediatamente após o mesmo, a Autora temeu pela vida.

e) A 9 de Março de 2018, a Autora ainda apresentava alodinia na região do supracílio direito e hipostesia oral.

f) Esteve acamada durante o internamento e nas duas semanas seguintes.

g) A 3.ª Autora é saudável e alegre.

h) A Autora tem perfeita definição e memória da imagem da Mãe e sente a sua falta.

i) Durante várias semanas a 3.ª Autora transmitia a ambos os progenitores, tanto por expressões faciais como por palavras, uma estranheza e impressão negativa, quando se referia aos cortes recentes, hematomas, cicatrizes, inchaços vários e pontos que cobriam a face da Autora.

j) A 3.ª Autora assistiu a inúmeros momentos de dor e desconforto da mãe, 1.ª Autora.

k) A Autora é obrigada a desenvolver mais esforços para desenvolver a sua actividade profissional.

l) Em consequência do embate a Autora ficou a padecer de incapacidade permanente parcial de 2,475%.

m) A Autora auferia:

i) Uma retribuição base no valor de € 2.100,00 (dois mil e cem Euros) brutos;

ii) Subsídio de férias no valor de € 2.100,00 (dois mil e cem Euros) e subsídio de Natal no mesmo valor;

iii) Subsídio de refeição no valor de € 6,83.

Conhecendo:

Em primeiro lugar, das questões suscitadas por contra-alegações, prejudiciais do conhecimento do recurso.

Quanto à norma do artº 671º nº 3 CPCiv, é evidente que a mesma não resulta beliscada pela interposição de um recurso de revista normal ou ordinária, aliás como tal recebido.

Quer o valor da causa, quer o valor da sucumbência admitem o recurso – artºs 629º nº 1 CPCiv e 44º nº 1 LOSJ, e a decisão de 1ª instância não foi confirmada, antes revogada e condenada a Ré em montante de sucumbência que admite recurso, como afirmado.

Quanto à deficiência das alegações e das conclusões, não se nos afigura tal.

As alegações invocam claramente o exagero de cálculo do dano biológico, apresentando como fundamento para tal qualificação a própria jurisprudência citada no acórdão recorrido, bem como recorrendo ao valor da mesma jurisprudência citada para achar o valor da média pontual de incapacidade, nos tribunais superiores.

Quanto ao valor achado para os danos não patrimoniais, igualmente pugna a Recorrente por um valor mais próximo do arbitrado em 1ª instância, para o efeito citando doutrina e a jurisprudência da Relação.

Como é sabido, o controlo da fixação equitativa da indemnização é admitido, no recurso de revista, por este Supremo Tribunal de Justiça, cabendo-lhe averiguar “se estavam preenchidos os pressupostos normativos do recurso à equidade; se foram considerados as categorias ou os tipos de danos cuja relevância é admitida e reconhecida; se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria ou a cada tipo, foram considerados os critérios que, de acordo com a legislação e a jurisprudência, deveriam ser considerados; e se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria ou a cada tipo, foram respeitados os limites que, de acordo com a legislação e com a jurisprudência, deveriam ser respeitados” (Ac. S.T.J. 14/1/2021, pº 644/12.8TBCTX.L1.S1 – Nuno Pinto Oliveira).

Sem prejuízo, “vem sendo reiteradamente sublinhado pelo STJ, o juízo de equidade de que se socorrem as instâncias na fixação de indemnização, alicerçado, não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em rigor, a resolução de uma questão de direito, pelo que tal juízo prudencial e casuístico deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos padrões que, generalizadamente, se entende deverem ser adoptados numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade (arts. 566.º, n.º 3, do CC, e 674.º, e 682.º, do CPC)” – cf. Ac. S.T.J. 17/5/2018, pº 952/12.8TVPRT.P1.S1 – Távora Victor.

Ou ainda, em suma:

“Quando o cálculo da indemnização haja assentado decisivamente em juízos de equidade, ao Supremo não compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar, já que a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto sub juditio” – Ac. S.T.J. 28/10/2010, pº 272/06.7TBMTR.P1.S1 – Lopes do Rego.


I

Como visto, a 1ª instância fixou à Autora uma quantia decorrente de “dano biológico” no valor de € 6 000, quantia essa ampliada na Relação para € 20 000.

Considerou-se, quer em 1ª instância, quer na Relação, enquanto componente do dano biológico, o valor dos danos patrimoniais futuros.

A sentença, para o efeito, levou em conta conhecidas fórmulas matemáticas e alguns critérios correctivos dessas mesmas fórmulas, dimanados deste Supremo Tribunal de Justiça.

Já a Relação se baseou, exclusiva e expressamente, nos padrões de avaliação jurisprudencial que cita.

Considerando, pois, a componente “perda de capacidade aquisitiva” como fundamentadora da avaliação do dano biológico, como tal impugnado por esta via de recurso, assumem relevância os seguintes considerandos:

- idade considerada da Autora, à data da consolidação das lesões – 29 anos; 

- défice funcional permanente de integridade físico-psíquica – 2 pontos;

- valor do vencimento anual declarado - € 18 727,53;

- perspectiva de aumento de rendimentos por valorização académica;

- esperança média de vida de 83 anos para o sexo feminino (dados de 2020, no sítio www.sns.gov.pt). 

Frise-se também que tem sido este Supremo Tribunal de Justiça do entendimento que, tendo o dano repercussão sobre a necessidade de aquisição ou produção de rendimentos, por parte do lesado, deve ser ressarcido atribuindo um capital que se venha a esgotar no final da vida do lesado - “vida do lesado”, e não apenas a respectiva “vida activa”, pois que, mesmo na situação de pensionista, existem, na normalidade da vida, trabalhos e actividades que se desenvolvem e que envolverão um esforço necessariamente superior.

Foi o que se discorreu, em reflexão e resumo sobre outra jurisprudência, no Ac. S.T.J. 8/5/2012, pº 3492/07.3TBVFR.P1 (Nuno Cameira) e expressa e desenvolvidamente se aludiu no Ac. S.T.J. 25/6/02 Col.II/133 (Garcia Marques) ou no Ac. S.T.J. 4/12/07, pº 07A3836 (Mário Cruz).

De um outro ângulo, significativamente se escreveu no Ac. S.T.J. 4/5/2010, pº 1288/03.0TBLSD.P1.S1 (Paulo Sá): “Em tese geral, as perdas salariais resultantes de acidentes de viação continuarão a ter reflexos, uma vez concluída a vida activa, com a passagem à “reforma”, em consequência da sua antecipação e/ou menor valor da respectiva pensão, se comparada com aquela a que teria direito se as expectativas de progressão na carreira não tivessem sido abruptamente interrompidas”.

Também a jurisprudência continuou a apontar para que existe uma expectativa de vida provável (não apenas de “vida activa”, ou produtora de rendimento) afectada pela incapacidade funcional, que sempre forçará a maior onerosidade (penosidade, esforço) no exercício de quaisquer tarefas da actividade diária e corrente – vejam-se os Acs. S.T.J. 10/10/2012, pº 632/2001.G1.S1 (Lopes do Rego), S.T.J. 28/3/2019, pº 1120/12.4TBPTL.G1.S1 (Tomé Gomes), S.T.J. 11/4/2019 Col.II/34 (Bernardo Domingos) ou S.T.J. 10/12/2019, pº 32/14.1TBMTR.G1.S1 (Maria do Rosário Morgado).

Acentua-se igualmente que as “fórmulas matemáticas” têm vindo a perder relevância com o tempo e a alteração das conjunturas sociais e económicas, hoje por hoje estabilizadas, ao menos na chamada “zona euro”, acentuando-se o facto de os juros das aplicações bancárias serem agora praticamente inexistentes e não sendo lícito formular a esse respeito qualquer tipo de hipóteses de alteração do circunstancialismo económico.

Portanto, a indemnização pela perda da capacidade de trabalho poderá atingir um montante tendencialmente equivalente à respectiva perda “bruta”, total, todavia uma reconstituição apegada à realidade, como a matéria é enquadrada na nossa lei civil, tendo por norte “a medida da diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos” – artº 566º nº 2 CCiv, sem prejuízo de um apelo geral (e fundamental) à equidade – artº 566º nº 3 CCiv.

Todos estes considerandos justificam plenamente o valor encontrado na Relação, de € 20 000.



II


Vejamos agora o ressarcimento dos danos não patrimoniais.

A 1ª instância, considerando, sobre o mais, o dano estético e o quantum doloris, fixou o valor do ressarcimento em € 12 000,00.

Já a Relação atribuiu a essa parcela indemnizatória o valor do € 60.000,00.

Para o efeito, alinhou os seguintes, e relevantes, dados de facto:

- Nos momentos seguintes ao embate, quando a Autora avaliou a sua capacidade de movimento do corpo, receou ter ficado impossibilitada de andar;

- a Autora sofreu um défice funcional temporário total de 5 dias;

- sofreu um défice funcional temporário parcial de 142 dias;

- ficou a padecer de uma afectação permanente da integridade físico-psíquica de 2 pontos;

- foi submetida a cirurgia com anestesia geral;

- foi obrigada a permanecer, durante mais de um mês, em posições que impedissem que, em momento algum, tivesse a cabeça para baixo;

- durante esse mês a lesada saiu de casa apenas para actos médicos;

- esteve apartada da filha de tenra idade para evitar que a menor se chocasse com a apresentação da lesada;

- é uma mulher preocupada com a sua aparência física, que cuidava e valorizava como fonte de auto-estima que lhe dava maior confiança na sua vida pessoal e profissional;

- foi-lhe colocada uma barra oral metálica;

- em consequência do que a Autora deixou de sorrir como antes;

- nas primeiras semanas, evitava de todo abrir a boca por causa das dores e para impedir que alguém conseguisse ver o respectivo interior;

- depois da reconstrução temporária das peças dentárias perdidas e fracturadas e de ser retirada a barra metálica, a Autora manteve um sorriso fechado e adquiriu o hábito, perante familiares ou estranhos, de colocar a mão à frente da boca quando sorri e quando fala com pessoas que se encontram a curta distância;

- continua em tratamentos dentários;

- o quantum doloris foi fixado no grau 4 numa escala de 7;

- o dano estético de grau 4 numa escala de 7;

- a lesada tinha 28 anos de idade à data do acidente.

- ficou com duas cicatrizes na face, uma no sobrolho e outra na zona da boca;

- perdeu um dente da frente e lascou outros;

- devido à sua actual aparência ao nível da face, a Autora sente-se limitada e diminuída; tal consciência resultou em tristeza e na falta de segurança.



III


Poderemos dizer que, ao liquidar o dano não patrimonial, o juiz deve levar em conta os sofrimentos efectivamente padecidos pelo lesado, a gravidade do ilícito e os demais elementos do “fattispecie”, de modo a achar uma soma adequada ao caso concreto, a qual, em qualquer caso, a avaliar pela equidade mas que deve evitar parecer mero simulacro de ressarcimento.

Os critérios jurisprudenciais constituem importante baliza para o raciocínio, posto que aplicáveis, ainda que por semelhança, ao caso concreto.

Não poderão todavia deixar de ser equacionados os factores de ponderação do dano levados em conta na sentença e no acórdão, pela gravidade que assumiram.

Ou seja, seguindo uma classificação doutrinal, meramente auxiliar de um raciocínio sobre os padecimentos morais, os autos patenteiam um avultado e notório “dano moral” propriamente dito, não tanto com base na incapacidade permanente (2% de incapacidade geral), mas no notório dano estético (as cicatrizes na face e as deficiências ao nível da dentição, perdida ou simplesmente afectada), conferindo um assinalável grau 4 em 7, e também na vertente do elevado “pretium doloris” (ressarcimento da dor física sofrida – grau 4, em 7) e na vertente do dano existencial e psíquico (o dano da vida de relação e o dano da dificuldade de “coping”, ou seja, do grau de dificuldade para suportar existencialmente a incapacidade), traduzido na maior penosidade das relações sociais e na ansiedade sentida em relação a básicos actos da vida de relação.

Tais danos vieram para acompanhar a Autora ao longo da sua vida, em idade ainda jovem.

Tudo ponderado, considerando o apelo à equidade (artº 496º nºs 1 e 3 CCiv), a quantia indemnizatória ascendeu ao montante de € 60 000,00 (sessenta mil euros), quantia essa que se tem por equitativa e da qual não existe, em termos globais, razão para divergir.

Veja-se, em apoio aproximativo da indemnização em causa (considerando as circunstâncias relevantes do caso, que não absolutas particularidades, não repetíveis nos casos concretos), os Acs. S.T.J. 25/5/2017, pº 868/10.2TBALR.E1.S1 – Lopes do Rego, S.T.J. 7/4/2016, pº 237/13.2TCGMR.G1.S1 – Maria da Graça Trigo, S.T.J. 10/12/2019, pº 32714.1TBMTR.G1.S1 - Maria do Rosário Morgado e S.T.J. 12/1/2021, pº 1307/14.5T8PDL.L1.S1 - Maria João Vaz Tomé.


Concluindo:

I – Em sede de ressarcimento do dano patrimonial futuro, e tendo o dano repercussão sobre a necessidade de aquisição ou produção de rendimentos, por parte do lesado, deve ser ressarcido atribuindo um capital que se venha a esgotar no final da vida do lesado - “vida do lesado”, e não apenas a respectiva “vida activa”, já que, mesmo na situação de pensionista, existem, na normalidade da vida, trabalhos e actividades que se desenvolvem e que envolverão um esforço necessariamente superior.

II – A indemnização pela perda da capacidade de trabalho atingirá um montante tendencialmente equivalente à respectiva perda total e efectiva, tendo por norte “a medida da diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos” – artº 566º nº 2 CCiv, sem prejuízo de um apelo fundamental à equidade – artº 566º nº 3 CCiv.

III – “O juízo prudencial e casuístico em matéria de dano não patrimonial deve ser mantido, salvo se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos padrões que se entende deverem ser adoptados numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade”.


Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pela Recorrente.


STJ, 8/9/2021


Vieira e Cunha (relatora)                                              

Abrantes Geraldes                                              

Tomé Gomes

Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade do Exmº Conselheiro António Abrantes Geraldes e do Exmº Conselheiro Manuel Tomé Soares Gomes, que compõem este coletivo.

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· Rec. 26422/18.2T8LSB.L1.S1. Relator – Vieira e Cunha. Adjuntos – Exmºs Conselheiros António Santos Abrantes Geraldes e Manuel Tomé Soares Gomes.