Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2258/16.4T8CBR.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM
TRIBUNAL COMUM
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
COMUNICAÇÃO
REVOGAÇÃO
RESOLUÇÃO
Data do Acordão: 10/16/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – TRIBUNAL / GARANTIAS DA COMPETÊNCIA / INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA – PROCESSO EM GERAL / INSTRUÇÃO DO PROCESSO / PROVA POR DOCUMENTOS – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS.
DIREITO ARBITRAL – CONVENÇÃO DA ARBITRAGEM / COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL / SENTENÇA ARBITRAL E ENCERRAMENTO DO PROCESSO.
Doutrina:
- Maria Olinda Garcia, Textos de Apoio – Sumários Desenvolvidos, Curso de Mestrado Jurídico-forenses, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2015 e 2016, unidade curricular de Direito e Processo Civil II;
- Mariana França Gouveia e Jorge Morais Carvalho, Convenção de arbitragem em contratos múltiplos, Anotação ao Ac. do STJ de 10.03.2011, Cadernos de Direito Privado, n.º 36, p. 44;
- Pedro Metello de Nápoles e Carla Góis Coelho, A arbitragem e os tribunais estaduais – alguns aspetos práticos, Revista Internacional de Arbitragem e Conciliação, Ano V, 2012, p. 195 e ss.;
- Raúl Ventura, Convenção de Arbitragem, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 46 (1986), p. 298.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 96.º, ALÍNEA B), 423.º, 425.º, 443.º, 609.º, N.º 1, 615.º, N.º 1, ALÍNEA E), 629.º, N.º 2, ALÍNEA A), 655.º, N.º 2 E 671.º, N.º 1, ALÍNEA A).
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 406.º, N.º 1.
LEI DA ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA (LAV), APROVADA PELA LEI N.º 63/2011: - ARTIGOS 5.º, 5.º, 18.º, N.º 1 E 43.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 21-06-2016, RELATOR FERNANDES DO VALE;
- DE 20-03-2018, RELATOR HENRIQUE ARAÚJO, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. O efeito negativo da convenção de arbitragem, previsto no art.5º da LAV, só não determina a absolvição do réu da instância, por incompetência absoluta do tribunal, se o juiz puder concluir que a convenção de arbitragem é manifestamente nula, ineficaz ou inexequível.

II. A existência de uma comunicação escrita, que a Autora enviou à Ré, pela qual pretendia “revogar” ou “resolver” a convenção de arbitragem, alegando “justa causa” e “alteração superveniente das circunstâncias”, não é elemento probatório suficiente para habilitar o juiz a concluir que, inequivocamente, a convenção de arbitragem deixou de produzir os seus efeitos. 

Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

           1. “AA, Unipessoal, Ld.ª”, com sede no Centro Social e Comunitário ..., Rua ..., ..., propôs ação comum contra “BB – …, Ld.ª”, com domicílio na Av. ..., n. ..., 1º, sala …, ..., invocando o incumprimento pela Ré, na qualidade de empreiteira, do contrato de empreitada celebrado com a Autora (dona da obra).

A Autora alegou que aquele contrato foi celebrado em 13.9.2012, destinando-se à construção de um hotel, e dele constava a seguinte cláusula:

Para resolução de todos os litígios decorrentes deste contrato fica estipulada a competência do Centro de Arbitragem da AICCOPN – Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas (…)”[1].

           A Autora alegou ainda ter revogado a convenção de arbitragem, em 9.11.2015, com fundamento em justa causa e perda superveniente da idoneidade do Centro de Arbitragem, tendo solicitado ao Ministro da Justiça a revogação da autorização concedida à Associação de Construtores de Obras Públicas para criação de um centro de arbitragens.

            2. A Ré contestou a ação, alegando a incompetência do tribunal judicial, por existir cláusula compromissória que impunha o recurso à arbitragem, e invocou a exceção de litispendência por se encontrar já a correr uma ação no tribunal arbitral (com os mesmos sujeitos, causa de pedir e pedido).

           3. A Autora respondeu às exceções invocadas, afirmando a competência do tribunal judicial, pelo facto de ter procedido à revogação da convenção de arbitragem. Quanto à litispendência, afirmou que não se verificavam os requisitos dessa figura.

            4. Em 04.11.2016, o tribunal da primeira instância, através de saneador-sentença, absolveu a Ré da instância “quer por via da incompetência do tribunal, quer por via da procedência da exceção de litispendência”.  

           5. A Autora, não se conformando com tal decisão, interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de .... A Ré não apresentou contra-alegações.

            6. O Tribunal da Relação de ... considerou o recurso procedente e revogou a decisão da primeira instância, tendo sumariado a sua decisão nos termos que se transcrevem:

“1. A nulidade da decisão por falta de motivação (art.668.º, n.º 1, al. b), do CPC – 615º NCPC) só é realidade quando sucede falta absoluta, ausência total, de fundamentos de facto de direito que justificam a decisão, importando saber distinguir da motivação menos pródiga e/ou sábia. O que, aqui, nos termos expostos, não acontece.

2. Descontado o direito de recurso, quando exista, o direito à protecção judicial efectiva (art. 20º CRP), não existe perante as próprias decisões judiciais que sejam eventualmente lesivas de direitos ou interesses legalmente protegidos, visto que o nosso sistema de justiça constitucional não reconhece o «recurso de amparo» ou «queixa constitucional» perante o Tribunal Constitucional contra tais decisões judiciais, salvo na medida em que elas tenham aplicado norma inconstitucional ou desaplicado norma com fundamento na sua não inconstitucionalidade.

3. A declaração de resolução de contrato, fundada na lei ou em convenção, não se traduz em declaração negocial, mas em simples acto jurídico e não está sujeita a forma especial, podendo (até) ser feita verbalmente (art. 436.º, n.º 1, do Cód. Civil). Por sua vez, a relação contratual pode ser declarada extinta por uma das partes com fundamento na lei ou em convenção, mediante comunicação à outorgante, nisto consistindo a resolução do contrato. A declaração da resolução não tem que seguir a forma do respectivo contrato por que consiste numa simples comunicação à outra parte de ir exercer o direito da resolução e produz efeitos jurídicos no próprio momento se a outra parte não se opuser.

4. O art.21º, n.1 da Lei de Arbitragem Voluntária consagra expressis verbis que o tribunal arbitral pode pronunciar-se sobre a sua competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção; apenas nos casos em que for manifesta a nulidade, a ineficácia ou a inaplicabilidade da convenção de arbitragem, o juiz pode declará-lo e, consequentemente julgar improcedente a excepção.

5. A quebra do monopólio do Estado na função judicial (ao permitir a arbitragem voluntária) apenas se mostra permitida e justificada quando através dela possam ser conseguidos (pelo menos) os mesmos objectivos que através dos órgãos de soberania Tribunais o Estado tende a conseguir. Por essa razão, sendo o direito de acesso à justiça um direito fundamental, que se encontra em plano superior ao direito potestativo a exigir a arbitragem, unicamente a verificação da existência de uma situação de absoluta impossibilidade, e não tão-somente de mera difficultas praestandi (em respeito pela autonomia privada), que torne inexigível que seja cumprido o acordo de arbitragem, constitui legitimo fundamento justificativo do seu incumprimento.

 Tal como nos presentes Autos, por todas as razões, designadamente, por se haver demonstrado que:

- em 9 de Novembro de 2015 a A. procedeu à resolução do compromisso arbitral;

- a presente acção judicial de condenação só deu entrada no Tribunal o quo em 22 de Março de 2016 e que o Réu não impugnou a resolução efectuada,

- não tendo, sequer, nestes autos deduzido pedido reconvencional, no sentido de ser declarado a ilicitude da resolução do compromisso arbitral;

E, em especial, pelo que decorre do documento de fls. 931/931v, consubstanciador de “decisão de encerramento do presente processo arbitral”!

6. E este tópico é o de que a parte estará impossibilitada de obter justiça para o seu caso, isto é, ver-se-á impedida de ver satisfeito o seu direito de acesso à justiça para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos; num tal caso, a parte veria ser-lhe denegada justiça. Ora, este é um resultado que a Constituição, com este esquisso procedimental, agora em perfil, não aceita - cfr. n. 1 do artigo 20º CRP. Mas, se assim é, então é razoável concluir que a força expansiva dos direitos - ou melhor, do direito de acesso aos tribunais - impõe que, na hipótese que se figurou de a parte na convenção arbitral que, posteriormente à celebração desta, se viu, sem culpa sua, arrastada para uma situação destas, possa deixar de cumprir tal convenção e recorrer aos tribunais estaduais, pedindo a resolução do caso, sem que seja possível opor-lhe a competente excepção dilatória.

7. Sem deixarmos de ter em conta, pelo menos enquanto admite a possibilidade de afastamento de uma determinada convenção arbitral e o recurso aos tribunais judiciais/estaduais, no caso «sub judice» poderemos chegar à mesma conclusão com recurso à figura da alteração das circunstâncias prevista no art.437º do C.Civ., embora devidamente adaptada. Como tal, nenhum obstáculo haveria a que a demandante recorresse aos tribunais comuns para dirimir litígio decorrente do contrato supra mencionado.

8. Nesta conformidade, não pode deixar de se assentir, em que “nem o Réu impugnou a resolução efectuada, nem algum tribunal declarou a ilicitude da mesma”. A resolução operou os seus efeitos e o compromisso arbitral cessou em 9 de Novembro de 2015. O que significa não existir, como tal, na data de entrada do presente acção em juízo, qualquer convenção de arbitragem. Assim, a poder-se considerar vigente e eficaz e, por isso, capaz de determinar a declaração de incompetência do tribunal a quo. Tanto mais, que, do nº 1 do art° 5° da LAV promana que os tribunais judiciais só se podem declarar incompetentes se na data em que a acção ali der entrada houver convenção de arbitragem vigente e eficaz. O que, no caso dos Autos não acontece.

9. Com a litispendência, trata-se de evitar que duas decisões sejam proferidas ou que se tenha de aguardar o momento em que a decisão seja proferida e transite numa das causas para que a outra seja impedida de prosseguir. O n.1 do art.581º (requisitos da litispendência e do caso julgado), dá a definição de repetição da causa, que está na base dos conceitos de litispendência e caso julgado (art.580º-1) e que o art.362º-4 utiliza em sede cautelar (ver art.362º): a causa repete-se quando, entre as mesmas partes, há nova ação com o mesmo objeto, isto é, com o mesmo pedido fundado na mesma causa de pedir (art.552º).

10. Contudo, e perante tais elementos de caracterização, não é esse o esquisso que os Autos fazem funcionar. Com efeito, na sequência da matéria considerada assente, e que importa relevar, não há como obstar a que: «com a resolução cessa o compromisso arbitral e, portanto, não pode juridicamente haver no Tribunal arbitral qualquer acção que tenha a A. por sujeito processual». O que se sedimenta, em definitivo, quando dos Autos consta decisão de encerramento do processo arbitral (fls. 931/931v, dos Autos). Desta forma, havendo de concluir não se perfilarem “os pressupostos exigidos pelos art.s 580° e 581 ° do CPC para a Iitispendência”. Antes se tratando de acção que, pelos motivos que se elencam, sofreu, nesta sentido específico, justificado “desaforamento”, permanecendo una, incindível e incindida.”

           7. Inconformada com aquela decisão, a Ré interpôs o presente recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

«1 - Da ausência de “dupla conforme”, do simples facto de a douta sentença do Tribunal a quo, proferida no seu despacho saneador, ter declarado até a sua própria incompetência e a litispendência, absolvendo a Ré da instância face à existência e eficácia da cláusula compromissória, se conclui que não é evidente, nem manifesta (nem sequer ocorre), a nulidade ou ineficácia ou inexequibilidade da convenção de arbitragem.

2 – Quer a invocação da justa causa, quer a invocação de falta de idoneidade do tribunal do Centro de Arbitragem da AICCOPN (que não do Tribunal Arbitral) não são motivos que, a se, resultem manifestos de imediato, sem produção de prova, de modo a considera-se ineficaz ou inexequível a convenção arbitral, sendo que a manifesta nulidade, ineficácia original ou superveniente ou inexequibilidade da convenção de arbitragem é aquela que se apresente ao julgador de forma evidente, não carecendo de qualquer produção e prova para ser apreciada.


3 - A recorrente após a apresentação do seu único articulado admissível, a contestação, não teve qualquer oportunidade de responder ou indicar mais qualquer meio de prova, tendo o Tribunal a quo logo decidido na audiência prévia do mérito da causa sem necessidade de produzir qualquer prova e sem que à Ré recorrente fosse dada a oportunidade de alterar o seu requerimento probatório.

4 - A Ré recorrente impugnou quer no processo arbitral a invocada “revogação”/“resolução”, quer na presente acção ou seja no Tribunal estadual e excepcionando incompetência absoluta do Tribunal e litispendência.

5 – A presente acção, não é o lugar próprio para a Ré recorrente efectuar “…pedido reconvencional no sentido de ser declarada a ilicitude da resolução do compromisso arbitral.”, que não reconheceu, pois que isso implicaria a discussão autónoma pelo Tribunal estadual da questão da ineficácia ou inexequibilidade da convenção de arbitragem que o art. 5º nº 4 da LAV proíbe, não admite,

6 – Ao abrigo do n. 4 do art. 10º da LAV, o Senhor Dr. Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação do Porto nomeou para constituir o Tribunal Arbitral, o árbitro Presidente, e da parte para o processo arbitral nº 2/2015 e 1/2017 e quer um, quer outro despacho, são posteriores a 9 de Novembro de 2015 (data da alegada revogação/resolução da clausula compromissória) e a 22 de Março de 2016 (data da entrada no Tribunal da presente acção), despacho que o Autor não impugnou como não a constituição do Tribunal Arbitral.

7 – O Acórdão recorrido não levou em consideração todo o circunstancialismo apurado, com interesse para a decisão de mérito, como também toda a matéria carreada para os autos, mostrando-se assim violados os art.s 607º, nº 3 e 4 do CPC, para além, aqui e sempre, o artº 5º, nº 1 da LAV e entre eles a decisão arbitral que declara que “- Que a extinção/encerramento do processo não afecta a eficácia da convenção de arbitragem…”.

8 - Ao julgar, sem prévia audição da Ré recorrente, é manifesto que a Relação faz uma interpretação do n. 1 do art.5º in fine, que quando conjugada com a norma ínsita no seu nº 4 e artº 18º, nº 1 da Lei 63/2011 é inconstitucional.


9 – O Acórdão recorrido condena em objecto diverso do pedido, estando ferido da nulidade prevista na segunda parte da alínea e) do nº 1 do art. 615º e 609º, nº1 do CPC e em violação do nº 4 do artº 5º da LAV.


10 – Embora sendo uma acção de condenação, o Acórdão conhece, de facto e de direito, sobre a questão da nulidade, eficácia e inexequibilidade, questão que assim é enxertada autonomamente na presente acção.

11 - A Ré recorrente impugnou pois a invocada “revogação”/“resolução”, sendo a respectiva factualidade controvertida, não podendo ser tomada como assente, ou a ela “vincular-se circunstancialmente” a decisão de mérito, ou tomá-la por provada.


12 - Ao dar como assente, matéria que é controvertida, e até conclusiva, sem produzir qualquer prova requerida pela Ré recorrente, o douto Acórdão viola entre outros, o princípio do contraditório e da igualdade das partes, ínsito nos artºs 3º, nº 3 e 4º do CPC, para além de que se verifica “…errada utilização dos meios de prova de que o tribunal dispôs para apreciar a questão de facto...”, bem como foi “…violada a lei processual que disciplina os pressupostos e os fundamentos da reponderação pela 2ª instância da decisão sobre a matéria de facto, no sentido de garantir um duplo grau de jurisdição em tal matéria”.

13 - A factualidade selecionada é insuficiente ou deficiente para decidir a questão de direito, devendo tomar-se por incontroverso e inquestionável que:

- O Tribunal Arbitral decidiu como consta a fls 931 e 931v que “…a extinção/encerramento do processo não afecta a eficácia da convenção de arbitragem…”.

- A Autora não peticionou a declaração de inexistência ou ineficácia do compromisso arbitral.

- A Ré excepcionou a “…preterição do Tribunal Arbitral, e consequentemente da incompetência absoluta do Tribunal”.

- Por correio registado RD …., de 5.1.2015 (fls. 27 da certidão – Doc. 1) a Autora recorrida dirigiu ao Exmº Senhor Presidente do Conselho de Arbitragem a carta de fls … (documento 33 da p.i.) com o conteúdo que dela consta, que a recebeu em 9 de Novembro de 2015.

- O Réu recorrente impugnou esse documento e bem assim a matéria dos arts 47º e 48º da p.i. além de outra, o que fez também o Réu, impugnando o mesmo documento pela Autora apresentado no processo arbitral nº 2/2015 (fls 29 e 30 da certidão – Doc. 1).

- Conforme certidão do Centro de Conciliação e Arbitragem da AICOPNN verifica-se indeferimento tácito do requerimento que a Autora dirigiu ao Ministério da Justiça que instruiu a carta de fls … (documento 33 da p.i.) e com o qual pretendeu operar a revogação/resolução do “compromisso arbitral” (certidão – Doc. 1).

- Por despacho de 26 de Junho de 2017 proferido no processo arbitral nº 1/2017 foi decidido que “tendo as partes inserido no contrato de empreitada uma cláusula compromissória, que se mantém válida e eficaz, obrigando-se a submeter à decisão de árbitros todos os litígios decorrentes do referido contrato de empreitada, o tribunal decide considerar-se competente para dirimir o presente litígio”, decisão que não foi impugnada pela Autora nos termos do artº 18º, nº 8 da LAV (Doc. nº 1 – Certidão do Tribunal Arbitral), transitado em julgado.


14 - O douto Acórdão para além de violar as normas dos arts 46° da LOSJ e 674º, nº 3, e 682º, nº 2 e 607º do CPC, viola ainda o disposto nos arts 3º, nº 3 e 4 e 5º, 410º, 411º, 413º, 414º e 415º, todos do CPC, entre outros, incorrendo também em erro de julgamento ignorando o já decidido pelo Tribunal Arbitral sobre a validade e eficácia do compromisso arbitral, violando também entre outros os arts 5º, nº 1, 18º, nº 1, 8º e 9º da LAV e o princípio do caso julgado. 

15 - Decidindo o Tribunal Arbitral que existe uma convenção de arbitragem válida e eficaz e consequentemente, se considerou competente para dirimir o litígio, a parte que não se conforme com esta decisão (e, no decurso do processo arbitral, tenha invocado a resolução unilateral da convenção) pode impugnar essa decisão, nomeadamente, através do regime da impugnação da sentença arbitral - Vid. Art. 46° da LAV e dos Fundamentos da Oposição à Execução – (Art. 48° da LAV), encontrando-se, assim, equacionado e garantido o controlo das decisões arbitrais pelos tribunais judiciais e, concomitantemente, o Direito de Acesso ao Direito e aos Tribunais (Art. 20°, n° 1 da C.R.P.).

16 - O que está em causa nos autos é a "resolução de uma convenção de arbitragem" que se encontra prevista e definida no Art. 4°, n° 2 e 3 da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV) nº 63/2011 de 14 de Dezembro, sendo evidente que o legislador quando aí se reporta à “revogação” utiliza este vocábulo em sentido lato que abrange quer a revogação quer a resolução de um contrato de constituição de uma convenção de arbitragem.

17 - Só por acordo das partes previsto nos n° 1; 2 e 3 do Art.° 4° da LAV é que a convenção de arbitragem poderia ter sido revogada e nunca a sua revogação ou resolução pode resultar de uma declaração de vontade unilateral de um dos contratantes.

18 - Ainda que assim não fosse, mas é, face à necessidade de acordo de ambos os outorgantes, a resolução assenta num poder vinculado, tendo o autor de alegar e provar o fundamento previsto na convenção das partes ou na lei (arts 801º - 2 e 802º - 1) que justifica a destruição unilateral do contrato.

19 – E sempre que a declaração de resolução não seja aceite pela outra parte, como não foi e é o caso dos autos. (cfr. arts 68º, 69º, 325º e 326º da contestação), terá de ser feita judicialmente.

20 - A “obrigação de recorrer a Tribunal arbitral” não se tornou nunca impossível, para o Autor recorrido tanto mais que a acção arbitral está em curso no respectivo Tribunal Arbitral, e com os árbitros nomeados pelo Senhor Juiz Desembargador, Presidente do Tribunal da Relação do Porto, não havendo no caso dos autos, a “…figura de alteração das circunstâncias previstas no artº 437º do C. Civil”, pois que a decisão de “…encerramento do presente processo arbitral” é datada de “Porto, 10 de Fevereiro de 2017”, sendo anterior o que o douto Acórdão, toma por incontroverso; “- em 9 de Novembro de 2015 a A. procedeu à resolução do compromisso arbitral”.

21 - Também “na data da propositura da acção” tramitava e estava em curso, a acção arbitral nº 2/2015, na qual a Ré recorrida deduziu reconvenção, cujos pedidos de condenação são os desta – daí a suscitada excepção de litispendência que foi julgada procedente pelo Tribunal a quo.


22 - O douto Acórdão recorrido, em todas as respostas afirmativas às conclusões das alegações de recurso que lhe foram colocadas, viola as exigências colocadas à resolução da questão de direito e da questão de facto, impostas pelo art 607º do CPC.

23 - E ainda é inconstitucional a norma extraída dos arts 432º, nº 1 e 436º, nº 1 do Código Civil, quando conjugada com a norma dos arts 5º, nº 1 e 4 e 4º, nº 1, 2 e 3 da Lei 63/2011 de 14 de Dezembro, por violação do direito a um processo justo e equitativo e da protecção da confiança e da segurança jurídica, consagrados no art.20º, nº 1 e 4 e do art. 209º, nº 2 e 2º da Constituição da República Portuguesa, quando interpretada no sentido, que qualquer das partes, e só umas delas, por sua única exclusiva vontade e iniciativa pode revogar ou resolver a cláusula compromissória ou convenção de arbitragem, pondo assim fim a um processo arbitral e ao Tribunal Arbitral.

24 – A presente acção não pode prosseguir, devendo ser declarada extinta e inexistente, por força da norma imperativa do art. 17º-E do CIRE, in fine, porquanto o plano de revitalização aprovado e homologado da Ré que os autos informam não prevê a continuação da presente acção.»


8. A recorrida apresentou contra-alegações, nas quais sustentou, em resumo:
«O presente recurso de revista é claramente inadmissível e a sua interposição representa uma notória violação do n.1 do art.671º do CPC, uma vez que o douto Acórdão do Tribunal da Relação de ... revogou a decisão da 1ª instância e ordenou o prosseguimento dos autos, pelo que não tendo conhecido do mérito nem posto termo ao processo não se verificam os pressupostos de que a citada norma faz depender a admissibilidade da revista.
 - Mesmo que por mera hipótese o presente recurso fosse permitido por lei, sempre o recorrente jurisdicional deveria ser convidado a corrigir as conclusões apresentadas, para que as respetivas conclusões sejam sintéticas e respeitem as exigências vertidas no n. 2 do art. 639º do CPC, sob pena de se cercear o direito do recorrido ao contraditório com a amplitude pretendida por lei.
- Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões e não permitindo as conclusões apresentadas que um destinatário normal se aperceba dos vícios que o recorrente imputa ao aresto em recurso, nem da forma como entende que o Tribunal a quo deveria ter interpretado e aplicado as normas que considera infringidas, apenas pode o recorrido dar por reproduzido tudo o que até agora defendeu nos presentes autos e afirmar que nenhum reparo merece o aresto em recurso, o qual decidiu em conformidade com a doutrina e jurisprudência»

9. Dado que a recorrida, nas suas contra-alegações, suscitou a questão da inadmissibilidade do conhecimento do objeto do recurso, face ao disposto no art. 671º, n.1, do CPC, porquanto o acórdão recorrido havia determinado a continuação da ação em primeira instância, foi a Recorrente notificada, nos termos do art.655º, n.2 do CPC, para dizer o que tivesse por conveniente.

10. Em resposta a essa notificação, a Recorrente veio sustentar a admissibilidade do recurso.

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E DECISÃO

1) Admissibilidade do recurso:

            Há que apurar, antes de mais, se o presente recurso de revista é admissível.

           A Recorrida, nas suas contra-alegações, sustentou a inadmissibilidade do recurso de revista por, em seu entender, não se verificarem os requisitos exigidos pelo art.671º, n.1 do CPC.      Notificada a Recorrente para se pronunciar, nos termos do art.655º, n.2 do CPC, esta veio sustentar a admissibilidade do recurso, nomeadamente, por se verificar a hipótese prevista no art.671º, n.1, al. a), sendo o recurso sempre admissível, dado verificar-se a previsão do art.629º, n.2, al. a), ou seja, a violação de regras de competência em razão da matéria.

            Na realidade, assiste-lhe razão, na medida em que está em causa a questão de saber se existiu ou não preterição do tribunal arbitral, o que, nos termos do art.96º, al. b) do CPC, determinará a incompetência absoluta do tribunal judicial.

           Dado que o acórdão recorrido revogou a sentença, que tinha absolvido a Ré/Recorrente da instância, e mandou prosseguir o processo no tribunal judicial, pode, assim, estar em causa a eventual violação de regras de competência em razão da matéria.

           Conclui-se, deste modo, que o presente recurso de revista é admissível.

 

2) O objeto do recurso:

           Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, destas conclusões se extraem as seguintes questões essenciais:

2.1. Saber se o acórdão recorrido é nulo;

2. 2. Saber se o tribunal judicial é competente para apreciar o litígio ou se tal competência deve pertencer ao tribunal arbitral. A resposta a esta questão depende de:

2.2.1. Saber se a convenção de arbitragem estava em vigor à data da propositura da ação ou se tinha sido validamente extinta.

2.3. Saber se a decisão recorrida aplicou normas inconstitucionais.

3) A factualidade:

A factualidade relevante para a decisão de revista é a que já resulta do relatório supra, dado que, tendo sido decretada a absolvição da Ré da instância no despacho saneador, não se procedeu a outra prova, nomeadamente testemunhal.

4) O direito aplicável:

            4.1. Questão prévia: as vicissitudes do processo arbitral e a sua irrelevância para as decisões proferidas em recurso.

           Antes da análise das concretas questões que integram o objeto do recurso, importa referir que, em diferentes momentos da instância recursiva (tanto na Apelação, como agora na Revista), ambas as partes trouxeram aos autos informação sobre as vicissitudes dos processos que, paralelamente, correram no tribunal arbitral. Assim, por exemplo, a fls. 930 dos autos (em fase de apelação) a Autora/Recorrida junta documento do qual consta que o tribunal arbitral tinha sido encerrado por ter sido excedido o prazo para ser proferida a sentença.

            A fls. 1212 e seguintes (já em fase de Revista) a Ré/Recorrente vem juntar sentença do tribunal arbitral (o qual terá sido reconstituído), proferida em 15.06.2018. Embora a Recorrente justifique a junção destes elementos, quanto ao tempo, com base no art.425º do CPC, o certo é que se trata de documentos impertinentes e desnecessários (art.443º do CPC), pois não se destinam a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa (art.423º do CPC). Deste modo, devem os documentos juntos em fase de Revista ser retirados do processo e restituídos ao apresentante, com a consequente multa que, nos termos do art.27º do Regulamento das Custas Processuais, se fixa em uma UC.

            Toda a informação trazida pelas partes, em sede de recurso, sobre o funcionamento e as decisões do tribunal arbitral é absolutamente irrelevante para o objeto do presente recurso.

           4.2. A Recorrente invoca a nulidade do acórdão recorrido, com fundamento no art.615º, n.1, al. e) e 609º, n.1 do CPC por condenar em objeto diverso do pedido, dado ter conhecido da questão da validade ou invalidade da convenção de arbitragem.

            Neste ponto, não assiste razão à Recorrente. Embora o acórdão discorra sobre argumentos que se podem considerar não pertinentes para a decisão da presente litígio, ou até sobre factualidade discutível, o certo é que todas essas considerações gravitam à volta da questão central de saber se o tribunal judicial era ou não competente, pelo que não se pode concluir que a decisão em análise tenha condenado em objeto diverso do pedido. A Autora pretendia, desde logo, que se considerasse o tribunal judicial competente para apreciar o litígio; e foi isso que se entendeu na decisão recorrida. Pode não se concordar com a decisão, mas não se pode concluir que o acórdão seja nulo.

            4.3. A questão central do presente recurso é a de saber se o acórdão em revista fez a correta aplicação da lei ao considerar o tribunal judicial competente para apreciar o litígio, e ao entender que a convenção de arbitragem não se encontrava em vigor à data da prepositura da ação.

            4.3.1. Para o conhecimento da questão deve ter-se presente o seguinte:

          Do contrato de empreitada, que as partes celebraram em 13.9.2012, destinado à construção de um hotel, constava a seguinte cláusula:

Para resolução de todos os litígios decorrentes deste contrato fica estipulada a competência do Centro de Arbitragem da AICCOPN – Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas (…)”.

            Esta convenção de arbitragem, tendo por objeto litígios eventuais emergentes de uma relação jurídica contratual, assume, no caso concreto, a natureza de cláusula compromissória, como previsto no art.1º, n.3 da LAV.

            Em 22.03.2016, a Autora propôs ação no tribunal judicial (para dirimir um conflito respeitante àquele contrato), em vez de acionar a constituição do tribunal arbitral, alegando ter procedido à revogação/resolução da convenção de arbitragem, através de comunicação enviada à contraparte, em 09.11.2015.

            O art.5º da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), Lei n.63/2011, estabelece o “efeito negativo da convenção de arbitragem”, nos seguintes termos:

“1. O tribunal estadual no qual seja proposta acção relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível.”

           

           Na sua contestação, a Ré invocou a exceção dilatória da incompetência do tribunal.

            No saneador-sentença, a exceção dilatória de incompetência do tribunal foi julgada procedente (nos termos dos arts.577º e 578º do CPC) e a Ré foi absolvida da instância.

            No âmbito do recurso de apelação interposto pela Autora, a segunda instância entendeu que a convenção de arbitragem não se encontrava em vigor, por ter sido validamente resolvida pela Autora, e determinou o prosseguimento dos autos no tribunal judicial.

            4.3. 2. Em nosso juízo, o acórdão recorrido não fez a correta aplicação nem do art.5º, nem do art.4º da LAV.

            Assim, apesar de citar jurisprudência no sentido de que só não se verifica o efeito negativo da convenção de arbitragem quando esta for manifestamente ou indubitavelmente nula, ineficaz ou inexequível, o acórdão em revista acaba por decidir em sentido diferente, ou seja, concluiu que a convenção não estava em vigor, apesar de tal não resultar de forma inequívoca dos autos.

            O acórdão dá como assente o seguinte:

“- em 9 de Novembro de 2015 a A. procedeu à resolução do compromisso arbitral;

- a presente acção judicial de condenação só deu entrada no Tribunal o quo em 22 de Março de 2016 e que o Réu não impugnou a resolução efectuada,

- não tendo, sequer, nestes autos deduzido pedido reconvencional, no sentido de ser declarado a ilicitude da resolução do compromisso arbitral”.

Tais conclusões não assentam em factualidade provada (porque não se produziu prova nesse sentido), mas sim numa determinada conceção sobre o modo de operar da resolução dos contratos em geral. Entendeu-se naquele acórdão que a comunicação da Autora à contraparte (independentemente de ser fundada ou não) produziu a extinção da convenção de arbitragem, na medida em que a Ré não teria invocado a ilicitude desse modo de extinção da convenção.

Ora a desvinculação por declaração unilateral de um dos contratantes não se encontra prevista na LAV entre os modos de extinção da convenção arbitral. Pelo contrário, o art.4º da LAV estabelece a regra do consenso desvinculativo. Determina esta norma:

 “(...)
2 - A convenção de arbitragem pode ser
revogada pelas partes, até à prolação da sentença arbitral.
3 - O
acordo das partes previsto nos números anteriores deve revestir a forma escrita, observando-se o disposto no artigo 2.º

            Acresce que, naquilo que o seu específico estatuto não prevê, sempre serão convocáveis as normas gerais dos contratos[2] e, no que ao caso concreto interessa, as normas sobre extinção dos contratos. Nesta matéria, surge, em primeiro lugar, o art.406º, n.1 do CC, no qual se consagra o denominado “princípio do contrato”, nos termos do qual os contratos se extinguem por acordo das partes, exceto nas hipóteses legalmente previstas.

           4.3.3. Estas breves considerações são suficientes para se perceber, de imediato, que a exceção prevista na parte final do art.5º da LAV não se pode considerar preenchida, dado não ser inequívoco que a convenção de arbitragem tivesse perdido a sua validade ou eficácia em consequência da comunicação da Autora à Ré.

            Deste modo, vale no caso concreto a regra do efeito negativo da convenção de arbitragem, a qual se articula com o princípio da competência da competência (art.18º da LAV).

            A competência material do tribunal arbitral é, assim, aferida, em primeiro lugar, pelo próprio tribunal arbitral. Estabelece o art.18º, n.1 da LAV que:

O tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção”.

           Na parte final do n.1 do art.5º da LAV prevê-se uma exceção a esta regra de determinação da competência do tribunal arbitral quando “manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível[3].

           O juiz deverá chegar a esta conclusão no momento em que tem de decidir se (face à invocação da exceção dilatória) deve ou não absolver o reu da instância. Tratando-se de um momento processual no qual ainda não há produção de prova (nomeadamente testemunhal ou pericial), o juiz irá socorrer-se dos elementos resultantes dos articulados, nomeadamente, da prova documental. E terá de concluir que a nulidade, a ineficácia ou a inexequibilidade da convenção de arbitragem são manifestas, ou seja, que a ausência de força vinculativa da convenção de arbitragem não lhe oferece dúvidas.

            Nesta hipótese não faria sentido absolver da instância, pois caso o TA tivesse de se pronunciar sobre a sua própria competência, certamente concluiria que essa competência não existia, por não existir o alicerce do seu funcionamento, ou seja, a força vinculativa da convenção de arbitragem. E as partes acabariam por ter de regressar ao tribunal judicial, depois de terem ampliado os gastos de tempo e de recursos económicos.

           O acórdão em revista considerou que a convenção de arbitragem não se encontrava em vigor porque o Autor/Recorrido tinha procedido à sua resolução, pelo que teria aplicação a exceção prevista na parte final do art.5º da LAV.

            Todavia, não é esse o entendimento deste supremo tribunal.

           A diversidade terminológica usada pela Autora/Recorrida (e acolhida pela decisão em revista), ora “revogação” ora “resolução”, para designar a declaração que a Autora enviou à Ré (em 09.11.2015), e a invocação de termos como “justa causa” e “alteração superveniente das circunstâncias”, permitem, desde logo, sustentar dúvidas quanto ao alcance e ao fundamento daquela comunicação.

           Sabendo-se que, para além do (já referido) art.4º, a LAV não prevê normas que autorizem a extinção da convenção de arbitragem por declaração de vontade unilateral, e que, fora do domínio da arbitragem, as expressões “revogação” e “resolução” são usadas pelo legislador, em diferentes contextos, com diferentes sentidos, e sabendo que “justa causa” e “alteração superveniente das circunstâncias” são conceitos indeterminados, cujo preenchimento depende de produção de prova, tal basta para se afirmar que, em concreto, não se podia ter concluído que a convenção era manifestamente nula, ineficaz ou inexequível.

           4.3.4. Por outro lado, diferentemente do que se entendeu no acórdão recorrido, o facto de um tribunal arbitral não proferir a sentença dentro do prazo a que se encontra vinculado (o que põe automaticamente termo ao processo arbitral), não significa que as partes fiquem “impossibilitadas de obter justiça para o seu caso” (como aí se afirmou), pois, como estabelece o art.43º, n.3 da LAV, enquanto a convenção de arbitragem estiver em vigor, pode sempre ser constituído um novo tribunal e ter início uma nova arbitragem.  

           4.3.5. Os tribunais arbitrais não devem ser olhados com desconfiança, como parece acontecer no acórdão recorrido, pois, face à lei vigente, não têm um estatuto de menoridade ou inferioridade em relação aos tribunais judiciais.

            A sua existência encontra-se expressamente prevista no art.209º, n.2 da Constituição da República Portuguesa, e o seu funcionamento é disciplinado pela Lei n.63/2011. Deste estatuto legal facilmente se conclui que os tribunais arbitrais não são um simples mecanismo privado de resolução de conflitos, pois tanto na sua constituição como no seu funcionamento estes tribunais conexionam-se, em vários aspetos, com os tribunais judiciais.

           A autonomia de um tribunal arbitral, enquanto expressão da autonomia da vontade de quem decide optar por esse modo de resolução de conflitos, encontra-se balizada por múltiplas regras legais e princípios processuais (previstos no art.30º da LAV), cuja inobservância conduzirá à invalidade da sentença arbitral, a decretar por decisão judicial (art.46º, n.3), a qual, porém, não conhece do mérito da causa (art.46º, n.9).

           Na sua relação com os tribunais arbitrais, os tribunais judiciais desenvolvem, essencialmente, dois tipos de funções, que podemos designar como: função de cooperação processual e função de controlo da legalidade[4].

           A função de cooperação processual, traduzida numa atuação facilitadora do funcionamento do TA, identifica-se: na nomeação de árbitros quando as partes não o façam, nos termos do art.10º da LAV; na decisão sobre a recusa de um árbitro apresentada por uma das partes, nos termos do art.14º, n.2 da LAV; na destituição de um árbitro, quando isso é requerido nos termos do art.15º, n.3; na decisão sobre o pedido de redução de honorários, apresentado nos termos do art.17º, n3; na decisão sobre a impugnação da decisão interlocutória proferida pelo TA sobre a sua própria competência, nos termos do art.18º, n.9; na execução coerciva de uma providência cautelar decretada por um TA, nos termos do art.27º, n.1; na obtenção de provas (testemunhal ou depoimento de peritos), para enviar ao TA, nos termos do art.38º.

           A função de controlo da legalidade das decisões do tribunal arbitral (desempenhada pelo Tribunal da Relação, como estabelece o art.59º, n.1 al. e) e g) da LAV) identifica-se, nomeadamente, na competência para decidir sobre o recurso da sentença arbitral, (quando as partes o tenham convencionado, nos termos do art.39º, n.4), bem como para decidir sobre a impugnação da sentença em ação de anulação, nos termos do art.46º[5].

           4.3.6. Por tudo o que se deixou já dito, conclui-se que o acórdão em revista não fez a correta interpretação e aplicação dos artigos 4º, 5º e 18º da LAV. Assim, fica prejudicada, por desnecessária, a apreciação de outros fundamentos do recurso, nomeadamente a existência de eventuais inconstitucionalidades suscitadas pela Recorrente.

            5. O entendimento que sustentamos na presente revista é aquele que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem seguido em casos equiparáveis. Vejam-se, por exemplo, os sumários das seguintes decisões:

            - Ac. do STJ de 20.03.2018 (relator Henrique Araújo):

“Face ao princípio consagrado no art. 18.º, n.º 1, da LAV, segundo o qual incumbe prioritariamente ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a sua própria competência, apreciando para tal os pressupostos que a condicionam – validade, eficácia e aplicabilidade ao litígio da convenção de arbitragem –, os tribunais judiciais só devem rejeitar a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral, deduzida por uma das partes, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, quando seja manifesto e incontroverso que a convenção/cláusula compromissória invocada é inválida, ineficaz ou inexequível ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no respectivo âmbito de aplicação.

            Suscitadas dúvidas sobre o campo de aplicação da convenção de arbitragem, devem as partes ser remetidas para o tribunal arbitral ao qual atribuíram competência para solucionar o litígio”[6].

            - Ac. do STJ de 21.06.2016 (relator Fernandes do Vale):

“Ao apreciar a exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral, devem os tribunais judiciais actuar com reserva e contenção, de modo a reconhecer ao tribunal arbitral prioridade na apreciação da sua própria competência, apenas lhes cumprindo fixar, de imediato e em primeira linha, a competência dos tribunais estaduais para a composição do litígio que o A. lhes pretende submeter quando, mediante juízo perfunctório, for patente, manifesta e insuscetível de controvérsia séria a nulidade, ineficácia ou inaplicabilidade da convenção de arbitragem invocada.

            Manifesta inexistência (nulidade, ineficácia ou inexequibilidade) é aquela que não necessita de mais prova para ser apreciada, afastando, à partida, qualquer alegação de vícios da vontade na celebração do contrato e deixando ao tribunal judicial apenas a consideração dos requisitos externos da convenção, como a forma ou a arbitrabilidade”[7].

            DECISÃO: Com os fundamentos supra expostos, considera-se o recurso procedente e revoga-se o acórdão recorrido, ficando a prevalecer a decisão da primeira instância.

            Custas na Revista: pela Recorrida.

           Multa: nos termos do art.27º do Regulamento das Custas Processuais, fixa-se em uma UC a multa da Recorrente, com base no art.443º, n.1 do CPC, por junção de documentos impertinentes e desnecessários.

Lisboa, 16 de outubro de 2018

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Catarina Serra

Salreta Pereira

____________________

[1] A Ré apresentou providência cautelar junto da AICCOPN, tendo aí sido proferida decisão de 16.4.2015 condenando a dona da obra a abster-se da prática de atos que tivessem por objetivo acionar a garantia bancária até decisão final da providência cautelar. Dessa decisão recorreu a Autora para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 16.2.2016, anulou o acórdão arbitral, com fundamento no art.46.º, n.3, al. vi) da Lei 63/2001, que remete para a violação do art.42.º, números 1 e 2.
[2] Raúl Ventura, “Convenção de Arbitragem”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 46 (1986), pág. 298.
[3] Saber quando é que a convenção é “manifestamente nula, ineficaz ou inexequível também não é uma tarefa completamente isenta de dificuldades; neste sentido, vd. Mariana França Gouveia/Jorge Morais Carvalho, “Convenção de arbitragem em contratos múltiplos”, Anotação ao Ac. do STJ de 10.03.2011, in Cadernos de Direito Privado, n.36, pág. 44.
[4] Esta qualificação foi formulada pela relatora do presente acórdão nos “Textos de Apoio – Sumários Desenvolvidos” ao Curso de Mestrado Jurídico-forenses, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, nos anos letivos de 2015 e 2016, na unidade curricular de Direito e Processo Civil II, em cujo conteúdo programático cabia a matéria da arbitragem voluntária.
[5] Para uma análise mais desenvolvida da relação entre os tribunais estaduais e os tribunais arbitrais, vd. Pedro Metello de Nápoles/Carla Góis Coelho, “A arbitragem e os tribunais estaduais – alguns aspetos práticos”, in Revista Internacional de Arbitragem e Conciliação; Ano V, 2012, pág. 195 e seguintes.
[6]http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7b962883cc7bb996802582560051fe0b?OpenDocument&Highlight=0,efeito,negativo,conven%C3%A7%C3%A3o,de,arbitragem
[7]http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/bf805607f63b394680257fd90054a9b9?OpenDocument&Highlight=0,conven%C3%A7%C3%A3o,arbitragem,efeito,negativo