Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A1404
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: REIS FIGUEIRA
Descritores: CHEQUE
PRESCRIÇÃO EXTINTIVA
TÍTULO EXECUTIVO
Nº do Documento: SJ200306170014041
Data do Acordão: 06/17/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 3217/02
Data: 10/01/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" deduziu embargos de executado à execução que lhe moveu "B, Lda.", invocando, em sede de excepção, que o título dado à execução (um cheque) foi apresentado a pagamento após o prazo legal de oito dias e a respectiva acção executiva instaurada após os seis meses para o efeito, pelo que se encontra prescrito, carecendo por isso a execução de título executivo. E impugnou a dívida.
A embargada "B, Lda." contestou os embargos, alegando que o título dado à execução não é o cheque como tal, efectivamente prescrito como título cambiário, mas um documento particular assinado pelo devedor que importa o reconhecimento de uma obrigação pecuniária de montante determinado, no quadro do artº. 46º, c) do CPC (redacção do DL 329-A/95), como alegou desde logo no requerimento executivo.
Os embargos foram julgados procedentes na primeira instância, pela procedência da excepção da prescrição da acção cambiária (artº. 29º e 52º da LUC), decisão que, sob recurso da embargada, a Relação de Lisboa confirmou, ainda que por fundamentos algo diferentes: não resultar do cheque o reconhecimento de uma obrigação pecuniária.

Considerou para tanto a Relação o seguinte quadro fáctico-jurídico:
a) A exequente (agora embargada) deduziu contra o executado (agora embargante) a acção executiva a que estes embargos estão apensos, com base em cheque por este assinado, datado de 26/02/96, ao qual atribuiu o valor de documento de reconhecimento de dívida, nos termos do artº. 46º, c) do CPC.
b) Tal cheque, apresentado a pagamento após expirado o prazo legal de oito dias previsto no artº. 29º, 1º da LULL, fora devolvido por falta de provisão em 12/03/96.
c) A acção executiva foi instaurada após expirado o prazo legal de seis meses previsto no artº. 52º, 1º da mesma LULL.

Do acórdão da Relação recorre de novo a embargada, agora de revista, para este STJ.
Alegando, concluiu da forma extensa que se vê de fls. 200 a 208, que se dá por reproduzido e a isto se resume essencialmente:
a) Não estamos em presença de uma acção executiva cambiária, mas de uma execução cujo suporte (título executivo) é um documento particular assinado pelo devedor, no qual ele reconhece a existência de uma dívida, que a lei de processo (artº. 46º, a) do CPC, na versão do DL 329-A/95) considera título executivo.
b) Tal se deve entender também em função dos princípios da economia processual e da celeridade processual.
c) Na petição inicial executiva, a exequente fez referência à existência da relação subjacente (ao cheque), alegando a origem do crédito nos contratos de fornecimento de bens da recorrente, matéria naturalmente a averiguar se os embargos prosseguissem.
d) Violados o artº. 46º, a) do CPC e os princípios da economia e da razoável duração do processo.
A recorrida não apresentou contra-alegações.
A questão posta a este STJ é precisamente a mesma que foi posta à Relação e encontra-se limitada a saber se, uma vez prescrita a obrigação cambiária incorporada no cheque, este podia ainda servir de base à execução como documento particular assinado pelo devedor, que importa reconhecimento de obrigação pecuniária (nos termos da nova redacção dada à alínea a) do artº. 46º do CPC pelo DL 329-A/95).

Não está aqui em questão que a lei aplicável - o artº. 46º, a) do CPC - é a lei vigente à data do requerimento executivo: portanto, o dito preceito, na redacção que lhe conferiu o DL 329-A/95, entrado em vigor em 01/01/97, visto que o requerimento executivo é de 1998.
É pacífico que o cheque, para ser título executivo como tal, nos termos do artº. 46º do CPC, tem de ser apresentado a pagamento no prazo de oito dias indicado no artº. 29º e de ser instaurado o processo executivo dentro do prazo de seis meses do artº. 52º, da LUC.
Se o não for, prescreve, como título de crédito.

Antes da Reforma processual de 1995/96 (DL 329-A/95 e DL 180/96), era esta a orientação corrente da jurisprudência: RP, 15/06/82, e RC, 20/07/82, ambos na CJ, ano XVII, tomo III-235 e tomo IV-52, STJ, 14/06/83 no BMJ, 328-598, RC, 02/11/88 e RP, 28/06/90, no BMJ, 381-756 e 398-587, respectivamente.
No entanto, já então a doutrina maioritária entendia que o cheque prescrito, não podendo constituir título executivo como tal (como cheque), porque prescrito, podia constituir título executivo como documento particular assinado pelo devedor, que importa reconhecimento de obrigação pecuniária de valor determinado: Alberto dos Reis, CPCAnotado, vol. I, 166; Palma Carlos, CPCAnotado, I, 189/190; Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 1970, 33;. discordante, apenas a voz de Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, 1964, 89.
Com a Reforma processual de 1995/96 e a nova redacção que ela deu à alínea c) do artº. 46º do CPC, e que se traduziu na substancial ampliação do elenco dos títulos executivos, esta posição parece ter ganho maior argumento (cf. Pinto Furtado, Títulos de Crédito, 2000, 82 e 285).
De facto, enquanto antes a dita alínea c) tinha a seguinte formulação "À execução apenas podem servir de base: c) as letras, livranças, cheques, extractos de factura, vales, facturas conferidas, e quaisquer outros escritos particulares, assinados pelo devedor, dos quais conste a obrigação de pagamento de quantias determinadas ou de entrega de coisas fungíveis", agora tem a seguinte enunciação: "À execução apenas podem servir de base: c) os documentos particulares assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artº. 805º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto".
A intenção do legislador resulta do Preâmbulo do DL 329-A/95, onde designadamente se fala em "ampliação significativa do elenco dos títulos executivos, conferindo-se força executiva aos documentos particulares assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinável em face do título (...). Supõe-se que este regime - que se adita ao processo de injunção, já em vigor - irá contribuir significativamente para a diminuição do número das acções declaratórias de condenação (...).
Portanto, a intenção do legislador não é de restringir, mas de ampliar, o elenco dos títulos executivos, adstritos como estão ao princípio da tipicidade. Designadamente, eliminando a referência casuística às letras, livranças, cheques, etc, por desnecessária, uma vez se tratar de espécies dentro do género documentos particulares a que aquele preceito se refere, e deles se não distinguirem senão no regime próprio das relações cartulares (conforme já anotado por Anselmo de Castro, loc. cit.).

Acompanha-se a jurisprudência deste STJ, segundo a qual "a ampliação do elenco dos títulos executivos por força da alteração da alínea c) do artº. 46º do CPC pelo DL 329-A/95, não tem a virtualidade de colidir com a aplicação da legislação específica sobre cheques, constante da respectiva Lei Uniforme" e de que "a reforma do CPC de 1995, ao ampliar o elenco dos títulos executivos, não alterou a Lei Uniforme sobre Cheques nem buliu no regime aí consagrado" (acórdãos deste STJ de 04/05/99, no BMJ, 487-240, e de 29/02/00, na CJ/STJ, ano VIII, tomo I, 124).
Só que não é bem disso que se trata aqui: não se trata de dar à execução um título cambiário, que como tal está prescrito - mas de dar à execução um documento particular que, não podendo servir de título executivo na qualidade de cheque, porque se encontra prescrito, continua no entanto a ser um documento particular assinado pelo devedor (o embargante reconhece que o assinou), que importa reconhecimento de dívida (o embargante diz que não é ele o devedor, mas isso é matéria a averiguar), de montante determinado.
Nestes casos, tem-se entendido neste STJ que, prescrito um cheque, o portador perdeu o direito de acção cambiária, não podendo utilizar o cheque, enquanto título de crédito, como título executivo, porque prescrito; mas pode utilizá-lo, na qualidade que ele também tem, de documento particular (quirógrafo), no quadro agora mais amplo do artº. 46º, c), fazendo agora valer, não a obrigação cambiária, porque prescrita, mas a obrigação subjacente ou causal.
Apenas havendo então que distinguir, nos títulos de crédito prescritos dos quais não conste a causa da obrigação (como é aqui o caso), se a obrigação a que se reportam emerge ou não de negócios jurídicos formais: em caso afirmativo, o documento não pode constituir título executivo porque a causa do negócio é elemento essencial dele e não consta do título; mas, se a obrigação não emerge de negócio jurídico formal (como é aqui o caso), a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração da possibilidade e regime do reconhecimento unilateral da dívida (artº. 458º, nº. 1 do CC) levam a admitir o cheque prescrito, enquanto documento particular, como título executivo nos termos do artº. 46º, c): documento particular assinado pelo devedor e importando o reconhecimento de uma obrigação pecuniária de montante determinado. Tão só agora, porque estamos em face de um título executivo que não refere a causa, o exequente terá de alegar a causa (relação subjacente ou causal) no requerimento com que instaura a execução: a obrigação que assim se executa não é a cambiária, mas a subjacente ou causal, de que o cheque prescrito é o quirógrafo.
É a posição sustentada no acórdão deste STJ de 29/01/02, na CJ/STJ, ano X, tomo I, 64, por sua vez na linha da doutrina de Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 1997, 53 e seguintes, e de certo modo também na de Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, 1998, 68/69.
Nesta mesma orientação, ainda a mais recente jurisprudência deste Tribunal, como os acórdãos de 18/01/01 e de 30/01/01, na CJ/STJ, ano IX, tomo I, 71 e 85, bem como os acórdãos de 23/01/01 (revista 2488/00, 6ª secção), de 27/09/01 (revista 2089/01, da 7ª secção), de 30/10/01 (revista 3317/01, 6ª secção), de 29/11/01 (revista 2487/01, 7ª secção) e de 04/07/02 (revista 1808/02, 7ª secção), ao que se sabe ainda não publicados, mas com sumário em Sumários do STJ.
Diga-se que esta não é orientação unânime da jurisprudência, nem deste STJ (por exemplo, em sentido diferente, STJ, 04/05/99, BMJ, 487-240, STJ, 29/02/00, CJ/STJ, ano VIII, tomo I, 124, RP, 25/01/01, CJ, ano XXVI, tomo I, 192, STJ, 23/01/01, 18/01/01, 05/07/01 (nas revistas 2018/01 e 2102/01), 16/10/01, estes últimos em Sumários do STJ.
Mas é a orientação que ultimamente tem prevalecido neste STJ, como acima se disse e se subscreveu também nos acórdãos da RL de 22/04/99, BMJ, 486-359, da RP de 24/04/99, no BMJ, 486-365, da RC, de 03/12/98, em CJ, ano XXIII, tomo V, 33, e novamente da RC de 27/06/00, na CJ, ano XXV, tomo III, 37; bem como, na mais recente doutrina, além das obras citadas de Lebre de Freitas e de Teixeira de Sousa, também Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 2ª edição, 2000, 31 e Pinto Furtado, Títulos de Crédito, 2000, 82/83 e 285.

Pois bem.
No requerimento executivo a própria exequente reconhece que o cheque, destinado ao pagamento de fornecimentos, não foi apresentado a pagamento no prazo de oito dias do artº. 29º da LUC, nem a execução instaurada no prazo de seis meses do artº. 52º da mesma LUC. Motivo por que é manejado, não como título de crédito incorporando uma obrigação cambiária, mas como documento particular assinado pelo devedor, importando reconhecimento de obrigação pecuniária de montante determinado: artº. 46º, c) do CPC, versão de 1995.
Ou seja: o exequente, após reconhecer a prescrição do cheque como tal, é expresso em dizer que apresenta o cheque como documento particular, assinado pelo devedor, que importa reconhecimento de uma obrigação pecuniária, de montante determinado - pelo que constitui título executivo nos termos do artº. 46º, c) do CPC, na redacção conferida pelo DL 329-A/95.
E alega, no requerimento executivo, que o cheque foi para pagamento de fornecimentos feitos pela exequente (logo, pagamento de preço num contrato de compra e venda), desta forma dando a causa da obrigação de que o cheque é o quirógrafo.
Coisa que em parte o embargante até reconhece, na medida em que contra-alega que os fornecimentos não foram a ele, mas à sociedade "C" (de que ele, aliás, é sócio gerente, como se alcança da escritura de constituição da sociedade de 26/10/95, a fls. 18-22 dos autos), e que o cheque, por si assinado, não era em pagamento dos fornecimentos à sociedade, mas em garantia dos fornecimentos à sociedade. Está, portanto, reconhecido que houve fornecimentos feitos pela exequente, e que o executado-embargante assinou o cheque que tinha esses fornecimentos por causa. Para discutir fica se o fornecimento era ao executado ou à sociedade de que ele era sócio gerente, e se o cheque era em pagamento dos fornecimentos ou em garantia desses fornecimentos. Ora, mesmo que o cheque seja apenas "de garantia", ele é documento particular assinado pelo devedor, que implica o reconhecimento de uma obrigação pecuniária (o garante é também devedor, embora não sendo devedor principal). Tudo o mais dito sobre a causa da obrigação, no requerimento executivo e nos embargos, é matéria a averiguar nos embargos, que por isso, tendo título, devem prosseguir termos e não ser desde já julgados improcedentes.

Foi indevidamente interpretada a norma do artº. 46º, c) do CPC.

Pelo exposto, acordam em conceder a revista, revogando o acórdão recorrido, devendo os embargos prosseguir termos, visto que existe título executivo.
Custas pelo recorrido.

Lisboa, 17 de Junho de 2003
Reis Figueira
Barros Caldeira
Moreira Alves (prescindi dos vistos)