Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3442/08.0TAMTS.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: RECURSO PENAL
ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CORRECÇÃO DA DECISÃO
CORREÇÃO DA DECISÃO
RECTIFICAÇÃO
RETIFICAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
PENA SUSPENSA
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
CRIME CONTINUADO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO DE INFRAÇÕES
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE
CÚMULO JURÍDICO
EXTINÇÃO DA PENA
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
CULPA
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
ILICITUDE
BURLA QUALIFICADA
ABUSO DE CONFIANÇA
DESCONTO
EQUIDADE
Data do Acordão: 10/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES / DESCONTO DA PENA ANTERIOR NO CUMPRIMENTO DA PENA DE PRISÃO.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - SENTENÇA ( NULIDADES ) / CORRECÇÃO DA SENTENÇA ( CORREÇÃO DA SENTENÇA ) - RECURSOS - EXECUÇÃO DAS PENAS.
Doutrina:
- André Lamas Leite, “A suspensão da execução da pena privativa de liberdade sob pretexto da revisão de 2007 do Código Penal”, Estudos em homenagem ao prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra (coleção Stvdia Ivridica, n.º 99), Coimbra: Coimbra Editora, 2009, vol. II, p. 583 e ss, em particular, p. 608 e ss, p. 627.
- Figueiredo Dias, Direito Penal Português — As consequências Jurídicas do Crime, Lisboa: Aequitas/Ed. Notícias, 1993, § 316, § 348, § 352, § 421 (p. 291), § 422, § 434, § 436 (p. 298-9), § 439, § 443, § 444.
- Maria João Antunes, “Alterações do sistema sancionatório”, Revista do CEJ, n.º 8 (2008), p. 7 e ss, em especial, p. 11; Consequências jurídicas do crime, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, pp. 57, 60.
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa: UCP, 2011, art. 380.º, nm. 2.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 625.º.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 4.º, 379.º, N.º 1, AL. C), 380.º, N.º 1, AL. A), E N.º 3, 399.º, 400.º “A CONTRARIO”, 402.º, N.ºS 2 E 3, 410.º, N.º 2, 414.º, N.º 3, 432.º, N.º 1, AL. C), E N.º 2, 434.º, 471.º, 472.º, 492.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 30.º, N.º 2, 40.º, 50.º, 56.º, 70.º, 71.º, 77.º, 78.º, 79.º, N.º 2, 80.º, 81.º, N.º 2.
*
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS INCLUÍDA NA PROPOSTA DE LEI N.º 98/X, CONSULTÁVEL EM HTTP://WWW.DGPJ.MJ.PT/SECTIONS/POLITICA-LEGISLATIVA/ANEXOS/LEGISLACAO-AVULSA/REVISAO-DO-CODIGO-PENAL/DOWNLOADFILE/ATTACHEDFILE_F0/PROPOSTA_DE_LEI_98-X-2.PDF?NOCACHE=1205856345.98
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 20.04.2005, PROC. N.º 04P4742, IN
HTTP://WWW.DGSI.PT/JSTJ.NSF/954F0CE6AD9DD8B980256B5F003FA814/F861E83248286197802571F100317EF9?OPENDOCUMENT
-DE 02.10.2012, PROC. 87/12.3SGLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 17.10.2012, PROC. N.º 1236/09.4PBVFX.S1, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 21.11.2012, PROC. N.º 153/09.2PHSNT.S1, CONSULTÁVEL EM: HTTP://WWW.DGSI.PT/JSTJ.NSF/954F0CE6AD9DD8B980256B5F003FA814/0EBDF70C7ED786DD80257AEC005533CD?OPENDOCUMENT
-DE 21.03.2013, PROC. N.º 153/10.0PBVCT.S1, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 05.06.2014, PROC. N.º 8/13.6GAFND.S1, DE 10.09.2014, PROC. N.º 118/09.4GESLV.E2.S1, E DE 13.11.2014, PROC. N.º 813/11.8TAPTM.E1.S1.
-DE 25.06.2014, NO PROC. N.º 14447/08.0TDPRT.S4, IN SUMÁRIOS DOS ACÓRDÃOS DO STJ.
-DE 09.07.2014, PROC. N.º 39/08.8GBPTG.S1, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 14.05.2015, PROC. N.º 8/13.6GAPSR.E1.S1, CF. VOTO DE VENCIDA, IN HTTP://WWW.DGSI.PT/JSTJ.NSF/954F0CE6AD9DD8B980256B5F003FA814/D49DF7DD77A3391980257E4B00306707?OPENDOCUMENT
-DE 21.08.2015, PROC. N.º 1727/13.2JAPRT.P1.S1.
*
-ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N.º 9/2011, DE 20 DE OUTUBRO, PUBLICADO NO D.R., I-SÉRIE, N.º 225, 23.11.2011, P. 5010 E SS., EM PARTICULAR, P. 5019.

-*-

ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-N.ºS 61/06, 3/2006 E 341/2013, TODOS EM WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT .
Sumário :
I - É admissível o recurso directo para o STJ de uma decisão cumulatória que atribuiu à arguida a pena conjunta de 10 anos de prisão, nos termos do art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP. Porém, este recurso apenas pode ser recurso em matéria de direito ainda que este tribunal possa conhecer oficiosamente dos vícios do art. 402.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, nos termos previstos na 1.ª parte do art. 434.º do CPP, que estabelece os poderes de cognição do STJ.

II - A não referência à suspensão da execução (e a não referência à sua revogação) de uma das penas englobadas no cúmulo justifica a correção da decisão recorrida, nos termos do disposto no art. 380.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, do CPP, mas não consubstancia uma situação de omissão de pronúncia.

III - O entendimento maioritário da jurisprudência do STJ vai no sentido de se realizar o cúmulo jurídico de penas de prisão suspensas na sua execução se não decorreu ainda o período de suspensão da execução da pena. Pelo que, seguindo o referido entendimento, no caso concreto, as penas suspensas em que o recorrente foi condenado devem ser englobadas na operação de cúmulo jurídico de penas, uma vez que, quando o acórdão recorrido foi prolatado, em nenhum dos casos se mostra que o período de suspensão já tivesse decorrido, não se podendo concluir pela existência de uma qualquer nulidade derivada de tal englobamento.

IV - A jurisprudência maioritária do STJ vai no sentido de que não há necessidade de fundamentar a revogação da suspensão da execução da pena para englobar as penas suspensas no cúmulo jurídico de penas, inexistindo qualquer nulidade do acórdão recorrido por falta de tal fundamentação.

V - O TC no acórdão 341/2013 já decidiu “não julgar inconstitucional a norma constante dos arts. 77.º, 78.º e 56.º, n.º 1, do CP, quando interpretados no sentido de ser possível, num concurso de crimes de conhecimento superveniente, proceder à acumulação de penas de prisão efectivas com penas de prisão suspensas na sua execução, ainda que a suspensão não se mostre revogada, sendo o resultado uma pena de prisão efectiva.”.

VI - Considerando que no decurso da audiência que decorreu no STJ, foi junta aos autos uma certidão da decisão, proferida no âmbito do processo Y, já transitada em julgado, nos termos do art. 57.º, n.º 1, do CP, que declarou extinta a pena aplicada à condenada, não vai mais esta pena ser integrada no cúmulo jurídico, dado que apenas devem ser integradas as penas não extintas ou prescritas e esta extinção transitou em julgado antes da decisão cumulatória que ainda não transitou em julgado, e que está neste momento em apreciação (assim se cumprindo o disposto no art. 625.º, do CPC, ex vi art. 4.º, do CPP).

VII - Não integra os poderes de cognição deste Tribunal, que foi chamado a apreciar o acórdão cumulatório, a apreciação da matéria de facto dos crimes isoladamente julgados para que possamos concluir pela existência (ou não) de uma realização homogénea no quadro de uma mesma situação exterior, pressuposto da continuação criminosa prevista no art. 30, n.º 2, do CP. Esta matéria constituiu objeto de outras decisões que agora não estão a ser avaliadas neste recurso, dado que neste recurso não se recorreu delas, mas sim e apenas do acórdão cumulatório.

VIII - Não constitui erro notório na apreciação da prova previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, nem violação do princípio da dupla valoração, a circunstância do tribunal recorrido ter tido em conta o facto de a arguida já ter antecedentes criminais por crimes de natureza patrimonial e ter voltado a salientar que tais crimes eram simples ou agravados para fundamentar a aplicação da pena única do cúmulo jurídico, pois para aquilatar da “conduta anterior ao facto e a posterior a este”, nos termos do art. 71.º, n.º 2, al. e), do CP, o tribunal teria que ter conhecido estes elementos. Estes aspectos apenas foram focados para que se pudesse saber se a medida da pena deveria ser maior ou menor em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento de um elemento típico, apenas revelando as circunstâncias do caso determinantes para a apreciação global dos factos, pelo que, não se considera que o acórdão seja nulo por tal fundamento, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.

IX - Os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP constituem vícios de conhecimento oficioso, vícios esses terão que resultar do texto da decisão recorrida.

X - Não resulta do texto da decisão qualquer insuficiência da matéria de facto provada, nem qualquer erro na apreciação da prova se no acórdão cumulatório recorrido está a descrição de todos os factos praticados que integram o concurso de crimes, estão diversos elementos que nos permitem apreciar globalmente a conduta e a personalidade da arguida e não resulta evidente qualquer erro na apreciação da prova, pelo que não se encontra preenchido nenhum dos vícios do art. 410.°, n.º 2, do CPP, não se integrando no âmbito daqueles vícios a simples discordância relativamente à apreciação da matéria de facto.

XI - Sendo um aspeto ligado às concretas penas (parcelares) e estando estas transitadas em julgado, não pode agora este STJ conhecer da possibilidade ou não da atenuação especial da moldura abstracta de cada tipo legal de crime em que a arguida vem condenada.

XII - Estando em concurso condenações da arguida pela prática de 4 crimes de falsificação de documento, 5 crimes de burla qualificada, 2 crimes de abuso de confiança agravada e 1 crime de abuso de confiança, verificando-se esta viveu um período onde se tomou evidente a tendência para a prática de crimes como modo de resolver as dificuldades económicas quando esta exercia a actividade de mediadora de seguros, mas tendo também presente, uma vez passado esse período, e até à sua reclusão, em maio de 2014, não se encontram provados quaisquer factos demonstrativos de uma tendência para o crime, passando-se 6 anos sem que tivesse cometido outros crimes, e cumprindo os deveres a que estava sujeita nas penas que lhe tinham sido suspensas, sendo as exigências de prevenção geral de integração acentuadas e o período longo durante o qual praticou os factos de que vem condenada, o montante elevado dos prejuízos causados (embora já tenha restituído algumas quantias) e o grau de violação dos deveres que lhe assistiam no exercício daquela actividade de mediadora, entende-se que a pena não possa afastar-se muito da metade da moldura do concurso.

XIII - Perante uma moldura da pena do concurso que oscila entre um máximo de 14 anos e 8 meses (correspondente à soma de todas as penas parcelares que lhe foram aplicadas e não declaradas extintas) e um mínimo de 3 anos (correspondente à pena parcelar mais elevada), e tendo presentes as exigências de prevenção especial de socialização, e verificados atos
concretos que demonstram uma vontade clara no sentido de retomar uma vida fiel ao direito, e atenta a idade da arguida, impõe-se que a pena não deva ultrapassar os 6 anos de prisão.

XIV - Estando a arguida a cumprir as penas de substituição (penas de prisão suspensas nas sua execução sob condição de pagamento aos ofendido) em que tinha sido condenada - penas essas que foram englobadas no presente cúmulo - tal é determinante para que, em atenção ao disposto no art. 81.°, n.º 2, do CP, se possa fazer um desconto equitativo.

XV - Porque não é o mesmo sofrer uma privação da liberdade e admitir o seu desconto integral na pena de prisão em que venha a ser descontada, ou cumprir diversas imposições em liberdade, considera-se como equitativo o desconto de 2 anos na pena única aplicada, pois verifica-se que a arguida cumpriu apenas alguns dos pagamentos impostos aquando da suspensão da execução da pena imposta no processo B, mas ainda muito longe do seu cumprimento total.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

Relatório

1. Na 2.ª Secção Criminal da Instância Central, Núcleo de Matosinhos – U. P. 3, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, no âmbito do processo comum coletivo n.º 3442/08.0TAMTS, ao abrigo do disposto no art. 472.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (doravante, CPP), foi realizado o cúmulo jurídico das penas aplicadas à arguida AA, melhor identificada nos autos, e atualmente detida no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo.

Através do acórdão do tribunal coletivo, proferido em 18.11.2014 (cf. fls. 978 a 1006, vol. IV), foi deliberado condenar a arguida AA, em cúmulo jurídico das penas parcelares que lhe foram impostas nos Procs. n.ºs 1297/07.0JAPRT, da extinta 4.ª Vara Criminal do Porto, 940/07.6TAMAI, do extinto 4.º Juízo Criminal de Matosinhos, 1061/08.0TDPRT, do extinto 4.º Juízo Criminal de Matosinhos, e nestes autos (Proc. n.º 3442/08.0TAMTS do extinto 2.º Juízo Criminal de Matosinhos), na pena única conjunta de 10 (dez) anos de prisão.

2. Inconformada com o acórdão proferido, a arguida AA interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, com a apresentação das seguintes conclusões (cf. fls. 1153 a 1170, vol. IV):

«1.ª Vem o presente recurso interposto do acórdão que condenou a recorrente na pena de 10 anos de prisão efectiva, em cúmulo jurídico de penas.

2.ª É entendimento da recorrente que as penas aplicadas à arguida não são susceptíveis de ser cumuladas quer porque relativamente a uma delas se encontra arguida a inexequibilidade parcial do acórdão, quer porque se trata de penas suspensas na sua execução, mas ainda que assim não fosse de entender, sempre se haveria de aquilatar do preenchimento dos requisitos da continuação criminosa, por um lado, e, por outro, constata-se que a fundamentação do acórdão é insuficiente, omitindo factos importantes e contendo factos que não poderia valorar, incorrendo nos vícios do art.º 410.º, n.º2 do Código de Processo Penal.

3.ª Mas, ainda que assim não se entendesse, a pena aplicada é exageradíssima, tendo em conta os factos, a personalidade da arguida e as necessidades de prevenção geral e especial, conforme se verá.

4.ª É pressuposto da realização do cúmulo jurídico de penas não só que as decisões estejam transitadas em julgado, mas também que essas mesmas decisões sejam exequíveis, no sentido que lhe é dado pelos art.ºs 467.º e 468.º do Código de Processo Penal.

5.ª No âmbito do Proc. nº 10611/08.0 TDPRT foi suscitada a questão da inexequibilidade parcial do acórdão proferido nesses autos, tendo disso sido feita menção no requerimento para cúmulo jurídico apresentado pela recorrente, tendo em conta que a queixa aí apresentada pela ofendida é extemporânea e, como, tal não podia o Ministério Público perseguir criminalmente a recorrente e o Estado Português puni-la pela prática de um crime de abuso de confiança simples.

6.ª A recorrente entende que tal acórdão é inexequível nesta parte, tendo arguido a inexequibilidade do referido acórdão naqueles autos, no entanto, tal questão foi indeferida, tendo sido interposto recurso de tal acórdão para o Tribunal da Relação do Porto de tal despacho, sendo que nesse recurso ainda não há decisão.

7.ª Ora, apesar de o acórdão aí proferido já ter transitado em julgado, a arguida arguiu a sua inexequibilidade quanto à pena aplicada pela prática do referido crime de abuso de confiança, pelo que, ainda que fosse realizado cúmulo jurídico de penas, o mesmo não podia englobar a pena em causa, uma vez que ainda não foi decidido tal incidente.

8.ª Mas, ainda que assim não fosse, certo é que no acórdão recorrido deveria fazer-se constar que corria tal incidente num dos processos alvo de cúmulo e o Tribunal pronunciar-se quanto à possibilidade ou impossibilidade de realização do cúmulo jurídico de penas, tendo em conta a pendência de tal incidente.

9.ª Apesar de tal circunstância ter sido alegada no requerimento para cúmulo jurídico de penas, o Tribunal omitiu a pronúncia quanto a tal matéria, pelo que se deve entender que o acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art.º 379.º n.º 1 al. c) do Código de Processo Penal.

10.ª No acórdão recorrido realizou-se cúmulo jurídico de penas em 4 processos, sendo que as penas aplicadas à recorrente em 3 desses processos foram suspensas na sua execução: uma suspensa na sua execução sem quaisquer condicionalismos; outra suspensa na sua execução com regime de prova e uma outra pena suspensa na sua execução na condição de pagar aos ofendidos o valor da indemnização.

11.ª A pena de prisão suspensa e a pena de prisão efectiva não têm a mesma natureza, porquanto têm tratamentos jurídicos diferenciados quer em termos de contagem do tempo de prescrição, quer no regime de cumprimento e até de extinção da pena, sendo a pena suspensa uma verdadeira pena, distinguindo-se, desde logo, porque a pena suspensa não implica o cumprimento de prisão.

12.ª Assim sendo, a pena suspensa não é passível de englobar um cúmulo jurídico. Cumular reclusão com liberdade, é operação que se mostra, em si mesma, impossível.

13ª A pena suspensa apenas poderia ser passível de integrar o cúmulo jurídico se se verificasse qualquer hipótese taxativa de revogação da pena suspensa, nos termos do disposto no art.º 56.º do Código Penal, o que sempre acarretaria um juízo de culpa por parte da recorrente.

14.ª Ora, o acórdão recorrido fez incluir na pena única do concurso penas de substituição, sem que tenha havido decisão nos termos dos art.ºs 56.º do CP e 492.º do CPP, relativamente às penas suspensas, não resultando dos factos que o Tribunal a quo tomou em consideração que nos processos em que foram aplicadas tenha sido decidida a revogação ou a extinção das penas suspensas, pelo que o acórdão é nulo por não ter tomado conhecimento de questões de que deveria conhecer (art.º 379.º n.º 1 al. c) do Código de Processo Penal).

15.ª Independentemente das considerações e teses jurídicas existentes quanto a esta matéria, a defender-se a tese de que as penas suspensas podem ser incluídas no cúmulo jurídico, nenhuma dúvida existe que essas penas suspensas são revogadas, através da operação do cúmulo jurídico, sendo certo que no caso da recorrente duas das três penas suspensas que se encontra a cumprir, foram aplicadas condicionalmente: uma com regime de prova e outra na condição de pagar a indemnização fixada aos ofendidos.

16.ª Ora, as causas de revogação da suspensão da execução da pena encontram-se taxativamente fixadas no art.º 56.º do Código Penal, sendo certo que em nenhuma norma se prevê que, no caso de cúmulo jurídico de penas, possam ser inobservados tais requisitos de revogação da suspensão da execução da pena.

17.ª Acresce que, a revogação da suspensão da execução da pena leva ínsito um comportamento culposo (negligente ou doloso) por parte do condenado, devendo ser proferida decisão fundamentada quanto a tal matéria, sendo certo que tal comportamento culposo esse que pode nem sequer se verificar no caso de cúmulo jurídico de penas.

18.ª Deve, assim, ser julgada inconstitucional a interpretação que se extraia do disposto no art.º 56.º, 77.º n.º1 e 78.º n.º1 do Código Penal no sentido de que a pena de prisão suspensa na sua execução pode ser englobada em cúmulo jurídico de penas, sem que ocorra qualquer das circunstâncias previstas no art.º 56.º do Código Penal ou sem que exista qualquer comportamento posterior negligente ou doloso por parte do condenado que indique que a pena suspensa não atingiu os seus fins ou sem que exista decisão fundamentada no sentido da pena suspensa ou das penas parcelares que a componham englobem tal cúmulo jurídico, por violação do princípio da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito, na sua vertente da confiança e segurança jurídicas e da legalidade, do princípio da proporcionalidade, do princípio da culpa e da fundamentação das decisões judiciais (artºs 1.º, 2.º, 18.º n.º 2, 27.º n.º1 e 2, 205.º n.º1 e 2 da Constituição). 

19.ª A seguir-se a tese de que devem ser incluídas no cúmulo jurídico todas as penas resultantes das condenações da recorrente, havia, em primeiro lugar, que indagar da possibilidade de os crimes pelos quais a arguida foi condenada estavam ou não numa relação de continuação criminosa.

20.ª Não é verdade que, a eventual existência de uma situação de continuação criminosa já tenha sido aquilatada em cada um dos processos com penas a cumular, tendo a arguida sido condenada por alguns crimes na sua forma continuada e noutros não, precisamente por esse facto.

21.ª Se relativamente às penas suspensas se defender que tais penas não têm o efeito de caso julgado, o mesmo se deve dizer quanto à possibilidade de se concluir que o arguido cometeu, a final, não vários, mas apenas um crime continuado ou vários crimes continuados.

22.ª Nenhuma norma legal impede, antes o impõe o art.º 79.º n.º 2 do Código Penal, que a continuação criminosa seja declarada em momento posterior ao trânsito em julgado das condenações das condutas criminosas parcelares.

23.ª E se essa ponderação não se fez em qualquer dos processos e acórdãos anteriores, como efectivamente não se fez, o que se constata da mera leitura dos acórdãos, deve o Tribunal competente para o cúmulo jurídico de penas aquilatar da presença ou ausência dos pressupostos da continuação criminosa, previamente à realização do cúmulo jurídico, pois que a aplicação das regras da continuação criminosa afasta ou pode afastar a aplicação das regras do cúmulo jurídico.

24.ª Ora, não tendo o Tribunal previamente considerado sequer a possibilidade de os crimes cometidos pela arguida estarem numa relação de continuação criminosa, não conheceu de questões de que deveria conhecer e, como tal, incorreu na nulidade prevista no art.º 379.º n.º 1 al. c) do Código de Processo Penal.

25.ª Por outro lado, é de concluir, se se quiser ler os factos dados como provados nos acórdãos, em conjugação com a matéria de facto provada decorrente da audiência de cúmulo que se verificam os pressupostos da continuação criminosa, devendo a arguida, ser julgada segundo este regime legal.

26.ª De facto, os crimes em causa protegem fundamentalmente o mesmo bem jurídico, porquanto os crimes de burla e abuso de confiança protegem o mesmo bem jurídico e para o preenchimento do tipo do crime de falsificação de documento, o agente tem a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, pelo que apesar de o bem jurídico protegido ser o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório, subsidiariamente protege-se, da mesma forma, o património de terceiro.

27.ª Verifica-se a realização plúrima de vários tipos que protegem fundamentalmente o mesmo bem jurídico, a execução dos crimes foi essencialmente homogénea, como decorre do acórdão recorrido, sendo as condutas da arguida reconduzíveis a “um único sentido autónomo de ilicitude”, sendo que as diversas resoluções devem conservaram-se dentro de «uma linha psicológica continuada» e persistência de uma situação exterior que facilitou a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente, designadamente as dificuldades económicas do agregado familiar, tendo em conta que apenas a arguida contribuía para alimentar os seus quatro filhos.

28.ª Assim, deveria ser sujeita a situação criminal da arguida às regras da continuação criminosa e não do cúmulo jurídico.

29.ª Ainda que assim não se entendesse, determinados factos dados como assentes não deveriam ser levados em conta para a pena única, por um lado e, por outro, o Tribunal não investigou matéria que deveria investigar, ocorrendo o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto.

30.ª De facto, as condenações anteriores aos processos a cumular não poderiam ser levados em conta para a medida da pena do cúmulo jurídico.

31.ª Na verdade, tais penas por terem sido já consideradas extintas não englobam o cúmulo jurídico, mas também não podem ser sopesadas na medida da pena do cúmulo jurídico.

32.ª Na verdade, como se vê dos acórdãos condenatórios não só as condenações referidas no acórdão recorrido foram já sopesadas na medida das penas parcelares aplicadas e que formaram a moldura penal do cúmulo realizado, como também, em cada uma das condenações posteriores foram levadas em conta as condenações anteriores, sendo certo que apenas podem ser relevadas em sede de determinação da medida da pena as condenações anteriores à data da prática dos factos em julgamento e não já as posteriores.

33.ª Assim, para além de se levarem em conta as já contaminadas penas parcelares, no acórdão recorrido levaram-se em conta antecedentes criminais que já haviam sido alvo de ponderação aquando da aplicação das penas parcelares, valorando-se duplamente tais condenações.

34.ª Tendo em conta o supra exposto, deve concluir-se que o acórdão recorrido incorreu em erro notório na apreciação da prova – art.º 410.º n.º 2 al. c) do Código de Processo Penal -, ao valorar novamente as condenações sofridas anteriormente pela recorrente.

35.ª No entanto, ainda que assim não se entenda, certo é que se valorou, tomando conhecimento de questões de que o Tribunal não podia tomar conhecimento e, como tal, o acórdão é nulo, nos termos do disposto no art.º 379.º n.º 1 al. c) do Código de Processo Penal.

36.ª De qualquer das formas, a interpretação que se extraia do disposto nos art.ºs 77.º n.º1 e 78.º n.º1 do Código Penal no sentido de que na decisão a proferir quanto ao cúmulo jurídico de penas, podem ser valoradas as condenações anteriores já levadas em consideração para a aplicação das penas parcelares que constituem a moldura abstracta do cúmulo jurídico, é inconstitucional, por violação do art.º 29.º n.º 5 da Constituição.

37.ª Em vários segmentos do acórdão recorrido levaram-se em conta aspectos e circunstâncias particulares dos crimes, quando tais circunstâncias já haviam sido levadas em conta quer pelo legislador na consagração da moldura penal abstractamente aplicável, quer pelo julgador nas penas parcelares que constituíram a moldura abstracta do cúmulo jurídico, violando-se o princípio da proibição da dupla valoração.

38.ª Não deveria o acórdão recorrido levar em conta, como levou, os bens jurídicos protegidos pelos concretos crimes cometidos pela recorrente ou se o prejuízo foi de valor elevado ou consideravelmente elevado ou se o crime de falsificação de documento foi agravado ou simples, porquanto todas estas questões já foram devidamente escalpelizadas pelo legislador ao criar a moldura penal aplicável e, por isso, já foram levadas em conta nas penas parcelares.

39.ª Não deveria também o acórdão recorrido levar em conta que a arguida era mediadora de seguros ou que estava em causa a violação de bens jurídicos patrimoniais; ou repetirem-se argumentos já usados nos acórdãos que deram origem ao acórdão recorrido, designadamente na parte em que se refere ao imóvel que estava inserido num condomínio no qual as despesas de habitação ascendiam a 1500 €, não se tendo cuidado de saber o porquê de tal ter acontecido, porquanto este último argumento já havia sido usado no acórdão proferido no Proc. 10611/08.0 TDPRT da 4ª Vara Criminal do Porto para afastar a suspensão da execução da pena.

40.ª São, por isso, tais considerações, por já terem sido devidamente valoradas na medida das penas parcelares, violadoras do princípio da proibição da dupla valoração, pelo que, nesta parte, o acórdão deve ser julgado nulo por ter tomado conhecimento de questões que não podia conhecer, nos termos do disposto no art.º 379.º n.º 1 al. c) do Código de Processo Penal.

 41.ª A recorrente, na sequência da marcação da audiência, apresentou requerimento alegando factos e considerações jurídicas que considerou pertinentes, tendo requerido a sua própria inquirição e a de duas testemunhas.

42.ª No entanto, no acórdão recorrido não se refere uma linha quanto ao depoimento da arguida nessa audiência de cúmulo jurídico (fosse se se afirmou arrependida, resignada, relutante; se mostrou vontade em pagar aos ofendidos; quais os sentimentos que demonstrou em face das condenações) ou das testemunhas, limitando-se o acórdão recorrido a referi-las pelo seu nome e a dar a conhecer a sua razão de ciência.

43.ª O que estas testemunhas disseram sobre a vida da arguida, sobre a sua personalidade, modo de encarar a vida e prognose quanto ao seu comportamento futuro, nada se diz, não se fazendo do mesmo passo, qualquer exame crítico dessa prova.

44.ª Da fundamentação da sentença não decorre, como se disse, o que as testemunhas e a arguida tenham dito ou que factos foram considerados provados através do seu depoimento ou o exame crítico do seu depoimento, pelo que o douto acórdão deve ser considerado nulo nesta parte, nossa termos do disposto nos art.ºs 374.º n.º 2 e 379.º n.º 1 al. a) do Código de Processo Penal.

45.ª Da mesma sorte, deve ser considerado nulo o acórdão de acordo com tais disposições legais, ao fazer constar “Não se provaram outros factos, designadamente alegados pela arguida no seu referido articulado, não tendo sido produzida prova concreta sobre os mesmos.”

46.ª De facto, o que impõe o art.º 374.º n.º 2 do Código de Processo Penal é que os factos sejam enumerados, sejam eles os provados ou não provados, por forma a que se possa constatar do conhecimento por parte do Tribunal de tais factos.

47.ª Assim, quer por uma, quer por outra razão, deve o acórdão ser julgado nulo, nos termos das normas supra referidas.

48.ª No acórdão recorrido não se diz, certamente por lapso, que a pena aplicada nos presentes autos foi de dois anos e seis meses de prisão, suspensos na sua execução por igual período (cfr. o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 631 a fls. 649), o que importa a sua correcção, nos termos do disposto no art.º 380.º n.º 1 al. a) e n.º 3 do Código de Processo Penal que se impõe.

49.ª As conclusões a que chega o Tribunal são totalmente contraditórias com aquelas a que chega a DGRS, sendo conclusivas, lacunosas e totalmente desfasadas da matéria de facto assente.

50.ª O acórdão recorrido ao omitir:

  1 - a avaliação da personalidade que relevasse sobretudo se o conjunto global dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, dando-se sinais de extrema dificuldade em manter conduta lícita, caso que exaspera a pena dentro da moldura de punição em nome de necessidades acrescidas de ressocialização do agente e do sentimento comunitário de reforço da eficácia da norma violada ou indagar se o facto se deve à simples tradução de comportamentos desviantes, meramente acidentes de percurso, que toleram intervenção punitiva de menor vigor, expressão de uma pluriocasionalidade, sem radicar na personalidade, tendo presente o efeito da pena sobre o seu comportamento futuro,

            2 - o modo como a arguida vem cumprindo (ou não) os deveres e as obrigações a que as penas de suspensão da execução da prisão foram subordinadas, tendo em conta que tal circunstância tem incidência de relevo na avaliação da exigências de prevenção especial;

            3 - que a arguida confessou integralmente todos os factos dados como provados no âmbito destes autos, como decorre do acórdão proferido (cfr. fls. 493 e seguintes e, designadamente, fls. 497 e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 631 e seguintes).

            4 - o valor total efectivamente apropriado, nem se somam as quantias restituídas pela arguida, sendo certo que em todos os processos foram restituídas quantias aos ofendidos, o que demonstra intenção de pagar as mesmas;

            5 - Nos factos transcritos dos acórdãos com penas a cumular omitiram-se todos os factos decorrentes das condições de vida da arguida.

51.ª E ao não retirar qualquer conclusão:

            6-  do facto de as quatro primeiras condenações do processo aludido em A), embora tratando-se de quatro crimes distintos, cometidos em concurso efectivo, aqueles respeitam à mesma situação concreta, sendo um único o ofendido (2º parágrafo, pag. 26 do acórdão recorrido);

7 - da afirmação - os períodos de tempo em que tais factos foram cometidos, entre Abril de 2004 e Março de 2008, ou seja num intervalo de quatro anos entre a primeira e última situação;(1º parágrafo da pag. 26), ou se faz qualquer ligação com a situação de debilidade financeira da recorrente.

            8 - da afirmação - relativamente a cada um dos três "blocos" de crimes em causa, burla, abuso de confiança e falsificação de documento, o modo de execução dos factos é essencialmente homogéneo, nos termos relatados na matéria de facto provada em cada um dos quatro processos referidos em A), B), C) e D), como supra se transcreveu;, constante do 3º parágrafo da pág. 26.

9 - do impacto que teve na vida da arguida “o consumo exagerado de bebidas alcoólicas por parte do cônjuge e os maus tratos de que a arguida era vítima” – ponto 6 da matéria de facto assente pág. 20 do acórdão.

  10 - do facto de a arguida ter vivido difíceis condições económicas que coincidiram com os primeiros factos criminosos aí julgados e que o seu marido não trabalhava, tendo a arguida de sustentá-lo a ele e a 4 filhos menores, com os quais foi viver e sustentou, depois de se divorciar e de 30 anos a ser molestada fisicamente (factos 10, 11 e 12 das págs. 20 e 21 do acórdão e a al. j) da pág. 24)

11- do facto de a arguida ter trabalhado como empregada de limpeza, fazer bolos e passar a ferro, tendo em conta as habilitações académicas que tinha (ponto 17 da matéria de facto, pág. 21 e al. m) pág. 25).

12- do facto de se ter inscrito nos anos lectivos de 2012/2013 e 2013/2014 no curso de Psicologia da Universidade ... – pontos 20 e 21 dos factos da pág. 20.

  13- se o mioma uterino a que foi intervencionada lhe acarretou ou não alguma incapacidade para o trabalho que dificultou a sua busca por emprego – ponto 19 da matéria de facto da pág. 20.

            E ao nada concluir:

            14 – quanto à sua futura reintegração, tendo em conta que mesmo em reclusão o seu companheiro e os seus filhos a visitam semanalmente (ponto 27);

            15- ao facto de arguida se manter activa quer em termos de trabalho, quer em termos de estudo (pontos 28 e 30);

            16- quanto ao facto de a arguida ter reconhecido os prejuízos causados pela sua conduta e mostrado intenções de ressarcir tais prejuízos (ponto 33), ou de ter discurso crítico quanto ao seu passado criminal e vontade em promover uma mudança no seu percurso de vida (ponto 35).

52.ª Incorreu:

            a) no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto (cfr. art.º 410.º n.º 2 al. a) do Código de Processo Penal), quanto aos pontos 1) a 5) supra descritos;  

            b) no vício de contradição insanável entre a fundamentação (art.º 410.º n.º 2 al. b) do Código de Processo Penal, tendo em conta que as conclusões a que chegou o Tribunal na pág. 28 e a pena de 10 anos de prisão são absolutamente contraditórios com a matéria de facto provada supra transcrita, não encontrando tais conclusões qualquer suporte na matéria de facto; e no

            c) no vício de erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º n.º 2 al. c) do Código de Processo Penal, porquanto as conclusões retiradas dos factos são ilógicas e inaceitáveis, sendo que um homem médio concluiria que o tribunal violou grosseiramente as regras da experiência comum, designadamente ao dar como provados os factos que supra se enumeram de 6 a 16 e ao concluir como concluiu na pág., 28 do acórdão.

53.ª No entanto, ainda que assim não fosse de entender sempre o acórdão por omissão de referência aos factos e circunstâncias supra aludidas e ao não tirar as conclusões relativas aos factos provados, por forma a poder ter uma visão global do facto em si considerado, incorreu em nulidade por violação do disposto no ar.tº 374.º n.º 2 do Código de Processo Penal, de acordo com o art.º 379.º n.º 1 al. a) do mesmo diploma legal.

 SEM PRESCINDIR,

54.ª Da matéria de facto dada como provada conclui-se que a arguida é pessoa trabalhadora, criou os seus 4 filhos sem qualquer ajuda por parte do progenitor, constituindo as dificuldades económicas e financeiras que começou a ter em 2004, um ponto de viragem na sua vida que revela que os factos pelos quais foi condenada foram meros acidentes de percurso, que toleram intervenção punitiva de menor vigor, expressão de uma pluriocasionalidade, sem radicar na personalidade.

55.ª Na verdade, o desespero em que vivia face à falta de ajuda financeira do progenitor e ter de alimentar 5 bocas, exerceu sobre a arguida uma pressão imensa que a levou a delinquir.

56.ª Com efeito, os factos dados como assentes apesar da sua gravidade intrínseca, foram uma realidade para a qual a arguida foi “atirada”, sendo que existe um grau de probabilidade forte, de futura fidelidade à lei, de condução de vida de forma responsável, tendo em conta o curso que a recorrente pretende concluir, o facto de estar integrada e de ter uma relação afectiva estável com um Professor da Faculdade de Arquitectura do Porto.      

57.ª A conduta posterior aos factos, designadamente a confissão de todos os factos dados como provados no âmbito destes autos, como decorre do acórdão proferido e o facto de ter restituído já algumas quantias apropriadas, revela que a arguida tem o propósito de ressarcir os ofendidos o que fez na medida do possível, sendo ajudada economicamente pelo companheiro.

58.ª As quantias apropriadas ainda em dívida somam a quantia de 339.385, 56 €, sendo devidos às seguradoras para quem trabalhou 93.748,63 € à .... - Proc. 1279/07 – e 35.512,82 € à .... - Proc. 10611/08 – e devidos a particulares: 29.040 € à ofendida BB, 9.810 € ao ofendido CC – Proc. 10611/08 – 35.885 € ao ofendido DD, 163.049,11 € ao ofendido EE – Proc. 940/07 – e 20.000 € à ofendida FF – Proc. 3442/08.

59.ª No entanto, a arguida já pagou 12.814 € à Axa, 14.115 € ao ofendido DD, 16.650 € ao ofendido EE, à seguradora ... 20.461,65 € e à ofendida GG 80.000 €.

60.ª Todas estas quantias foram pagas extra-judicialmente, umas antes dos processos, outras durante os processos e outras após os processos.

61.ª No entanto, não é de considerar, em termos de prevenção geral, que a conduta da arguida tenha tido impacto de maior, porquanto as pessoas em causa eram e são pessoas de avultadas posses, pois que se assim não fossem não investiam tais quantias, sendo as seguradoras reconhecidamente robustas financeiramente, pelo que as consequências do crime não foram graves, sendo o seu modo de execução rudimentar.

62.ª Por outro lado, os 4 crimes pelos quais foi condenada no Proc. 1297/07 tiveram o mesmo ofendido, foram cometidos no decurso de 4 anos, tendo decorrido já quase 7 anos sobre o último deles, mantendo a arguida uma boa conduta.

63.ª A arguida pretende concluir o curso de Psicologia, tendo-se inscrito nos anos lectivos de 2012/2013 e 2013/2014 na Universidade ..., pretendendo adquirir conhecimentos para exercer uma nova profissão, tem uma relação estável, tem bom enquadramento familiar quando em liberdade e mesmo em período de reclusão, mantém-se activa quer em termos de trabalho, quer em termos de estudo.

64.ª A arguida reconheceu os prejuízos causados pela sua conduta e mostrou intenções de ressarcir tais prejuízos, tendo um discurso crítico quanto ao seu passado criminal e vontade em promover uma mudança no seu percurso de vida, pelo que se deve concluir que a arguida se encontra impreparada para manter a conduta ilícita, não cometendo qualquer crime desde Março de 2008 até à sua reclusão em 5/5/14.

65.ª Por outro lado, como se disse decorreram já 7 anos sobre a data do último crime (art.º 72.º n.º 2 al. d) do Código Penal), sendo certo que ainda que assim não fosse de considerar a conduta da arguida foi determinada por motivo honroso (artº 72.º n.º 2 al. b) do CP) – prover ao sustento da sua família – e a arguida manifestou-se arrependida, tendo reparado, até onde lhe era possível os danos causados.

66.ª Nesta ordem de considerações deveria a moldura do cúmulo jurídico ser especialmente atenuada, baixando respectivamente para 7 meses de prisão e 7 anos e 6 meses de prisão, nos termos do disposto no art.º 73.º n.º 1 al. a) e b) do Código Penal, o que levaria a considerar a aplicação de uma pena suspensa na sua execução, ainda que condicionada a deveres ou a regime de prova.

AINDA QUE ASSIM NÃO SE ENTENDA,

67.ª A defender-se a tese de que as penas suspensas na sua execução, são penas de idêntica natureza às penas de prisão efectiva, por forma a englobá-las no cúmulo nenhum sentido faz que não se lhe aplique o disposto no art.º 80.º do Código Penal.

68.ª De facto, a pena suspensa é uma pena de substituição como qualquer outra, sendo certo que o arguido, durante o período de suspensão da pena se encontra em cumprimento da mesma, sendo que só assim se compreende o disposto no art.º 57.º n.º 1 do Código Penal.

69.ª Deve entender-se, na esteira de Figueiredo Dias que se está perante uma lacuna, que o juiz pode integrar – tratando-se, como se trata, de uma solução favorável ao delinquente – sempre que possa encontrar um critério de desconto adequado ao sistema legal e dotado de suficiente determinação.”

70.ª E tal norma a criar teria de ser no sentido de descontar todo o tempo de cumprimento de pena suspensa, à pena aplicada em concreto.

71.ª Daí que se entenda que as normas dos art.º 57.º n.º 2, 77.º n.º 1 e 78.º n.º 1 do Código Penal interpretadas no sentido de que não deve ser descontado o tempo de duração da pena suspensa na pena a aplicar em sede de cúmulo jurídico de penas, é inconstitucional, por violação do princípio da culpa e da proporcionalidade e, designadamente, dos art.ºs 18.º n.º 2, 29.º n.º 1 e 30.º n.º 1 da Constituição.

72.ª Deveria, assim, ser descontada na pena do cúmulo jurídico, a pena já cumprida, pelo menos no Proc. 1297/07, tendo em conta que é o processo cujo trânsito em julgado se deu há mais tempo.

73.ª O acórdão recorrido violou ou fez errada aplicação do disposto nas normas supra referidas que aqui se dão por integralmente reproduzidas não podendo, pois, manter-se.»

3. O recurso interposto pela arguida AA foi admitido pelo despacho proferido a fls. 1174 (vol. IV); ainda que o recurso tenha sido interposto para o Tribunal da Relação do Porto (cf. fls. 1012) foi deliberado: “admito o recurso interposto pela arguida a fls 1012 a 1070 (original a fls. 1077 a 1171), destinado ao Supremo Tribunal de Justiça (arts. 399.º, 400.º, a contrario, 401.º, n.º 1, al. b), 411.º, n.º 1, al. b) e n.º 3, e 432.º, n.º 1, al. c) e n.º 2 conjugado com os arts. 410.º, n.º 2 e 434.º, todos do Código de Processo Penal)” (sublinhado nosso).  Os autos subiram imediatamente com efeito suspensivo para este Tribunal.

4. O Senhor Procurador da República, junto do Tribunal de 1.ª instância, pronunciou-se no sentido de ser negado provimento ao recurso interposto pela arguida AA (cf. fls. 1174 a 1180, vol. IV), com os seguintes fundamentos:

«II. Apreciação crítica do recurso e posição do MP

Começa a recorrente por defender a exclusão do crime e pena decretados no processo 10611/08.0TDPRT, por ali ter sido suscitado um incidente de inexequibilidade parcial do Acórdão.

Ora, conforme já se defendeu em sede de resposta ao recurso recentemente ali proferido, parece-nos manifesta a falta de fundamento da pretensão ali apresentada.

Contudo, torna-se irrelevante discutir do mérito de tal pretensão, na medida em que o Acórdão proferido no processo 10611/08.0TDPRT já transitou em julgado, sendo certo que a mera apresentação do recurso mencionado nunca poderia obstar à normal produção de efeitos de uma decisão já tornada definitiva em Março de 2014.

Não deve, por isso proceder tal pretensão.

No que concerne à inclusão de penas de prisão suspensas na sua execução no presente cúmulo jurídico com outras penas de prisão efectiva (as aplicadas no processo 10611/08.0TDPRT), é entendimento maioritário, na jurisprudência e doutrina, que, tratando-se de penas da mesma natureza, devem as mesmas (e os factos que as justificaram) ser objecto de cúmulo jurídico, designadamente, em caso de conhecimento superveniente, como aqui aconteceu.

Essencial é que, conforme entendemos verificar-se na decisão recorrida, seja feita uma avaliação global e actual das circunstâncias relevantes para a determinação da pena única, não se apresentando tal avaliação como uma mera faculdade do condenado, consoante a sua conveniência.

No caso, considerando o número de crimes praticados e a gravidade objectiva dos mesmos reflectida nas penas e perante o conjunto de circunstâncias apuradas, foi fixada uma pena única que, pela sua medida concreta, inviabiliza a aplicação de uma nova suspensão.

Tal perspectiva, ao contrário do que defende a recorrente, vem fundamentada no 1.º parágrafo de fls. 996, último parag. de fls.1005 e 1.º parág. de fls.1006, não ocorrendo, por isso, qualquer nulidade da decisão.

Quanto à não consideração de uma relação de continuação criminosa e não de concurso efectivo, entre os vários factos e crimes considerados no presente cúmulo jurídico, remetemos para o expendido na decisão recorrida a fls.995, quando se diz «…tal situação já foi apreciada nos processos referidos em A) a D), tendo inclusivamente a arguida chegado a ser condenada em algumas situações por crime continuado, mas não noutras, por se entender nestas últimas existir concurso efectivo, tendo transitado em julgado todas as referidas condenações».

Quanto à medida da pena, entendemos que a mesma reflecte as circunstâncias, atinentes à culpa, prevenção especial e prevenção geral, apuradas e por referência aos factos praticados, nos termos constantes da decisão, para os quais por razões de economia se remete.

Por último, a pretensão de que o período de suspensão de pena de prisão cumprido no âmbito dos processos em que tal medida foi aplicada deveria ser descontado no período de prisão efectiva resultante da decisão cumulatória é manifestamente improcedente, já que se deduz claramente do teor do art. 80.º do CP que apenas o cumprimento de medidas ou penas privativas de liberdade é descontado, nas condições descritas, noutras penas a cumprir, sejam estas detentivas ou não, surgindo o art. 81.º do mesmo diploma como um desenvolvimento ou explicitação do princípio enunciado no art. 80.º.

Assim, deverá ser negado provimento ao recurso apresentado pela arguida AA, confirmando-se o douto Acórdão Cumulatório, ora em crise, assim se fazendo inteira justiça.»

5. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça foram os autos a vistos do Ministério Público, nos termos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, com o objetivo de realização da audiência requerida.

Não obstante o disposto no art. 416.º, n.º 2, do CPP, entendeu a Senhor Procuradora-Geral Ajunta apresentar o seu parecer, onde, em súmula, pede a anulação do Acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, relativamente à suspensão da execução da pena parcelar de 2 anos e 6 meses de prisão, fixada pelo Tribunal da Relação do Porto, uma vez que a decisão em causa não se pronuncia sobre a necessidade (ou não) de revogar aquela suspensão, e de a integrar no cúmulo jurídico realizado — apresenta para tanto os seguintes argumentos:

«3. Questão prévia:

A recorrente levou à conclusão 48.ª a questão de no acórdão ora recorrido nada constar sobre a suspensão da execução da pena de 2 anos e 6 meses de prisão, por igual período, aplicada, nos presentes autos, por decisão do Tribunal da Relação do Porto (cfr. fls. 631 a 649), requerendo a sua correcção.

Em nosso parecer, não se trata apenas de um mero lapso susceptível de correcção, nos termos do art. 380.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, do CPP.

Trata-se, sim, de omissão de pronúncia, que impõe anulação da decisão recorrida.

Com efeito, a decisão recorrida não só não refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto que determinou a suspensão da execução da pena de 2 anos e 6 meses de prisão fixada nos presentes autos, aquando do relato dos processos e respectivas penas parcelares a incluir na pena única, como na apreciação jurídica a que procede, para justificar a possibilidade de ser efectuado o cúmulo jurídico de penas de prisão efectiva e penas suspensas na sua execução, só se refere e regista as penas “referidas nas alíneas A) e B)”, omitindo, mais uma vez, a pena suspensa na sua execução referida na alínea D) cfr. fls. 996 e 978 a 994.

Fica sem se saber, pois, se o tribunal recorrido considerou concretamente a necessidade, proporcionalidade e adequação de revogar a referida suspensão da pena de 2 anos e 6 meses aplicada nestes autos. Conforme jurisprudência maioritária seguida por este Supremo Tribunal nada obsta ao cúmulo jurídico de penas de prisão efectivas com penas de prisão suspensas na sua execução, desde que o tribunal, na ponderação da personalidade global do arguido e da culpa, sopesados os factos criminosos praticados, considere que na pena única a aplicar haverá que integrar as penas de prisão suspensa na sua execução, que revoga, para alcançar a medida concreta da pena adequada, proporcional e sem excessos, que satisfaça, na sua plenitude, as exigências da prevenção geral e especial.

O Acórdão recorrido é totalmente omisso relativamente à ponderação e decisão, ainda que mínima, sobre a necessidade de revogação da suspensão da pena aplicada nestes autos e sua inclusão no cúmulo jurídico efectuado.

Deve ser declarada nula a decisão recorrida e substituída por outra que expressamente se pronuncie sobre a necessidade e adequação de revogação da suspensão da pena em causa e consequente inclusão no cúmulo jurídico.»

Refere ainda a Senhora Procuradora-Geral Ajunta que, se assim não for entendido, deve ser negado provimento ao recurso interposto pela arguida (cf. fls. 1186 a 1200, vol. V), tudo porque:

«Porém, se assim não for doutamente entendido, então o recurso da arguida não merece provimento.

4 – Questões de fundo

Acompanhando a resposta do Mº Pº que, com a devida vénia, dou aqui por reproduzida, o recurso da arguida não merece provimento.

Consabidamente, são as conclusões de recurso que delimitam o âmbito deste – cfr. Ac. Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, de 19/X/95, in D.R., I Série, n.º 298, de 28/12/95.

Das 67 conclusões que a arguida extraiu da respectiva motivação estão em discussão, em síntese, as seguintes questões:

- as penas parcelares aplicadas não são susceptíveis de ser cumuladas, quer porque relativamente a uma delas se

a) encontra arguida a inexequibilidade parcial do acórdão;

b) quer porque se trata de penas suspensas na sua execução,

c) quer porque haveria de aquilatar-se do preenchimento dos requisitos da continuação criminosa (conclusão 2ª, 4ª a 9ª; 10ª a 18ª; 19ª a 28ª);

- O acórdão recorrido padece dos vícios a que se reporta o art. 410.º, n.º 2, do CPP, procedendo a uma dupla valoração dos factos criminosos fixados (conclusões 2ª; 28ª a 47ª)

- a pena única de 10 anos de prisão é “exageradíssima” (concl. 3ª; 49ª).   

- Deve descontar-se na pena única aplicada o prazo de suspensão da execução das penas já decorrido – concl. 67ª a 72ª.

- Deve declarar-se a nulidade do acórdão recorrido, por força do disposto nos arts. 410.º, n.ºs 2 e 3 e 374.º, ambos do CPP

5 - Não assiste razão à recorrente em nenhuma das conclusões que apresenta, como defende o Mº Pº no tribunal a quo, na sua resposta de fls. 1179 a 1180 que, como já se referiu supra, se dá aqui inteiramente por reproduzida.

5.1 - Com efeito, parece esquecer a arguida que o Acórdão de que ora recorre trata apenas da realização de um cúmulo jurídico de penas parcelares já aplicadas e transitadas, por conhecimento superveniente do concurso – art. 78.º, n.ºs 1 e 77.º, ambos do C.P.

De acordo com o comando do n.º 2, do art. 78.º, do C.P., a realização do cúmulo jurídico só é aplicável aos crimes cuja condenação transitou em julgado.

É, exactamente, o caso dos autos. Todas as decisões cujas penas parcelares integram o cúmulo jurídico realizado transitaram em julgado.

A decisão judicial transitada em julgado não se anula nem se rectifica – cfr. Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, I, Lisboa, 1955, pág. 268, Germano Marques da Silva, Curso de processo Penal, II, Editorial Verbo, 1993, pág. 63, Ac. do STJ, de 22/8/2013, proc. 350/99.7TBMDL.K.S1 – Habeas Corpus.

Como pode ler-se no Aresto acabado de citar, “Mesmo no que respeita às nulidades insanáveis, a declaração de nulidade pode ter lugar em qualquer fase de procedimento, mas apenas enquanto a decisão final não transita em julgado”, ou, como se escreveu no Ac. do STJ, de 2/5/2013, proc. 2024/08.9PAPTH.E1.S1, só nos apertados limites previstos no art. 380.º do CPP, é admissível a correcção ou rectificação da sentença penal.

Não é o caso dos autos, no que tange às penas parcelares consideradas na realização do cúmulo jurídico elaborado pelo Acórdão ora sub judice, porquanto aquelas constam de decisões já transitadas em julgado.

Assim que não releva, para a decisão a proferir por este Venerando Tribunal, a invocada arguição, pela recorrente, de inexequibilidade parcial de decisão já transitada.

Improcedem, manifestamente, as conclusões 2ª, 4ª a 9ª.

5.2 - Defende, ainda, a recorrente a impossibilidade de cúmulo jurídico de penas efectivas e penas suspensas na sua execução.

Não tem razão.

A jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal de Justiça vai no sentido da possibilidade e até conveniência do cúmulo jurídico abranger as penas de prisão suspensas na sua execução, pois só do todo criminoso praticado pelo arguido se pode aquilatar da personalidade global do arguido, assim se alcançando uma pena única mais justa, adequada e proporcional à factualidade total dada como provocada e uma melhor satisfação das exigências da prevenção geral e especial da pena.

(…) Por sua vez, o Tribunal Constitucional, no acórdão n° 3/06, decidiu “a hipótese de uma pena de prisão suspensa na sua execução, anteriormente aplicada a um dos crimes em concurso, vir a perder autonomia e a ser englobada na pena única correspondente ao concurso supervenientemente conhecido constitui, a par das hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do n.° 1 do artigo 56.° do Código Penal, um caso em que é legalmente admitido “revogar” ou “não manter” a suspensão”.

Idêntica opinião é defendida por Jescheck – (Tratado de Derecho Penal — Parte General trad. Espanhola, pág. 787) – que defende que se a pena inicial tiver sido suspensa na sua execução, a suspensão fica sem efeito com a formação do novo cúmulo, havendo o tribunal de decidir na nova sentença se a pena única deve ser ou não suspensa.

- Por todos, cfr. Ac. do STJ, de 18/4/2013, proc. 70/10.3SFPRT-C.S1- 5ª secção.

Imprescindível, é que o Tribunal que procede à decisão de cúmulo jurídico pondere a necessidade, adequação e proporcionalidade da revogação da pena suspensa na sua execução e integrá-la na pena única a fixar, atenta a personalidade global e a culpa do agente, nos termos dos arts. 77.º e 78.º, do CP.

Embora com parcimónia, o Acórdão recorrido procedeu a essa ponderação e fundamentou mínima, mas suficientemente, a revogação da suspensão da execução das penas contidas nas alíneas A) e B) do respectivo relatório e a sua integração no cúmulo jurídico realizado. Não se verifica, pois, nesta parte, qualquer vício do acórdão recorrido que, neste âmbito, arraste a sua nulidade.

Falece razão ao recorrente nas conclusões 2ª, 10.º a 18ª, inclusive.

5.3 - No que concerne à tese defendida pelo recorrente, nas conclusões 19ª a 28ª inclusive, relativamente à discussão sobre a continuação criminosa, há que sublinhar que o Acórdão ora sub judice procedeu, tão só, à realização do cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas em processos cuja decisão se mostra transitada. Não cabe no âmbito da decisão sobre cúmulo jurídico de conhecimento superveniente tratar da questão de continuação criminosa, que haveria de ser suscitada nos processos em que o arguido foi julgado e condenado, nas referidas penas de prisão parcelares, suspensas ou não na sua execução. Aí, sim, poderia e deveria ter sido colocada tal questão jurídica. No âmbito deste processo, não cabe, na competência do tribunal recorrido, nem na deste Supremo Tribunal (re)apreciar tal problemática.

Improcedem, por consequência, as conclusões 19ª a 28.º, inclusive.

5.4 - Defende, ainda, o recorrente que o acórdão recorrido incorreu em erro notório na apreciação da prova – art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, ao valorar novamente as condenações por si sofridas anteriormente (conclusões 29ª a 40ª, inclusive).

Na condenação em pena única, determina a lei, arts. 77.º, n.º 1 e 78.º, n.º 1, ambos do C.P., que, na aplicação da medida da pena, são considerados, em conjunto os factos e a personalidade do agente. Tal imposição “(…) significa que o cúmulo jurídico de penas não é uma operação aritmética de adição, nem se destina, tão só, a quantificar a pena conjunta a partir das penas parcelares cominadas. Com efeito, a lei elegeu como determinantes da pena conjunta os factos e a personalidade do agente, elementos que devem ser considerados em conjunto”, Ac. do STJ de 14/1/2008, proc. n.º 154/12.3GASSB.L1.

(..) O acórdão recorrido procurou sancionar o recorrente, não pelos factos individualmente considerados, mas pelo respectivo conjunto, não como mero somatório dos factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão, gravidade, grau de culpa e intensidade da ilicitude global do comportamento delituoso no seu todo, “… como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado”.

No acórdão ora sub judice não se procedeu a uma dupla valoração dos factos singulares, mas sim, considerou o conjunto daquela factualidade praticada e a personalidade global do arguido.

Carece, pois, de razão o recorrente na questão de direito levada às conclusões 29º a 40º, que devem improceder.

5.5 - Argui, ainda, a recorrente a nulidade do Acórdão recorrido, por omissão de pronúncia relativamente às declarações que aquela e duas testemunhas prestaram em sessão de audiência e julgamento para realização do cúmulo jurídico, ora sub judice (conclusões, 41ª a 47ª, inclusivé).

Não tem razão. Expressamente, o acórdão recorrido refere a razão de ciência dos factos dados como provados atinentes à personalidade da arguida e às suas condições pessoais, entre outros, às declarações por si prestadas e o depoimento das testemunhas na “audiência de cúmulo jurídico (…)” – fls. 596.

O STJ conhece apenas de direito – art. 434.º do CPP – e, por isso, procura a recorrente caracterizar como questão de direito aquilo que, na verdade, não passa da sua não conformação com a factualidade fixada.

A nulidade por omissão de pronúncia só ocorre quando o tribunal deixar de apreciar questões que devesse conhecer, como sejam dos crimes imputados na acusação ou na pronúncia, ou um circunstancialismo relevante para a boa decisão da causa alegada na contestação. Nenhuma destas situações ocorreu nos casos dos autos e o tribunal a quo conheceu de todas as questões que tenha de apreciar.

Averiguar se da audiência resultaram provados factos que o tribunal teria desconsiderado, pressupõe um efectivo conhecimento da matéria de facto, que não se contém nos poderes de cognição deste Tribunal, que se debruça exclusivamente sobre questões de direito, sem prejuízo do disposto no art. 410.º, n.º 2, als. a) a c), do CPP, vícios que não se surpreendem na decisão sob recurso.

Manifestamente improcedem as conclusões 41.º a 47.º, extraídas da motivação de recurso.

5.6 - Por outro lado, o relatório da DGRS, e respectivas conclusões, não assume a relevância pretendida pela recorrente, na conclusão 49ª e suas alíneas, porquanto o Tribunal decide nos termos do art. 127.º do CPP, não constituindo aquele relatório prova pericial a que tenha de se aplicar o disposto no art. 163.º do mesmo CPP.

Dos factos criminosos provados, vistos e examinados no seu conjunto e da factualidade assente, relativamente à sua postura perante o direito e condições pessoais, retirou o Acórdão recorrido conclusão sobre a personalidade global da arguida e a intensidade da culpa.

A arguida é que interpreta, subjectivamente, os factos provados de modo oposto aos fixados no Acórdão recorrido, mas essa é a sua visão interessada, que não afecta a apreciação imparcial, objectiva e sujeita ao princípio da legalidade do Tribunal recorrido.

Não se detectam, no Acórdão recorrido, quaisquer dos vícios elencados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, pelo que falece razão à recorrente nas questões levadas às conclusões 52.ª e 53ª.

5.7 - O mesmo se afirma quanto à sua pretensão de ver diminuída a pena única de 10 anos de prisão aplicada, (conclusões 53.º a 66ª).

Conforme jurisprudência uniforme desde Supremo Tribunal, a determinação da pena realiza-se com recurso aos critérios estabelecidos no art. 71.º do CP, suportados na culpa, na personalidade do agente e pelas exigências de prevenção geral e especial, atento o que dispõe o n.º 1, do art. 41.º, do mesmo C.P. sem nunca, porém poder ultrapassar o limite da culpa – n.º 2, do citado art. 41.º.

A pena concreta será, então, encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior será o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos protegidos, e cujo limite inferior é constituído pela exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial – cfr. Ac. do STJ, de 8/1/2014, proc. 154/12.3GASSR.L1.

(…) A medida concreta da pena única de prisão satisfaz as necessidades gerais e especiais de prevenção, não merecendo provimento, também nesta parte, o recurso da arguida.

5.8 – Pugna, ainda, a recorrente pelo desconto dos períodos de suspensão da execução da pena já decorridos na pena de prisão única aplicada (conclusões 67ª a 72ª).

Sem razão. Efectivamente a suspensão da execução da pena é uma medida de substituição da pena de prisão efectiva, mas o cumprimento da pena de prisão tem, sobretudo, a ver com a contracção ou limitação da liberdade, nomeadamente ambulatória, do condenado.

Na aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução o tribunal que a aplica procede a um juízo de prognose positiva, no sentido de que a “ameaça” do cumprimento efectivo da pena será suficiente para afastar o condenado da criminalidade. Mantém intacta a sua liberdade. No caso de prisão efectiva recolhe à prisão e a sua liberdade é, consequentemente coarctada.

Assim sendo, não é possível nem legalmente admissível contabilizar o período de suspensão da execução da pena decorrido no cumprimento de pena de prisão efectiva – cfr. arts. 80.º e 81.º do C. Penal.

Pelo exposto, emite-se Parecer no sentido

1 – da anulação do Acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, relativamente à suspensão da execução da pena parcelar de 2 anos e 6 meses de prisão, fixada pelo Tribunal da Relação do Porto, em relação à qual a decisão em causa não se pronuncia sobre a necessidade (ou não) de quebrar aquela suspensão, e de a integrar no cúmulo jurídico realizado.

2- Se assim doutamente não fôr entendido, deve negar-se provimento ao recurso interposto pela arguida, por total improcedência das conclusões extraídas da respectiva motivação.»    

6. Uma vez que foi proferido parecer pela Senhor Procuradora-Geral Adjunta, procedeu-se à notificação deste à arguida para, querendo, responder. Apresentou, então, a resposta de fls. 1220 a 1234 (vol. V), na qual mantém o já alegado, porquanto:

«Em primeiro lugar dir-se-á que, tendo a recorrente requerido a realização de audiência neste Tribunal, à partida não deveria haver lugar a parecer do Ministério Público.

No entanto, porque este se encontra nos autos e a recorrente nada tem a opor a que o Ministério Público se pronuncie por escrito. Nada se requererá quanto a essa matéria.

1. A questão da inexequibilidade do acórdão proferido no âmbito do Proc. 10611/08

Defende o Ministério Público que as decisões a cumular se encontram todas transitadas em julgado, pelo que independentemente da pendência da arguição da inexequibilidade de uma das decisões, podia realizar-se cúmulo jurídico, uma vez que estas apenas nos termos do art.º 380.º do Código de Processo Penal, podem ser alteradas e, ainda assim, de forma não substancial.

Ora, o que sucede e se alegou no requerimento apresentado pela recorrente aquando da realização da audiência de cúmulo jurídico, é que no âmbito do Proc. nº 10611/08.0TDPRT foi suscitada a questão da inexequibilidade parcial do acórdão proferido nesses autos, ou seja, a recorrente defende que tal decisão se encontra afectada do vício de inexistência jurídica.

(…) Na verdade, constituindo a queixa condição sine qua non do exercício da acção penal por banda do Ministério Público, nos crimes semi-públicos assim considerados pela lei penal portuguesa, a apresentação extemporânea da queixa, torna o Ministério Público parte ilegítima para o exercício da acção penal e, correspondentemente, para deduzir acusação.

De facto, apresentada a queixa extemporaneamente o Estado Português, representado pelo Ministério Público, não tem legitimidade para exercer o jus puniendi.    

Quanto aos crimes públicos o agente apenas pode ser perseguido e ser iniciado o procedimento criminal, se o crime não estiver já prescrito, pois que se o estiver, o Estado Português não pode exercer o seu jus puniendi.

Ora, a apresentação de queixa extemporaneamente, na medida em que, a queixa em si é que legitima o Estado a perseguir criminalmente, deve ser considerado um vício maior do que as nulidades ou meras irregularidades previstas no Código de Processo Penal, porquanto é um vício de raiz do próprio processo.

Com efeito, como disse Maia Gonçalves aquando da discussão na Comissão Revisora do Código Penal (cfr. BMJ 151, 63), “quando não houver queixa, não haverá processo criminal”, pelo que a sanção jurídica para os actos praticados sem que tenha existido queixa ou esta tenha sido extemporaneamente apresentada é a da inexistência jurídica que autoriza a revogação da condenação, da prisão e do acórdão condenatório na parte em que a arguida foi condenada pelo crime de abuso de confiança simples na forma continuada.

Daí que apenas se possa falar de caso julgado, quando o Estado Português tenha legitimidade para punir no caso que foi objecto de julgamento.

É essa a questão suscitada no referido processo e no presente recurso, pelo que a recorrente mantém integralmente o alegado na motivação.

2. A questão do cúmulo jurídico de penas suspensas

Defende o Ministério Público, entre o mais, apoiado no acórdão do STJ de 21/12/06 proferido no Proc. 4357/06 que deve ser feito o cúmulo entre penas suspensas, uma vez que é “infinitamente preferível à solução alternativa (que seria a de condenar o agente em duas penas que ele teria que cumprir sucessivamente); quer, por último, porque uma tal solução se apresenta como mais favorável para o agente.”

Ora, mal se compreende a aplicação de tal raciocínio ao presente processo.

De facto, foram cumuladas no presente processo 4 penas, provindas de 4 processos diferentes, sendo que apenas uma delas é efectiva, sendo as restantes 3 suspensas na sua execução.

Assim sendo, como é, como se pode defender que esta solução é mais favorável para o agente?

Por outro lado, o acórdão 3/06 do Tribunal Constitucional pronunciou-se quanto à constitucionalidade do art.º 56.º n.º1, 77.º e 78.º do Código Penal em confronto com os princípios da intangibilidade do caso julgado, da proporcionalidade e necessidade das penas criminais, do juiz natural e do contraditório.

Na verdade, em tal acórdão diz-se a hipótese de uma pena de prisão suspensa na sua execução, anteriormente aplicada a um dos crimes em concurso, vir a perder autonomia e a ser englobada na pena única correspondente ao concurso supervenientemente conhecido constitui, a par das hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 56.º do Código Penal, um caso em que é legalmente admitido “revogar” ou “não manter” a suspensão, o que, de acordo com a corrente jurisprudencial em que o acórdão recorrido se insere, nem sequer constitui violação de caso julgado, atenta a conatural provisoriedade da suspensão de execução da pena. O condenado em pena de prisão suspensa na sua execução que tenha praticado um crime anteriormente àquela condenação pelo qual ainda não foi julgado sabe que não só pode ter de vir a cumprir a pena de prisão suspensa se, no decurso do período da suspensão, infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social ou se cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas, mas ainda que aquela suspensão pode não ser mantida, se a pena aplicada ao cúmulo legalmente o não permitir ou se, na ponderação final global a cargo do tribunal do cúmulo, se entender que a suspensão, no caso, se não justifica.

Sucede que, as causas de revogação da suspensão da execução da pena encontram-se taxativamente fixadas no art.º 56.º do Código Penal, sendo certo que em nenhuma norma se prevê que, no caso de cúmulo jurídico de penas, possam ser inobservados tais requisitos de revogação da suspensão da execução da pena.

Acresce que, a revogação da suspensão da execução da pena leva ínsito um comportamento culposo (negligente ou doloso) por parte do condenado, comportamento esse que pode nem sequer se verificar no caso de cúmulo jurídico de penas.

Aliás, o Tribunal Constitucional no acórdão 61/06 de 18/1/06 (in DR IIª Série, de 28/2/06), julgou inconstitucionais, por violação do art.º 205.º n.º 1 da Constituição, as normas dos artºs 50.º n.º1 do Código Penal, 374.º n.º2 e 375.º n.º 1 do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de não imporem a fundamentação da decisão de não suspensão da execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos.

Não pode ser criada por via jurisprudencial uma nova forma de revogação da suspensão da execução da pena não prevista pelo legislador, qual seja a realização de cúmulo jurídico

É entendimento da recorrente, assim, que deve ser julgada inconstitucional a interpretação que se extraia do disposto no art.º 56.º, 77.º n.º 1 e 78.º n.º 1 do Código Penal no sentido de que a pena de prisão suspensa na sua execução pode ser englobada em cúmulo jurídico de penas, sem que ocorra qualquer das circunstâncias previstas no art.º 56.º do Código Penal ou sem que exista qualquer comportamento posterior negligente ou doloso por parte do condenado que indique que a pena suspensa não atingiu os seus fins ou sem que exista decisão fundamentada no sentido da pena suspensa ou das penas parcelares que a componham englobem tal cúmulo jurídico, por violação do princípio da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito, na sua vertente da confiança e segurança jurídicas e da legalidade, do princípio da proporcionalidade, do princípio da culpa e da fundamentação das decisões judiciais (artºs 1.º, 2.º, 18.º n.º 2, 27lº n.º 1 e 2, 205.º n.º 1 e 2 da Constituição).

Por outro lado, a interpretação das mesmas normas legais no sentido de que se deve realizar o cúmulo jurídico entre penas efectivas e penas suspensas de prisão, revogando estas últimas, sempre seria inconstitucional, por tal interpretação violar o princípio da tipicidade da lei penal e, designadamente, os art.ºs 29.º n.º 3 e 4 da Constituição, uma vez que nem o art.º 56.º, nem os art.ºs 77.º e 78.º do Código Penal permitem tal leitura.

Afirma, ainda o Ministério Público que, embora com “parcimónia” a decisão recorrida ponderou “a necessidade, adequação e proporcionalidade da revogação das penas suspensas na sua execução.

Afirma-o relativamente às “penas contidas nas alíneas A) e B) do relatório do acórdão”.

Não é, manifestamente, assim.

Mas, ainda que o fosse, o acórdão recorrido nada disse quanto à pena aplicada constante da al. D), ou seja, exactamente a pena na qual a arguida foi condenada nos presentes autos.

Como explicar que as penas suspensas teriam que ser revogadas por factos cometidos (os mais recentes) em 2008 – há 7 anos -, designadamente os julgados no Proc. 10611/08??

3. A questão do conhecimento da continuação criminosa

Diz o MP que “não cabe no âmbito da decisão sobre o cúmulo jurídico de conhecimento superveniente tratar da questão da continuação criminosa”.

Ora, nenhuma norma legal impede, antes o impõe o art.º 79.º n.º 2 do Código Penal, que a continuação criminosa seja declarada em momento posterior ao trânsito em julgado das condenações das condutas criminosas parcelares.

E o Tribunal que realizar o cúmulo jurídico de penas não está impedido de assim concluir.

De facto, se essa ponderação não se fez em qualquer dos processos e acórdãos anteriores, como efectivamente não se fez, o que se constata da mera leitura dos acórdãos, deve o Tribunal competente para o cúmulo jurídico de penas aquilatar da presença ou ausência dos pressupostos da continuação criminosa, previamente à realização do cúmulo jurídico, pois que a aplicação das regras da continuação criminosa afasta ou pode afastar a aplicação das regras do cúmulo jurídico.

Na verdade, neste caso, o que o tribunal deve fazer é “Numa primeira operação (…) eleger a conduta mais grave cabida aos diversos actos singulares; eleita esta, ele determinará, dentro dela, segundo as regras gerais, a medida da pena do crime continuado. Nada impede que se valore a pluralidade de actos, se disso for caso face ao limite da culpa e às exigências de prevenção, como factores de agravação; menor exigibilidade e a consequente diminuição da culpa que caracterizam o crime continuado já foram tomados em conta apara efeitos da continuação criminosa.” – cfr.  Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal Parte Geral e Especial, 2014, Almedina, pág. 394/395.

Pois que, se assim não o fizer ocorrerá violação do princípio da proibição da dupla valoração dos factos.

(…) Mantém-se, assim, integralmente o alegado na motivação.

4. A dupla valoração dos factos

Defende o MP que o acórdão recorrido “procurou” sancionar o recorrente, não pelos factos individualmente considerados, mas pelo conjunto.

Ora, se procurou não atingiu tal desiderato.

Lancemos mão do acórdão proferido no âmbito do Proc. nº 1545/08.0 JDLSB deste STJ relatado por Rodrigues da Costa para, através da sua leitura se concluir o porquê.

Diz-se nesse acórdão: I - A decisão que efectuou o cúmulo jurídico, ora recorrida, serviu-se apenas da fundamentação que escorou a determinação concreta das penas singulares aplicadas pelos crimes considerados em concurso, ou seja, transcreveu os factos dados como provados nos processos onde o arguido foi julgado, incluindo as condições sócio-económicas e pessoais do arguido, e valorou os antecedentes criminais a partir do registo criminal.           

II - Assim, o acórdão recorrido levou em conta as acentuadas exigências de prevenção geral no que respeita à prática dos crimes de roubo, as exigências de prevenção especial, consideradas de grande incidência, sobretudo por força do comportamento do arguido durante o cumprimento da medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, o comportamento familiar, marcado pelas desavenças, o facto do crime a que se reporta o Proc. n.º …, ter sido praticado durante o período de suspensão de pena por crime de igual natureza, as suas várias condenações anteriores e o desrespeito manifestado em relação a elas, o que induziria que tais condenações “não foram suficientes para fazer o arguido mudar o percurso de vida e pautar o seu comportamento pelas normas e regras das sociedade”.        

III -Finalmente, considerou como circunstâncias favoráveis a confissão integral e sem reservas, bem como o pedido de desculpa que efectuou a um dos ofendidos, no Proc. n.º …, o que demonstra alguma reflexão crítica do mesmo. Assim veio a concluir que ponderando os factores acima expostos e atenta a globalidade dos factos que resultam das respectivas condenações, a idade e a personalidade do arguido, bem como as finalidades da punição (prevenção geral e especial), o tribunal julga adequada a pena única de 8 anos e 6 meses de prisão.             

IV -Quer dizer, o tribunal a quo valorou novamente as circunstâncias que serviram de base à determinação das penas singulares, omitindo qualquer referência ao critério específico de determinação da pena única.             

V - Não fez qualquer referência à inter-relacionação dos vários crimes, de modo a saber-se qual o tipo de ligação que intercede entre eles, se é que existe alguma ligação, e qual a sua vinculação à personalidade do recorrente (se uma vinculação meramente episódica ou acidental, se estruturada num comportamento coerente e indiciador de um determinado modus vivendi).      

VI -Por outras palavras, o tribunal a quo não deu qualquer relevo a circunstâncias impostergáveis para a determinação da pena única e que, apuradas através de uma audiência de julgamento e de outras diligências julgadas necessárias (art. 472.º do CPP) devem fundamentar a pena única de forma específica – a consideração da globalidade dos factos (o ilícito global), em conexão com a personalidade do agente, desta feita avaliada unitariamente e não de forma atomística ou casuística.   

VII - Aliás, será de salientar que o tribunal a quo não se valeu de um relatório social actualizado do arguido, como não atendeu à questão da sensibilidade do recorrente em relação à pena.

VIII - Acresce que desprezou completamente as condenações anteriores, nomeadamente as referentes aos Procs. n.ºs ….: se é certo que as penas aí aplicadas não podiam entrar no cúmulo jurídico realizado nestes autos, a verdade é que os respectivos crimes estão por sua vez em concurso, pelo que as penas únicas de ambos os concursos deverão ser cumpridas sucessivamente.

IX -Assim sendo, anula-se a decisão recorrida por falta de fundamentação, nos termos dos arts. 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP.

Ora, no acórdão recorrido repisa-se a circunstância de estarem em causa bens jurídicos patrimoniais, o que já é salvaguardado pelas normas punitivas e, por outro lado, repetem-se argumentos já usados nos acórdãos que deram origem ao acórdão recorrido, designadamente na parte em que se refere que a arguida residiu num imóvel que estava inserido num condomínio no qual as despesas de habitação ascendiam a 1500 €, não se tendo cuidado de saber se a arguida pagava tais despesas ou o porquê de tal ter acontecido.

De facto, este argumento já havia sido usado no acórdão proferido no Proc. 10611/08.0TDPRT da 4ª Vara Criminal do Porto para afastar a suspensão da execução da pena.

Por outro lado, não deveria o acórdão recorrido levar em conta, como levou, os bens jurídicos protegidos pelos concretos crimes cometidos pela recorrente ou se o prejuízo foi de valor elevado ou consideravelmente elevado ou se o crime de falsificação de documento foi agravado ou simples, porquanto todas estas questões já foram devidamente escalpelizadas pelo legislador ao criar a moldura penal aplicável e, por isso, já foram levadas em conta nas penas parcelares.

Mantém-se, por isso, o alegado na motivação.

5. A fundamentação do acórdão e os vícios do art. 410.º, do CPP

É também evidente que no acórdão nenhum exame crítico ou referência se faz ao que disseram a arguida e as testemunhas no julgamento do cúmulo.

Trata-se de questão de direito e não de questão de facto. As decisões penais devem ser fundamentadas também no que toca à medida da pena (art.ºs 71.º n.º 3 do Código Penal e 375.º n.º 1 do Código de Processo Penal).

O Relatório da DGRS e os factos aí narrados foram parcialmente dados como provados e a referência que se faz na motivação é feita aos factos provados e não directamente ao Relatório da DGRS, embora estes daí decorram, pelo que se mantém integralmente o que aí se alegou.»

6. A medida da pena

O MP não se debruça, em concreto, sobre a matéria constante das conclusões, pelo que também aqui se mantém o alegado na íntegra.»

7. Foi requerida a audiência de discussão e julgamento. Esta foi realizada a 01.10.2015, nos termos do art. 423.º, do CPP.

Assim, no início da audiência, a Relatora enunciou as questões que, abordadas na motivação do recurso e respetivas conclusões, considerou merecedoras de exame por parte deste Tribunal, nos termos do art. 423.º, n.º 1, do CPP.

O Excelentíssimo Mandatário da arguida, nas alegações oralmente proferidas, para além de ter reiterado a posição defendida na motivação do recurso que interpôs para este Supremo Tribunal, apresentou certidão (que foi junta ao processo por deliberação do Senhor Presidente Conselheiro Santos Carvalho) da decisão proferida a 08.04.2015, e transitada em julgado a 13.05.2015, no âmbito do processo n.º 1297/07.0JAPRT, e que declarou extinta a pena aplicada à arguida.

A Excelentíssima Procuradora-Geral-Adjunta pronunciou-se reiterando o exposto no parecer que juntou ao processo, e considerando que a decisão prolatada no âmbito do processo n.º 1297/07.0JAPRT constitui um facto superveniente, que não consta do processo, pelo que havendo duas decisões contraditórias vale a primeira, segundo as regras do CPC.

 

II

Fundamentação

A. Matéria de facto

1. Foi a seguinte a matéria de facto dada como provada pelo acórdão recorrido:

«A) Processo Comum Colectivo nº 1297/07.0JAPRT da extinta 4ª Vara Criminal do Porto, por acórdão de 14/07/2010, transitado em julgado em 23/09/2010:

- sete meses de prisão – por um crime de falsificação de documento previsto e punido pelos arts. 255º, al. a), e 256º, nº 1, al. b), ambos do Código Penal, cometido no dia 16 de Março de 2007;

- sete meses de prisão – por um crime de falsificação de documento previsto e punido pelos arts. 255º, al. a), e 256º, nº 1, al. c), ambos do Código Penal, cometido em Março de 2007;

- um ano e quatro meses de prisão – por um crime de falsificação de documento previsto e punido pelos arts. 255º, al. a), e 256º, nº 1, al. b), e nº 3, ambos do Código Penal, cometido em Março de 2007;

- três anos de prisão – por um crime de burla qualificada previsto e punido pelos arts. 202º, al. b), 217º, e 218º, nº 2, al. a), todos do Código Penal, cometido em Março de 2007;

- três anos de prisão – por um crime de abuso de confiança agravado, na forma continuada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 30º, nº 2, 202º, al. b), e 205º, nºs 1 e 4, al. b), todos do Código Penal, cometido no período situado entre finais de 2004 e Novembro de 2006.

Em cúmulo jurídico, foi aplicada à arguida a pena única de quatro anos e seis meses de prisão - pena essa suspensa na sua execução por quatro anos e seis meses, suspensão esta acompanhada de regime de prova assente em plano de reinserção social a elaborar pela D.G.R.S.P. (certidão de fls. 828 a 848).

Foram os seguintes os factos praticados fundamentadores das elencadas condenações da arguida:

1. No período compreendido entre o ano de 2004 e pelo menos até Novembro de 2007, a arguida exerceu a actividade de agente de mediação de seguros para a Ofendida “...”, cabendo-lhe no âmbito de tais funções angariar contratos de seguros, bem como realizar a cobrança das respectivas apólices de seguros junto dos segurados da Ofendida procedendo à ulterior entrega das quantias cobradas à Ofendida e efectuar aplicações de quantias em dinheiro entregues pelos Segurados em produtos comercializados pela Ofendida;

2. Em data não concretamente apurada de meados de 2004 decidiu a arguida apoderar-se, sem o conhecimento e contra a vontade da Ofendida “...”, de valores em dinheiro e cheques que lhe eram entregues pelos clientes daquela Ofendida a título de prémios de seguros bem como de quantias entregues pelos mencionados segurados para a realização de aplicações financeiras em produtos comercializados pela Ofendida;

3. Na execução de tais intentos apropriativos, a arguida em finais de 2004 logrou convencer o segurado da Ofendida “...” HH a resgatar um contrato de seguro que o mesmo tinha aplicado naquela companhia seguradora, denominado “Rendimento Crescente”, no valor de 39.000,00€, e aplicar parte do valor do mencionado resgate, no montante de 19.250,00€, num outro contrato de seguro titulado pela apólice 3336 do ramo “Easy 5”;

4. Para o efeito, dirigiu-se à residência daquele segurado, sita na Rua ..., onde preencheu em 27 de Julho de 2005 pelo seu próprio punho o aludido contrato que pelo mencionado segurado foi devidamente assinado tendo por força do mencionado contrato ficado autorizada por aquele segurado a aplicar o mencionado valor de 19.250,00€ no pagamento da apólice do novo contrato que aquele havia realizado;

5. Na posse da mencionada quantia de 19.250,00€ que lhe havia sido entregue pelo aludido HH com vista à sua ulterior entrega à Ofendida “....”, a arguida, sem o conhecimento ou consentimento daquele segurado ou daquela Ofendida, apoderou-se da mencionada quantia não a entregando à Ofendida “....” dando-lhe ulterior destino não concretamente apurado em proveito próprio tornando desse modo aquele segurado devedor da Ofendida naquele montante;

6. Para ocultar os seus intentos apropriativos, a arguida entregou àquele segurado o cheque nº .... da conta de que era titular o seu familiar II na Agência de Avintes do Banco Nacional de Crédito, datado de 25 de Julho de 2005, no valor de 19.250,00€, preenchido e assinado em circunstâncias não concretamente apuradas a favor daquele segurado, convencendo o mencionado HH a endossar aquele cheque à Ofendida “Axa” mencionando-lhe para o efeito que seria o procedimento mais adequado para a entrega do mencionado montante de 19.250,00€ à Ofendida “...”;

7. Convencido que efectivamente o montante de 19.250,00€ seria entregue à Ofendida “...” para que o aludido contrato de seguro que havia assinado vigorasse, o segurado HH endossou o mencionado cheque àquela Ofendida entregando-o devidamente endossado à arguida AA;

8. Na posse do contrato de seguro assinado pelo segurado HH e do mencionado cheque nº ... do ..., no valor de 19.250,00€, endossado à Ofendida “...”, a arguida procedeu à entrega daqueles documentos nas instalações da Ofendida, no Porto;

9. Apresentado o mencionado cheque a pagamento pela Ofendida “...” na Agência do Banco .... do Porto, em 29 de Julho de 2005, veio o mesmo a ser devolvido em 2 de Agosto de 2005 por falta de provisão, ficando desse modo a Ofendida “...” prejudicada no valor constante do aludido cheque, montante esse que a arguida em momento anterior se havia apoderado não o entregando à Ofendida e que gastou em proveito próprio;

10. Ainda na prossecução dos seus intentos apropriativos, em 27 de Abril de 2007, a arguida AA logrou convencer o mesmo segurado da Ofendida HH a efectuar uma aplicação no valor de 15.000,00€ num contrato de seguro do ramo “Dinâmico 30/70”, tendo para o efeito o aludido segurado autorizado novamente a arguida a dispor do mencionado montante retirando-o de outras aplicações de contratos de seguro que possuía;

11. Na posse da mencionada quantia de 15.000,00€ que lhe havia sido entregue pelo aludido HH com vista à sua ulterior entrega à Ofendida “...”, a arguida, sem o conhecimento ou consentimento daquele segurado ou da Ofendida “...”, apoderou-se da mencionada quantia não a entregando à Ofendida “....” dando-lhe ulterior destino não concretamente apurado em proveito próprio;

12. Para ocultar os seus intentos apropriativos, a arguida fez constar no mencionado contrato de seguro assinado por aquele segurado que o montante de 15.000,00€ seria entregue à Ofendida através de um cheque de uma sua familiar JJ com o nº ... da conta de que aquela era titular na Agência de Avintes do ..., datado de 23 de Abril de 2007, no valor de 15.000,00€ emitido a favor da Ofendida “...” convencendo aquele segurado que seria mais fácil a entrega daquele valor à Ofendida por aquele meio;

13. Convencido que efectivamente o montante de 15.000,00€ seria entregue à Ofendida “...” para que o aludido contrato de seguro que havia assinado vigorasse, o segurado HH assinou o aludido contrato de seguro que a arguida entregou juntamente com o mencionado cheque do Banco .... no montante de 15.000,00€ nas instalações da Ofendida, no Porto;

14. Apresentado o mencionado cheque a pagamento pela Ofendida “...” na Agência do Banco ... do Porto, em 3 de Maio de 2007, veio o mesmo a ser devolvido em 4 de Maio de 2007 por falta de provisão, ficando desse modo a Ofendida “...” prejudicada no valor constante do aludido cheque, montante esse que a arguida em momento anterior se havia apoderado não o entregando à Ofendida e que gastou em proveito próprio;

15. Ainda na prossecução dos seus intentos apropriativos, ao longo do ano de 2005, a arguida Marta Viana foi no âmbito da sua actividade profissional procedendo à cobrança de diversos prémios de seguro de segurados da Ofendida “...” recebendo dos mencionados segurados quantias em dinheiro das quais se foi apoderando, sem o conhecimento e contra a vontade da Ofendida, fazendo-as suas e gastando-as em proveito próprio, a saber:

- A quantia de 234,25€ relativa à apólice nº ... da qual era segurado “Transportes ... Unipessoal”, Lda;

- A quantia de 348,37€ relativa à apólice nº ... da qual era segurado LL;

- A quantia de 445,55€ relativa à apólice nº ... da qual era segurado “...- Montagem e Reparações Eléctricas”;

- A quantia de 5.292,28€ e 32,09€ relativa à apólice nº ... da qual era segurado “MM- Andaimes Escoramentos Portugueses”, Lda;

- A quantia de 284,49€ relativa à apólice nº ... da qual era segurada “...”, Lda;

- A quantia de 313,39€ relativa à apólice nº ... da qual era segurado OO;

- A quantia de 2.286,58€ e 4.202,64€ relativa à apólice nº .... da qual era segurado “...- Andaimes Escoramentos Português”, Lda;

- A quantia de 44,97€ relativa à apólice nº ... da qual era segurado PP;

- A quantia de 79,39€ relativa à apólice nº ... da qual era segurado “ ...”, Lda.

Tudo no montante global de 13.564,00€ ao qual seriam deduzidas as respectivas comissões a favor da arguida no valor de 812,04€, perfazendo o montante de 12.751,96€, que a arguida teria que entregar à Ofendida....

Sucede que, em 17 de Junho de 2005 para prestação de contas à Ofendida relativas aos valores de prémios de seguro acima indicados que havia recebido dos segurados daquela, a arguida para pagamento do montante de 12.751,96€, devido à Ofendida entregou àquela:

- O valor de 455,55€ através de cheque nº ... da conta de que era titular no BIC a sociedade “...- Montagem e Reparações Eléctricas” relativas à apólice daquela segurada acima identificada;

- O valor de 363,88€ através de cheque com o nº ... da conta de que era titular no Banco ... a sociedade “...” para pagamento dos prémios de seguro daquela segurada relativas às apólices acima identificadas;

- O valor de 11.932,52€ através do cheque nº ... datado de 15/6/2005, da conta de que a arguida era titular no Banco BBVA;

16. Apresentados os cheques emitidos pelos segurados “...- Montagem e Reparações Eléctricas” e “...” a pagamento, logrou a Ofendida obter a boa cobrança dos mesmos, sendo que relativamente ao cheque no valor de 11.932,52€ emitido pela arguida da conta de que a mesma era titular, apresentado aquele a pagamento pela Ofendida na Agência do BES do Porto foi o mesmo devolvido em 22/6/2005 sem provisão, logrando desse modo a arguida apoderar-se do montante de 11.932,52€ relativo a prémios de seguro que havia recebido dos segurados da Ofendida e que não entregou àquela, dando ulterior destino não concretamente apurado em proveito próprio a tal valor, sem o consentimento e contra a vontade da Ofendida;

17. Quando confrontada pela Ofendida com a devolução do mencionado cheque sem provisão, a arguida para ocultar a apropriação do montante de 11.932,52€ de que se havia apoderado, logrou entregar à Ofendida o cheque nº ... da conta de que era titular um seu familiar QQ no Banco ... datado de 12/08/2005, preenchido e assinado em circunstâncias não concretamente apuradas, o qual apresentado igualmente a pagamento na agência do ... do Porto, veio a ser devolvido em 17/8/2005 por falta de provisão, mantendo-se desse modo a Ofendida prejudicada no aludido valor;

18. Ainda para pagamento do mencionado valor de 11.932,52€ bem como do montante de 19.250,00€ acima indicado relativo ao segurado HH, a arguida foi procedendo a diversos pagamentos por conta da Ofendida entregando à Ofendida vários cheques da conta de que era titular o seu familiar RR no Banco ..., no montante global de 20.000,00€, preenchidos e assinados em circunstâncias não concretamente apuradas, a saber:

- o cheque nº ... sacado do ... no valor de 2.500,00€ datado de 10/12/2006 e que apresentado a pagamento veio a ser devolvido em 15/12/2006 por falta de provisão;

- o cheque nº ... sacado do ... no valor de 2.500,00€ datado de 10/01/2007 e que apresentado a pagamento veio a ser devolvido em 16/01/2007 por falta de provisão;

- o cheque nº ... sacado do ... no valor de 2.500,00€ datado de 10/02/2007 e que apresentado a pagamento veio a ser devolvido em 15/02/2007 por falta de provisão;

- o cheque nº ... sacado do ... no valor de 2.500,00€ datado de 10/03/2007 e que apresentado a pagamento veio a ser devolvido em 16/03/2007 por falta de provisão;

- o cheque nº ... sacado do ... no valor de 2.500,00€ datado de 10/04/2007 e que apresentado a pagamento veio a ser devolvido em 13/04/2007 por falta de provisão;

- o cheque nº ... sacado do ... no valor de 2.500,00€ datado de 10/05/2007 e que apresentado a pagamento veio a ser devolvido em 15/05/2007 por falta de provisão;

- o cheque nº ... sacado do ... no valor de 2.500,00€ datado de 10/06/2007 e que apresentado a pagamento veio a ser devolvido em 14/06/2007 por falta de provisão;

- o cheque nº ... sacado do ... no valor de 2.500,00€ datado de 10/07/2007 e que apresentado a pagamento veio a ser devolvido em 13/07/2007 por falta de provisão.

19. Procedeu ainda a arguida à entrega do cheque nº ... sacado do ... no valor de 2.000,00€, datado de 19/02/2008, da conta de que é titular naquela instituição o seu familiar QQ, preenchido e assinado em circunstâncias não concretamente apuradas, e que apresentado a pagamento veio a ser devolvido em 02/05/2008 por falta de provisão;     

20. Assim, dos montantes iniciais de que a arguida se havia apoderado (15.000,00€ e 19.250,00€ relativos ao segurado HH e 11.932,52€ relativo a prémios de seguro de outros segurados) por força de pagamentos que foram sendo realizados pela arguida à Ofendida “...” permanecem ainda em divida apenas os montantes de 15.000,00€ e 20.000,00€;

21. Ainda na prossecução dos seus intentos apropriativos, em data não concretamente apurada de Novembro de 2006, a arguida logrou convencer um outro segurado da Ofendida, SS a celebrar um contrato de seguro no âmbito de uma aplicação de Poupança Reforma no montante de 21.000,00€;

22. Em face da exposição que lhe foi efectuada do aludido produto pela arguida, o mencionado segurado aceitou celebrar contrato de seguro entregando para o efeito à arguida o cheque nº .... da conta de que era titular na Agência de Júlio Dinis, no Porto do ..., ao portador, no valor de 21.000,00€ para que a arguida o entregasse na Ofendida “...” com vista ao pagamento da apólice daquele contrato que havia subscrito;

23. Na posse do mencionado cheque, a arguida em vez de o entregar à Ofendida, como se lhe impunha por força das suas funções, resolveu proceder ao levantamento do mencionado cheque no dia 7 de Novembro de 2006 apoderando-se do valor titulado pelo mesmo, sem o conhecimento ou consentimento da Ofendida e do aludido segurado;

24. Estranhando o facto de não receber na sua residência o original do contrato de seguro que havia assinado, o mencionado segurado entrou em contacto com a arguida exigindo-lhe a entrega do aludido contrato;

25. Para ocultar o facto do contrato que havia celebrado com aquele segurado não ter dado entrada nas instalações da Ofendida e bem assim a apropriação que havia realizado do cheque entregue por aquele, a arguida entregou ao referido SS quatro apólices provisórias de seguro por si preenchidas e assinadas em impressos que logrou obter nas instalações da Ofendida, datadas de 15 de Dezembro de 2006, com os números 6228;6229;6230 e 6231, cada uma delas no montante de 5.250,00€, as quais perfaziam o valor global de 21.000,00€, dando a entender desse modo àquele segurado que havia dado entrada nas instalações da “...” das mencionadas quarto apólices, o que aquela bem sabia não corresponder à realidade;

26. Na verdade, a arguida não havia dado entrada às mencionadas apólices na seguradora “...”, contrariamente ao que havia mencionado ao aludido segurado SS que estava convencido ter um contrato de seguro do ramo Plano Poupança Reforma- Opção Garantida no valor de 21.000,00€, só vindo a dar entrada às mencionadas apólices em 31 de Março de 2007 sendo que ao fazê-lo apôs nas mesmas uma autorização para que as quantias de 5.250,00€ de cada uma das aludidas apólices fossem pagas mediante débito na conta nº .... de que a mesma era titular no Banco Popular;

27. Na sequência da entrega das aludidas apólices em 31 de Março de 2007, a Ofendida “...” remeteu em 9 de Abril de 2007 por carta dirigida ao segurado SS documentos comprovativos da emissão das aludidas apólices com os nº/s --; --; -- e -- solicitando igualmente àquele segurado o pagamento do montante de 21.000,00€ relativo às mesmas uma vez que não logrou obter a cobrança da mencionada quantia fraccionada nas apólices acima indicadas no valor de 5.250,00€ através do débito na conta indicada nas aludidas apólices;

28. Apenas na sequência da reclamação realizada pelo mencionado segurado à Ofendida “--” informando aquela que havia já liquidado os montantes que lhe eram solicitados, veio a Ofendida a ter conhecimento da mencionada apropriação pela arguida da quantia de 21.000,00€ que o segurado SS havia entregue àquela, ficando desse modo a Ofendida igualmente prejudicada no montante de 21.000,00€ de que a arguida se locupletou;

29. Ainda na prossecução dos seus intentos apropriativos, logrou a arguida AA em 16 de Março de 2007 dar entrada nas instalações da Ofendida de uma declaração que para o efeito redigiu e assinou apondo na mesma a assinatura imitada do segurado TT, como se pelo próprio tivesse sido emitida e assinada, mencionando em tal declaração que a Ofendida “...” deveria proceder ao resgate total da apólice de seguro nº ... no valor global de 37.748,63€ relativa a um contrato de seguro denominado “Maximus Unidades Conta” que aquele tinha outorgado com a “...”;

30. Em face da declaração em causa e supondo que a mesma tivesse sido efectivamente subscrita e assinada por aquele segurado, a Ofendida “...” logrou proceder ao resgate da mencionada apólice procedendo à emissão do cheque nº ..., da conta de que a mesma era titular no Balcão do Porto do ... datado de 23 de Março de 2007 e no montante de 35.882,90€, em nome daquele segurado entregando o mencionado cheque à arguida para que a mesma, na qualidade de mediadora de seguros daquele segurado, fizesse chegar às mãos daquele o aludido cheque;

31. Na posse do mencionado cheque, a arguida em vez de proceder à sua entrega ao mencionado TT resolveu apoderar-se do mesmo e apondo pelo seu próprio punho no verso do aludido cheque a assinatura imitada de TT, como se por aquele tivesse sido assinado, endossou o aludido cheque a UU, pessoa sua conhecida, a quem solicitou que levantasse o mencionado cheque numa conta bancária de que fosse titular e lhe entregasse o valor titulado pelo mesmo;

32. Desconhecendo as circunstâncias em que a arguida havia entrado na posse do aludido cheque e por força da relação de confiança que mantinha na arguida, o mencionado UU logrou proceder ao levantamento do aludido cheque no Balcão do ... do Arrábida Shopping, em Vila Nova de Gaia, em 27 de Março de 2007, entregando à arguida a quantia titulada pelo cheque da qual a arguida se apoderou, sem o conhecimento ou consentimento da Ofendida, gastando-a em proveito próprio;

33. Para ocultar a apropriação da mencionada quantia, logrou a arguida em data e em circunstâncias não concretamente apuradas assinar pelo seu próprio punho recibo de liquidação datado de 20 de Março de 2007 apondo no mesmo a assinatura imitada do mencionado TT, como se tal recibo tivesse sido assinado por aquele, enganando desse modo a Ofendida quanto ao recebimento por aquele segurado do montante de 35.882,90€;

34. Na sequência de reclamação apresentada pelo aludido segurado em Outubro de 2007 solicitando o resgate da aludida apólice de seguro informando a Ofendida que não havia emitido qualquer declaração anterior a solicitar o mencionado resgate, que não havia recebido o cheque em causa nem assinado qualquer recibo de liquidação é que a Ofendida veio a ter conhecimento da apropriação efectuada pela arguida da mencionada quantia de 35.882,90€ titulada pelo cheque e encontrando-se em vigor a apólice em causa viu-se a Ofendida obrigada a entregar àquele segurado em 18 de Dezembro de 2007 a quantia de 37.748,63€ referente ao montante do cheque acima indicado acrescida do montante de 1865,73€ devida a titulo de IRS ficando desse modo prejudicada naquele valor;

35. Por força da conduta adoptada de forma reiterada e nas circunstâncias acima indicadas logrou a arguida apoderar-se dos montantes de 15.000,00€ relativos ao segurado HH; do montante de 20.000,00€ relativo a prémios de seguro que havia recebido de diversos segurados e que não havia entregue à Ofendida; da quantia de 21.000,00€ relativa ao segurado SS e da quantia de 37.748,63€ relativa ao segurado TT, sem o conhecimento ou consentimento da Ofendida;

36. Na sequência das reclamações apresentadas pelos mencionados segurados HH; SS e TT, viu-se a Ofendida “...” obrigada a reparar aqueles dos prejuízos patrimoniais causados pela arguida impedindo desse modo que aqueles segurados sofressem qualquer prejuízo patrimonial por força da actuação daquela arguida, ficando desse modo prejudicada nos mencionados valores e no montante global de 93.748,63€;

37. Ao emitir e assinar pelo seu próprio punho a declaração de resgate do seguro do segurado TT como se a mesma tivesse sido emitida por aquele e bem assim ao assinar o recibo de liquidação do montante recebido pelo aludido resgate apondo no mesmo a assinatura imitada daquele segurado, agiu a arguida livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que com tais condutas fabricava uma declaração que sabia ser falsa e que abusava igualmente da assinatura daquele segurado fazendo constar desses documentos uma ordem de pagamento que sabia ser falsa e que com tais documentos obtinha para si benefícios ilegítimos ao mesmo tempo que causava à Ofendida “...” prejuízos patrimoniais pondo igualmente em causa o bom nome do Ofendido TT;

38. De igual modo, agiu livre, voluntária e conscientemente ao apor no verso do cheque emitido pela “...” a favor daquele segurado a assinatura imitada daquele segurado como se a mesma tivesse sido por aquele realizada fazendo constar daquele titulo uma ordem de endosso que sabia não ter sido realizada por aquele, não se abstendo de adoptar tal conduta ciente que com a mesma lograva obter para si benefícios ilegítimos resultantes da possibilidade do aludido cheque ser desse modo descontado ao mesmo tempo que sabia estar a causar à Ofendida “...” prejuízos patrimoniais;

39. Bem sabia ainda a arguida que ao adoptar tal conduta estava a pôr em causa a credibilidade dos cheques, como títulos à ordem especialmente susceptíveis de circulação fiduciária e meios de pagamento que são, não se abstendo de adoptar tal conduta na concretização do seu propósito apropriativo;

40. Agiu ainda a arguida livre, voluntária e conscientemente ao proceder à entrega da declaração de resgate e do recibo de quitação nas instalações da Ofendida “...” bem sabendo que mediante a entrega de tais documentos induzia em erro aquela Ofendida quanto à existência de um legitimo resgate de um seguro realizado por um cliente levando desse modo a Ofendida a abrir mão de um valor patrimonial para entregar a esse cliente que a arguida sabia não ser devido, não se abstendo de adoptar tal conduta ciente que com a mesma obtinha para si um beneficio ilegítimo ao mesmo tempo que sabia estar a causa à Ofendida um prejuízo patrimonial;

41. Agiu ainda a arguida livre, deliberada e com perfeita consciência de que contra a vontade da Ofendida “...” ao longo de vários anos se apoderava e fazia suas quantias monetárias àquela pertencentes, obtidas na sequência da cobrança de prémios de seguro por si efectuadas no exercício da sua actividade profissional para a Ofendida e por si efectivamente recebidas de clientes bem como de quantias recebidas por clientes daquela com vista à realização de aplicações financeiras em produtos comercializados pela Ofendida valendo-se para o efeito da confiança que lhe era depositada por tais segurados;

42. Mais sabia a arguida que pelo exercício das suas funções estava obrigada a entregar à Ofendida tais quantias, e que, ao não fazê-lo, obtinha para si um benefício ilegítimo ao mesmo tempo que causava àquela ofendida um prejuízo patrimonial;

43. Sabia além do mais que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

*

B) Processo Comum Colectivo nº 940/07.6TAMAI do extinto 4º Juízo Criminal de Matosinhos, por acórdão de 08/10/2010, confirmado por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/05/2011, transitado em julgado em 22/06/2011:

- dois anos e oito meses de prisão – por um crime de burla qualificada previsto e punido pelos arts. 217º, nº 1, e 218º, nº 2, al. a), ambos do Código Penal, cometido no dia 19 de Abril de 2004;

- três anos de prisão – por um crime de burla qualificada previsto e punido pelos arts. 217º, nº 1, e 218º, nº 2, al. a), ambos do Código Penal, cometido em Março e Abril de 2006;

- dois anos de prisão – por um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo art. 205º, nºs 1 e 4, al. b), do Código Penal, cometido no dia 1 de Agosto de 2006.

Em cúmulo jurídico, foi aplicada à arguida a pena única de quatro anos e seis meses de prisão - pena essa suspensa na sua execução por quatro anos e seis meses, sob a condição de a arguida proceder à entrega mensal das quantias de € 150,00 e € 350,00, respectivamente, ao assistente e aos demandantes António e mulher, com início no 1º dia útil do mês subsequente ao trânsito em julgado da decisão, até tais quantias perfazerem, eventualmente, os montantes globais de € 36.560,00 e de € 132.164,11, respectivamente (certidão de fls. 748 a 779).

Foram os seguintes os factos praticados fundamentadores das elencadas condenações da arguida:

1. A arguida exerceu durante vários anos a actividade de mediadora de seguros, com escritório na Rua ..., estando inscrita no Instituto de Seguros de Portugal, e trabalhando com a “... Portugal – Companhia de Seguros, SA” e a “... – Companhia de Seguros, SA”;

2. Em 19/04/2004 a arguida convenceu o assistente DD a investir € 50.000 (cinquenta mil euros) num produto financeiro da “...”, com o argumento de que este lhe proporcionaria uma renda fixa mensal de € 420 (quatrocentos e vinte euros) durante 10 anos e o reembolso do montante investido no final desse período;

3. De modo a dar uma aparência de veracidade ao seu procedimento, para persuadir o assistente a entregar-lhe a referida quantia, a arguida engendrou tal produto, que nem sequer existia, e entregou àquele um documento intitulado “Apólice-Recibo” e “Maximus Investimento”, que o mesmo assinou, como “Pessoa segura”, sendo certo que no item “Tomador do Seguro” consta o nome da arguida por ela assinado;

4. Tal documento foi preenchido pelo punho da arguida no seu escritório;

5. Assim, naquela data, o assistente preencheu e assinou o cheque nº .... sobre o Banco ..., no montante de € 50.000, à ordem da arguida, a quem o entregou;

6. A arguida apresentou tal cheque a pagamento em balcão do Banco ..., recebendo a quantia em numerário, e, nesse mesmo dia, depositou tal quantia na conta do mesmo Banco com o nº ..., titulada por “... – Mediação de Seguros”;

7. A arguida gastou tal montante em proveito próprio, fazendo face às despesas da sua vida profissional e familiar;

8. Nos meses de Maio de 2004 a Dezembro de 2006, inclusive, a arguida pagou ao assistente prestações mensais de € 420 cada, perfazendo a quantia total de € 13.440 (treze mil quatrocentos e quarenta euros), nada mais tendo pago;

9. O assistente ficou assim desapossado do montante total de € 36.560 (trinta e seis mil quinhentos e sessenta euros): 50.000 - 13.440;

10. Em dia não concretamente apurado do final de Março de 2006, no seu escritório, a arguida propôs ao EE e mulher VV, que já conhecia há cerca de 10 anos, o resgate dos montantes que tinham investido na “Axa” e a aplicação do capital em produto financeiro mais vantajoso;

11. A arguida nunca teve intenção de efectuar tal aplicação, visando antes apropriar-se dos montantes em causa;

12. Vencendo a resistência inicial daqueles, pessoas simples e de pouca instrução, do que a arguida se aproveitou para concretizar os seus intentos, acabou por conseguir que os mesmos assinassem os pedidos de resgate das apólices nº --, --, --, --, -- e --, que depois entregou nos serviços da “Axa”;

13. Em consequência, em 12/04/2006, vieram a ser emitidos pela referida seguradora dois cheques sacados sobre o Banco--, sendo um com o nº -- em nome do EE e com o valor de € 95.770,84 (noventa e cinco mil setecentos e setenta euros e oitenta e quatro cêntimos) e outro com o nº ...,com o valor de € 24.393,27 (vinte e quatro mil trezentos e noventa e três euros e vinte e sete cêntimos), em nome da VV;

14. A arguida convenceu-os então a aporem a sua assinatura no verso dos cheques e, de seguida, entregou-os ao seu filho RR, a quem deu instruções para os assinar no verso e proceder à apresentação dos mesmos ao balcão do .... em Matosinhos, de modo a receber em numerário a quantia inserta nos ditos cheques;

15. Assim, o referido RR recebeu as quantias de € 24.393,27, em 12/04/06, e de € 95.770,84, em 20/04/06, as quais entregou à arguida;

16. A arguida gastou tais montantes em proveito próprio, fazendo face às despesas da sua vida profissional e familiar;

17. Com efeito, nas semanas e meses que se seguiram ao recebimento de tais quantias, a arguida efectuou os depósitos em numerário que a seguir se discriminam, por transferência nas contas bancárias por si tituladas:

DataConta/BancoValor €
19/04/06AA – ConsultoresSeguros/0210739-001-92/Banco ...2.500
21/04/066.700
9/05/064.215
22/05/065.000
26/05/06450
29/05/06800
30/05/06624,79
4/07/0610.000
7/07/062.150
8/09/064.800
10/10/065.418,62
19/10/063.000
13/04/06AA/017103700183/Banco...2.000
20/04/06500
24/04/06AA/45288876014/Banco...2.860,60
27/04/062.500
22/05/062.460
22/05/062.540
30/05/061.500
26/06/061.900
4/07/063.333,33
13/07/061.638,15
5/07/06AA/0429.040638.800/...5.000
31/07/069.500

18. Em 1 de Agosto de 2006, os mesmos EE e mulher entregaram à arguida, também no escritório desta, a quantia de € 22.000 (vinte e dois mil euros) em numerário, tendo ficado acordado que a arguida efectuaria o depósito de € 11.000 (onze mil euros) em apólice PPR da seguradora “Zurich” com o nº ..., em nome do EE, e de idêntico valor em produto financeiro idêntico, com o nº .., em nome da VV;

19. Todavia, a arguida jamais entregou na “..” tal quantia, antes a fez coisa sua, bem sabendo que não tinha qualquer direito à mesma e que actuava contra a vontade e sem o consentimento dos referidos EE e mulher;

20. A arguida apenas lhes restituiu a quantia de € 15.000 (quinze mil euros), através de cheque emitido pelo seu filho RR, pelo que os mesmos ficaram desapossados do montante total de € 127.164,11 (cento e vinte e sete mil cento e sessenta e quatro euros e onze cêntimos): 95.770,84+24.393,27+22.000-15.000;

21. Ao agir pela forma acima descrita, a arguida, sem conhecimento e contra a vontade dos ofendidos, de forma livre e consciente e sabendo que o seu comportamento era proibido por lei, teve os propósitos conseguidos de:

- obter vantagem patrimonial ilegítima, à custa do engano que provocou, quer nos ofendidos EE e mulher, quer no assistente DD, fazendo-lhes crer que iria fazer aplicações financeiras em seu benefício, apesar de saber não ser essa a verdadeira motivação da sua conduta;

- apropriar-se da quantia em dinheiro que os referidos EE e mulher lhe entregaram para que efectuasse uma aplicação financeira em benefício dos mesmos EE e mulher, bem sabendo que não tinha direito a tal quantia.

*

C) Processo Comum Colectivo nº 10611/08.0TDPRT do extinto 4º Juízo Criminal de Matosinhos, por acórdão de 11/06/2012, transitado em julgado em 28/03/2014:

- um ano e seis meses prisão – por um crime de abuso de confiança, na forma continuada, previsto e punido pelos arts. 30º, nº 2, 79º e 205º, todos do Código Penal, cometido no período compreendido entre Outubro de 2006 e meados de 2007.

- um ano e oito meses de prisão – por um crime de burla qualificada, na forma continuada, previsto e punido pelos arts. 30º, nº 2, 79º, 217º e 218º, nº 1, todos do Código Penal, cometido no período compreendido entre 21 de Janeiro e 17 de Março de 2008;

- um ano e quatro meses de prisão – por um crime de burla qualificada previsto e punido pelos arts. 217º, nº 1, e 218º, nº 1, ambos do Código Penal, cometido no dia 22 de Agosto de 2007.

Em cúmulo jurídico, foi aplicada à arguida a pena única de dois anos e seis meses de prisão (certidão de fls. 795 a 826).

Foram os seguintes os factos praticados fundamentadores das elencadas condenações da arguida:

1. A arguida AA exerceu durante vários anos a actividade de mediadora de seguros, no escritório sito na Rua ...., ..., estando inscrita, com o nº ..., no Instituto de Seguros de Portugal;

2. A arguida trabalhou para a “...-Companhia de Seguros, Portugal” e para a assistente, “... Seguros, SA”, da qual foi mediadora, desde 22 de Março de 2001;

3. A actividade da arguida consistia em angariar contratos de seguro, enviando para a assistente as propostas aceites e subscritas pelos tomadores de seguro e cobrar dos mesmos os respectivos prémios mediante os correspondentes recibos que a assistente emitia e lhe confiava para o efeito. Após a respectiva cobrança, a arguida estava obrigada a entregar à assistente os fundos, descontando a comissão que lhe pertencia. Caso não conseguisse cobrar os recibos, devolvia os mesmos se entendesse que eram incobráveis ou mantinha-os em atraso para os cobrar fora do prazo;

4. No período compreendido entre Outubro de 2006 e meados de 2007, a arguida cobrou e recebeu valores de prémios, que, repetidamente, não entregou à assistente e que, aquando das prestações de contas entre ambas de 6/11/2006, 12/12/2006, 19/12/2006, 8/06/2007, 22/06/2007, 23/07/2007 e 27/07/2007, perfaziam as quantias de € 10.674,78, € 7.432,55, € 15.198,95, € 4.207,72, € 3.487,73, € 14.304,46 e € 668,28, respectivamente;

5. Entretanto, em 15/01/2008, a arguida e a assistente acordaram em fixar no montante global de € 36.900,82 a quantia ainda devida à segunda pela primeira, a título de prémios cobrados e não entregues (depois de descontadas as comissões), o qual a arguida se obrigou a satisfazer em 53 prestações mensais de € 694 cada;

6. Posteriormente, a arguida pagou à assistente a quantia de € 1.388, assim reduzindo tal dívida para o valor global de € 35.512,82;

7. Em inícios de 2007, a arguida AA e confidenciando-lhe que se estava a divorciar e que tinha três filhos para sustentar, vivendo em dificuldades económicas, devido ao facto de o seu ex-marido ter contraído dívidas. A Sra. XX sabia que a arguida era mediadora de seguros e que tinha um escritório aberto, na altura, na Rua ...;

8. Em Janeiro de 2008, a arguida convenceu a Sra. XX a “investir em seguros”, explicando que as aplicações financeiras seriam resgatadas em 3 meses e que rendiam juros elevados, sendo um investimento seguro. Acreditando em tal, a Sra. XX transferiu, quer para uma conta da arguida, quer para uma conta de II, ambas indicadas pela arguida, os seguintes montantes:

- em 21/01/2008, a quantia de € 200;

- em 23/01/2008, a quantia de € 900;

- em 28/01/2008, a quantia de € 5.960;

- em 13/02/2008, a quantia de € 2.000;

- em 18/02/2008, a quantia de € 6.480;

- em 13/03/2008, a quantia de € 3.700;

- em 17/03/2008, a quantia de € 9.800;

9. Contrariamente ao que fizera crer à Sra. XX, a arguida AA não aplicou em seguros ou noutro tipo de investimento as referidas quantias que recebeu daquela, no montante global de € 29.040;

10. Apesar de a Sra. XX ter exigido o cumprimento das supra referidas prestações e a devolução deste montante de € 29.040, a arguida não o fez;

11. A arguida AA, que tinha como cliente YY, angariou para a “Eagle Star” dois PPR, com o valor de € 5.366 cada, que aquele celebrou em seu nome e da sua mulher no dia 10/09/2002, ambos com vencimento no dia 22/08/2007;

12. Nesta data de vencimento, a arguida convenceu aquele a fazer dois novos PPR. O Sr. CC, tendo acreditado que a arguida ia fazer aquela aplicação em dinheiro em seu nome e da sua mulher, entregou à arguida, pelo menos, o montante de € 9.810;

13. Recebido esse montante, a arguida não efectuou novos PPR e ficou com ele na sua posse;

14. Ao agir pela forma acima descrita, a arguida, contra a vontade dos ofendidos, de forma livre e consciente e sabendo que o seu comportamento era proibido por lei, teve os propósitos conseguidos de:

- repetidamente, apropriar-se das quantias pertencentes à assistente “Zurich”, cujos clientes lhas haviam entregado para que as transmitisse à mesma, bem sabendo que não tinha qualquer direito sobre tais quantias;

- repetidamente, entre 21/01 e 17/03 de 2008, obter vantagem patrimonial ilegítima, à custa do engano que provocou na ofendida XX, fazendo-lhe crer que iria fazer aplicações financeiras em seu benefício, apesar de saber não ser essa a verdadeira motivação da sua conduta;

- obter vantagem patrimonial ilegítima, à custa do engano que provocou no CC, fazendo-lhe crer que iria fazer aplicações financeiras em seu benefício, apesar de saber não ser essa a verdadeira motivação da sua conduta.

*

D) Nestes autos, por acórdão de 11/04/2012, com as alterações decorrentes do acórdão de 24/04/2013 do Tribunal da Relação do Porto, transitado em julgado em 03/06/2013 (fls. 493 a 505, 631 a 649 e 658):

- dois anos e seis meses de prisão – por um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo art. 205º, nºs 1 e 4, al. b), do Código Penal, cometido no dia 30 de Junho de 2006.

Foram os seguintes os factos praticados fundamentadores da elencada condenação da arguida:

1. Entre 2001 e 2007, a arguida AA exercia a actividade de mediadora e consultora de seguros;

2. No exercício dessa actividade veio a conhecer a assistente ZZ, médica de profissão, a quem passou a orientar e tratar de todos os seguros que a mesma detinha, nomeadamente de responsabilidade civil automóvel, vida;

3. Na sequência dessa actividade, e da confiança que foi criando no relacionamento com a assistente, a arguida veio a saber, em 2006, que a assistente, teria à disposição, durante algum tempo, a quantia de 100.000€, proveniente da venda de um apartamento e destinada à compra de um outro apartamento para habitação da sua mãe;

4. Sabendo disso, e de acordo com o plano que arquitectara, a arguida informou a assistente que deveria aplicar aquele dinheiro numas “apólices de investimento”, de que a mesma se encarregaria, e que davam juros muito bons, mesmo em prazos curtos;

5. Aproveitando-se da confiança que conseguira criar, aliciando a assistente com a perspectiva de um bom rendimento, convenceu a assistente a emitir-lhe e entregar-lhe, em 30/06/2006, em Matosinhos, o cheque no montante de € 100.000,00, reproduzido a fls. 180, relativo à conta titulada por esta no “...”;

6. No entanto, e de acordo com o plano anterior, ao invés de proceder à sua utilização em qualquer “apólice de investimento”, apoderou-se do montante titulado pelo cheque, que fez seu;

7. Quando, volvidos meses, a assistente telefonou à arguida para reaver o montante do investimento e respectivos juros, esta informou-a que de imediato iria resgatar o investimento e que aquela devia deslocar-se ao seu escritório para assinar uns chamados “pedidos de levantamento das aplicações”, o que a assistente fez em inícios de Outubro de 2006;

8. Nessa ocasião, a assistente informou a arguida que a escritura da aquisição da casa de sua mãe estava marcada para o dia 26 de Outubro de 2006, tendo a arguida garantido à assistente que, na data prevista, teria já depositada a seu favor a sobredita quantia de € 100.000,00, acrescida do rendimento respectivo na conta particular da assistente;

9. A assistente foi para a escritura de compra e venda do imóvel na convicção plena de que tal quantia já havia sido depositada na sua conta pela arguida;

10. E, na data da escritura, e na pressuposição de que a arguida tinha cumprido com o anunciado preencheu, datou, assinou e entregou ao vendedor da casa dois cheques, um de € 20.000,00 (vinte mil euros), e outro de € 83.000,00, para pagamento do apartamento;

11. Só na 2ª feira seguinte foi a assistente surpreendida pela informação, dada pelo seu gestor de conta, de que os referidos cheques iriam ser devolvidos por falta de provisão e de que não havia sido depositada na conta da cliente qualquer importância por parte da arguida;

12. Absolutamente transtornada, a assistente contactou a arguida pedindo-lhe explicações;

13. A arguida informou a assistente que tinha havido um ligeiro atraso por parte das companhias de seguros no apelidado “resgate” dos fundos, mas que iria, ela própria, contactar de imediato o referido gestor de conta a informar do sucedido e que, no dia seguinte o dinheiro estaria, por ela, depositado na conta da assistente;

14. Efectivamente, a arguida falou com o gestor de conta já referido, e cobriu, de imediato, através de depósito na conta da assistente, o cheque de valor mais pequeno no montante de € 20.000.00. E informou o gerente que a parte restante seria depositada no dia seguinte;

15. Todavia, não o fez, tendo-se apropriado da importância restante, em seu próprio proveito;

16. Por esse motivo, a assistente viu-se forçada a recorrer a um empréstimo pessoal de um amigo a fim de provisionar a conta, de modo a evitar a devolução do cheque de € 83.000,00 e evitar ver posto em causa o seu bom nome social e bancário;

17. A arguida agiu livre e conscientemente, com o propósito alcançado de obter vantagens patrimoniais à custa do prejuízo patrimonial da assistente, e fez sua a quantia de € 100.000,00 que conseguira receber mediante a falsa alegação da sua aplicação em apólices de investimento;

18. Da quantia inicial de € 100.000,00, de que se apoderara, a arguida só restituiu à assistente a quantia de € 80.000,00, em pagamentos parcelares e faseados, o primeiro dos quais através do supra referido depósito em conta da ofendida, no montante de € 20.000,00, e os restantes depois de muito instada pelo mandatário da assistente;

19. A arguida praticou outros actos semelhantes aos descritos nos autos, pelos quais já foi julgada e condenada. Perdeu a noção do dinheiro que ia recebendo de vários clientes e o seu escritório entrou em total descoordenação, ao mesmo tempo que utilizou o dinheiro recebido para si e para ir restituindo a clientes que antes lho haviam entregue, tal como acabou por restituir 80.000€ à assistente, dos 100.00€ que esta previamente lhe entregara;

20. A assistente entregou à arguida os 100.000€ para que os aplicasse num qualquer produto financeiro que nem lhe foi identificado, explicado ou relativamente ao qual nem lhe foi apresentado qualquer documento de divulgação ou para a realização da própria aplicação.

*

Neste momento, a arguida encontra-se presa no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo (Feminino), a cumprir, desde 05/05/2014, a pena única que lhe foi aplicada no processo aludido na alínea C) [fls. 941].

*

(…) Relativamente à personalidade da arguida e às suas condições pessoais, está apurado, com relevância para a determinação da pena única a fixar, e por força do que resulta da certidão judicial de fls. 724 a 737, do C.R.C. actualizado de fls. 868 a 876, do relatório social de fls. 938 a 942 e da restante prova produzida na audiência de cúmulo jurídico (declarações da arguida e depoimentos das testemunhas AAA, que conhece a arguida profissionalmente desde cerca de 1994, e BBB, que mantém um relacionamento afectivo com a arguida desde 2010), e bem assim ainda da consulta do processo aludido na alínea B), que se encontra pendente nesta mesma Secção Criminal da Instância Central, tendo-se em conta designadamente as cópias dos recibos de fls. 1111 a 1113, 1124, 1164 a 1171 e 1223 a 1226 desses autos:

1. Para além das condenações referidas supra nas alíneas A), B), C) e D), a arguida foi condenada:

a) pela prática, em 06/03/2002, de um crime de abuso de confiança agravado, por decisão de 27/09/2005, transitada em julgado em 12/10/2005, na pena de 180 dias de multa, a qual já foi declarada extinta, pelo pagamento, por decisão de 27/01/2006;

b) pela prática, em 01/05/2007, de um crime de abuso de confiança agravado, por decisão de 12/05/2010, transitada em julgado em 31/01/2011, na pena de 350 dias de multa, substituída, por decisão de 23/05/2011, por 350 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade, já declarada extinta pelo cumprimento, por despacho de 22/10/2012;

2. A arguida foi declarada insolvente, por decisão de 02/05/2012, no âmbito do processo nº 6893/10.6TBMTS, do extinto 1º Juízo Cível do Tribunal de Matosinhos;

3. O processo educativo da arguida decorreu num agregado familiar caracterizado como equilibrado a nível da sua dinâmica;

4. A arguida iniciou uma relação afectiva ainda na adolescência e, na sequência de gravidez, abandonou os estudos aquando da frequência do 12° ano de escolaridade;

5. Contraiu então matrimónio, cerca dos 18 anos, relação da qual resultou o nascimento de quatro filhos;

6. O consumo exagerado de bebidas alcoólicas por parte do cônjuge e os maus-tratos de que a arguida era vítima imprimiram uma dinâmica bastante conturbada no seio do agregado familiar, vindo a ocorrer a separação do casal decorridos trinta anos de convivência, em 2007, tendo os filhos permanecido aos cuidados da arguida;

7. Profissionalmente, a arguida começou a trabalhar aos 18 anos como despachante oficial de alfândega;

8. Decorridos 12 anos, na sequência da extinção daquela actividade, em 1990, estabeleceu-se por conta própria na área têxtil;

9. Em 1994 passou a trabalhar como agente de mediação de seguros para empresas seguradoras, acabando por optar, em face do volume de trabalho, por abrir um escritório, onde realizava a gestão do trabalho desenvolvido para aquelas empresas;

10. A partir de 2004 verificou-se um agravamento da situação económica do agregado familiar, devido a dívidas contraídas aquando do seu negócio no ramo têxtil e à consequente incapacidade financeira para a resolução da situação (sendo o cônjuge caracterizado como um indivíduo sem hábitos de trabalho);

11. Em 2007 viu-se obrigada a encerrar o escritório onde desenvolvia a actividade de mediadora de seguros.

12. Na sequência da separação conjugal, a arguida instalou-se com os filhos numa habitação em ...;

13. Em 2008, já com dois descendentes autonomizados, alterou a sua residência para a cidade do Porto (Rua ...), num imóvel que estava inserido num condomínio destinado à população com poder aquisitivo, ascendendo as despesas com a habitação aos € 1.500,00;

14. Desde 2009, estando desempregada, a arguida beneficiava do apoio da Segurança Social, no âmbito da atribuição do R.S.I., vendo-se impelida a encontrar uma alternativa habitacional;

15. Dois dos filhos integraram o agregado familiar dos avós maternos na sequência de conflitos intra-familiares;

16. Deparando-se com constrangimentos de ordem económica e vendo-se obrigada a vender alguns bens, em 2010, a arguida começou a trabalhar, no domicílio, para um colega do ramo da mediação de seguros, em troca do pagamento de valores que não ultrapassariam os € 200,00/mês, actividade que abandonou por falta de remuneração;

17. Diligenciou, então, por outras funções que pudessem prover as suas necessidades básicas, tendo prestado assistência a um idoso e trabalhado como empregada de limpeza;

18. Residiu ainda na Prelada e, em Setembro de 2013, fixou residência na Rua dos ..., Porto, próximo à morada dos pais e do namorado, docente na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, com quem encetara relação afectiva em 2010;

19. Em Dezembro de 2013 foi sujeita a cirurgia médica para a retirada de um mioma uterino, que lhe proporcionou bem-estar significativo;

20. Como forma de valorizar as suas competências pessoais e de buscar novas alternativas em termos de trabalho, a arguida candidatou-se ao curso superior de Psicologia da Universidade ..., no ano lectivo de 2012/2013, através do regime de maiores de 23 anos, não tendo, no entanto, formalizado a matrícula;

21. No ano lectivo de 2013/14 efectuou a matrícula e solicitou a sua suspensão em Março do ano em curso, tendo concluído unidades curriculares até essa data;

22. Aquando da reclusão, ocorrida em 05/05/2014, a arguida vivia com o filho II, na morada referida no ponto 18, cujo contrato está em nome do namorado, o qual suportará o pagamento da renda, de € 450,00, pelo menos até Dezembro do ano em curso, quando a arguida espera ter a situação jurídica definida;

23. Continuava a beneficiar da atribuição do R.S.I., no valor de € 159,00, dedicava-se à limpeza em casas de particulares e à actividade de telemarketing, conseguindo fazer face às despesas do quotidiano, também com o apoio do namorado, que lhe proporcionava refeições e os livros técnicos para a frequência do curso universitário;

24. Fazia também voluntariado no “Espaço T”, com intenções de ali poder vir a exercer funções remuneradas;

25. No período antecedente à reclusão, a arguida estava a ser acompanhada pela equipa da D.G.R.S.P. Porto Penal I, no âmbito do processo aludido na alínea A), que decorria sem incidentes;

26. A arguida preferiu poupar os pais do conhecimento da sua reclusão, atendendo à idade avançada e aos problemas de saúde de que são portadores;

27. Continua a receber apoio por parte do namorado, de quem recebe visitas para além dos filhos; com as filhas apenas mantém contactos telefónicos;

28. No Estabelecimento Prisional, a arguida tem mantido várias ocupações: substituindo a reclusa encarregada da biblioteca quando esta tem saídas jurisdicionais, realizando os acabamentos de camisolas para uma empresa, trabalhando, desde 30 de Julho, para a empresa “...”, que faz material hospitalar, embalando lençóis, fazendo costura;

29. Com a reclusão e devido às dificuldades de ordem económica, suspendeu a frequência do curso superior;

30. Mas mantém o estudo no interior do Estabelecimento Prisional, como autodidacta, lendo livros de psicologia e fazendo trabalhos de inglês;

31. A arguida expressa níveis de ansiedade face à aproximação da presente audiência;

32. A arguida enquadra os factos pelas quais sofreu condenação num determinado período conturbado da sua vida, designadamente decorrente da separação conjugal e dificuldades económicas vivenciadas, momento em que acredita que estava fragilizada psicologicamente;

33. Perante o técnico de reinserção social verbalizou reconhecer os prejuízos causados a terceiros e intenções de ressarcir tais prejuízos;

34. Em caso de condenação, a arguida mostrou-se receptiva à aplicação de uma medida a ser executada na comunidade;

35. Na conclusão do relatório social elaborado pela D.G.R.S.P. relativamente à arguida diz-se:

“Do percurso de vida de AA saliente-se a convivência conjugal perturbada pelos hábitos alcoólicos do cônjuge e clima de violência doméstica. Com a separação, a arguida deparou-se com uma situação de maior fragilidade económica, que aparentemente teve dificuldade em assumir, procurando manter inicialmente um nível de vida em desacordo com a realidade.

Condenada anteriormente em medidas não privativas de liberdade, AA evidenciou capacidade para cumprir com as obrigações inerentes às medidas e diligenciou por alternativas profissionais que pudessem prover a sua subsistência, ainda que com o apoio de terceiros (segurança social, família, amigos).

A cumprir pena de prisão pela primeira vez, a arguida tem recebido o apoio por parte do namorado e filho, projectando retomar logo que possível a frequência do curso universitário.

Capaz de reconhecer o bem-jurídico em causa, AA expressa discurso crítico quanto ao seu passado criminal e vontade em promover uma mudança no seu percurso de vida.

Face ao exposto e caso a pena concretamente aplicada o permitir, pensamos que a arguida reúne condições pessoais para se sujeitar às condições de uma medida a ser executada na comunidade, para a qual demonstrou vontade em aderir.”;

36. No âmbito do processo aludido em B), no decurso da suspensão da execução da pena aí em curso e em cumprimento da condição fixada, a arguida entregou as quantias totais de € 675,00 ao assistente DD e de € 1.650,00 aos demandantes EE e VV .

*

No que concerne aos factos alegados pela arguida no seu articulado de fls. 944 a 970, para além do que já consta da factualidade acabada de elencar, no que respeita à sua personalidade e às suas condições pessoais, consta ainda provado no acórdão (ponto 148 da matéria de facto) proferido no processo aludido na alínea A):

a) A arguida é a mais velha de cinco descendentes, tendo o seu percurso de desenvolvimento e maturação decorrido no agregado familiar de origem, de média condição sócio-económica, sendo o progenitor funcionário administrativo e a mãe doméstica;

b) A dinâmica familiar é caracterizada como estruturante, positiva e equilibrada, marcada por laços de afectividade entre os elementos da família, pautada por valores como o trabalho e a cidadania;

c) Posteriormente concluiu o curso de secretariado e, mais tarde, o de seguros;

d) Em 1984 contraiu matrimónio, tendo nessa altura o agregado constituído (incluindo o filho entretanto nascido RR) ido residir para um apartamento de tipologia l, arrendado, com condições habitabilidade, sito em Vila Nova de Gaia;

e) Alguns anos mais tarde, mudou de residência para um apartamento T1+1, arrendado, sito em ...., nascendo aqui a filha JJ, em 1988;

f) Mudou-se novamente, agora para um apartamento T2, de igual modo arrendado, sito na ..., altura em que viria a nascer o seu terceiro filho, CCC, em 1989, local onde permaneceu cerca de 4/5 anos;

g) Em 1991 o agregado foi residir para ..., para um apartamento T3 arrendado, onde nasceria, em 1993, a quarta filha do casal, DDD;

h) Em 2001, o casal adquiriu o 1° andar de uma moradia unifamiliar, com condições de habitabilidade, sita em ....;

i) Em 1994, a arguida mudou de ramo de actividade, passando a trabalhar como agente de mediação de seguros na “...”. Em 2001, começou a trabalhar paralelamente para a “... – Companhia de Seguros, S.A.”;

j) Desde 2004, a situação financeira do agregado foi-se progressivamente agravando, devido a dívidas contraídas pela arguida aquando do seu negócio de confecções, na sequência das quais contraiu empréstimos junto da banca com juros muito elevados, facto que abalou, ainda mais a situação económica do agregado, não possuindo capacidade financeira para a sua resolução. De salientar ainda as dividas contraídas pelo cônjuge e o facto desta família subsistir apenas dos rendimentos auferidos por AA, enquanto agente de mediação de seguros;

l) Em 2007, a acumulação de dívidas tomou-se insustentável, razão que obrigou a arguida a fechar o seu escritório, altura em que viria a ficar desempregada;

m) No âmbito profissional, entre a última semana de Janeiro e o final de Fevereiro do corrente ano, AA trabalhou como agente de telemarketing na PT, sito no Porto, executando ainda algumas tarefas domésticas extra (confecção de bolos, passar a ferro, etc.) para fazer face às suas despesas;

n) Desde 02/03/2010 que a arguida se encontra, a título experimental, a trabalhar numa outra empresa de telemarketing;

o) O quotidiano da arguida é repartido entre o trabalho, a casa e a família, mantendo ainda relações de proximidade com alguns amigos de infância e outros conhecidos;

p) AA é percepcionada pelos familiares contactados como uma mulher educada e trabalhadora, imprimindo luta nos desafios que se lhe deparam, não se resignando com as derrotas. Na zona de residência a arguida projecta uma imagem de pessoa educada com a vizinhança, não registando conflitos no meio, embora seja descrita como pouco envolvida socialmente, não sendo relatados momentos de sociabilidade e convívio neste contexto.»

B. Matéria de direito


1. Questões prévias

1.1. A arguida interpôs o recurso para o Tribunal da Relação do Porto.

Todavia, o despacho que admitiu o recurso – cf. fls. 1174 – admitiu-o a subir imediatamente ao Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento nos artigos 432.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, conjugado com os artigos 410.º, n.º 2, e 434.º, todos do CPP.

Nos termos do art. 414.º, n.º 3, do CPP, “a decisão que admita o recurso ou determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior”.

Na verdade, trata-se do recurso de uma decisão cumulatória que atribuiu à arguida a pena conjunta de 10 anos de prisão.  Assim sendo, o recurso direto para o STJ é admissível nos termos do art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP. Porém, este recurso apenas pode ser um recurso em matéria de direito ainda que este tribunal possa conhecer oficiosamente dos vícios do art. 402.º, n.ºs 2 e 3, do CPP nos termos previstos na 1.ª parte do art. 434.º, do CPP, que estabelece os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça.

Assim sendo, admite-se a interposição do recurso para este Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo do disposto no art. 399.º, 400.º  a contrario, 432.º, n.º 1, al. c) e 434.º, todos do CPP.

1.2. Nulidade do acórdão recorrido por não referir a suspensão da execução da pena parcelar aplicada nestes autos

A recorrente na sua conclusão 48.ª afirma que no acórdão recorrido “não se diz, certamente por lapso, que a pena aplicada nos presentes autos foi de dois anos e seis meses de prisão, suspensos na sua execução (cf. o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 631 a fls. 649), o que importa a sua correcção, nos termos do disposto no art. 380.º, n.º 1, al. a) e n.º 3 do Código de Processo Penal”.

Perante isto, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta no Supremo Tribunal de Justiça suscitou a questão prévia de saber se, na realidade, se trata não um mero lapso suscetível de correção, mas sim uma situação de omissão de pronúncia, que impõe a anulação da decisão recorrida. E isto porque a decisão recorrida não só não refere, aquando do relato dos processos e respetivas penas parcelares a incluir na pena única, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto que determinou a suspensão da execução da pena de 2 anos e 6 meses de prisão fixada nos presentes autos, como na apreciação jurídica a que procede, para justificar a possibilidade de ser efetuado o cúmulo jurídico de penas de prisão efetiva e penas suspensas na sua execução, só se refere e regista as penas “referidas nas alíneas A) e B)”, omitindo, mais uma vez, a pena suspensa na sua execução referida na alínea D). Entende a Senhora Procuradora-Geral Adjunta que se fica sem saber se o tribunal recorrido considerou concretamente a necessidade, proporcionalidade e adequação de revogar a referida suspensão da pena de 2 anos e 6 meses de prisão aplicada nestes autos, posto que é totalmente omisso relativamente à ponderação e decisão, ainda que mínima, sobre a necessidade de revogação da suspensão da pena aplicada nestes autos e sua inclusão no cúmulo jurídico efetuado, partindo do pressuposto que a jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal vai no sentido da necessidade de tomar posição quanto à revogação da suspensão da execução da pena de prisão.

Vejamos.

O acórdão recorrido, ao referir-se à condenação sofrida pela arguida no proc. n.º 3442/08.0TAMTS.S1, limita-se a descrever:

D) Nestes autos, por acórdão de 11/04/2012, com as alterações decorrentes do acórdão de 24/04/2013 do Tribunal da Relação do Porto, transitado em julgado em 03/06/2013 (fls. 493 a 505, 631 a 649 e 658):

- dois anos e seis meses de prisão – por um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo art. 205.º, n.ºs 1 e 4, al. b), do Código Penal, cometido no dia 30 de Junho de 2006.”

Ora, se analisarmos o mencionado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 631 a 649, constata-se que no mesmo se concedeu parcial provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido, na parte em que não suspendeu a execução da pena de dois anos e seis meses de prisão aplicada à arguida, determinando a suspensão da execução da pena aplicada, pelo período da sua duração, isto é, dois anos e seis meses.

Assim, embora nos factos provados se faça menção às “alterações decorrentes do acórdão de 24/04/2013 do Tribunal da Relação do Porto, transitado em julgado em 03/06/2013”, não se deixou dito expressamente que essas alterações se traduziram na determinação da suspensão da execução da pena.

Para além disso, a fls. 996 do acórdão recorrido refere-se: 

A circunstância de as penas referidas nas alíneas A) e B) terem sido suspensas na sua execução não obsta ao cúmulo jurídico a efectuar”, quando aí também se deveria ter feito menção à pena referida na alínea D).

Entendemos, no entanto, que a omissão de tais referências no acórdão recorrido, como bem pretende a arguida, é apenas fundamento para a sua correção, por se tratar de um mero lapso, não consubstanciando uma situação de omissão de pronúncia.

Na verdade, o tribunal a quo não procedeu a qualquer ponderação sobre a necessidade de revogação da suspensão da pena quer na que foi aplicada nestes autos e não foi referida, quer em relação às outras aplicadas nos outros processos, referidas na decisão, mas sem que se tenha procedido a qualquer ponderação e decisão sobre a necessidade da sua revogação. E entende-se que assim seja, dado que aquando do acórdão cumulatório a pena única conjunta será determinada a partir das penas de prisão parcelares que integram a condenação — entendimento que tem sido sufragado pelo Tribunal Constitucional (cf. acórdãos n.º 3/2006 e 341/2013).

Na verdade, entendeu o Tribunal Constitucional, no último acórdão referido, “não julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 77.º, 78.º e 56.º, n.º 1, do Código Penal, quando interpretados no sentido de ser possível, num concurso de crimes de conhecimento superveniente, proceder à acumulação de penas de prisão efetivas com penas de prisão suspensas na sua execução, ainda que a suspensão não se mostre revogada, sendo o resultado uma pena de prisão efetiva.” (destaque nosso)

Além do mais, constitui entendimento deste Tribunal não haver lugar a qualquer ponderação da necessidade de revogação da pena suspensa, que é considerada para efeitos da operação de cúmulo, atendendo à sua medida. Porque, não só “a acumulação entre penas de prisão efetivas e suspensas não viola o caso julgado”, como também “a substituição não transita em julgado. É evidente que a sentença que decreta a substituição da pena transita: a opção pela substituição estabiliza. Mas a substituição não fica definitivamente garantida, antes está sujeita à condição resolutiva do decurso do prazo sem se registar a prática pelo condenado de novos crimes (e eventualmente pelo cumprimento de deveres e condições, por parte deste).” (acórdão do STJ, de 21.11.2012, proc. n.º 153/09.2PHSNT.S1, Relator: Cons. Maia Costa[1]; foi a partir deste acórdão que se pronunciou o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 341/2013, citado supra)[2]. E porque aquela pena de substituição foi aplicada mas está sujeita a uma condição resolutiva, não se mostra necessário a aplicação do disposto no art. 56.º, do CP, isto é, não se mostra necessário qualquer juízo sobre a revogação da pena suspensa[3]. Na verdade, o “conhecimento superveniente de um delito perpetrado  antes da condenação ao abrigo da qual se determinou a suspensão determina a aplicação das regras do concurso por expressa previsão dos artigos 77.º e 78.º. Coisa diferente é um segundo  momento: o de saber até que ponto, em face desta alteração, se justifica ou não a manutenção da pena suspensa anteriormente decretada e até que medida pode o condenado beneficiar, agora em face da pena total, da mesma reacção substitutiva. Tratam-se, destarte, de diversos níveis analíticos governados por específicas finalidades dogmáticas e político-criminais, mas que não exigem, à nossa vista, que a formação do cúmulo seja precedida, eo ipso, da aplicação do art. 56.º, o qual revelará, isso sim, para o segundo momento assinalado, i.e., o de saber se estão ou não preenchidos os requisitos para uma aplicação in totum de uma pena substitutiva à nova sanção resultante do cúmulo”[4]. E isto é assim, porque para que haja revogação, nos termos do art. 56.º, do CP, é necessário que o arguida infrinja “grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta” ou “comet[a] crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas”. Ora, quando estamos perante um caso de conhecimento superveniente de concurso de crimes, naqueles crimes em que o agente tenha sido condenado numa pena principal substituída pela suspensão da execução da pena de prisão, não se pode dizer que, aquando da prática dos outros factos que vieram a ser considerados crimes, violou os deveres ou regras de conduta, ou que cometeu um crime  revelando que as finalidades que levaram à aplicação daquela pena de substituição não foram alcançadas. Na verdade, cometeu aqueles crimes em momento anterior (às vezes muito anterior) ao momento em que o juiz decidiu aplicar aquela pena de substituição. Ou seja, nem sequer haveria, por força da norma constante do art. 56.º, do CP, lugar à revogação, dado que não houve violação das regras de conduta, nem dos deveres, nem a prática de outro crime após a decisão de suspensão.

Por tudo isto consideramos que a não referência à suspensão da execução (e a não referência à sua revogação)  de uma das penas englobadas no cúmulo justificará a correção da decisão recorrida, mas não consubstancia uma situação de omissão de pronúncia.

1.3. Correção do acórdão recorrido

Entendemos que se deve proceder à correção do acórdão recorrido nos termos do disposto no artigo 380.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, do CPP.

Como mencionámos supra, o acórdão recorrido, ao referir-se à condenação sofrida pela arguida no proc. n.º 3442/08.0TAMTS.S1, limita-se a descrever que

D) Nestes autos, por acórdão de 11/04/2012, com as alterações decorrentes do acórdão de 24/04/2013 do Tribunal da Relação do Porto, transitado em julgado em 03/06/2013 (fls. 493 a 505, 631 a 649 e 658):

- dois anos e seis meses de prisão – por um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo art. 205.º, n.ºs 1 e 4, al. b), do Código Penal, cometido no dia 30 de Junho de 2006.

No entanto, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de fls. 631 a 649, concedeu parcial provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido, na parte em que não suspendeu a execução da pena de dois anos e seis meses de prisão aplicada à arguida, determinando a suspensão da execução da pena aplicada, pelo período da sua duração, isto é, dois anos e seis meses.

Assim, à semelhança do que se fez com as penas indicadas em A) e B), deveria ter ficado a constar do texto do acórdão que a pena referida em D) ficou suspensa na sua execução, por 2 anos e 6 meses, o que só por manifesto lapso não terá ocorrido, posto que na decisão recorrida se fez tal menção quanto às outras duas condenações em pena de prisão suspensa na sua execução, e no próprio texto se refere à pena isolada em D) como tendo sido alterada pelo acórdão da Relação.

Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque “Qualquer erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial (…) incluindo imprecisões, erros de escrita e de cálculo, lapsos, incorrecções na descrição dos factos provados e não provados, irrelevantes para a causa e, por isso, desprovidos da relevância própria dos vícios do artigo 410.º, n.º 2 (…)”[5] constitui uma irregularidade suscetível de correção.

Assim, nos termos do disposto no artigo 380.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, do CPP, procede-se à correção da descrição da pena referida em D) de fls. 993, no sentido de passar a constar

«Nestes autos, por acórdão de 11/04/2012, com as alterações decorrentes do acórdão de 24/04/2013 do Tribunal da Relação do Porto, transitado em julgado em 03/06/2013 (fls. 493 a 505, 631 a 649 e 658):

- dois anos e seis meses de prisão, suspensos na sua execução por idêntico período de tempo – por um crime de abuso de confiança agravado, previsto e púnico pelo art. 205.º, n.ºs 1 e 4, al. b), do Código Penal, cometido no dia 30 de Junho de 2006

Do mesmo modo, a fls. 996 da decisão recorrida, passará a constar

«A circunstância de as penas referidas nas alíneas A), B) e D) terem sido suspensas na sua execução não obsta ao cúmulo jurídico ora a efectuar (...)»

2. Cumpre-nos agora analisar os restantes aspetos referidos no recurso interposto onde foram levantadas diversas questões que em resumo se podem dividir em quatro pontos:

- inexequibilidade parcial do acórdão, pelo que uma das penas não deveria ter integrado o cúmulo jurídico (conclusões 4.ª a 9.ª) ,

- integração no cúmulo jurídico de penas de prisão que tinham sido substituídas por suspensão da sua execução, integração esta que não deveria ter sido realizada (conclusões 10.ª a 18.ª),

- necessidade de averiguação da existência (ou não) de continuação criminosa e, portanto, inadmissibilidade de punição no regime do concurso de crimes (conclusões 19.ª a 28.ª),

- vícios na fundamentação do acórdão, nos termos do art. 410.º, n.º 2, do CPP, quer porque omitiu factos, quer porque integrou na fundamentação factos que não deveria ter integrado, violação do princípio da proibição da dupla valoração e falta de fundamentação do acórdão recorrido (conclusões 29.ª a 53.ª), e

- a pena é exagerada quer tendo em conta os factos, quer tendo em conta a personalidade da arguida e as exigências de prevenção geral e especial, pelo que a moldura do cúmulo devia ser especialmente atenuada, baixando para 7 meses de prisão e 7 anos e 6 meses, nos termos do arts. 73.º, n.º 1, als. a) e b), do CP, devendo ser considerada a possibilidade de aplicação de uma pena suspensa na sua execução (conclusões 54.ª a 66.ª),

- e por fim, dever-se-ia ter procedido ao desconto do período de suspensão de execução da pena de prisão que já tinha decorrido (conclusões 67.ªa 72.ª).

Antes de procedermos à análise de cada uma das questões suscitadas,, cumpre salientar que estamos perante um recurso de um acórdão cumulatório por conhecimento superveniente do concurso de crimes, ao abrigo do disposto no art. 78.º, do CP. Ou seja, tudo o referente à apreciação quer da matéria de facto, quer da matéria de direito conexionada com os crimes e com as penas parcelares atribuídas e analisadas nos acórdãos iniciais (em cada processo individual), e já todos transitados em julgado, não poderão ser reapreciados por este Tribunal e em sede deste recurso. É que acórdãos transitados em julgado apenas poderão ser alterados em sede de recurso extraordinário, o que não é o caso. Assim sendo, estamos limitados, por força da lei, a apenas analisar o acórdão cumulatório agora em exame.

3. Inexequibilidade parcial do acórdão

3.1. A arguida inicia o seu recurso com a questão da inexequibilidade parcial do acórdão recorrido, enquanto decorrência da inexequibilidade parcial do acórdão (transitado em julgado) prolatado no âmbito do processo n.º 10611/08.0TDPRT — questão suscitada pela arguida naquele processo por entender que a queixa aí apresentada pela ofendida é extemporânea e, como tal, não podia o Ministério Público perseguir criminalmente a recorrente, e não podia o Estado Português puni‑la pela prática de um crime de abuso de confiança simples.

Mas, tendo sido suscitada tal questão pela arguida no referido processo, a mesma foi indeferida e, não se conformando com tal decisão, a arguida interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto que, por decisão de 18.02.2015, negou provimento ao recurso interposto. Todavia, esta decisão ainda não transitou em julgado dado que foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional onde deu entrada a 08.04.2015[6].

A arguida entendia que, embora o acórdão referido tenha transitado em julgado, a pena respetiva que lhe foi aplicada naquele processo não era exequível, pelo que, também agora não poderia ter sido englobada no cúmulo jurídico realizado no acórdão recorrido. Tenha ou não razão a arguida, o certo é que se trata de um problema de exequibilidade de uma decisão que já transitou em julgado. E não podemos deixar de dizer que o problema colocado pela arguida já depois de transitado em julgado, podia tê-lo sido em sede de recurso ordinário daquela decisão. O que a arguida não fez e, por isso, transitou em julgado.

Além disto, aquela decisão, que rejeitou o recurso com fundamento na inexequibilidade da sentença, já terá transitado em julgado.

Porém, a arguida, agora recorrente, entende que apesar de tudo isto, do acórdão recorrido deveria constar que corria tal incidente em um dos processos alvo de cúmulo e deveria o Tribunal ter-se pronunciado quanto à possibilidade ou impossibilidade de realização do cúmulo jurídico de penas, tendo em conta a pendência de tal incidente. Como o acórdão recorrido não fez qualquer referência, entende que é nulo, por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.

Ora, cumpre salientar que esta questão foi suscitada expressamente pela arguida no processo respetivo (antes mesmo da decisão cumulatória) e objeto de um despacho de indeferimento, do qual foi interposto recurso (com efeito meramente devolutivo). Tendo o recurso mero efeito devolutivo nada obsta a que a pena em que a arguida foi condenada no processo referido integre o cúmulo jurídico, pois o recurso interposto não tem consequências na execução da decisão. Todavia, sabe-se já que o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso, pelo que se mantém a exequibilidade da decisão.

Certo é que o acórdão que condenou a arguida já transitou em julgado e ainda nenhuma decisão houve que viesse “revogar” aquele trânsito em julgado. Ou seja, constituindo a formação da pena única do concurso em conhecimento superveniente uma decisão que deverá partir de decisões transitadas em julgado, e sabendo que o incidente suscitado pela arguida, após aquele trânsito em julgado, nada obstou, até ao momento, àquele caso julgado já formado, nada impede que as penas parcelares aplicadas à arguida naquele processo não possam integrar o cúmulo agora em discussão.

Além disto, ainda que se admitisse por absurdo que a arguida teria razão quanto à inexequibilidade da decisão, o certo é que não pode ser apreciado por este tribunal: não só porque se trata de um problema de inexequibilidade parcial de uma decisão que já transitou em julgado, como ainda porque agora apenas cabe apreciar o acórdão cumulatório, sendo este apenas o objeto do presente recurso.

3.2. Mas, na verdade, nada foi referido no acórdão cumulatório quanto à inexequibilidade parcial do acórdão prolatado no âmbito do processo n.º 10611/08.0TDPRT; embora o acórdão recorrido tenha integrado aquela pena parcelar no cúmulo efetuado. Entende, por isso, a arguida que o acórdão cumulatório é nulo por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.

Para a arguida, mesmo que o tribunal recorrido tivesse optado por incluir a pena referida no cúmulo, do acórdão recorrido deveria constar que corria tal incidente num dos processos alvo de cúmulo e ao tribunal competiria pronunciar-se quanto à possibilidade ou impossibilidade de realização do cúmulo jurídico de penas, tendo em conta a pendência de tal incidente.

Da leitura da decisão recorrida constata-se que, efetivamente, nela não se faz qualquer referência à pendência de recurso para decisão da questão da eventual inexequibilidade da pena relativa ao proc. n.º 10611/08.0TDPRT, nem à questão da inexequibilidade dessa pena.

Ora, a arguida, no articulado – facultativo – que apresentou previamente à realização da audiência de julgamento para cúmulo jurídico de penas (cf. fls. 946 a 970, vol. III), o que diz de relevo para esta matéria consta dos arts. 70.º a 99.º, onde desenvolve os termos em que decorreu a condenação no âmbito do proc. n.º 10611/08.0TDPRT, e acaba por referir que entende que o acórdão em causa é inexequível uma vez que não tendo sido a queixa apresentada no prazo para tal fixado legalmente, não podia o Ministério Público ou o Estado Português condená‑la pela prática do crime respetivo, deixando escrito que já havia arguido a inexequibilidade do acórdão, a qual lhe foi indeferida, tendo já interposto recurso para o Tribunal da Relação do Porto de tal despacho. Conclui esse articulado pedindo que, ponderados os factos e a personalidade da arguida, lhe seja aplicada uma pena única próxima do mínimo legal.

A arguida, em momento algum, veio requerer expressamente ao tribunal recorrido que não englobasse a pena aplicada no proc. n.º 10611/08.0TDPRT na operação de cúmulo jurídico. Limitou-se a expressar as razões pelas quais entende que tal pena não é exequível.

O tribunal recorrido nunca poderia pronunciar-se sobre essa questão (decidindo pela exequibilidade ou inexequibilidade da pena), sobre a qual pendia outro recurso, sob pena de se intrometer na competência de outro tribunal.

Pelo que, tudo se resume a saber se o tribunal recorrido deveria ter feito referência à circunstância de, relativamente à pena aplicada no proc. n.º 10611/08.0TDPRT, se encontrar pendente recurso para decisão da questão da sua inexequibilidade e se, não tendo feito tal referência, inquinou o acórdão recorrido com a nulidade decorrente de eventual omissão de pronúncia.

Conforme se refere, entre muitos outros, no ac. deste STJ de 02.10.2012, Proc. 87/12.3SGLSB.L1.S1, relatora: Cons. Isabel Pais Martins, in www.dgsi.pt, «A nulidade por omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, sendo tais questões, no caso de decisão proferida em recurso, as de conhecimento oficioso e aquelas cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e cuja decisão não fique prejudicada pela solução dada a outras.

A nulidade resulta da falta de pronúncia sobre questão que o tribunal deva conhecer e não da falta de apreciação de todos os motivos e razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação da solução que preconizam para a questão que submetem à apreciação do tribunal, “entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão” (Oliveira Mendes, em comentário ao artigo 379.º do CPP, in Código comentado cit., pág. 1182).

A falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide, por conseguinte, sobre as questões que devam ser apreciadas e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais; é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou razões alegados».

Assim, só se verifica uma situação de omissão de pronúncia quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que o tribunal deva conhecer e as questões que o tribunal deve conhecer são aquelas que consubstanciam o objeto da decisão.

Ora, as questões que o tribunal tem que conhecer, no âmbito de uma decisão de cúmulo jurídico de penas, de conhecimento superveniente, são as que se referem aos pressupostos da realização dessa operação de cúmulo, e que resultam dos artigos 77.º e 78.º do CP e 471.º e art. 472.º do CPP.

E, no que se refere às penas a cumular, o tribunal terá que se pronunciar sobre a medida concreta da pena, data dos factos a que respeita, data da respetiva condenação, data do trânsito em julgado, bem como sobre os factos que justificaram a condenação e tipo de crime praticado (sem prejuízo de ter de ponderar, ainda, os factos relativos às condições pessoais da arguida, bem como as questões de direito que importam à operação de cúmulo jurídico).

Compulsados os autos constata-se que o tribunal recorrido teve todas essas circunstâncias em consideração. Não fez menção à existência de um recurso pendente relativamente à inexequibilidade da pena aplicada no proc. n.º 10611/08.0TDPRT (embora, pudesse tê-lo feito), mas não estava obrigado a fazê-lo, dado que essa circunstância em nada contendia com a operação de cúmulo jurídico a realizar (como se viu já, a pena respetiva estava transitada em julgado e ao recurso interposto pela arguida foi atribuído efeito meramente devolutivo), nem constituía objeto da sua decisão.

As explicações relativas ao proc. n.º 10611/08.0TDPRT que a arguida levou ao seu articulado (de fls. 946 a 970 supra referido) não respeitam propriamente ao concreto objeto que foi submetido à cognição do tribunal recorrido, antes tendo a natureza de “motivos ou razões alegados”, sobre as quais o tribunal se poderá pronunciar, mas apenas se o entender relevante, sem que a omissão de pronúncia sobre os mesmos constitua nulidade, nos termos do disposto no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.

            4. Penas de prisão parcelares suspensas na sua execução integradas no cúmulo jurídico

4.1. Comecemos por analisar esta questão em função da decisão, e sabendo que no momento em que foi prolatada a decisão do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, de 18.11.2014, não havia ainda qualquer decisão quanto à extinção da pena aplicada no processo A.

Entende a arguida que no acórdão recorrido se realizou o cúmulo jurídico de 4 penas, 3 das quais foram suspensas na sua execução, sendo seu entendimento que as penas suspensas não são passíveis de ser englobadas no cúmulo jurídico. Isto porque a pena suspensa só poderia ser passível de integrar o cúmulo jurídico se se verificasse qualquer hipótese taxativa de revogação da pena suspensa, nos termos do disposto no art. 56.º do CP, o que sempre acarretaria um juízo de culpa por parte da recorrente.

Como o acórdão recorrido fez incluir na pena única do concurso penas que tinham sido substituídas, sem que tenha havido decisão nos termos do art. 56.º, do CP e  do art. 492.º, do CPP, relativamente às penas suspensas, e não resultando dos factos que o Tribunal a quo tomou em consideração que nos processos em que foram aquelas aplicadas tenha sido decidida a revogação ou a extinção das penas suspensas, entende a recorrente que o acórdão é nulo por não ter tomado conhecimento de questões de que deveria conhecer (art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP).

O Ministério Público junto da 1.ª instância emitiu parecer no sentido de não existir razão à arguida, dado que o entendimento maioritário, na jurisprudência e doutrina, é o de que, tratando-se de penas da mesma natureza devem as mesmas ser objeto de cúmulo jurídico. Essencial é que seja feita uma avaliação global e atual das circunstâncias relevantes para a determinação da pena única, não se apresentando tal avaliação como uma mera faculdade do condenado, consoante a sua conveniência. No caso, considerando o número de crimes praticados e a gravidade objetiva dos mesmos refletida nas penas e perante o conjunto de circunstâncias apuradas, foi fixada uma pena única que, pela sua medida concreta, inviabiliza a aplicação de uma nova suspensão. Tal perspetiva, ao contrário do defendido pela recorrente, vem fundamentada no 1.º parágrafo de fls. 996, último parágrafo de fls. 1005 e 1.º parágrafo de fls. 1006, não ocorrendo, por isso, qualquer nulidade da decisão.

Também no Supremo Tribunal de Justiça o Ministério Público contrariou a visão da arguida neste particular, estribando-se na circunstância de a jurisprudência maioritária do Supremo ir no sentido da possibilidade e até conveniência do cúmulo jurídico abranger as penas de prisão suspensas na sua execução, pois só do todo criminoso praticado pelo arguido se pode aquilatar da sua personalidade global, assim se alcançando uma pena única mais justa, adequada e proporcional à factualidade total dada como provada e uma melhor satisfação das exigências de prevenção geral e especial da pena.

Analisando o acórdão recorrido verifica-se que procedeu a essa ponderação e fundamentou mínima, mas suficientemente, a revogação da suspensão da execução das penas contidas nas alíneas A) e B) do respetivo relatório e a sua integração no cúmulo jurídico realizado. Não se verifica, pois, nesta parte, qualquer vício do acórdão recorrido que, neste âmbito, arraste a sua nulidade.

Mas, procedamos a uma análise mais detalhada.

Esta questão pode ser subdividida em quatro:

a) a possibilidade de realização de cúmulo jurídico de penas suspensas;

b) a necessidade de fundamentar a decisão recorrida relativamente à revogação da suspensão da execução da pena; a existência de nulidade do acórdão recorrido por falta dessa fundamentação;

c) a inconstitucionalidade da interpretação normativa que considera possível a realização do cúmulo jurídico de penas suspensas.

a) A primeira questão que se coloca, desde logo, é a da possibilidade/dever de realizar o cúmulo jurídico de penas, de conhecimento superveniente, quando todas ou algumas das penas a considerar são penas de prisão suspensas na sua execução por aplicação de uma pena de substituição.

Quando já tenha decorrido o período de suspensão da execução da pena, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça é uniforme no sentido de entender que previamente à realização do cúmulo há que indagar se a pena deve ser declarada extinta, pelo cumprimento, ou se a mesma deve ser revogada. Se a pena dever ser declarada extinta pelo cumprimento, deverá o tribunal da respetiva condenação declarar a extinção dessa pena, que, encontrando-se então extinta, não poderá ser considerada na operação do cúmulo jurídico.

Nas situações em que o Tribunal procede à realização do cúmulo jurídico de penas sem previamente apurar da situação concreta da pena suspensa cujo período de suspensão se mostre já decorrido, também é uniforme o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça de que, em semelhante caso, o tribunal incorre em nulidade[7].

Situação diversa dessa é aquela em que não decorreu ainda o período de suspensão da execução da pena. Neste caso, o entendimento maioritário da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vai no sentido de se realizar o cúmulo jurídico de penas.

Para melhor esclarecimento transcrevemos o acórdão deste Tribunal, de 17.10.2012, proc. n.º 1236/09.4PBVFX.S1 (Relator: Cons. Raúl Borges) onde esta posição maioritária está realçada:

«Como é sabido, não é líquida a questão da formação de uma pena única em caso de conhecimento superveniente do concurso de infracções, quando, entre outros, estão em concurso, crimes pelos quais tenham sido aplicadas penas de prisão suspensas na sua execução, colocando-se o problema de saber se a integração de tais penas no cúmulo jurídico pressupõe ou não a anterior revogação da suspensão.(...)

A posição predominante é no sentido da inclusão da pena de prisão suspensa na execução, defendendo-se que a “substituição” deve entender-se, sempre, resolutivamente condicionada ao conhecimento superveniente do concurso e que o caso julgado forma-se quanto à medida da pena e não quanto à sua execução.

De acordo com esta posição a suspensão da execução da pena de prisão não constitui óbice à integração dessa pena em cúmulo jurídico de penas aplicadas a crimes ligados entre si pelo elo da contemporaneidade, não seccionada por condenação transitada pela prática de qualquer deles.

Figueiredo Dias, Direito Penal Português – Parte Geral II – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, §§ 409, 419 e 430, a págs. 285, 290 e 295, defende que quando uma pena parcelar de prisão tenha sido suspensa na sua execução, «torna-se evidente que para efeito de formação da pena conjunta relevará a medida da prisão concretamente determinada e que porventura tenha sido substituída» e que «de todo o modo, determinada a pena conjunta, e sendo de prisão, então sim, o tribunal decidirá se ela pode legalmente e deve político - criminalmente ser substituída por pena não detentiva» e que não pode recusar-se, em caso de conhecimento superveniente do concurso, «a valoração pelo tribunal da situação de concurso de crimes, a fim de determinar se a aplicação de uma pena de substituição ainda se justifica do ponto de vista das exigências de prevenção, nomeadamente da prevenção especial».

Paulo Dá Mesquita em O Concurso de Penas, Coimbra Editora, 1997, págs. 95/98, concorda com a orientação dominante na jurisprudência dos tribunais superiores em atenção à natureza das penas cuja execução foi suspensa, defendendo não existir obstáculo ao cúmulo de uma pena de prisão, cuja suspensão foi suspensa, com uma outra qualquer pena de prisão.

Neste sentido, igualmente se pronunciou Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário do Código Penal, 2.a edição actualizada, 2010, UCE, pág. 287, dizendo não se colocar qualquer questão de violação do “caso julgado” em relação à pena de prisão com execução suspensa que venha a ser incluída no cúmulo jurídico, mas cuja pena conjunta não seja, por sua vez, suspensa na sua execução.

E conclui “Ocorrendo conhecimento superveniente de uma situação de concurso de infracções, na pena conjunta a fixar pode não ser mantida a suspensão da execução de penas parcelares de prisão, constante de anteriores condenações”.

No mesmo sentido se pronuncia André Lamas Leite, in “A suspensão da execução da pena privativa de liberdade sob pretexto da revisão de 2007 do Código Penal”, STVDIA IVRIDICA 99, Ad Honorem - 5, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Separata de ARS IVDICANDI, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Volume II, Coimbra Editora, 2009, págs. 608 a 610, referindo que o caso julgado em tais circunstâncias não se encontra recoberto por um carácter de absoluta intangibilidade, mas sim por uma cláusula rebus sic stantibus.

Na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, a orientação dominante é no sentido da integração da pena suspensa no cúmulo, como se pode ver dos acórdãos de 05-12-1973, processo n.º 34040, BMJ n.º 232, pág. 43; de 26-02-1986, BMJ n.º 354, pág. 345; de 02-07-1986, BMJ n.º 359, pág. 339; de 02-10-1986, BMJ n.º 360, pág. 340; de 19-11-1986, BMJ n.º 361, pág. 278; de 07-02-1990, in CJ1990, tomo 1, pág. 30 e BMJ n.º 394, pág. 237; de 13-02-1991, BMJ n.º 404, pág. 178; de 03-07-1991, in CJ1991, tomo 4, pág. 7; de 23-09-1992, BMJ n.º 419, pág. 439; de 07-01-1993, in CJSTJ1993, tomo 1, pág. 162; de 24-02-1993, BMJ n.º 424, pág. 410; de 17-01- 1994, BMJ n.º 433, pág. 257; de 11-01-1995, in CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 176; de 24-01-1996, CJSTJ 1996, tomo 1, pág. 182 (unificando duas penas impostas em processos diferentes, suspensas na sua execução, fixando pena única suspensa na execução); de 14-11-1996, BMJ n.º 461, pág. 186; de 05-02-1997, CJSTJ1997, tomo 1, pág. 209; de 12-03-1997, in CJSTJ1997, tomo 1, pág. 245 e BMJ n.º 465, pág. 319; de 07-05-1997, BMJ n.º 467, pág. 256; de 04-06-1997, BMJ n.º 468, pág. 79; de 11-06-1997, processo n.º 65/97; de 04-06-1998, processo n.º 333/98-3.ª; de 17-03-1999, BMJ n.º 485, pág. 121; de 24-03-1999, in CJSTJ1999, tomo 1, pág. 255; de 07-12- 1999, BMJ n.º 492, pág. 183; de 13-02-2003, processo n.º 4097/02-5.ª; de 03-07-2003, processo n.º 2153/03-5.ª, in RPCC citada; de 30-10-2003, processo n.º 3296/03-5.ª, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 222 (a circunstância de as penas, a cumular com outras, terem sido suspensas na sua execução, não impede que, no cúmulo a realizar, essa suspensão não seja eventualmente mantida, mas agora face à pena única fixada); de 04-03-2004, processo n.º 3293/03-5.ª; de 22-04-2004, processo n.º 1390/04-5.ª, in CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 172; de 02-12-2004, processo n.º 4106/04-5.ª; de 21-04-2005, processo n.º 1303/05; de 27-04-2005, processo n.º 897/05; de 05-05-2005, processo n.º 661/05; de 20-10-2005, processo n.º 2033/05 – 5.ª; de 08-06-2006, processo n.º 1558/06 – 5.ª; de 21-06-2006, processo n.º 1914/06 – 3.ª; de 28-06-2006, processos n.º 774/06-3.ª (com um voto de vencido) e n.º 1610/06-3.ª (igualmente com um voto de vencido); de 21-09-2006, processo n.º 2927/06 – 5.ª; de 09-11-2006, processo n.º 3512/06-5.ª, CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 226, onde se ponderou “Em caso de conhecimento superveniente do concurso de crimes, a pena unitária deve englobar todas as penas de prisão parcelares a que o arguido foi condenado, incluindo aquelas cuja execução foi suspensa na sua execução, nada obstando a que, no julgamento conjunto, se conclua pela necessidade de aplicação de uma pena única de prisão”; de 29-11-2006, processo n.º 3106/06 – 3.ª; de 21-12-2006, processo 4357/06 – 5.ª; de 10-01-2007, processo n.º 4082/06 – 3.ª; de 07-02-2007, processo n.º 4592/05 – 3.ª; de 31-01-2008, processo n.º 4081/07 – 5.ª; de 27-03-2008, processo n.º 411/08 – 5.ª, onde se refere “Como vem sendo jurisprudência firme do STJ, a pena suspensa pode ser englobada num concurso de infracções com outras penas, suspensas ou efectivas, decidindo o tribunal do cúmulo, após apreciação em conjunto dos factos e da personalidade do agente, se a pena conjunta deve ou não ser suspensa. Pois só faz sentido colocar a questão da suspensão em relação à pena conjunta. Por isso, não será pelo facto de terem sido suspensas originariamente e de ainda não terem sido revogadas tais suspensões que essas penas serão excluídas do cúmulo”; de 29-05-2008, processo n.º 4462/07 – 5.ª; de 04-06-2008, processo n.º 2247/05 – 3.ª; de 04-09-2008, processo n.º 2391/08 – 5.ª; de 25-09-2008, processo n.º 2818/08 – 5.ª; de 04-12-2008, processo n.º 3628/08-5.ª; de 14-01-2009, processo n.º 3975/08-5.ª (É legal a eliminação da suspensão da execução de pena anterior em que o arguido tinha sido condenado por ter sido cumulada posteriormente com outra ou outras, não existindo no caso, violação de caso julgado, por a suspensão o não formar de forma perfeita, já que a suspensão pode vir a ser alterada, quer no respectivo condicionalismo, quer na sua própria existência se ocorrerem os motivos legais referidos nos arts. 50.o e 51.o ou 78.o e 79.o do CP); de 14-05-2009, processo n.º 6/03.8TPLSB.S1, in CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 232; de 18-06-2009, processo n.º 482/09-5.ª; e no acórdão de 07-07-2009, proferido no processo n.º 254/03.0JACBR.S1 - 3.ª, com relator vencido quanto a esta específica questão, “por continuar a entender que penas de prisão suspensas na sua execução não podem integrar a formação de cúmulo jurídico sem que a suspensão da sua execução tenha sido revogada, de acordo com o procedimento previsto nos arts. 56.o do CP e 495.o do CPP”, afirma-se que “a corrente largamente maioritária no Supremo Tribunal de Justiça é a de que o cúmulo jurídico deve incluir todas as penas de prisão, independentemente de terem sido, ou não, declaradas suspensas”; de 27-05-2010, processo n.º 601/05.0SLPRT.P1.S1-5.ª; de 16-03-2011, processo n.º 188/07.0PBBRR.S1-5.ª; de 18-05-2011, processo n.º 667/04.0TAABF.S1-3.ª; de 16-11-2011, processo n.º 150/08.5JBLWSB.L1.S1-3.ª; de 11-01-2012, processo n.º 5745/08.4PIPRT.S1-3.ª; de 08-02-2012, processo n.º 8534/08.2TAVNG.S1-5.ª.

Ainda do Supremo Tribunal de Justiça, o acórdão de 6 de Outubro de 2005, proferido no processo n.º 2107/05-5.ª, sobre o qual incidiu a apreciação do Tribunal Constitucional, que no Acórdão n.º 3/2006, de 03- 01-2006, proferido no processo n.º 904/05-2.a Secção, publicado in DR - II Série, de 07-02-2006 (e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 64.o volume, págs. 147 e ss.), decidiu não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 77.º, 78.º e 56.º, n.º 1, do Código Penal, interpretados no sentido de que, ocorrendo conhecimento superveniente de uma situação de concurso de infracções, na pena única a fixar pode não ser mantida a suspensão da execução de penas parcelares de prisão, constantes de anteriores condenações.

Esclarece que se trata da “solução que, na perspectiva do legislador corresponde ao critério da culpa e às preocupações de prevenção em que se funda o sistema punitivo, cuja lógica obedece a dois vectores:

1- No caso de conhecimento superveniente do concurso, tudo se deve passar como se passaria se o conhecimento tivesse sido contemporâneo;

2- Mas a decisão sobre a suspensão da pena deve atender à situação do condenado no momento da última decisão e sempre reportada à pena única.

E a respeito do caso julgado, salienta-se que na lógica do sistema, tanto não viola o caso julgado a não manutenção, na pena única, de suspensão de penas parcelares, como a suspensão total da pena única, mesmo que nela confluam penas parcelares de prisão efectiva”.»

Voltando ao caso dos autos, temos que a pena identificada em A) – proc. n.º 1297/07.0JAPRT, é uma pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa mediante acompanhamento em regime de prova. A condenação transitou em julgado em 23.09.2010 (termo inicial do período de suspensão da execução da pena), pelo que o período de suspensão terminaria em 23.03.2015.

O acórdão recorrido (e que veio a elaborar o cúmulo jurídico de penas) foi proferido em 18.11.2004, data em que ainda não estava decorrido o período de suspensão da execução da pena, pelo que, e de acordo com a jurisprudência maioritária do Supremo, nada obstaria à sua inclusão no cúmulo.

O mesmo se passa com a pena referida em B) – proc. n.º 940/07.6TAMAI, uma pena de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução mediante condições, posto que o trânsito em julgado da condenação ocorreu em 22.06.2011 e o termo do período de suspensão da execução da pena só ocorreria em 22.12.2015.

Também a pena referida em D) – proc. n.º 3442/08.0TAMTS.S1, uma pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período de tempo, dado que o trânsito em julgado do acórdão da Relação ocorreu em 03.06.2013, o termo do período de suspensão da execução da pena só ocorrerá em 03.12.2015.

Assim, seguindo o entendimento da maioria da jurisprudência deste Supremo Tribunal essas penas suspensas devem ser englobadas na operação de cúmulo jurídico de penas. Além disto, uma vez que, quando o acórdão recorrido foi prolatado a 18.11.2014, em nenhum dos casos se mostra que o período de suspensão já tivesse decorrido também não podemos concluir pela existência de uma qualquer nulidade.

b) Questão distinta desta, será a de saber se há necessidade de fundamentar a decisão recorrida relativamente à revogação da suspensão da execução da pena.

A jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal de Justiça entende que não há necessidade de o fazer.

É disso exemplo o acórdão de 21.03.2013, proferido no Proc. n.º 153/10.0PBVCT.S1 (Relator: Cons. Santos Cabral), onde se afirma: 

«III - Se a lógica da apreciação global do percurso criminoso do arguido implica a valoração de toda, e cada uma, das suas actuações atomisticamente consideradas; se a atribuição de um efeito excludente à pena suspensa gera uma situação de injustificada desigualdade; se a suspensão prévia da pena no concurso superveniente traz consigo um errado conhecimento por parte do julgador em relação à existência do concurso, não se vislumbra porque é que se deve interpretar o art. 78.º do CP numa fórmula que suporta tais patologias. Assim, entende-se que as penas objecto de suspensão devem ser incluídas no cúmulo a efectuar.

IV - A pena de prisão cuja execução foi suspensa, e incluída no cúmulo, não inscreve uma situação paralela à da revogação da suspensão. Bem pelo contrário, o que está aqui em causa é a visão global dos crimes cometidos em concurso em relação aos quais a questão da pena de substituição não pode ser equacionada parcelarmente, mas apenas em relação à pena conjunta. Não existe, assim, fundamento ao apelo à revogação da suspensão que inexiste, mas sim o respeito pelas normas de formulação de cúmulo.(...)».

E não se diga que esta constitui uma interpretação inconstitucional atento o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 61/06 dado que se trata de situações diferentes.

Nos presentes autos o que estava em causa era a aplicação de uma pena única tendo em conta as penas parcelares efetivas, coisa diferente é a decisão de aplicação (ou não) da suspensão da execução da pena de prisão.

Aquilo que o Tribunal Constitucional nos disse no acórdão referido é que há um dever de fundamentação de uma decisão de não suspensão quando as condições formais estejam verificadas, pois, na verdade, o CP dá primazia às penas não detentivas no âmbito da escolha da pena (cf. art. 70.º), pelo que se torna necessário fundamentar porque não se seguiu esta regra geral.

Mas, nos presentes autos não está em causa a aplicação de uma pena não detentiva (desde logo, estamos perante uma pena única de 10 anos de prisão à qual não é possível aplicar nenhuma pena de substituição, por inexistência de pressupostos formais), pelo que não cabia ao tribunal a necessidade de qualquer fundamentação de uma decisão de não suspensão da execução da pena de prisão.  Ou seja, o caso dos presentes autos e o resolvido no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 61/06 não são subsumíveis.

E assim, não existindo a obrigação de tomar posição no acórdão de cúmulo jurídico de penas, também não existirá, consequentemente, qualquer nulidade do acórdão recorrido por falta dessa fundamentação.

c) Finalmente, quanto à invocada inconstitucionalidade da interpretação normativa que considera possível a realização do cúmulo jurídico de penas suspensas, face ao entendimento maioritário da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, ela não se verifica.

Na verdade, o Tribunal Constitucional já decidiu “não julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 77.º, 78.º e 56.º, n.º 1, do Código Penal, quando interpretados no sentido de ser possível, num concurso de crimes de conhecimento superveniente, proceder à acumulação de penas de prisão efetivas com penas de prisão suspensas na sua execução, ainda que a suspensão não se mostre revogada, sendo o resultado uma pena de prisão efetiva.” (acórdão n.º 341/2013, in www.tribunalconstitucional.pt; já antes também no acórdão n.º 3/2006).

Foi considerado pelo Tribunal Constitucional que a integração de penas de prisão (aquando de um conhecimento superveniente do concurso de crimes) anteriormente suspensas não constituía uma violação do caso julgado dada a “conatural provisoriedade da suspensão da execução da pena”. Não constituindo, igualmente, uma violação do caso julgado aqueles casos em que após a formação da pena única com base em penas parcelares de prisão efectivas (sem que tivessem sido substituídas por qualquer pena de substituição) o tribunal decide aplicar uma pena de substituição à pena única.

E concluiu “para além de (...) o princípio da intangibilidade do caso julgado não ser absoluto, este entendimento, mantendo intocado o caso julgado no que respeita às penas (principais) aplicadas e sustentando  a provisoriedade da pena de prisão suspensa, é de molde a respeitar, no essencial, essa intangibilidade”.

Acresce que este entendimento permite um tratamento igualitário de duas situações materialmente idênticas — a situação “normal” de conhecimento do concurso de crimes e a situação de conhecimento superveniente:

Com efeito, sendo as situações de conhecimento superveniente do concurso resultantes, muitas vezes, (…) de razões aleatórias ou fortuitas (sem as quais o tribunal teria procedido atempadamente à aplicação de pena única relativa aos crimes em situação de concurso), esta é uma razão constitucionalmente válida para que não se estenda a eficácia do caso julgado às penas de prisão suspensas, procedendo-se à determinação da pena única conjunta, a partir da pena de prisão substituída, como se o conhecimento do concurso tivesse ocorrido atempadamente e fosse diretamente aplicável à situação do artigo 77.º do Código Penal.” (ac. do TC n.º 341/2013, citado).

Afirma ainda o Tribunal Constitucional:

Nestas circunstâncias, as razões resultantes do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, e das exigências de certeza e segurança, de que decorre o princípio da intangibilidade do caso julgado, surgem atenuadas, quer na hipótese de se entender, como faz a decisão recorrida, que a pena de substituição, pela sua natureza, não transita em julgado, estando sujeita a uma condição resolutiva, ou ainda porque, não sendo o princípio da intangibilidade do caso julgado um valor absoluto, existe justificação material bastante para a sua restrição na circunstância de, desta forma, se pretender dar um tratamento igualitário, na perspetiva da unidade do sistema, a todos os casos de concurso, mesmo que de conhecimento superveniente.

E no que respeita a uma eventual “confiança” ou “expectativa” do condenado na manutenção da suspensão da pena de prisão, salvo nos casos de verificação do circunstancialismo do artigo 56.º, n.º 1, do Código Penal, a verdade é que tal “expectativa” não será suficientemente fundada no caso em que este tenha praticado um crime anteriormente àquela condenação, pelo qual ainda não foi julgado, pois sabe que essa suspensão pode não ser mantida, num cúmulo jurídico que venha a realizar-se futuramente, caso a pena conjunta aplicada ao cúmulo não possa legalmente ser suspensa ou se na ponderação que o tribunal que proceda ao cúmulo se entender que a suspensão, no caso, não se justifica.”

4.2. Considerando que no decurso da audiência que decorreu a 01.10.2015 no Supremo Tribunal de Justiça, foi junta aos autos uma certidão da decisão[8], de 08.04.2015, proferida no âmbito do processo n.º 1297/07.0JAPRT, e transitada em julgado a 13.05.2015, que, nos termos do art. 57.º, n.º 1, do CP, declarou extinta a pena aplicada à condenada, não vai mais esta pena ser integrada no cúmulo jurídico, dado que  apenas devem ser integradas as penas não extintas ou prescritas[9].

Na verdade, esta decisão que declarou a extinção da pena é relevante nos presentes autos, tanto mais que transitou em julgado antes da decisão cumulatória que ainda não transitou em julgado, e que está neste momento em apreciação neste recurso (assim se cumprindo o disposto no art. 625.º, do CPC, ex vi art. 4.º, do CPP).

            5. Conhecimento superveniente da situação de continuação criminosa?

A arguida prossegue o seu recurso invocando que, a seguir-se a tese de que devem ser incluídas no cúmulo jurídico todas as penas resultantes das condenações da recorrente, havia, em primeiro lugar, que indagar da possibilidade de os crimes pelos quais a arguida foi condenada estarem ou não numa relação de continuação criminosa.

Nega que a eventual existência de uma situação de continuação criminosa já tenha sido aquilatada em cada um dos processos com penas a cumular, tendo a arguida sido condenada por alguns crimes na sua forma continuada e noutros não, precisamente por esse facto.

O Ministério Público, quer na 1.ª instância, quer no Supremo Tribunal de Justiça, defendeu que não assiste razão à arguida, sendo que a questão da continuação criminosa já se mostra ultrapassada na decisão recorrida.

Na decisão recorrida refere-se, quanto a esta questão, o seguinte:

«Há que efectuar cúmulo jurídico, como se disse, e não proceder a qualquer novo julgamento da arguida, com consideração de novos factos, não sendo este o momento para apreciar de uma qualquer continuação criminosa, ao contrário do defendido pela arguida no articulado de fls. 944 a 970, pois tal situação foi apreciada em cada um dos julgamentos efectuados nos processos referidos em A) a D), tendo inclusivamente a arguida chegado a ser condenada em algumas situações por crime continuado, mas não noutras, por se entender nestas últimas existir concurso efectivo, tendo transitado em julgado todas as referidas condenações» (cf. fls. 996).

No caso destes autos, e como já referimos anteriormente, estamos a analisar um acórdão cumulatório proferido ao abrigo do disposto no art. 78.º, do CP — isto é, trata-se de um conhecimento superveniente do concurso de crimes e, tal como refere o citado dispositivo, constitui um conhecimento do concurso “depois de uma condenação transitada em julgado”. Assim sendo, ainda que no âmbito do art. 79.º, n.º 2, do CP, se determine que “se, depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação a pena que lhe for aplicável substitui a anterior”, entendemos que em caso de conhecimento superveniente já não há lugar à aplicação deste dispositivo.

Na verdade, o art. 79.º, n.º 2, do CP, foi introduzido na reforma de 2007 (lei n.º 59/2007, de 04.09). Na exposição de motivos incluída na proposta de Lei n.º 98/X[10] esclareceu-se: “Ao nível sancionatório, prescreve-se que o conhecimento superveniente de novo crime que integre a continuação criminosa ou o concurso acarreta sempre a substituição da pena anterior, mesmo que já executada, depois de se ter procedido ao correspondente desconto, no caso de a nova pena única ser mais grave. Deste modo, assegura-se o máximo respeito pelo princípio non bis in idem, consagrado no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição.” Assim, pretendeu-se com o estabelecido no art. 79.º, n.º 2, do CP, permitir a análise da continuação criminosa no último julgamento do facto que integra a continuação, mas já não quando todos os julgamentos relativos aos factos que poderiam integrar a continuação já transitaram em julgado.

Pelo que, ainda que já tivesse havido trânsito em julgado relativamente aos processos A, B e C, ainda assim no âmbito do processo D, poder-se-ia ter considerado que tudo integrava a mesma continuação criminosa, devendo então ser aplicada uma nova pena (com prejuízo do caso julgado e das penas que tinham sido aplicadas anteriormente). Mas, já não agora, quando já transitou em julgado a condenação no processo D, estes autos, que apenas foram reabertos para se proceder ao conhecimento superveniente do concurso de crimes. Além do mais, este Tribunal está vinculado tematicamente pelo objeto do processo[11], sendo que nos presentes autos o objeto do processo se restringe a um conhecimento superveniente de um concurso de crimes e não abrange o conhecimento da possibilidade ou não de conhecimento de um crime continuado.

Aquilo que a arguida agora pretende apenas seria possível se entre nós tivéssemos, à semelhança do que acontece no conhecimento superveniente do concurso de crimes, um regime de conhecimento superveniente do crime continuado. Não estando este regime previsto na lei estamos impedidos de analisar o caso dado que todos os acórdãos transitaram em julgado.

E ainda que se entenda que também aqui se devia conhecer do crime continuado o certo é que esta problemática coloca-se relativamente aos factos julgados no âmbito dos processos que correram os seus termos separadamente. Ora, nestes processos o problema foi colocado e analisado sem que se tivesse considerado existir continuação criminosa pelo que aquelas decisões transitaram em julgado. Aquilo que a arguida pretende agora ver analisado apenas poderia ter sido analisado em sede de recurso daqueles acórdãos.

Fica ainda a questão de saber se este Tribunal pode conhecer do concurso de crimes e aplicar uma pena de concurso de crimes quando entenda, por exemplo, que os casos em concurso, na verdade, constituiriam um caso de continuação criminosa. Poderemos ainda assim aplicar uma pena única numa situação de continuação criminosa estando assim a violar o princípio constitucional de que ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo crime? Deveremos ainda interpretar o art. 79.º, n.º 2, do CP, segundo a Constituição e admitir que o conhecimento da continuação criminosa “depois de uma condenação transitada em julgado” ainda seria possível em sede de acórdão cumulatório por conhecimento superveniente do concurso de crimes?

Se é certo que estamos perante um caso de conhecimento superveniente de concurso de crimes e que em cada processo individual se pôs um problema de continuação criminosa cujas decisões já transitaram em julgado, também é certo que, nos termos do art. 78.º, do CP, apenas estaremos perante um caso de conhecimento superveniente de concurso de crimes quando isto mesmo se possa concluir, isto é, quando se possa concluir que se trata de um concurso de crimes. Poderemos analisar, nesta sede, a situação para que possamos concluir pela verificação (ou não) de uma situação de concurso de crimes? Ou questionando de outra forma: constitui um cumprimento do disposto no art. 78.º, do CP, a aplicação do seu regime quando não exista um caso de concurso de crimes, assim decidindo contra a lei?

Nos presentes autos, e de acordo com o acórdão cumulatório agora em recurso (cf. fls. 978-9, 987, 991 e 993), a arguida foi condenada,

- com uma pena (parcelar) de prisão de 3 anos, num primeiro processo (A) por um crime de abuso de confiança agravado, na forma continuada, praticado entre “finais de 2004 e Novembro de 2006”[12],

- com uma pena (parcelar) de prisão de 2 anos, num segundo processo (B), por um crime de abuso de confiança agravado, praticado “no dia 1 de Agosto de 2006”,

- com uma pena (parcelar) de prisão de 1 anos e 6 meses, num terceiro processo (C), por um crime de abuso de confiança, na forma continuada, praticado “no período compreendido entre outubro de 2006 e meados de 2007”, e

- nestes autos (processo D), com uma pena (parcelar) de prisão de 2 anos e 6 meses, por um crime de abuso de confiança agravado, “cometido no dia 30 de Junho de 2006”.

O acórdão do processo A, que determinou o período da continuação criminosa entre finais de 2004 e novembro de 2006, foi prolatado a 10.07.2010 e transitou em julgado a 23.09.2010, ou seja, antes de qualquer um dos outros (a 08.10.2010 e 22.06.2011, respetivamente, no caso do processo B; a 11.06.2012 e 28.03.2014, respetivamente, no caso do processo C; e, a 24.04.2013 e 03.06.2013, respetivamente, nos presentes autos, processo D)[13].

Analisando os momentos que foram considerados nos acórdãos proferidos no âmbito dos processos A, B e C, verificamos que existem dois momentos de continuação criminosa (e assim entendidos pelas decisões proferidas no âmbito de cada processo): um primeiro momento entre finais de 2004 e novembro de 2006 e, um segundo período temporal, e em parte coincidente com o primeiro, entre outubro de 2006 e meados de 2007. Apenas nos processos C e D, em que apenas foi cometido um ato de abuso de confiança num dia determinado e certo, não considerando estar-se perante um crime continuado, embora ambos os factos tenham ocorrido no âmbito da continuação criminosa assim considerada nos anteriores acórdãos. Ou seja, atendendo ao caso julgado e ao princípio da consunção todos os factos integrados no âmbito da continuação criminosa não deveriam ter sido agora punidos autonomamente sob pena de violação do princípio da proibição da dupla incriminação.  

Mas, sabemos nós se estes factos praticados num certo período temporal em que se entendeu que a arguida praticou um crime de abuso de confiança e que, portanto, poderiam integrar aquela continuação, sabemos nós se estão ou não numa relação de continuação criminosa com os julgados noutros processos? Como poderemos saber se eles integram a continuação criminosa? Basta a coincidência temporal?

Claro que não.

Um crime continuado pressupõe que os diversos crimes, idênticos ou que protejam o mesmo bem jurídico, tenham sido executados “por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente” (art. 30.º, n.º 2, do CP). Ora, não integra os poderes de cognição deste Tribunal, que foi chamado a apreciar o acórdão cumulatório, a apreciação da matéria de facto dos crimes isoladamente julgados para que possamos concluir pela existência (ou não) de uma realização homogénea no quadro de uma mesma situação exterior. Esta matéria constituiu objeto de outras decisões que agora não estão a ser avaliadas neste recurso, dado que neste recurso não se recorreu delas, mas sim e apenas do acórdão cumulatório. Pelo que, ainda que aparentemente e numa primeira visão das coisas, pudéssemos considerar que os factos foram todos praticados num mesmo período temporal, factos cuja execução se mostra com alguma homogeneidade[14], tudo a indicar uma continuação criminosa que deveria ter sido julgada de forma una (assim cumprindo o princípio jurídico-constitucional do ne bis in idem), ainda assim não podemos agora dela conhecer.

Na verdade, constitui caso julgado a análise daqueles factos de forma autónoma e isolada, sem que em nenhuma das decisões se tenha procedido a uma análise global de todos eles, a permitir concluir pela existência (ou não) de uma mesma continuação criminosa e, por isso, foram punidos autonomamente. Todos foram praticados antes de transitar em julgado a primeira condenação no âmbito do processo A, e por isso foram apreciados em sede de acórdão cumulatório como integrando a figura do concurso de crimes e como tal foram punidos, nos termos gerais do art. 77.º, ex vi art. 78.º, ambos do CP. Atento o caso julgado não se oferece como possível um conhecimento de uma continuação criminosa que nunca foi analisada quando, de acordo com o disposto no art. 79.º, n.º 2, do CP, devia ter sido analisada no último processo — processo D, estes autos — que julgou um ato que poderia (ou não) ter sido integrado na continuação criminosa. Naquele deveria ter sido realizada uma análise global da situação concreta para que se concluísse (ou não) pela existência de um crime continuado (relativamente à globalidade dos factos praticados em todos os processos anteriores e que tinham sido subsumidos no crime de abuso de confiança). Naquela audiência de discussão e julgamento deviam ter sido realizadas as diligências necessárias a obter prova que nos permitisse concluir que a arguida agiu no âmbito de uma mesma situação exterior que lhe tivesse diminuído consideravelmente a culpa. Ora, ainda que consideremos que estas diligências deveriam ter sido realizadas, e que o tribunal deveria ter procedido a esta análise, em cumprimento do disposto no art. 79.º, n.º 2, do CP, o certo é que não o foi e o acórdão já transitou em julgado, pelo que qualquer nulidade que nele se encontre (nomeadamente, omissão de pronúncia), encontra-se sanada.

Mas, pode ainda surgir no espírito: em que medida esta situação é diferente daquela outra em que o arguido é julgado por diversos crimes num mesmo processo e recorre da pena única para o STJ e neste se deverá analisar se estamos ou não perante um caso de concurso de crimes, ou perante um caso de crime continuado, como ocorreu nos processo n.º 8/13.6GAPSR.E1.S1 (em que a relatora destes autos entendeu que deveria ser averiguado o preenchimento ou não dos pressupostos do crime continuado[15]), e também no processo n.º 1727/13.2JAPRT.P1.S1[16], de 21.08.2015,  em que foi relatora a Senhora Conselheira Isabel São Marcos (neste último foi juiz-adjunto o também juiz conselheiro adjunto nestes autos, Cons. Nuno Gomes da Silva)?

É que, naqueles casos, ainda estávamos dentro de um mesmo processo que ainda não tinha esgotado todas as formas de recurso, e no seguimento de todo o processado anteriormente estava agora a proceder-se a uma última análise.

Não é o que sucede no caso do conhecimento superveniente — onde expressamente se entende que o conhecimento superveniente “só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado” (art. 78.º, n.º 2, do CP) e por isso se abre uma nova audiência de discussão e julgamento e se sentiu necessidade de expressamente determinar qual o tribunal competente (cf. art. 471.º, do CPP).

Entendemos, pois, não ser do âmbito de competência deste Tribunal, e em sede deste recurso, de acórdão cumulatório de conhecimento superveniente de concurso de crimes, a cognição do problema relativo à continuação criminosa (pelos motivos anteriormente expostos), apenas competindo a este Tribunal a apreciação  do acórdão cumulatório.

E considerando que o conhecimento da continuação criminosa não se integra na decisão de conhecimento superveniente do concurso de crimes, somos forçados a concluir que não existe qualquer nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, como pretende a arguida, ao afirmar que o tribunal incorreu em tal nulidade por não haver previamente considerado sequer a possibilidade de os crimes cometidos pela arguida estarem numa relação de continuação criminosa, para afastar a existência de cúmulo jurídico.

6. O cúmulo jurídico: erro notório na apreciação da prova, violação do princípio da proibição da dupla valoração, falta de fundamentação e insuficiência da matéria de facto provada

A arguida entende, em súmula, que há erro notório na apreciação da prova porque na determinação da pena única do concurso foram valoradas pelo tribunal as condenações em crimes anteriores (que não integram este concurso) — o que já tinha sido tido em conta aquando da determinação das penas parcelares dos crimes agora em concurso —, constituindo um erro notório na apreciação da prova (conforme o disposto no art. 410.º, n.º 2, do CPP); caso assim se não entenda o facto de o Tribunal ter valorado factos que não deviam ter sido valorados, pois já o tinham sido anteriormente na construção das penas parcelares, constitui uma nulidade, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.

Acresce, no seu entendimento, uma violação do princípio da proibição da dupla valoração, determinando também a nulidade do acórdão nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, pois o Tribunal voltou a valorar aspetos já anteriormente valorados como, por exemplo, o facto de os crimes praticados serem crimes patrimoniais, o facto de o valor ser ou não consideravelmente elevado, os prejuízos causados pela conduta da arguida.

Refere ainda que o acórdão é nulo, nos termos dos arts. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. c), ambos do CPP, por falta de fundamentação dado que não elencou todos os factos provados e não provados na audiência que se realizou para efetuar este cúmulo superveniente; nomeadamente não é feita qualquer referência ao conteúdo das declarações que a arguida prestou nesta audiência, nem é feita qualquer referência aos depoimentos das testemunhas ocorridos também nesta audiência de discussão e julgamento do conhecimento superveniente do concurso de crimes.

Por fim, considera a arguida que há insuficiência da matéria de facto para a decisão tomada, uma vez que nada é referido naquela matéria de facto se a arguida: cumpriu ou não os deveres que lhe foram impostos aquando das suspensões das penas, não se sabe se restituiu ou não algumas quantias aos ofendidos, não se sabe se cumpriu ou não o plano estipulado DGRS, no âmbito do processo A.

Cumpre-nos analisar.

Começamos por afirmar que tem sido entendimento deste tribunal, atenta a restrição dos seus poderes de cognição à matéria de direito, com exceção dos vícios constantes do art. 410.º, n.º 2, do CPP, que estes são do conhecimento oficioso, sendo, pois, irrelevante a sua arguição.

6.1.1. Como sabemos, a determinação da medida da pena, em sede de concurso de crimes, apresenta especificidades relativamente aos critérios gerais do art. 71.º do CP.

Nos casos de concurso de crimes, a determinação da pena única conjunta tem que obedecer aos critérios específicos determinados no art. 77.º do Código Penal. A partir dos critérios especificados é determinada a pena única conjunta, com base no princípio do cúmulo jurídico. Assim, após a determinação das penas parcelares que cabem a cada um dos crimes que integram o concurso, é construída a moldura do concurso, tendo como limite mínimo a pena parcelar mais alta atribuída aos crimes que integram o concurso, e o limite máximo a soma das penas, sem todavia exceder os 25 anos de pena de prisão (de harmonia com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP).

A partir desta moldura, é determinada a pena conjunta, tendo por base os critérios gerais da culpa e da prevenção (de acordo com o disposto nos arts. 71.º e 40.º do CP), ao que acresce um critério específico — na determinação da pena conjunta, e segundo o estabelecido no art. 77.º, n.º 1 do CP, "são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente". Assim, a partir dos factos praticados, deve proceder-se a uma análise da "gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique"[17]. Na avaliação da personalidade ter-se-á que verificar se dos factos praticados pelo agente decorre uma certa tendência para o crime, ou se estamos apenas perante uma pluriocasionalidade sem possibilidade de recondução a uma personalidade, fundamentadora de uma "carreira" criminosa. Apenas quando se possa concluir que se revela uma tendência para o crime, quando analisados globalmente os factos, é que estamos perante um caso onde se suscita a necessidade de aplicação de um efeito agravante dentro da moldura do concurso. Para além disto, e sabendo que também influem na determinação da pena conjunta as exigências de prevenção especial, dever-se-á atender ao efeito que a pena terá sobre o delinquente e em que medida irá ou não facilitar a necessária reintegração do agente na sociedade; exigências, porém, limitadas pelas imposições derivadas de finalidades de prevenção geral de integração (ou positiva).

Vejamos, então, como fundamentou o tribunal a quo a determinação da pena única:

«Quanto à determinação da medida concreta da pena única a fixar, há que ter em conta o seguinte:

- os concretos crimes cometidos pela arguida, doze, dos quais três de burla qualificada pela circunstância de o prejuízo ser de valor consideravelmente elevado e três de abuso de confiança agravado pela circunstância de a coisa apropriada ser de valor consideravelmente elevado, um deles cometido na forma continuada (abrangendo, portanto, várias condutas), dois de burla qualificada pela circunstância de o prejuízo ser de valor elevado, um deles cometido na forma continuada (abrangendo várias condutas), um de abuso de confiança na forma continuada (também abrangendo várias condutas) e três de falsificação de documento, um deles agravado;

- os períodos de tempo em que tais factos foram cometidos, entre Abril de 2004 e Março de 2008, ou seja num intervalo de quatro anos entre a primeira e última situação;

- quanto aos factos das quatro primeiras condenações do processo aludido em A), embora tratando-se de quatro crimes distintos, cometidos em concurso efectivo, aqueles respeitam à mesma situação concreta, sendo um único o ofendido e um só o prejuízo sofrido;

- relativamente a cada um dos três “blocos” de crimes em causa, burla, abuso de confiança e falsificação de documento, o modo de execução dos factos é essencialmente homogéneo, nos termos relatados na matéria de facto provada em cada um dos quatro processos referidos em A), B), C) e D), como supra se transcreveu;

- as consequências dos factos praticados, nomeadamente ao nível no montante dos prejuízos causados com a conduta da arguida: no âmbito do processo aludido em A), a seguradora “Axa” sofreu um prejuízo no montante global de € 106.562,63 (sendo € 37.748,63 decorrente do crime de burla e o restante do crime de abuso de confiança – cfr. pontos A.5, A.11, A.15, A.23 e A.29), no âmbito do processo aludido em B), o ofendido DD sofreu o prejuízo de € 50.000,00 (cfr. ponto B.5) e os ofendidos EE e mulher, VV sofreram o prejuízo de € 142.164,11 (sendo € 22.000,00 decorrente do crime de abuso de confiança e o restante do crime de burla – cfr. pontos B.13 e B.18), no âmbito do processo aludido em C), a seguradora “Zurich” sofreu um prejuízo no montante global de € 55.974,47 (cfr. ponto C.4), a ofendida XX sofreu um prejuízo de € 29.040,00 (cfr. pontos C.8. e C.9) e o ofendido CC sofreu um prejuízo de € 9.810,00 (cfr. ponto C.12), e no âmbito dos presentes autos a ofendida GG sofreu um prejuízo de € 100.000,00 (cfr. pontos D.5 e D.6);

- dos montantes referidos, apenas foram restituídos pela arguida: à seguradora “Axa” a quantia de € 12.814,00 (cfr. pontos A.15, A.16, A.20, A.35 e A.36 – sendo parte mediante compensação com comissões que lhe eram devidas), ao ofendido DD a quantia de € 13.440,00 (cfr. ponto B.8), aos ofendidos EE e VV a quantia de € 15.000,00 (cfr. ponto B.20), à seguradora “Zurich” a quantia de € 20.461,65 (cfr. pontos C.5 e C.6 – sendo parte mediante compensação com comissões que lhe eram devidas), e à ofendida GG a quantia de € 80.000,00 (cfr. pontos D.14 e D.18 – embora quanto ao montante de € 60.000,00 tal tenha ocorrido em pagamentos parcelares e faseados e apenas depois de muito instada pelo mandatário da assistente);

- e no âmbito da suspensão da execução da pena determinada no processo aludido em B), em cumprimento da condição aí fixada, a arguida, até ao presente, apenas entregou as quantias totais de € 675,00 ao assistente DD e de € 1.650,00 aos demandantes EE e VV (ponto 36);

- o grau de violação dos deveres impostos à arguida, na medida em que, na qualidade de agente de mediação de seguros, com uma relação directa com os clientes por um lado e as seguradoras por outro, intermediando também as entregas de valores daqueles a estas, tinha uma obrigação acrescida de zelar por tais valores;

- as exigências de prevenção geral, associadas ao caso, que são elevadas, na medida em que, estando em causa situações que implicam relações de confiança quanto à relação entre clientes e mediador, por um lado, e à relação entre o agente e as seguradoras, por outro lado, sendo situação muito frequente e até prática corrente que os clientes entreguem ao mediador quantias destinadas às seguradoras, como se referiu, seja respeitantes ao pagamento de prémios de seguro, seja quantias destinadas ao investimento em determinados produtos por aquelas comercializados, e em que, portanto, o grau de confiança depositado pelas pessoas é um factor muito importante na normalidade de tais relações, com condutas como a da arguida tal confiança fica abalada e pode gerar situações de insegurança;

- a circunstância de estar em causa a violação de bens jurídicos patrimoniais;

- os antecedentes criminais da arguida, já com uma condenação anterior pelo crime de abuso de confiança agravado, embora com aplicação de uma pena de multa, a qual, todavia, não logrou evitar que a arguida cometesse novos crimes, não cumprindo a função de advertência que decorre de uma condenação penal transitada em julgado, não tendo sido suficiente para que a arguida se afastasse da prática de ilícitos criminais;

- a repetição do tipo de conduta praticada pela arguida, pois, para além desta condenação e das condenações em apreciação nesta decisão, tem ainda uma outra condenação pela prática do mesmo tipo de crime de abuso de confiança agravado, posterior aos factos em apreço, mas respeitante a factos inseridos no mesmo período temporal em causa;

- o contexto em que estes factos ocorreram, designadamente relacionados com a situação pessoal que a arguida vivia à data, com dificuldades financeiras, devido a dívidas contraídas, mas sem esquecer que, mesmo após o início destas dificuldades, a arguida ainda foi intentado manter um estilo de vida superior às suas capacidades, nomeadamente em 2008, quando alterou a sua residência para um imóvel que estava inserido num condomínio destinado à população com poder aquisitivo, ascendendo as despesas com a habitação aos € 1.500,00, numa altura em que já se havia apropriado de diversas das quantias em causa nos processos aludidos nas alíneas A) a D) e continuava por devolver uma grande parte das mesmas;

- as exigências de prevenção especial, tendo em conta a situação pessoal actual da arguida, que inculca a ideia de que a mesma está a fazer esforços mais acentuados no sentido de interiorizar o desvalor da conduta e de se reintegrar socialmente, promovendo uma mudança do seu percurso de vida, o que coincide, aliás, com a percepção do técnico de reinserção social, expressa na conclusão do relatório social aludida no ponto 35 supra.

Assim, nos termos do referido art. 77º, considerando as concretas penas parcelares aplicadas à arguida, a natureza dos factos e a reiteração criminosa, sem esquecer igualmente o contexto de vida da arguida à data da prática dos factos e bem assim a sua actual situação pessoal, tudo nos termos que acabaram de se descrever, e finalmente tendo atenção ao facto de que, no caso, em cada um dos restantes processos foi elaborado um cúmulo jurídico parcelar, tendo sido fixada a pena única de 4 anos e 6 meses de prisão englobando as cinco condenações descritas em A), a pena única de 4 anos e 6 meses de prisão englobando as três condenações descritas em B) e a pena única de 2 anos e 6 meses de prisão englobando as três condenações descritas em C), entende este tribunal adequado aplicar à arguida AA, a pena única de 10 anos de prisão, levando-se em conta, no seu cumprimento, o tempo que a arguida já se encontra a cumprir à ordem do processo aludido na alínea C) – anote-se que não há qualquer previsão legal de desconto na pena única de prisão do tempo eventualmente decorrido em sede de suspensão da execução de pena de prisão parcelar incluída no cúmulo (não sendo de considerar como “cumprimento de pena” o período dessa suspensão, ao contrário do que parece defender a arguida no seu articulado já referido).»

Ora, verifica-se que da fundamentação da pena aplicada foi tido em conta para fundamentar a aplicação da pena o facto de a arguida já ter antecedentes criminais. Constitui isto um erro notório na apreciação da prova?

Como referimos na determinação da pena única devem analisar-se globalmente os factos e a personalidade da arguida. Ou seja, há que trazer a debate todos os elementos que nos permitam verificar se estamos perante uma pluriocasionalidade de factos criminosos praticados, ou se se revela já uma personalidade com tendência para a prática de certo tipo de crimes.

É com este intuito que o tribunal traz aqueles elementos para o centro da sua reflexão.

No fundo quis averiguar se os factos praticados, e agora a serem julgados, são factos restritos àquele período temporal conturbado na vida da arguida, ou se anteriormente já havia praticado crimes da mesma espécie. Não veio valorar novamente aquelas condenações. Aliás, na avaliação da personalidade é relevante não só a “questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (...) criminosa”, mas também constitui “de grande relevo (...) a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente”[18], sendo pois relevante comparar o comportamento que a arguida anteriormente teve aquando das condenações com o comportamento que agora mostra, nomeadamente, algum arrependimento e vontade de mudar de vida.

Mas, não pode deixar de se salientar que aquelas condenações anteriores se reportam a factos da mesma espécie praticados em 2002 e 2007, decididos em 2005 e 2010, sem que obstassem a arguida à pratica de outras condutas que também foram criminosas.

Aliás, como refere Figueiredo Dias, fatores relevantes na determinação da medida das penas parcelares  podem ser novamente considerados na determinação da pena conjunta, sem que se considere existir uma violação do princípio da proibição da dupla valoração, pois aquilo que pode ser o mesmo fator concreto não o será quando referido à globalidade dos factos[19] — e foi o que o tribunal fez, valorou o comportamento posterior e anterior da arguida (por força do art. 71.º, n.º 2, al. e), do CP), dado que na determinação da pena do concurso o tribunal deve seguir “os critérios gerais da culpa e da prevenção (artigo 71.º do CP) e o critério especial”[20] do art. 77.º, n.º 1, 2.ª parte, do CP.

É que, na verdade, “a existência de condenações anteriores do agente constitui (...) uma circunstância atinente à sua vida anterior que pode servir para agravar a medida da pena. Ainda que, porém, tal só deve suceder  na medida em que tais condenações possam (...) ligar-se ao facto praticado e constituir índice de uma culpa mais grave (o que só será o caso quando possa afirmar-se que o facto revela desatenção ao aviso de conformação jurídica da vida contido nas condenações anteriores) e (ou) de exigências acrescidas de prevenção”[21].

O que no presente caso é especialmente relevante dado que a arguida tinha sido anteriormente condenada pela prática de dois crimes de abuso de confiança agravados (tendo sido condenada em pena de multa e em pena de multa substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade).

Além de tudo o mais, estes elementos trazidos à colação pelo tribunal a quo  são também relevantes em sede de um outro fator de determinação da medida da pena — o referente à “falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena” (art. 71.º, n.º 2, al. f), do CP). Na verdade este fator assume-se com algum relevo para a determinação da “atitude interna” “na parte em que constitua índice de medida de desconformação da personalidade do agente com a do homem fiel ao direito ou suposto pela ordem jurídica”[22]. Tudo isto elementos decisivos para determinar “o se, o como e o quanto das necessidades de socialização do agente e das suas probabilidades” (Figueiredo Dias).

Assim sendo, não se vislumbra qualquer erro notório na apreciação da prova, pelo que concluímos pela inexistência do vício previsto no art. 410.º, n,º 2, al. c), do CPP. Além disto, consideramos que para aquilatar da “conduta anterior ao facto e a posterior a este”, nos termos do art. 71.º, n.º 2, al. e), do CP, o tribunal teria que ter conhecido estes elementos, pelo que não consideramos que o acórdão seja nulo, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.

6.1.2. Mas, porque se levou para a determinação da pena aspetos que teriam sido também considerados na determinação das penas singulares entende a arguida que se violou o princípio da proibição da dupla valoração, dado que se voltou a referir que praticou crimes de natureza patrimonial, se voltou a referir que se tratou de lesões patrimoniais de valor consideravelmente elevado (ou não), e que se voltou a salientar que os crimes praticados eram crimes simples ou agravados.

Entendemos, no entanto, atento o já exposto no ponto anterior, que não se procedeu a uma nova valoração destes elementos. Apenas foram novamente focados para que se pudesse saber se a medida da pena deveria ser maior ou menor “em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento de um elemento típico”[23] não se considerando que assim se esteja a violar aquele princípio, mas apenas a revelar as circunstâncias do caso determinantes para a apreciação global dos factos. Pelo que não estando em causa uma violação do princípio da proibição da dupla valoração, improcede igualmente a pretensão da arguida no sentido de considerar o acórdão nulo, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.

6.2. Refere ainda que há falta de fundamentação do acórdão recorrido dado que aquando da audiência de discussão e julgamento, para conhecimento superveniente do concurso, o tribunal limitou-se a referir que, para a avaliação da personalidade da arguida e das suas condições pessoais, foram relevantes o que

«resulta da certidão judicial de fls. 724 a 737, do C.R.C. actualizado de fls. 868 a 876, do relatório social de fls. 938 a 942 e da restante prova produzida na audiência de cúmulo jurídico (declarações da arguida e depoimentos das testemunhas EEE, que conhece a arguida profissionalmente desde cerca de 1994, e BBB, que mantém um relacionamento afectivo com a arguida desde 2010), e bem assim ainda da consulta do processo aludido na alínea B), que se encontra pendente nesta mesma Secção Criminal da Instância Central, tendo-se em conta designadamente as cópias dos recibos de fls. 1111 a 1113, 1124, 1164 a 1171 e 1223 a 1226 desses autos: (...

elencando, depois, os factos relevantes, sem que nunca tivesse referido o conteúdo das declarações da arguida ou das testemunhas. E concluiu pela nulidade do acórdão com base nos arts. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP. Nulidade esta também fundamentada no facto de o tribunal a quo ter referido que “não se provaram outros factos, designadamente alegados pela arguida no seu referido articulado, não tendo sido produzida prova concreta sobre os mesmos”.

O Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça, no seu parecer, defende não assistir razão à arguida, dado que o acórdão recorrido expressamente refere a razão de ciência dos factos dados como provados atinentes à personalidade da arguida e às suas condições pessoais. Mais refere que o Supremo apenas conhece de direito — artigo 43.º, do CPP — e que, por isso, procura a recorrente caracterizar como questão de direito aquilo que, na verdade, não passa da sua não conformação com a factualidade fixada.

Ora, averiguar se da audiência resultaram provados factos que o tribunal teria desconsiderado pressupõe um efetivo conhecimento da matéria de facto, que não se contém nos poderes de cognição deste Supremo Tribunal.

É claro que a sentença de cúmulo jurídico de penas é uma verdadeira sentença e, como tal, deve obedecer aos requisitos do artigo 374.º, do CPP. Mas, porque se está perante uma operação de cúmulo jurídico de penas, as exigências de fundamentação não serão tão elevadas quanto as da sentença condenatória.

A decisão recorrida fundamentou, ainda que de forma sucinta, os factos considerados como provados, do mesmo modo que deixou consignado que não se provaram os restantes factos invocados pela arguida.

Saber se se deveria ter dado como provado mais factos ou outros diversos exige que se aprecie a discordância da recorrente em relação à prova produzida em audiência de julgamento para cúmulo jurídico de penas, o que extravasa a competência do Supremo Tribunal de Justiça, restrita à matéria de direito.

6.3. Por fim, considera a arguida existir insuficiência da matéria de facto para a decisão dado que não refere, nem avalia “as circunstâncias em que foram cometidos os crimes”, “não faz uma análise da personalidade da arguida”, nem se “refere ao cumprimento ou incumprimento das penas suspensas”. Entende ainda que no respeitante às exigências de prevenção especial que estariam na base da pena a atribuir o tribunal remete “vagamente para a matéria de facto dada como assente”, usa “juízos conclusivos” e “premissas imprecisas”, não refere que a arguida confessou integralmente nos autos do processo D, não soma as importâncias restituídas pela arguida aos ofendidos, não refere as condições que a arguida vivia aquando da prática dos factos, não refere elementos decisivos na avaliação da reintegração da arguida (nomeadamente, o facto de se manter ativa ou o de ter reconhecido os prejuízos que causou) e não procedeu a uma avaliação da personalidade. Concluindo que há insuficiência para a decisão da matéria de facto, contradição insanável entre a fundamentação, erro na apreciação da prova, e caso assim se não entenda deve o acórdão ser declarado nulo.

Entendemos que não tem qualquer razão.

Em primeiro lugar, cumpre mais uma vez salientar que os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP constituem vícios de conhecimento oficioso. Em segundo lugar, e tal como o dispositivo claramente nos impõe os vícios terão que resultar do texto da decisão recorrida.

Ora, não se pode dizer que o tribunal ignorou os factos e as circunstâncias em que a arguida cometeu os crimes uma vez que essas circunstâncias fazem parte do elenco dos factos provados — cf. ponto 6 a 16, p. 20-21 do acórdão; integra na matéria de facto provada a conclusão do relatório realizado pela DGRSP (cf. ponto 35, p. 23 do acórdão); no ponto 28 (p. 22 do acórdão) integra a descrição da actividade que a arguida desenvolve no estabelecimento prisional e refere que mantém o estudo dentro do estabelecimento prisional (ponto 30, p. 23 do acórdão)  Refere ainda na fundamentação da pena a atribuir (e já transcrito na íntegra supra) os montantes restituídos pela arguida aos ofendidos (cf.p. 26-7 do acórdão), refere o contexto em que os factos ocorreram (cf. p. 28 do acórdão).

Considera-se, pois, que não resulta do texto da decisão qualquer insuficiência da matéria de facto provada, nem qualquer erro na apreciação da prova; no acórdão está a descrição de todos os factos praticados que integram o concurso de crimes, estão diversos elementos que nos permitem apreciar globalmente a conduta e a personalidade da arguida e não resulta evidente qualquer erro na apreciação da prova, pelo que não se encontra preenchido nenhum dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP. E como sabemos, não se integra no âmbito daqueles vícios a simples discordância relativamente à apreciação da matéria de facto. 

7. A pena única aplicada

A arguida considera a pena excessiva, defendendo a aplicação do regime da atenuação especial, nos termos do art. 73.º, n.º 1, al. a) e b), do CP, e a substituição da pena principal por uma pena de substituição como a suspensão da execução da pena de prisão, ainda que condicionada ao cumprimento de deveres ou ao regime de prova.

Analisemos.

A arguida foi condenada nas seguintes penas parcelares:

«A) Processo Comum Colectivo nº 1297/07.0JAPRT da extinta 4ª Vara Criminal do Porto, por acórdão de 14/07/2010, transitado em julgado em 23/09/2010:

- sete meses de prisão – por um crime de falsificação de documento previsto e punido pelos arts. 255º, al. a), e 256º, nº 1, al. b), ambos do Código Penal, cometido no dia 16 de Março de 2007;

- sete meses de prisão – por um crime de falsificação de documento previsto e punido pelos arts. 255º, al. a), e 256º, nº 1, al. c), ambos do Código Penal, cometido em Março de 2007;

- um ano e quatro meses de prisão – por um crime de falsificação de documento previsto e punido pelos arts. 255º, al. a), e 256º, nº 1, al. b), e nº 3, ambos do Código Penal, cometido em Março de 2007;

- três anos de prisão – por um crime de burla qualificada previsto e punido pelos arts. 202º, al. b), 217º, e 218º, nº 2, al. a), todos do Código Penal, cometido em Março de 2007;

- três anos de prisão – por um crime de abuso de confiança agravado, na forma continuada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 30º, nº 2, 202º, al. b), e 205º, nºs 1 e 4, al. b), todos do Código Penal, cometido no período situado entre finais de 2004 e Novembro de 2006.

(...)

B) Processo Comum Colectivo nº 940/07.6TAMAI do extinto 4º Juízo Criminal de Matosinhos, por acórdão de 08/10/2010, confirmado por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/05/2011, transitado em julgado em 22/06/2011:

- dois anos e oito meses de prisão – por um crime de burla qualificada previsto e punido pelos arts. 217º, nº 1, e 218º, nº 2, al. a), ambos do Código Penal, cometido no dia 19 de Abril de 2004;

- três anos de prisão – por um crime de burla qualificada previsto e punido pelos arts. 217º, nº 1, e 218º, nº 2, al. a), ambos do Código Penal, cometido em Março e Abril de 2006;

- dois anos de prisão – por um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo art. 205º, nºs 1 e 4, al. b), do Código Penal, cometido no dia 1 de Agosto de 2006.

(...)

C) Processo Comum Colectivo nº 10611/08.0TDPRT do extinto 4º Juízo Criminal de Matosinhos, por acórdão de 11/06/2012, transitado em julgado em 28/03/2014:

- um ano e seis meses prisão – por um crime de abuso de confiança, na forma continuada, previsto e punido pelos arts. 30º, nº 2, 79º e 205º, todos do Código Penal, cometido no período compreendido entre Outubro de 2006 e meados de 2007.

- um ano e oito meses de prisão – por um crime de burla qualificada, na forma continuada, previsto e punido pelos arts. 30º, nº 2, 79º, 217º e 218º, nº 1, todos do Código Penal, cometido no período compreendido entre 21 de Janeiro e 17 de Março de 2008;

- um ano e quatro meses de prisão – por um crime de burla qualificada previsto e punido pelos arts. 217º, nº 1, e 218º, nº 1, ambos do Código Penal, cometido no dia 22 de Agosto de 2007.

(...)

D) Nestes autos, por acórdão de 11/04/2012, com as alterações decorrentes do acórdão de 24/04/2013 do Tribunal da Relação do Porto, transitado em julgado em 03/06/2013 (fls. 493 a 505, 631 a 649 e 658):

- dois anos e seis meses de prisão – por um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo art. 205º, nºs 1 e 4, al. b), do Código Penal, cometido no dia 30 de Junho de 2006. (...)».

Mas, de acordo com a decisão de 08.04.2015, e transitada em julgado a 13.05.2015, que decretou extinta a pena aplicada no âmbito do processo n.º 1297/07.0JAPRT, esta pena não integrará a formação da pena única. Assim esta pena única será apenas determinada tendo por base as penas aplicadas nos processos n.ºs  940/07.6TAMAI (B), 10611/08.0TDPRT (C) e nestes autos (D).

Assim, e nos termos do disposto no art. 77.º, n.º 2 ex vi art. 78.º, ambos do CP, a moldura da pena do concurso oscila entre um máximo de 14 anos e 8 meses (correspondente à soma de todas as penas parcelares que lhe foram aplicadas e não declaradas extintas) e um mínimo de 3 anos (correspondente à pena parcelar mais elevada). Será no âmbito desta moldura que se determinará a pena concreta, de acordo com os critérios gerais estabelecidos no art. 71.º, do CP, e o critério específico do art. 77.º, n.º 1, 2.ª parte, do CP, tendo em conta a as exigências de prevenção geral de integração e as de prevenção especial de socialização e o limite dado pela culpa da arguida.

Porém cabe equacionar a possibilidade ou não da aplicação do regime da atenuação especial tal como a arguida preconiza.

Na verdade, o regime da atenuação especial da pena foi criado porque se considerou que o legislador pode não ter conseguido contemplar todas as situações da vida quando criou a moldura abstrata da pena em cada tipo legal de crime — “desde há muito que se põe em relevo (...) que a capacidade de previsão do legislador é necessariamente limitada e inevitavelmente ultrapassada pela riqueza e multiplicidade das situações reais da vida”[24]. Foi, então, criada uma “válvula de segurança”  quando ocorram em cada caso “circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada”[25]. Nestes casos teremos um caso especial de determinação da pena “conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa”[26]. Ou seja, o regime especial de atenuação da pena pretende alterar a moldura abstrata do crime em função de circunstâncias concretas do facto. Ora, seria então em função dessas circunstâncias concretas que se poderia (eventualmente) relativamente a cada crime praticado pela arguida e aquando da determinação concreta de cada pena parcelar que aquele regime deveria ter sido aplicado. Não já quando se constrói a moldura do concurso[27] — é que esta moldura do concurso construída em função das concretas penas atribuídas à arguida relativamente a cada facto concreto que praticou já tiveram em consideração as exigências específicas e concretas de prevenção geral e especial, e os limites concretos da culpa em cada um dos factos. Foi nessa altura que o julgador teve que avaliar se a moldura abstrata da pena, prevista em cada tipo de crime, era ou não adequada a ser aplicada no concreto caso, e se tivesse concluído que não, deveria então ter procedido à sua atenuação. Sendo, pois, um aspeto ligado às concretas penas (parcelares) e estando estas transitadas em julgado, não pode agora este Supremo Tribunal conhecer da possibilidade ou não da atenuação especial da moldura abstrata de cada tipo legal de crime em que a arguida vem condenada.

Assim sendo, analisemos a pena única atribuída à arguida.

Já anteriormente referimos como se determina a pena única conjunta em sede de concurso de crimes e para lá remetemos.

Ora, analisando globalmente os factos praticados pela arguida verifica-se que os factos que integram este concurso de crimes (e que foram praticados no período compreendido entre finais de 2004 e meados de 2007) demonstram uma tendência para o crime como modo de resolver as graves dificuldades económicas que sofria. Na verdade, naquele período era a arguida que sustentava todo o agregado familiar composto por 4 filhos (facto provado 5) e o marido, que consumia de modo exagerado bebidas alcoólicas (facto provado 6); além disto, a arguida foi vítima de maus tratos (facto provado 6). Factos que desencadearam a separação do casal em 2007, embora os filhos tenham ficado a cargo da arguida (facto provado 6). É em 2004 que se verifica um agravamento da situação económica do agregado (facto provado 10). Embora, mais tarde (em 2008) ainda tenha mudado para um imóvel “inserido num condomínio destinado a população com poder aquisitivo” (facto provado 13), o certo é que tal decorre já depois dos factos por que está a ser condenada (que se inserem no período que mediou entre finais de 2004 e meados de 2007), pelo que entendemos que não deve revelar para a determinação da pena.

Certo é que os constrangimentos se mantiveram dado que teve que vender alguns bens, em 2010 (facto provado 16), e teve que mudar de residência mais tarde (facto provado 18). Todavia é relevante a preocupação em adquirir novas competências profissionais (facto provado 20 e 21). Mostra ter uma relação afetiva que lhe proporciona algum apoio (cf. facto provado 22, 23 e 27) e para além de receber o RSI (antes da reclusão) efetuava alguns trabalhos para obter mais rendimentos (limpeza de casas e atividade de telemarketing — facto provado 23).

Em meio prisional mantém várias ocupações (facto provado 28), e mantém o estudo (facto provado 30). Verbaliza, perante o técnico de reinserção social, intenção de ressarcir os prejuízos causados (facto provado 33), e tem “um discurso crítico quanto ao seu passado criminal e vontade em promover uma mudança no seu percurso de vida” (facto provado 35). Cumpre ainda referir que a arguida está neste momento com 53 anos de idade (nasceu a 22.03.1962).

De tudo isto, somos forçados a concluir, analisando globalmente os factos e a personalidade da arguida, que esta viveu um período onde se tornou evidente a tendência para a prática de crimes como modo de resolver as dificuldades económicas. Porém, uma vez passado esse período, nomeadamente entre inícios de 2008 (março) (data dos últimos factos que integram o concurso) e a sua reclusão, em maio de 2014, não se encontram provados quaisquer factos demonstrativos de uma tendência para o crime. Ou seja, passaram-se 6 anos sem que tivesse cometido outros crimes, e cumprindo os deveres a que estava sujeita nas penas que lhe tinham sido suspensas. Na verdade, a decisão que declarou extinta a pena aplicada no processo A é explícita quando refere que “decorreu o período de suspensão da execução da pena de prisão (...) sem que haja notícia de quaisquer factos ilícitos penais por ela cometidos relativamente àquele período de tempo (...)”.  O que nos permite concluir por uma pluriocasionalidade criminosa naquele período, mas sem que se possa fundamentar na personalidade da arguida, pelo que não se justifica atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura da pena do concurso.

Mas, perante todos os elementos constantes dos autos, não podemos esquecer que os factos praticados pela arguida quando exercia a atividade de mediadora de seguros são de carregada gravidade sendo as exigências de prevenção geral de integração acentuadas. O período longo durante o qual praticou os factos de que vem condenada, o montante elevado dos prejuízos causados (embora já tenha restituído algumas quantias) e o grau de violação dos deveres que lhe assistiam no exercício daquela atividade impõem que a pena não possa afastar-se muito da metade da moldura do concurso. Todavia, as exigências de prevenção especial de socialização, e verificados atos concretos que demonstram uma vontade clara no sentido de retomar uma vida fiel ao direito, e atenta a idade da arguida, impõe-se que a pena não deva ultrapassar os 6 anos de prisão.

Entendemos, pois, como adequada que a pena única de 6 (seis) anos de prisão efetiva.

8. O desconto do cumprimento parcial das penas suspensas

Finalmente, pretende a arguida que o tempo de suspensão, de execução das penas de prisão, já decorrido deveria ser descontado no período da pena única fixada, defendendo que existe uma lacuna, que deveria ser integrada criando-se uma norma que teria de ser no sentido de descontar todo o tempo de cumprimento da pena suspensa à pena aplicada em concreto.

Quanto ao desconto, duas perspetivas podem ser adotadas relativamente à natureza jurídica do desconto — a da consideração de que a operação de desconto constitui uma regra legal em matéria de execução de penas, e só nesta fase deve ser realizado, e a perspetiva que entende o desconto como um caso especial de determinação da pena. Entendemos, na linha do exposto no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 9/2011, de 20 de outubro, relatora Juíza Conselheira Isabel Pais Martins (DR — 1.ª série, n.º 225, 23. nov. 2011, p. 5010 e ss, em particular, p. 5019) que se justifica “plenamente o tratamento sistemático do instituto do desconto no quadro da determinação da pena porque o desconto transforma o quantum da pena a cumprir; embora a pena, na sua espécie e gravidade, esteja definitivamente fixada antes de o tribunal considerar a questão do desconto, o que é certo é que a gravidade da pena a cumprir é também determinada pela decisão da questão do desconto (…). Tudo leva, assim, a que o desconto — mesmo quando legalmente predeterminado — deva ser sempre mencionado na sentença condenatória (…).”

E fazendo nossas as palavras de Figueiredo Dias[28]:

 “Já se pretendeu que sendo o funcionamento do desconto «automático» — talvez melhor: «obrigatório» —, ele deixa de constituir um caso especial de determinação da pena, para se tornar em mera regra legal de execução: com a consequência de que o desconto não precisaria de ser mencionado na sentença, tornando-se tarefa das autoridades competentes para a execução.

É pelo menos duvidoso que assim deva ser entre nós. Por um lado, como veremos, em certas hipóteses o juiz fará na pena não o desconto pré-determinado na lei, mas aquele que lhe parecer «equitativo» — o que afasta de todo a hipótese de se falar, então, em mera regra de execução da pena; por outro lado, mesmo quando pré-determinado legalmente, o desconto transforma o quantum da pena a cumprir pelo agente, o que basta para justificar o tratamento sistemático do instituto do desconto entre os casos especiais de determinação da pena. Tudo convida, assim, a que o desconto seja sempre — mesmo quando legalmente pré-determinado — mencionado na sentença condenatória”.

Nesta linha, temos considerado o desconto como um caso especial de determinação da pena[29] que, sempre que possível, deve ser mencionado na sentença condenatória, assim como na sentença cumulatória.  Ponto é saber se é admissível o desconto do período em que decorreu um cumprimento de uma pena de prisão que foi substituída pela suspensão da sua execução.

Sabe-se que o desconto visa responder a “imperativos de justiça material” (Figueiredo Dias) principalmente em casos de privação da liberdade ocorrida antes do trânsito em julgado, como nos casos de detenção, prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação. Sendo certo que a mesma “ideia deve valer também para os casos (...) em que a pena imposta por uma decisão já transitada em julgado venha posteriormente a ser substituída por outra: também aqui o mesmo imperativo de justiça se possível mais claramente ainda, impõe o desconto da nova pena daquela que tenha sido anteriormente cumprida”[30].

Mas, até aqui isto tem sido claro, até porque o art. 80.º, do CP não oferece quaisquer dúvidas. Porém, no caso dos autos o problema poderia colocar-se relativamente ao período de suspensão da pena de prisão que já decorreu no âmbito do processo A — em que a pena única de 4 anos e 6 meses foi suspensa com regime de prova, por igual período — e que já foi extinta, por isso não integrou o cúmulo, nem deve ter relevo para um possível desconto, do processo B — em que a pena única de 4 anos e 6 meses foi suspensa sob condição de a arguida efetuar diversos pagamentos aos ofendidos —, e no processo D — em que a pena única de 2 anos e 6 meses, foi suspensa por igual período.

Ora, “da leitura dos arts. 80.º a 82.º parece resultar que, no pensamento da lei, o instituto do desconto só funciona relativamente a privações da liberdade processuais, a penas de prisão e (ou) a penas de multa, já não relativamente a outras penas de substituição e a medidas de segurança. Uma tal restrição não parece porém, ao menos em todos os casos pensáveis, político-criminalmente justificável. Melhor será, por isso, considerar que se está perante uma lacuna, que o juiz pode integrar — tratando-se como se trata de uma solução favorável ao delinquente —, sempre que possa encontrar um critério de desconto adequado ao sistema legal e dotado de suficiente determinação. (...) O critério da equitatividade permite que, com ele, se preencha a lacuna atrás anotada (...), relativa aos casos em que a pena — anterior ou (e) posterior —é uma pena diferente da prisão ou multa (...): em todos estes casos o tribunal deve, por analogia favorável ao condenado, fazer na nova pena o desconto que lhe parecer equitativo”[31]. Nestes casos, e usando o critério quantitativo, o julgador deverá verificar qual o quantum da nova pena que ainda se impõe cumprir por “razões de tutela dos bens jurídicos e de ressocialização do delinquente”[32] assim salvaguardando uma exigência de justiça que ainda se impõe, mas sem que não se deixe de reavaliar a finalidade da pena que ainda deve ser cumprida.

Mas, no caso de suspensão da execução da pena de prisão não há lugar a desconto quando haja revogação daquela (cf. art. 56.º, n.º 2, do CP), o que se justifica atentas as razões que estão na base daquela revogação e que demonstram o “falhanço do juízo prognóstico fundador da suspensão”[33]. Na verdade, “é da essência desta pena fixar-se um tempo probatório em que o condenado demonstre merecer a expectativa que o sistema nele depositou. Donde, se esse vínculo de confiança foi traído, é executada a totalidade da pena que permanecia «de reserva»”[34].

Mas, não é o caso dos presentes autos.

Não houve a violação dos deveres ou regras de condutas impostas à arguida, nem os factos por que foi condenado nos diversos processos são posteriores a qualquer decisão de suspensão da execução da pena de prisão. Como vimos, não estamos perante um caso de revogação, dado que este apenas ocorre quando se verifique o incumprimento dos deveres e regras de conduta, ou a prática de crime após aquela decisão (o que nos presentes autos não aconteceu, pois todos os factos criminosos são praticados em momento anterior às decisões que aplicaram as penas de substituição).

Ora, tendo em conta o presente nos autos verifica-se que a arguida estava a cumprir as penas de substituição em que tinha sido condenada; e cumpriu-as até 05.05.2014 (cf. ponto 22 da matéria de facto provada) — data em que foi privada da liberdade para cumprimento da pena aplicada no processo C. Cumpre também salientar que todos os factos que integram este cúmulo ocorreram antes do início do cumprimento destas penas. Sabe-se também que em 2010 a arguida, para fazer face às dificuldades económicas que tinha, começou a trabalhar (facto provado 16) e iniciou uma nova relação afetiva (facto provado 18); além disso, retomou os estudos (facto provado 20) e fazia voluntariado (facto provado 24). Do relatório da DGRSP (facto provado 35) sublinha-se: a arguida “evidenciou capacidade para cumprir com as obrigações inerentes às medidas”. Sabe-se ainda que a arguida restituiu alguns montantes aos ofendidos (cf. ponto 36 da matéria de facto provada, embora as quantias pagas sejam reduzidas — €675 ao assistente e €1.650,00 aos demandantes—, uma vez que estava condenada a pagar € 36.560,00 ao assistente e €132.164,11 aos demandantes, em prestações mensais de € 150,00 e € 350,00, respetivamente).

Ou seja, a arguida estava a cumprir as penas de substituição em que tinha sido condenada. É claro que isto é determinante para que, em atenção ao disposto no art. 81.º, n.º 2, do CP, se possa fazer um desconto equitativo. Pois é claro que não é o mesmo sofrer uma privação da liberdade e admitir o seu desconto integral na pena de prisão em que venha a ser descontada, ou cumprir diversas imposições em liberdade. Consideramos, pois, como equitativo o desconto de 2 (dois) anos na pena única aplicada. Porquê 2 anos? Verifica-se que a arguida cumpriu apenas alguns dos pagamentos impostos aquando da suspensão da execução da pena imposta no processo B, mas ainda muito longe do seu cumprimento total — na verdade, a condenação no processo B transitou em julgado a 22.06.2011, e quando foi detida já tinham passado quase 3 anos.

Conclui-se, pois, que a arguida deverá cumprir a pena de 6 (seis) anos de prisão efetiva, pois está legalmente (cf. art. 50.º, do CP) arredada qualquer hipótese de suspensão, beneficiando, porém, de um desconto de 2 (dois) anos no seu cumprimento.

III

Conclusão

Nos termos expostos acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

Conceder provimento parcial ao recurso interposto pela arguida AA e, em consequência, determinar a arguida ao cumprimento da pena única de prisão efetiva de 6 (seis) anos, aos quais deve ser feito o desconto equitativo de 2 (dois) anos.

Porque o recurso obteve provimento parcial não são devidas custas, de harmonia com o disposto no art. 513.º, n.º 1 do CPP.

Supremo Tribunal de Justiça, 15 de outubro de 2015

Os juízes conselheiros,

(Helena Moniz)

(Nuno Gomes da Silva)

(Santos Carvalho)

----------------------
[1] Consultável aqui: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0ebdf70c7ed786dd80257aec005533cd?OpenDocument
[2] Também no sentido de que se trata de “penas submetidas a condições resolutivas”, em que o “caso julgado está aqui submetido a uma cláusula rebus sic stantibus” (entendimento que não foi considerado inconstitucional pelo acórdão n.º 341/2013), cf. André Lamas Leite, A suspensão da execução da pena privativa de liberdade sob pretexto da revisão de 2007 do Código Penal, Estudos em homenagem ao prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra (coleção Stvdia Ivridica, n.º 99), Coimbra: Coimbra Editora, 2009, vol. II, p. 583 e ss, em particular, p. 608 e ss.
[3] Também com este entendimento cf. André Lamas Leite, cit. supra, p. 609, onde expressamente concorda com o voto de vencido de Silva Flor (“no englobamento das penas suspensas na pena do concurso não é aplicável o disposto nos arts. 56.º do CP e 492.º do CPP”) no acórdão do STJ, de 20.04.2005, Proc. n.º 04P4742, Relator: Cons. Henriques Gaspar, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f861e83248286197802571f100317ef9?OpenDocument). 
[4] Cf. André Lamas Leite, cit. supra, p. 609 (itálico nosso).
[5] Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa: UCP, 20114, art. 380.º, nm. 2.
[6] Embora não existam elementos no processo, foi comunicado, durante a audiência pelo Mandatário da arguida, que o recurso não foi provido e que a decisão terá transitado em julgado.
[7] Entre outros, o acórdão, de 09.07.2014, Proc. n.º 39/08.8GBPTG.S1, Relator: Cons. Pires da Graça.
[8] A certidão da decisão foi junta ao processo por deliberação, durante a audiência, do Senhor Juiz Conselheiro Presidente, e encontra-se a fls. 1303 e 1304 dos autos.
[9] Também neste sentido, Maria João Antunes,  Consequências jurídicas do crime, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 60.
[10] Ainda consultável aqui http://www.dgpj.mj.pt/sections/politica-legislativa/anexos/legislacao-avulsa/revisao-do-codigo-penal/downloadFile/attachedFile_f0/Proposta_de_Lei_98-X-2.pdf?nocache=1205856345.98 (último acesso a 08.09.2015).
[11] É certo que também relativamente ao conhecimento da continuação criminosa após trânsito em julgado nos termos do art. 79.º, n.º 2, do CP se põe um problema de violação do princípio da consunção e  do respetivo efeito de vinculação temática do tribunal — neste sentido, Maria João Antunes, Alterações do sistema sancionatório, Revista do CEJ, n.º 8 (2008), p. 7 e ss, em especial, p. 11.
[12] Ainda que seja este o período estabelecido no acórdão recorrido, temos algumas dúvidas que seja o correto dado que, segundo a matéria de facto provada, houve atos de abuso de confiança depois desta data, nomeadamente, até 27.04.2007 — cf. facto provado 10 e 11, processo n.º 1297/07.0JAPRT (A).
[13] Apenas se analisaram os crimes de abuso de confiança que pudessem estar na continuação criminosa, e não os crimes de burla uma vez que este problema se não coloca. Apesar de a arguida ter sido condenada no âmbito do processo C por um crime de burla qualificada na forma continuada, tendo sido delimitado o período de continuação da atividade criminosa entre 21 de janeiro e 17 de março de 2008, nenhum dos outros crimes de burla  se integram neste período (o julgado no âmbito do processo A decorreu em março de 2007, os julgados no âmbito do processo B, ocorreram em “Março e Abril de 2006” e em 19.04.2004, e um outro julgado no âmbito do processo C em 22.08.2007).
[14] Apropriação de prémios de seguros, apropriação de dinheiro entregue para pagamento de apólices, apropriação de resgates... — ou seja, importâncias em dinheiro entregues à arguida no âmbito da sua atividade de mediadora de seguros.
[15] Cf. voto de vencida — acórdão n.º 8/13.6GAPSR.E1.S1, de 14.05.2015, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d49df7dd77a3391980257e4b00306707?OpenDocument
[16] Começando por afirmar que “os recursos que os arguidos interpuseram para este Supremo Tribunal de Justiça não resultam admissíveis na parte relativa aos crimes e penas singulares aplicadas em medida não superior a 8 anos de prisão”, entendeu que, “não obstante o que se acabou de referir (...) sempre se dirá que, no caso vertente, não existe qualquer fundamento para chamar à colação a figura do crime continuado. Se não, vejamos...”. Tendo depois concluído “não se vislumbra a ocorrência de uma qualquer situação que, exógena aos arguidos, os houvesse determinado a delinquir de forma reiterada e, como assim, tendente a tornar cada vez menos exigível que se comportassem de acordo com a norma”. Cumpre, no entanto, salientar que não se tratava de um caso de conhecimento superveniente do concurso de crimes.
[17] Figueiredo Dias, Direito Penal Português — As consequências Jurídicas do Crime, Lisboa: Aequitas/Ed. Notícias, 1993, § 421 (p. 291).
[18] Figueiredo Dias, Direito Penal Português (as consequências jurídicas do crime), Lisboa: ed. Notícias/Æquitas, 1993, § 421.
[19] Idem, § 422.
[20] Maria João Antunes, Consequências jurídicas do crime, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 57.
[21] Figueiredo Dias, ob. cit., § 352.
[22] Figueiredo Dias, ob. cit., § 348.
[23] Figueiredo Dias, ob. cit., § 316.
[24] Figueiredo Dias, ob. cit. supra, § 444.
[25] Idem.
[26] Ibidem (itálico nosso).
[27] Também no sentido de inaplicabilidade do regime da atenuação especial, previsto nos arts. 72.º e 73.º, do CP, à moldura concreta do concurso de crimes, cf. acórdão do STJ, de 25.06.2014, no proc. n.º 14447/08.0TDPRT.S4, relator: Oliveira Mendes, in Sumários dos Acórdãos do STJ.
[28] Direito Penal Português — As consequências jurídicas do crime, Lisboa: Aequitas/Ed. Notícias, § 436 (p. 298-9), negritos e itálicos do autor.
[29] Já assim nos acórdãos em que fomos relatora a 05.06.2014, proc. n.º 8/13.6GAFND.S1, a 10.09.2014, proc. n.º 118/09.4GESLV.E2.S1, e a 13.11.2014, Proc. n.º 813/11.8taptm.E1.S1.
[30] Figueiredo Dias, ob. cit.
supra, § 434 (itálico nosso).
[31] Figueiredo Dias, ob. cit. supra, § 439 e 443 (sublinhado nosso).
[32] Idem.
[33] André Lamas Leite, ob. cit. supra, p. 627.
[34] Idem.