Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
596/08.9TYVNG-B.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
FRACÇÃO AUTÓNOMA
FRAÇÃO AUTÓNOMA
NEGÓCIO FORMAL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PROVA TESTEMUNHAL
ADMISSIBILIDADE
DIREITO DE RETENÇÃO
DIREITO REAL DE GARANTIA
PROPRIEDADE HORIZONTAL
DIREITO DE PROPRIEDADE
Data do Acordão: 06/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / GARANTIAS DAS OBRIGAÇÕES - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE.
Doutrina:
- Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, 11.ª, 2006, 176.
- Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 6.ª edição, 58 e 59.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 220.º, 364.º, N.º1, 394.º, N.º1, 410.º, N.º S 2, 442.º, N.ºS 2, 754.º, 755.º, N.º 1, AL. F), 1418.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 615.º, N.º 1, AL. B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 16.5.2002, DOCUMENTO N.º JSTJ00000099, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I. Não pode ser admitida prova testemunhal para suprir um elemento essencial que deveria ter constado em contrato-promessa de compra e venda de fracção autónoma que, obrigatoriamente, está sujeito a forma escrita sob pena de nulidade – art. 220º do Código Civil.

II. Em sede de recurso de apelação, visando alteração da matéria de facto, não pode considerar-se prova adicional, testemunhal, ao contrato-promessa de compra e venda de bem imóvel, para explicitar, agora, a identificação do imóvel objecto do negócio, em termos diversos dos que constam do documento, por constituir violação dos arts. 364º, nº1, e 394º, nº1, do Código Civil.

III. O Tribunal da Relação não podia, socorrendo-se de prova testemunhal, dar como provado, alterando a matéria de facto, um elemento essencial daquele contrato promessa, no sentido de considerar provado que do contrato promessa fazia parte um concreto lugar de garagem não identificado no documento celebrado pelos contraentes.

IV. Como direito real de garantia, o direito de retenção conferido ao promitente comprador tradiciário – art. 755º, nº1. f) do Código Civil – tem de incidir sobre um bem determinado, no momento em que nasce esse direito real. No título constitutivo da propriedade horizontal, como decorre do art. 1418º, nº1, do Código Civil, devem ser especificadas partes do edifício correspondentes às várias fracções por forma a que fiquem individualizadas.

V. É sobre essas partes específicas e individualizadas, ainda que fisicamente distintas, que o condómino actua como proprietário exclusivo da fracção autónoma que as integra.

VI. Não se compagina com o estatuto da propriedade horizontal que duas pessoas, em relação a uma mesma fracção predial, exerçam actos de posse, de modo a que uma delas, contra a outra, possa invocar alegado direito de retenção, exclusivamente, sobre parte identificada da coisa que fisicamente é separável, mas que juridicamente o não é, por integrar um individualizada fracção autónoma, no caso constituída por estabelecimento comercial no rés-do-chão e loja na cave.

VII. O direito de retenção, como direito real de garantia, não pode incidir sobre parte de um bem imóvel, no caso, sobre uma garagem que integra uma fracção autónoma de um prédio constituído em regime de propriedade horizontal, mesmo que, antes da constituição desse regime, o alegado retentor tivesse exercido actos de posse, consentidos pelo proprietário promitente vendedor antes da concretização do objecto físico de uma coisa imóvel.

VIII. Não existe direito real de garantia se não incidir sobre um bem imóvel concretamente identificado.

Decisão Texto Integral:

Proc.596/08.9TYVNG-B.P1.S1

R-603[1]

Revista

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

Na comarca do ..., ..., Instância Central, 2.ª Secção de Comércio, corre os seus termos Processo Especial de Insolvência, sendo insolvente AA, Lda.

1. No âmbito do aludido processo, de que os presentes autos são apenso, intervêm como credores da insolvência, entre outros, BANCO BB, S.A. – Sociedade Aberta, CC e DD.

1.1. O administrador da insolvência apresentou a relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos, a que se reporta o artigo 129.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), nos termos documentados a fls. 2 e 224 a 226 dos autos.

Aí se considera, relativamente a créditos reconhecidos e reclamados e na parte que aqui interessa:

- Ao BANCO BB, S.A.-Sociedade Aberta, o valor total de € 195.058,58, “garantido por hipoteca sobre a fracção “C”, correspondente a estabelecimento comercial no r/c, na Rua ... e garagem com n.º 10 na cave (…)” – cf. teor de fls. 2 e 224.

- A CC e a DD, como crédito comum, o valor total de € 30.796,97. Anota-se a este propósito na relação de créditos de fls. 2 que “Este credor tem registada uma “Garantia Real de Retenção” sobre a garagem, uma parte da fracção apreendida pela Massa Insolvente. A fracção é um “Estabelecimento Comercial e garagem na cave”, e, na relação de fls. 226, qualifica-se o crédito como “garantido (direito de retenção)” e enuncia-se como origem “contrato-promessa de compra e venda celebrado em 27 de Abril de 2005 que teve por objecto parte de fracção autónoma apreendida e já vendida no processo de insolvência (restituição do sinal pago em dobro)”.

1.2 CC e DD reclamaram o respectivo crédito nos termos documentados a fls. 119 e seguintes, afirmando que, no dia 27 de Abril de 2005, celebraram com a insolvente, por documento particular por eles assinado, com cópia a fls. 137 dos presentes autos, um contrato promessa de compra e venda, no qual a insolvente prometeu vender aos reclamantes, pelo preço de € 15.000,00, um lugar de garagem, na cave de prédio que identificam, tendo a insolvente recebido dos reclamantes a totalidade do preço acordado. Os reclamantes respeitaram na íntegra o contratado, o que lhes permitiu receber no dia da assinatura do contrato promessa as chaves e o comando de acesso ao lugar de garagem, identificado com o n.º10, com entrada pelo n.º 9 da Rua ....

A insolvente, apesar de interpelada, recusou a escritura de compra e venda, o que gerou o incumprimento definitivo, pelo que os reclamantes têm direito a receber o sinal em dobro e juros de mora entretanto vencidos, assistindo-lhes ainda o direito de retenção sobre o identificado lugar de garagem.

Reclamam um crédito no valor de € 30.000,00, acrescido de € 796,67 de juros vencidos e dos juros vincendos, garantido por direito de retenção.

1.3 O BANCO BB, S.A.-Sociedade Aberta, impugnou a lista de credores, nos termos documentados a fls. 3 e seguintes dos presentes autos, afirmando que carece de fundamento, no que lhe diz respeito, o alegado direito de retenção reclamado por CC e DD, relativamente à fracção autónoma designada pela letra “C”.

Esta é composta por um estabelecimento comercial e por um lugar de garagem com o n.º10; daí que a garagem alegadamente prometida vender pela sociedade insolvente aos referidos credores reclamantes, através do contrato que estes juntam como documento n.º1 no seu articulado de reclamação de créditos, não tem qualquer correspondência com a fracção autónoma designada pela letra “C” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º0.591 que se encontra onerada com uma hipoteca registada a favor do Banco reclamante – que jamais teve conhecimento da existência de qualquer contrato promessa de compra e venda que tivesse por objecto uma garagem no referido prédio, na certeza de que, a admitir-se que a garagem referida no contrato de promessa de compra e venda fosse a mesma que integra a fracção autónoma designada pela letra “C” que foi dada de hipoteca ao Banco reclamante, então o referido contrato promessa é nulo, por impossibilidade e indeterminabilidade do seu objecto.

Acresce que não se demonstra que os credores reclamantes sejam possuidores da fracção e, por qualquer modo, possam invocar o direito de retenção.

Conclui que, com a total procedência da impugnação, não deve ser reconhecido o crédito invocado pelos reclamantes CC e DD, nem verificado nem graduado, bem como não deve ser reconhecida a existência do invocado direito de retenção, improcedendo a reclamação de créditos deduzida pelos referidos reclamantes, com todas as consequências legais.

1.4. Esta impugnação mereceu resposta destes reclamantes, nos termos que estão documentados a fls. 41, onde reiteram as razões inicialmente afirmadas, alegando que o facto de o lugar de garagem fazer parte de uma fracção em nada colide com a garantia real de retenção de que são titulares.

Concluem reafirmando que deve ser reconhecido e graduado o crédito que invocam e reconhecida a existência do invocado direito de retenção, procedendo a reclamação de créditos que deduziram.

***

2. No prosseguimento dos autos, terminada a produção de prova e respondida a matéria de facto, foi proferida sentença que concluiu nos seguintes termos:

Decisão:

Em face do exposto:

- Julga-se a impugnação apresentada pelo credor BANCO BB parcialmente procedente e verificado o crédito dos credores CC e DD no montante que consta da relação de créditos, com a natureza, todavia, de crédito comum, homologando-se, no demais, a lista de créditos reconhecidos apresentada (cf. fls. 224 a 226);

- Graduo os créditos para serem pagos através do produto da massa insolvente, pela seguinte ordem:

1.º - As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda;

2.º - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos laborais;

3.º - Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito hipotecário do credor BANCO BB, S.A.;

4.º - Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito privilegiado do Instituto da Segurança Social, I.P.;

5.º - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos comuns (artigo 47.º, n.º 4, al. c));

6.º - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados, graduados pela ordem prevista no artigo 48.º.

Custas pela massa insolvente - art.º 172.º do C.I.R.E.

(…).”

***

2.1 Os credores reclamantes CC e DD, apelaram para o Tribunal da Relação do ... que, por Acórdão de 13.2.2017 – fls. 309 a 322 -, decretou:

 

“Pelas razões que se deixam expostas e dando provimento ao recurso, decide-se:

1. Eliminar o parágrafo único dos factos não provados e aditar à matéria de facto provada o parágrafo 8, com o seguinte teor: “O lugar de garagem referido em 7 corresponde à garagem apreendida e hipotecada ao BANCO BB, S.A.”.

2. Alterar a decisão recorrida, nos seguintes termos:

A) - Julga-se a impugnação apresentada pelo credor BANCO BB improcedente e verificado o crédito dos credores CC e DD no montante que consta da relação de créditos, homologando-se a lista de créditos reconhecidos apresentada (cf. fls. 224 a 226).

B) - Em consequência, declara-se que o crédito de CC e DD beneficia de direito de retenção sobre à identificada garagem pertencente à fracção “C”, objecto do contrato promessa de compra e venda e identificada nos autos, sendo por isso garantidos, pelos valores indicados na relação de créditos reconhecidos, acrescidos de juros de mora à taxa legal, desde 7/3/2012 e até integral pagamento, nos termos infra referidos em C).

C) Graduam-se os créditos reconhecidos para serem pagos através do produto da massa insolvente, pela seguinte ordem:

1.º - As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda;

2.º - Os créditos laborais;

3.º - O crédito dos recorrentes, CC e DD;

4.º - O crédito hipotecário do credor BANCO BB, S.A.;

5.º - O crédito do Instituto da Segurança Social, I.P.;

5.º - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos comuns (artigo 47.º, n.º 4, al. c));

6.º - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados, graduados pela ordem prevista no artigo 48.º.

Custas a cargo do recorrido.”

***

           

Inconformado, recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça o credor BANCO BB, S.A.-Sociedade Aberta, que, alegando, formulou as seguintes conclusões:

28. O Tribunal da Relação do ... alterou a decisão do Tribunal de lª instância, reconhecendo aos recorridos, com fundamento no art. 755.°, n.º1, al. f) do Código Civil, um direito de retenção sobre parte da fracção autónoma designada pela letra “C”, integrante do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º0591 e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 0655.°, sem que estivessem reunidos todos os requisitos impostos por aquele artigo para o reconhecimento desse direito de retenção.

28.1. O acórdão do qual se recorre aditou o seguinte facto à matéria de facto provada cfr. facto n.º 8 aditado à matéria de facto provada pelo acórdão do qual se recorre:

O lugar de garagem referido em 7. corresponde à garagem apreendida e hipotecada ao BANCO BB, S.A.”

28.2. Porém, não basta que uma determinada pessoa ocupe um imóvel para que possa invocar um direito de retenção sobre ele, sendo também necessário, segundo o art. 755º, nº1, al. f) do Código Civil, que esse imóvel tenha sido prometido vender pelo proprietário do mesmo e prometido comprar pelo retentor ocupante.

28.3. Este facto não foi alegado no momento próprio, o que não impediu o Tribunal da Relação do ... de o considerar, em violação do princípio fundamental do dispositivo (art. 5º do Código de Processo Civil) e dos poderes de cognição de que dispunha, viciando de nulidade o acórdão do qual se recorre (art. 615.º, n.°1, al. d) do Código de Processo Civil).

28.4. O Tribunal da Relação do ... não tinha outra alternativa que não fosse entender que os recorridos não possuem um direito de retenção sobre parte da fracção autónoma designada pela letra “C”, apreendida para a massa insolvente, por não verificação de um dos pressupostos estabelecidos pelo art. 755º, n.°1, al. c) do Código Civil.

28.5. Mas, ainda que pudesse ser apreciado um facto não alegado pelos recorridos, sem ser cometida a nulidade prevista no art. 615.° n.º1, al. d) do Código de Processo Civil, esse facto deveria ser especificado na matéria de facto, isto é, deveria constar que;

“A garagem que os credores reclamantes CC e DD prometeram comprar à sociedade insolvente e que esta prometeu vender àqueles é a garagem que integra a fracção autónoma designada pela letra “C” parte integrante do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o nº0591 e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 0655º”.

28.6. O Tribunal da Relação do ... teve em conta este facto na elaboração do acórdão do qual se recorre, embora não o tenha especificado na matéria de facto provada.

28.7. Deste modo, o acórdão do qual se recorre está também ferido da nulidade prevista no art. 615.º, n.°1, al. b) do Código de Processo Civil, que pode ser apreciada no âmbito de um recurso de revista (art. 674.° nº1, al. c) e que expressamente se invoca.

28.8. A esta nulidade soma-se o desrespeito de uma regra fundamental do Direito Probatório, prevista no art. 364.°, n.°1, do Código Civil e que impede que possa ser considerado assente, com base em prova testemunhal, o facto enunciado na conclusão n.°28.5. e não especificado pela Relação do ....

28.9. As declarações negociais que constituem um contrato-promessa de compra e venda de bens imóveis devem constar, obrigatoriamente, de documento assinado por ambas as partes (formalidade que diz respeito à substância do negócio e que está prevista nos arts. 410º, n.º2 e 875.° do Código Civil).

28.10. No caso concreto, os recorridos prometeram comprar e a sociedade insolvente prometeu vender-lhes uma das garagens situadas na cave do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., descrito Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º 0591 e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 0655.°.

28.11. A não concretização da garagem que seria objecto do contrato prometido de compra e venda poderá ter-se ficado a dever a inúmeras razões, que não podem agora ser desatendidas.

28.12. O que não existe no mundo do Direito, por não ter sido cumprida a forma escrita legalmente imposta (o art. 220.° do Código Civil torna nulas as declarações negociais que não cumpram a forma legal prescrita), só pode ser provado por documento com igual ou superior força probatória (art. 364.° n.º1 do Código Civil), de modo a tutelar a certeza e a segurança jurídicas que levaram o legislador a tornar obrigatória a forma escrita.

28.13. Quer isto dizer que a especificação do fundamento de facto omitido obrigaria a fazer constar da matéria de facto não provada o seguinte facto:

“A garagem que os credores reclamantes CC e DD prometeram comprar à sociedade insolvente e que esta prometeu vender àqueles é a garagem que integra a fracção autónoma designada pela letra “C” parte integrante do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o nº0591 e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 0655º”.

28.14. O Supremo Tribunal de Justiça tem competência para conhecer da nulidade prevista no art. 615.° n.º1, al. b) do Código de Processo Civil, invocada neste recurso e para, em obediência ao art. 364.°, n.°1, do Código Civil, dar como não provado o facto elencado no número antecedente (art. 364.° do Código Civil e art. 674.°, n.°3, do Código de Processo Civil).

28.15. Mesmo que o Supremo Tribunal de Justiça não pudesse aditar aquele facto à matéria de facto não provada, não poderia admitir que fosse tido em conta no julgamento da causa, tal como o fez a Relação do ... (art. 364.° do Código Civil e art. 674.°, n.°3, do Código de Processo Civil).

28.16. Ainda que fosse possível dar como provado o facto referido no antecedente n.°29.13., continuaria a faltar um requisito genérico para a existência do direito de retenção que os recorridos invocam, mais propriamente a determinação da coisa sobre a qual incidiria aquele direito real.

28.17. O direito de retenção é um direito real de garantia, que, à semelhança de todos os outros direitos reais, incide sobre a totalidade de uma determinada coisa móvel ou imóvel (arts. 758.º e 759.º do Código Civil).

28.18. Os prédios urbanos são coisas imóveis (art. 204.º, n.ºl, al. a) e 2), que, em função das suas características físicas, poderão conter partes que sejam susceptíveis de utilização independente e autónoma.

28.19. Mas, para que seja possível a incidência de diferentes direitos reais sobre partes distintas de um determinado prédio urbano é necessário que esse prédio seja objecto do regime de propriedade horizontal (1414.º e ss.), que só pode ser constituído “por negócio jurídico, usucapião, decisão administrativa ou decisão judicial, proferida em acção de divisão de coisa comum ou em processo de inventário” (art. 1417.º),

28.20. Enquanto um determinado edifício não for objecto do regime de propriedade horizontal ou enquanto uma parte de uma fracção autónoma não for dela autonomizada por alteração ao regime de propriedade horizontal vigente, não podem ser constituídos direitos reais sobre fracções autónomas não constituídas, nem pode ser transferido um direito real sobre apenas parte de uma fracção autónoma, por não estar determinado o objecto direito real (art. 408.º n.º2 do Código Civil).

28.21. Os recorridos pretendem ver-lhes reconhecido um direito de retenção sobre parte da fracção autónoma designada pela letra “C”, apreendida para a massa insolvente, embora reconheçam que não foi efectuada a alteração do regime de propriedade horizontal do prédio urbano onde se integra aquela fracção autónoma.

28.22. Por isso, não pode ser reconhecido um direito de retenção aos recorridos, do mesmo modo que o direito real de garantia emergente de uma hipoteca não pode incidir sobre apenas parte de uma fracção autónoma (art. 688.º, nº 2, do Código Civil).

28.23. Além disso, não existem dúvidas quanto à impenhorabilidade de parte de uma fracção autónoma, já que a penhora abrange a totalidade de um imóvel com todas as suas partes integrantes (art. 758.º, n.º1, do Código de Processo Civil) e também nunca poderia ser alienada parte de uma coisa (art. 408.º n.º2 do Código Civil e art. 736.º, al. a) do Código de Processo Civil).

28.24. Ora, não faz qualquer sentido a existência de um direito de retenção sobre parte de uma fracção autónoma, que, como tal, nunca poderia ser alienada e o retentor nunca poderia ver satisfeito o seu crédito graças ao produto da venda (art. 756.º, al. c) do Código Civil),

28.25. Deste modo, deverá ser alterada a decisão judicial objecto de recurso, julgando inexistente o direito de retenção invocado pelos recorridos e qualificando o seu direito de crédito como comum (art. 47.º, n.°4, al. c) do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas), seja por violação das regras processuais (art. 674.° n.°1, als. b) e c) do Código de Processo Civil), seja por erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa (art. 674.° n.°3), ou, pelo menos, por violação das regras de Direito Substantivo (art. 674.° n.°1, al. a).

28.26. Neste sentido, os direitos de crédito reclamados, a serem satisfeitos pelo produto da venda do único bem apreendido para a massa insolvente (fracção autónoma designada pela letra “C”, que integra o prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., descrito Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º0591 e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 0655.º), deverão ser graduados da seguinte forma:

1.° - As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda;

2.° - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos laborais;

3.° - Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito hipotecário do credor BANCO BB, S.A.

4.° - Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito privilegiado do Instituto da Segurança Social, I.P.;

5.° - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos comuns (artigo 47.º, n.º4, al. c));

6.° - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados, graduados pela ordem prevista no artigo 48.°.”

28.27. Em conclusão, o Tribunal da Relação do ... violou:

a) quanto à apreciação e fixação da matéria de facto, os arts. 220.°, 364.°, 410.° n.º2 do Código Civil e arts. 607.° n.°s 4 e 5 e 615.° n.°1, als. b) e d) do Código de Processo Civil;

b) relativamente à aplicação do direito ao caso concreto, os arts. 204.° n.°2, 688.° n.°2, 756.°, al. c), 759.° n.°1, 408.° n.°2, 1302.°, 1414.° e ss. do Código Civil e os arts. 736.°, al. a) e 758.° n.°1 do Código de Processo Civil.

Termos em que se requer a V. Exa. que seja revogado o Acórdão do qual se recorre, substituindo-o por outro que qualifique como comum o direito de crédito invocado pelos recorridos (art. 47.°, n.°4, al. c) do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas) e graduando os créditos sobre o bem único apreendido para a massa insolvente pela ordem definida na conclusão n.º 29.26.

Os Recorridos CC e mulher DD, contra-alegaram, pugnando pela confirmação do Acórdão recorrido.

***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os factos:

1. O crédito reclamado pelo credor BANCO BB, S.A.-Sociedade Aberta no montante de € 195.058,58 encontra-se garantido por hipoteca constituída mediante escritura pública outorgada em 20 de Dezembro de 2005.

2. A hipoteca referida em 1. incide sobre a fracção autónoma designada pela letra “C”, correspondente a um estabelecimento comercial no rés-do-chão, com frente para norte, com acesso directo pela Rua ..., e garagem número dez na cave, que faz parte de um prédio urbano em regime de propriedade horizontal situado na Rua ..., nºs. 9, 11, 11-A, 11-B e 11-C, na freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º 00591.º e inscrito na matriz sob o artigo 0655.º.

A hipoteca foi constituída para garantia:

a) de todas e quaisquer responsabilidades em que a sociedade insolvente seja ou venha a tornar-se responsável perante o Banco, até ao montante máximo de capital de € 185.000,00 (cento e oitenta e cinco mil euros), provenientes de avales, fianças e garantias bancárias prestadas ou a prestar pelo Banco a seu pedido, de créditos documentários abertos ou confirmados pelo Banco a sua solicitação, de operações cambiais à vista ou a prazo, do desconto de cheques sobre o estrangeiro, ou de remessas documentárias, de empréstimos de qualquer natureza, de aberturas de crédito simples ou sob a forma de conta corrente, de débitos devidos pela utilização de quaisquer cartões de pagamento de débito ou crédito, de descobertos de contas de depósitos à ordem de que seja titular, de assunções ou confissões de dívidas, de reestruturações, reescalonamentos, consolidações ou moratórias de dívidas pela sociedade contraídas ou a contrair perante o Banco e ainda de responsabilidades de que a sociedade seja ou venha a ser titular perante o Banco na qualidade de sacadora, aceitante, endossante, subscritora ou avalista de letras ou livranças descontadas pelo Banco, ou de que este seja legítimo portador;

b) dos juros remuneratórios que forem devidos contados à taxa de oito por cento ao ano, elevável em caso de mora e a título de cláusula penal, em mais quatro pontos percentuais;

c) das despesas judiciais e extrajudiciais, incluindo honorários de advogados e solicitadores, que o Banco venha a fazer para manter, assegurar ou cobrar quaisquer dos referidos créditos e o cumprimento das cláusulas desta escritura, fixando-se aquelas despesas, exclusivamente para efeitos de registo predial, em € 3.700,00 (três mil e setecentos euros);

3. A hipoteca referida em 1 e 2 teve por objecto a fracção autónoma designada pela letra “C”, do prédio urbano sito na Rua ..., nºs 9, 11, 11-A, 11-B e 11-C, da freguesia e concelho da ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial da ..., sob o n.º 0.591.

4. A fracção autónoma designada pela letra “C” corresponde a um estabelecimento comercial sito no rés-do-chão, com frente para norte e com acesso directo pela Rua ..., e à garagem n.º 6, na cave, que, entretanto, foi alterado para o n.º 10.

5. Consta dos autos, a fls. 137 a 139, um documento intitulado “Contrato-Promessa de Compra e Venda” com o seguinte conteúdo:

“Primeira outorgante – AA, Ld.ª” (…)

Segundos outorgantes – CC (…) casado sob o regime de separação de bens com DD (…)

Declaram os outorgantes:

Que celebram e pelo presente formalizam um contrato-promessa de compra e venda que se rege pelas seguintes cláusulas, por ambos e reciprocamente aceites:

Primeira – A primeira outorgante promete vender ao segundo e este, por seu turno, prometem comprar àquela, uma garagem, sita na cave, situada na Rua ..., na cidade da ..., fracção essa que virá a designar-se pelo número “ ” e pela fracção “ ” depois de alterada a propriedade horizontal, correspondente às descrições números 0745 e 0729 da Conservatória do Registo Predial da ... e que estavam inscritos, respectivamente nos artigos 0528 e 0822 da matriz urbana, prédio esse com o alvará de utilização n.º 022 emitido pela Câmara Municipal da ... em 22 de Maio de 2003.

Segunda – O preço a pagar pelos segundos outorgantes à primeira por força da prometida alienação é de 15.000,00€ (quinze mil euros) que serão pagos à promitente vendedora pela seguinte forma:

a) nesta data os segundos outorgantes entregaram à primeira outorgante como pagamento, a quantia de 15.000,00€ (quinze mil euros) com um cheque pré-datado para 15 de Maio de 2005;

b) este valor será devolvido aos segundos outorgantes caso não seja possível fazer a alteração da propriedade horizontal, não tendo direito a qualquer tipo de indemnização;

c) fica estabelecido um período de 12 (doze) meses para resolução do assunto.

Terceira – A escritura pública de compra e venda será marcada pela primeira outorgante, num período que poderá ser inferior aos 12 (doze) meses.

Para isso deverá avisar os segundos outorgantes por carta registada para a morada acima indicada com a antecedência mínima de 10 (dez) dias da data e cartório em que ela se realizará.

Quarta – A fracção ora prometida vender será entregue aos segundos outorgantes livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades.

Quinta – Serão da conta dos segundos outorgantes todas as despesas principais ou acessórias ligadas à transmissão da propriedade da fracção prometida vender, nomeadamente as relativas ao IMT, registos prediais a seu favor e inscrições nas Finanças, todas as despesas com eventual obtenção de empréstimos, custos de escrituras bem como as contribuições e impostos e quota-parte das despesas de administração de condomínios.

Sexta – À presente promessa será atribuída a faculdade de execução específica podendo qualquer das partes obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso.

(…)”.

6. O contrato promessa referido em 5. foi outorgado entre a insolvente e os promitentes-compradores, tendo a insolvente recebido dos promitentes-compradores a totalidade do preço no montante de € 15.000,00.

7. Os promitentes-compradores receberam as chaves e o comando de acesso ao lugar de uma garagem que passaram a ocupar, não tendo a insolvente outorgado a escritura pública de compra e venda.

8. O lugar de garagem referido em 7 corresponde à garagem apreendida e hipotecada ao BANCO BB, S.A. - [Facto considerado provado no Acórdão da Relação.]

Não se provaram quaisquer factos incompatíveis com os acima descritos como provados não se tendo, designadamente, provado:

1. Que o lugar de garagem referido em 7. corresponde à garagem apreendida e hipotecada ao BANCO BB, S.A. [Eliminado pela Relação]

           

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- Se o Acórdão é nulo por não especificar os fundamentos de facto e de direito que estiveram na base da alteração de matéria de facto;

- Se essa alteração da matéria de facto viola o art. 364º, nº1, do Código Civil;

- Se os Recorridos podem invocar o direito de retenção sobre uma garagem, que não foi concretamente identificada no contrato-promessa de compra e venda que outorgaram como promitentes-compradores, celebrado com a promitente-vendedora, entretanto declarada insolvente, sendo que tal garagem consta identificada como fazendo parte da fracção “C” que corresponde a um estabelecimento comercial, sito no rés-do-chão e à garagem nº10 (antes nº6), na cave, de um prédio constituído em regime de propriedade horizontal;

- Se o crédito reclamado na insolvência é um crédito comum, não garantido por direito de retenção.

Vejamos:

Tendo sido declarada insolvente, por sentença proferida em 13 de Janeiro de 2009, transitada em julgado, a devedora “AA, Lda.”, e apreendido para a massa um bem imóvel, apresentaram-se a reclamar os seus créditos, o credor BANCO BB, S.A, no montante de € 195.058,58 garantido por hipoteca constituída mediante escritura pública outorgada em 20 de Dezembro de 2005; hipoteca que incide sobre a fracção autónoma designada pela letra “C”, correspondente a estabelecimento comercial no rés-do-chão, com frente para norte, com acesso directo pela Rua ..., e garagem número dez na cave, que faz parte de um prédio urbano em regime de propriedade horizontal situado na Rua ..., n.°s 9,11, U-A, U-B e U-C, na freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º 00591º e inscrito m matriz sob o artigo 0655.º.

Tal fracção autónoma, designada pela letra “C”, corresponde a um estabelecimento comercial sito no rés-do-chão, com frente para norte e com acesso directo pela Rua ..., e à garagem nº6, na cave, que, entretanto, foi alterada para o n.º10.

Os Recorridos, invocando terem celebrado, em 27 de Abril de 2005, com a ora insolvente um contrato promessa bilateral de compra e venda tendo por objecto: “uma garagem, sita na cave, situada na Rua ..., na cidade da ..., fracção essa que virá a designar-se pelo número “ “ e pela fracção “ “, depois de alterada a propriedade horizontal, correspondente às descrições números 0745 e 0729 da Conservatória do Registo Predial da ... e que estavam inscritos, respectivamente nos artigos 0528 e 0822 da matriz urbana, prédio esse com o alvará de utilização n.° 022 emitido pela Câmara Municipal da ... em 22 de Maio de 2003”, pelo preço de € 15 000,00, que logo entregaram à promitente-vendedora por um cheque pré-datado para 15.5.2005, e, alegando ainda que receberam as chaves e o comando de acesso ao lugar de uma garagem que passaram a ocupar, não tendo a insolvente outorgado a escritura pública de compra e venda, reclamaram o crédito pelo dobro do sinal, alegando serem titulares do direito de retenção.

O crédito do Banco não foi impugnado, mas foi-o, pelo credor bancário, o crédito dos Recorridos.

Na sentença de fls. 263 a 267 verso, de 15.4.2016, considerou-se que os ora recorridos tinham direito ao sinal em dobro – art. 442º, nº2, do Código Civil – mas que “o certo é que o mesmo reveste natureza comum uma vez que não foi apreendido o bem objecto do contrato”.

Assim, e no que aqui releva, o crédito hipotecário do Banco foi graduado com preferência ao crédito considerado comum dos Recorridos (aquele em 3º lugar, este em 5º).

Na sentença afirmou-se que   não se provou que - “1. Que o lugar de garagem referido em 7. corresponde à garagem apreendida hipotecada ao BANCO BB, S.A.”     

           

Os promitentes-compradores interpuseram recurso de tal decisão para o Tribunal da Relação do ..., impugnando a matéria de facto no sentido de almejaram que fosse considerado provado aquele facto, ou seja, que o lugar de garagem que alegam ter sido objecto mediato do contrato-promessa corresponde à garagem apreendida para a massa insolvente. Sustentaram que tal alteração emergia da incorrecta apreciação da prova testemunhal e documental.

Se tal alteração viesse a ser decretada, em sede de apelação, deveria, então, considerar-se que o crédito emergente do incumprimento definitivo do contrato-promessa pela insolvente, passaria a gozar do direito de retenção e, como tal, deveria ser graduado prioritariamente ao crédito hipotecário.

O Acórdão recorrido concedeu provimento ao recurso e, alterando a matéria de facto, dando agora como provado que a garagem dos recorridos é “o lugar de garagem referido em 7. corresponde à garagem apreendida e hipotecada ao BANCO BB, S.A.”, na sequência dessa alteração considerou que os Recorridos gozam do direito de retenção, pelo que foi, parcialmente, revogada a sentença.

A propósito, depois de cuidadosa análise da prova testemunhal, com expressa indicação das testemunhas e dos seus depoimentos, bem como da sucinta apreciação dos documentos invocados, o Tribunal da Relação concluiu:

“Perante o que se deixa sumariamente enunciado, afigura-se incontroverso que, nos termos relatados pelas testemunhas, com conhecimento direto dos factos, a garagem que integra a fração “C”, que veio a ser hipotecada ao BANCO BB, corresponde àquela que se visava vender a CC e DD em cumprimento do contrato promessa de compra e venda e que estes vêm utilizando desde então.

Ponderados os depoimentos da generalidade das testemunhas inquiridas, não se vê que os depoimentos que se deixam referenciados sejam contrariados pelos restantes.

Por outro lado, não há outros fundamentos para pôr em causa a sua credibilidade; inversamente, há elementos documentais que o confirmam.

Assim, o documento de fls. 144 dos presentes autos revela que os credores CC e DD, em 1 de julho de 2008, interpelaram a promitente vendedora, remetendo-lhe carta reclamando o cumprimento do contrato, referenciando a concreta garagem em causa; acresce que, nos documentos de fls. 41 e 58 do apenso A (de liquidação), as comunicações feitas ao processo pelo administrador de insolvência referenciam de modo inequívoco a posse da garagem da fração “C” pelo credor CC.

Ponderados os elementos que se deixam enunciados, a pretensão dos recorrentes mostra-se procedente neste ponto.

Assim, elimina-se o parágrafo único dos factos não provados e adita-se aos factos provados o parágrafo 8 com o seguinte teor:

“8. O lugar de garagem referido em 7 corresponde à garagem apreendida e hipotecada ao BANCO BB, S.A.”.

O ora Recorrente afirma que o Acórdão é nulo, nos termos do art. 615º, nº1, b) do Código de Processo Civil, por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Ante a fundamentação, em que assentou a alteração da matéria de facto, invocando a Relação os meios de prova indicados pelos recorrentes e a motivação da decisão, temos de considerar que não existe a omissão prevista naquele normativo.

O dever de fundamentação das decisões judiciais, seja quanto aos factos, seja quanto ao direito, decorre da norma constitucional do art. 205º da Lei Fundamental. Na lei ordinária o citado preceito, bem como o art. 154º, ambos do Código de Processo Civil, dão expressão a esse comando.

Constitui entendimento dominante que só a falta absoluta de fundamentação é geradora da nulidade da sentença ou do acórdão, porque só ela deixa de proporcionar aos destinatários das decisões o sentido e a compreensibilidade do que foi decidido, assim assegurando, além do mais que se relaciona com a paz social e o prestígio dos Tribunais, a possibilidade de sindicar tal decisão.

Salvo melhor opinião, não existe a assacada nulidade. Com o alegado vício formal não pode confundir-se a questão suscitada pelo recorrente e que tange esta problemática, qual seja a de saber se a Relação, ao considerar que a garagem sobre a qual os promitentes-compradores exerceram actos de posse, na sequência do contrato-promessa obrigacional de compra e venda e de alegada traditio é a fracção “C”. A Relação assim considerou, sobretudo, com fundamento directo na prova testemunhal e indirecto nos documentos que antes foram referidos.

Com efeito, no contrato-promessa celebrado em 27 de Abril de 2005, antes da escritura de hipoteca a favor do Banco, datada de 20.12.2015, não foi identificado no contrato-promessa qual a garagem sita na cave do prédio – existiam várias – e que, como consta do contrato, seria uma fracção a designar, após constituição da propriedade horizontal, por um número e pela indicação de uma fracção.

No contrato-promessa e na sua Cláusula primeira, encontram-se aspas, sinal que seria “depois de alterada a propriedade horizontal”, correspondente às descrições números 0745 e 0729 da Conservatória do Registo Predial da ... e que estavam inscritos, respectivamente nos artigos 0528 e 0822 da matriz urbana, prédio esse com o alvará de utilização n°022 emitido pela Câmara Municipal da ... em 22 de Maio de 2003, identificada a garagem por um número e por uma fracção a que corresponderia uma letra, como é usual.

Aqui a questão 2ª colocada no recurso: podia a Relação alterar a matéria de facto, considerando provado, como os promitentes-compradores pretendiam, que a fracção que prometeram comprar, e sobre a qual invocam o direito de retenção, é a garagem correspondente à fracção “C”, na cave do prédio e com nº10, sobretudo, tendo em conta que, no título constitutivo da propriedade horizontal e sobre o imóvel sobre que incide a hipoteca do recorrente, tal fracção é constituída por um estabelecimento comercial, no rés-do-chão, e um lugar de garagem na cave a que corresponde o nº10?

[Esse lugar nº10 (que antes foi o nº6), é aquele que os promitentes-compradores, sem que haja qualquer título constitutivo identificando essa garagem por esse número como uma fracção autónoma, consideram ser a “garagem” objecto do contrato promessa].

O Recorrente sustenta que a Relação violou o art. 364º do Código Civil.

Como vimos, os recorridos pretendem integrar o contrato-promessa, com a identificação do elemento essencial que lá nunca constou, ou seja, que a garagem que ocupavam – a nº10 – que corresponde à fracção “C”, é a que foi objecto do contrato-promessa, o que não se compatibiliza com o teor da hipoteca que, incidindo sobre a fracção “C”, a descreve como constituída por um estabelecimento comercial e um lugar de garagem com o nº 10, na cave do prédio.

Existe, assim, uma situação peculiar: os recorridos sustentam que a garagem que constitui a fracção “C”, tal como consta do título constitutivo da propriedade horizontal e do respectivo registo, é a que, como fracção autónoma não identificada à data do contrato-promessa (não cumprido), lhes foi entregue e de que foram tradiciários; por sua vez é inquestionável que essa garagem na cave integra a fracção “C” apreendida para a massa insolvente do promitente-vendedor.

O contrato-promessa em causa, porque respeitante a bem imóvel, teria que ser celebrado por escrito, como foi – art. 410º, nºs e 2, do Código Civil.   

Nos termos do nº1 do art. 364º do Código Civil – “Quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.

O art. 394º, nº1, estatui – “É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.° a 379.°, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.”

           

Os Recorridos, sem dúvida, que pretenderam provar que a fracção, a garagem, a que se alude no contrato-promessa, seria a nº10, na cave, quando por escrito jamais consta que esse crucial elemento identificador do objecto do contrato prometido, nem ocorreu desanexação de tal garagem da fracção “C”.

Salvo o devido respeito, não pode ser admitida prova testemunhal para suprir um elemento essencial que deveria ter constado do documento inicial que, obrigatoriamente, está sujeito a forma escrita sob pena de nulidade – art. 220º do Código Civil.

Admitir que, posteriormente, prova adicional, testemunhal, ao contrato-promessa obrigatoriamente reduzido a escrito, constitui violação dos arts. 364º, nº1, e 394º, nº1, do Código Civil.

Como se pode ler no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 16.5.2002, Proc. JSTJ00000099, in www.dgsi.pt – “Por “convenções adicionais ou “cláusulas acessórias”, nos termos e para os efeitos do n.°1 do art. 394.° do Código Civil, deverá entender-se as “estipulações das partes que nem constituem reprodução não são partes integrantes típicas do negócio celebrado, mas que lhe acrescentam ou modificam qualquer coisa.”

Com o devido respeito, não releva documentalmente, para se considerar provado, que os promitentes-compradores, sempre que se dirigiram à promitente-vendedora, tenham identificado a garagem como o nº10, nem, tão pouco, que o Administrador da Insolvência “referencie a posse da garagem da fracção “C” pelo credor CC”, pois esse era e foi o pomo da discórdia.

Relevante é considerar que foi, através da alteração da matéria de facto, que ingressou no contrato-promessa um elemento imprescindível [e aí totalmente omisso, até como coisa que constituía a garantia real – direito de retenção,] para determinar o objecto do contrato prometido e, destarte, “adicionar” ao contrato-promessa a completa identificação do bem imóvel que seria objecto do contrato de compra e venda: a garagem que, documentalmente, sempre fez para da fracção “C”.

Por outro lado, como resulta das certidões do registo predial, à data da celebração do contrato-promessa, já tinha sido constituída a propriedade horizontal do prédio sito na Rua ..., descrito Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º0591 e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 0655.º. O facto de, inicialmente, não serem identificadas as garagens como fracções, o facto de estarem identificadas por números, é eloquente no sentido de antecipar que constituiriam fracções autónomas prediais. Sempre se dirá que a determinação da identificação da garagem objecto do contrato-promessa, seria feita ulteriormente, como consta do contrato, mas nunca o foi.

Conclui-se, assim, que, no caso, o Tribunal da Relação não podia, com os fundamentos invocados, alterar a matéria de facto para dar como provado o facto sindicado pelos apelantes, considerado não provado na sentença recorrida.

Mas, mesmo que fosse de admitir a prova testemunhal, não poderia ter sido reconhecido aos Recorridos o direito de retenção, nos termos do art. 755º, nº1, f) do Código Civil.

O art. 754º do Código Civil estabelece:

O devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados”.

O art.755º, nº1, do Código Civil consagra casos especiais de direito de retenção reconhecendo-o na al. f) ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º.

Temos, assim, que o direito de retenção como direito real de garantia é invocável pelo promitente-comprador que obteve a traditio, visando o crédito pelo dobro do sinal prestado – art. 442º, nº4, do Código Civil – em caso de incumprimento definitivo do contrato pelo promitente-vendedor – cfr. Calvão da Silva, “Sinal e Contrato-Promessa”, 11ª, 2006, 176.

Como direito real de garantia, o direito de retenção tem de incidir sobre um bem determinado, não só no momento em que nasce o direito real, mas, acima de tudo, no momento em que o credor o pode invocar como garantia do seu crédito, assim como também o devedor deve conhecer quais as garantias que podem ser invocadas pelo credor.

Não pode perder-se de vista que, no caso, os Recorridos sustentam que gozam de traditio de um bem imóvel, uma garagem, que integra uma fracção predial autónoma que se compõe de duas realidade físicas distintas: um estabelecimento comercial no rés-do-chão do prédio e uma garagem, com o nº10, na cave desse prédio.

No título constitutivo da propriedade horizontal, como decorre do art. 1418º, nº1, do Código Civil, devem ser especificadas partes do edifício correspondentes às várias fracções por forma a que fiquem individualizadas.

É sobre essas partes específicas e individualizadas, ainda que fisicamente distintas, que o condómino actua como proprietário exclusivo da fracção autónoma que as contém.

Não se compagina com o estatuto da propriedade horizontal que duas pessoas, em relação a uma fracção predial, exerçam actos de posse, de modo a que uma delas, contra a outra, possa invocar o direito de retenção, exclusivamente, sobre algo que fisicamente é separável, mas que juridicamente o não é.

Se, como no caso, a garagem com o nº10 sita na cave do prédio, integra a fracção “C”, e dessa fracção faz parte ainda um estabelecimento comercial no rés-do-chão do prédio constituído em propriedade horizontal, não pode conceber-se que quem não é proprietário da fracção possa invocar, coexistindo, um direito sobre parte dessa incidível realidade jurídica para, em caso de incumprimento de terceiro, poder invocar um direito real de garantia ao abrigo do art. 755º, nº1, f) do Código Civil, mesmo que exerça sobre parte da coisa actos de posse.

Os Recorridos, promitentes-compradores de uma garagem que, como acordaram com o promitente-comprador, constituiria no futuro um fracção predial autónoma, mesmo que antes dessa constituição tivessem praticado actos de posse, eram meros detentores precários desse bem imóvel, que não chegou a integrar a fracção “C”, sobre que recai a hipoteca a favor do recorrente. 

A admitir-se que assim pudesse acontecer ter-se-ia que admitir que alguém pode adquirir por usucapião parte de um prédio constituído em regime de propriedade horizontal.

O direito de retenção, como direito real de garantia, não pode incidir sobre partes de um bem imóvel, no caso sobre uma fracção autónoma de um prédio constituído em regime de propriedade horizontal, mesmo que, antes da constituição dessa propriedade, o alegado retentor tivesse exercido actos de posse, consentidos pelo proprietário promitente-vendedor antes da concretização do objecto físico da realidade, que, posteriormente, passou a ser juridicamente uma fracção autónoma: são realidades jurídicas distintas uma garagem sita na cave de um prédio e uma outra garagem também aí situada que constitui uma fracção autónoma validamente constituída.

Não existe um direito real de garantia se não incide sobre um bem imóvel concretamente identificado.

Ensina Luís Carvalho Fernandes, in “Lições de Direitos Reais”, 6ª edição, págs. 58 e 59:  

“Como primeira característica dos direitos reais, por referência ao seu objecto, assinala-se que este tem de ser uma coisa certa e determinada e, como tal, existente.

O verdadeiro sentido desta característica, para ela ter valor enquanto critério de autonomização dos direitos reais, nomeadamente na sua contraposição aos direitos de crédito relativos a coisas, é o de o objecto do direito real ter de existir e ser certo e determinado no momento da constituição ou da aquisição do direito.” (destaque nosso)

No caso, os Recorridos não poderiam, à luz do contrato-promessa que celebraram com a insolvente, invocar a existência de direito de retenção (não está em causa, no recurso, discussão acerca do regime civilístico e insolvencial do incumprimento do contrato promessa), tendo havido traditio e, no caso de insolvência do promitente-vendedor, nem reclamar o dobro do sinal prestado, porquanto o bem imóvel apreendido para a massa – a fracção “C” – era constituído por estabelecimento comercial e lugar de garagem nº10 na cave, não tendo os Recorridos direito de retenção sobre um dos bens que integram tal fracção autónoma, no caso a garagem.

Assim o crédito que reclamaram é um crédito comum, não exornado pela garantia real direito de retenção, pelo que não prevalece sobre o crédito hipotecário do recorrente.

Decisão:

Nestes termos, concede-se a revista, revogando-se o Acórdão recorrido com a inerente repristinação da sentença.

Custas pelos recorridos.  

Supremo Tribunal de Justiça, 20 de Junho de 2017

Fonseca Ramos – Relator

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida

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[1] Relator - Fonseca Ramos
Ex.mos Adjuntos:
Conselheira Ana Paula Boularot
Conselheiro Pinto de Almeida