Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3883/18.4T8FAR.E1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME O DIREITO EUROPEU
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
INTERPRETAÇÃO DA LEI
MORTE
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
PROTEÇÃO DA CRIANÇA
EQUIDADE
Data do Acordão: 05/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – Por força de uma interpretação atualista e sistemática do preceito, que tem em conta a conjuntura do momento em que a lei é aplicada (a crescente perigosidade e frequência dos acidentes de viação e as necessidades de proteção dos lesados), bem como a unidade da ordem jurídica (vejam-se os lugares paralelos do sistema no regime da responsabilidade do produtor, responsabilidade por acidentes de trabalho e por acidentes causados por aeronaves e embarcações de recreio), aderimos à orientação jurisprudencial fixada no acórdão deste Supremo Tribunal, de 04-10-2007, que admite a concorrência entre o risco próprio do veículo e a culpa do lesado.

II - No mesmo sentido concorre o princípio da interpretação conforme ao Direito Comunitário, de acordo com o qual o juiz nacional deve, entre os métodos permitidos pelo seu sistema jurídico, dar prioridade ao método que lhe permite atribuir à disposição de direito nacional em causa uma interpretação compatível com o direito originário e derivado da União Europeia.

III - O TJUE, apesar de reconhecer que a escolha do regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos é, em princípio, da competência dos Estados-Membros, e que a culpa da vítima pode excluir ou limitar a indemnização, através de uma apreciação individualizada de cada caso, veda uma exclusão automática da indemnização ou uma redução desproporcionada desta, visando, sobretudo, que os lesados mais vulneráveis, entre os quais incluiu os peões e as crianças, sejam objeto de um tratamento mais favorável.

IV –Não se pode classificar como grave a culpa da mãe da criança que atravessa a estrada com a filha ao colo, nem atribuir ao comportamento desta uma eficácia exoneratória total da responsabilidade pelo risco do veículo, pois, a matéria de facto não fixou a que velocidade circulava o veículo FR, o local do acidente nem a distância que mediava entre o veículo e as peãs.

V- Decide-se, assim, pela verificação de um concurso da responsabilidade pelo risco próprio do veículo FR com a culpa da lesada, fixando-se, para o cálculo da indemnização, uma proporção de 50% para o risco do veículo e 50% para o contributo causal do comportamento da lesada.

VI – O dano da morte da mãe para uma criança de tenra idade deve ser avaliado como superior ao dano sofrido por uma pessoa adulta. Os danos causados às crianças projetam-se ao longo do seu desenvolvimento e diminuem necessariamente as suas capacidades produtivas no futuro, acabando por ser também a sociedade a suportá-los. Assim, é essencial que as crianças recebam, desde logo, uma indemnização equitativa, que possa o mais precocemente possível suprir as perdas provocadas pelo acidente, impedindo o agravamento dos danos e criando oportunidades para o acesso à educação/formação profissional das pessoas menores de idade, que ficam normalmente afetadas nos acidentes de viação, sobretudo se a criança se encontrava num estádio inicial de desenvolvimento.

Decisão Texto Integral:

            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I - Relatório


1.  AA e BB intentaram ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Seguradoras Unidas, S.A. e Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial, S.A., pedindo a condenação das rés no pagamento da quantia de €290.450,00 a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência de acidente de viação[1].

Para tanto alegaram, em síntese, que ocorreu acidente de viação cuja verificação imputam a culpa concorrente dos condutores dos veículos automóveis segurados e do qual resultaram danos patrimoniais e não patrimoniais cujo ressarcimento peticionam.

A ré Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial, S.A. contestou, em suma, excecionando a ilegitimidade do autor e a prescrição do direito dos autores, impugnando os factos alegados na petição inicial, imputando a responsabilidade pela ocorrência do embate a conduta das vítimas e alegando que os montantes peticionados são exagerados.

A ré Seguradoras Unidas, S.A. contestou, em suma, impugnando os factos alegados na petição inicial, imputando a responsabilidade pela ocorrência do embate ao comportamento das vítimas, invocando que os montantes peticionados são excessivos.

Foi citada a instituição de segurança social competente, a qual não deduziu qualquer pedido.

Foi dispensada a realização da audiência prévia, proferido despacho saneador, julgando improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade e relegando para final o conhecimento da exceção perentória de prescrição, fixado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova, sem que tenha sido apresentada reclamação.

Realizou-se a audiência final, com observância do legal formalismo.          


2. Foi proferida sentença que decidiu:

A) julgar a exceção perentória de prescrição improcedente, por não provada;

B) julgar a ação improcedente, por não provada, e, em consequência, absolver as rés do pedido.


3. Inconformados com a sentença, os autores interpuseram recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação confirmado, com a mesma fundamentação e sem voto de vencido, a sentença de 1.ª instância.


4. Novamente inconformados, vieram os autores AA e BB, interpor recurso de revista excecional, nos termos do disposto no artigo 672º, nº 1, alíneas a), b) e c) do CPC, que foi admitido pela formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, com o seguinte fundamento:

«(…)

Com efeito, em tal decisão entendeu-se que a responsabilidade das RR seguradoras sempre estaria excluída, uma vez que a «atuação culposa da vítima leva à exclusão da responsabilidade pelo risco de qualquer dos condutores dos veículos»


Ora, os recorrentes, para além de se insurgirem contra essa avaliação jurídica da matéria de facto assente, também colocam a questão da possível concorrência na produção do acidente entre os riscos próprios dos veículos segurados e a culpa do lesado, invocando a complexidade que a mesma apresenta e a controvérsia que tem gerado.


Segundo entendemos, mostra-se suficientemente justificado que o Supremo Tribunal se possa pronunciar sobre a matéria, atendendo às normas de direito nacional e da União Europeia a que a questão colocada apela e às particularidades do caso: uma jovem mulher (27 anos) perdeu a vida e uma criança de 3 anos sofreu os muito extensos danos descritos nos factos.


Realmente, a interpretação do aludido complexo normativo em que a decisão recorrida se fundamentou envolve uma significativa complexidade e, como resulta da leitura do sumário do acórdão invocado como fundamento, também não é pacífica, até porque é uma matéria que convoca, simultaneamente, princípios consagrados pela União Europeia.


Assim, sem necessidade de aferir a também invocada contradição jurisprudencial, a temática imposta pela questão suscitada pelos requerentes aponta, com nitidez, para a necessidade de admissão do recurso pela via sugerida, de molde a propiciar a excepcional intervenção clarificadora deste Supremo Tribunal, a qual, para além da mencionada relevância jurídica daquela, pode ter impacto nos conceitos comuns sobre a responsabilidade estradal.»

 

5. Na alegação do recurso de revista, as recorrentes formularam as seguintes conclusões:

«I - Na conclusão XXVIII das alegações de recurso dos aqui Recorrentes para o Tribunal da Relação ………, referiu-se o seguinte “(….) ao apenas considerar (…) uma alegada culpa da lesada CC, o tribunal “a quo” violou o disposto no artigo 570º que deveria ser aplicável enquanto concorrência de culpas e violou igualmente a interpretação atualista do disposto conjugado dos artigos 505º e 570º do Código Civil, no contexto e com os critérios que a jurisprudência superior atrás citada a tem vindo a definir”.

II - Por sua vez, a parte final da conclusão XXVIII das alegações de recurso referia-se ao douto acórdão do S.T.J., mencionado a meio da conclusão XXVI, proferido no processo nº 1112/15.1T8VCT.G1.S1, de 01/06/2017 in www.dgsi.pt que, a propósito da questão da concorrência entre culpa do lesado e risco e dos artigos 505º com o 580º do Código Civil entendeu que “Compete ao Tribunal formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a  gravidade da culpa imputável ao comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente.” (o destaque é nosso).

III - Ora, a concorrência entre a culpa do lesado e do risco exige da jurisprudência superior uma maior determinação e estabelecimento de critérios mais apurados em situações, porque quer na doutrina, quer na jurisprudência nacional as opiniões dividem-se tal como doutamente se mencionou nas páginas 38 a 42 da sentença da 1ª instância que aqui, por uma questão de economia processual, se dão por integralmente reproduzidas.

IV - Nos termos do disposto no artigo 672º, nº 2, alínea b) do C.P.C., considera-se que esta questão da questão da concorrência entre culpa do lesado e risco no âmbito de acidentes rodoviários é altamente relevante em termos sociais dado o facto de Portugal ser um dos país com maior sinistralidade rodoviária na qual, com não pouca frequência, às questões próprias da dinâmica do acidente se associam questões decorrentes de riscos repartidos entre as condutas dos condutores e/ou peões e as condições das vias rodoviárias ou o seu excesso de tráfego rodoviário e, no caso sub judice, ainda mais, já que a morte da falecida deixou o Recorrente AA em enormes dificuldades económicas e com uma filha traumatizada por educar.

V - Assim, consideramos observado o disposto no artigo 672º, nº 1 alíneas a) e b) do C.P.C. e entendemos que a melhor aplicação do direito é a que, no confronto da aplicação entre os artigos 505º e 570º do Código Civil considera que não se deve preconizar um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido uma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente, devendo, no caso sub judice ser atribuída culpa repartida ao condutor do veículo FR.

VI - Porém, caso assim não se entenda, consideramos igualmente observado o disposto no artigo 672º, nº 1, alínea c) do C.P.C, na medida em que existe um contradição entre o teor do acórdão do STJ, proferido no âmbito do processo nº 1112/15.1T8VCT.G1.S1, de 01/06/2017 in www.dgsi.pt cuja cópia se protesta juntar, na parte supra citada no ponto 3 das alegações deste recurso de revista excecional e o teor do penúltimo parágrafo a página 28 do acórdão recorrido do Tribunal da Relação …….. no qual se refere que foi a conduta da lesada que quebrou “o nexo de causalidade entre quaisquer riscos próprios dos veículos e os danos, pelo que a descrita atuação culposa da mesma leva à exclusão da responsabilidade pelo risco de qualquer dos condutores dos veículos.”

Deve, pois, o presente recurso ser julgado procedente e revogado o acórdão recorrido, estabelecendo-se a partilha da culpa do acidente ao condutor do veículo FR por ser essa a que melhor se coaduna com a interpretação conjunta dos artigos 505º e 580º do Código Civil

Pois só assim se aplicará o Direito e se fará sã e serena Justiça!»

Notificadas da alegação do recurso de revista excecional interposto pelos autores, as rés, Fidelidade e Seguradoras Unidas, SA, apresentaram contra-alegações, nas quais pugnam pela manutenção do decidido.

Sabido que o objeto de recurso, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, se delimita pelas conclusões da alegação de recurso, a questão de direito a decidir é a de saber se a culpa da lesada exclui ou não a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo automóvel.

 Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A – Os factos

1 - No dia ... .12.2013, pelas 16h00m, DD conduzia o veículo de marca ……, modelo ……, ligeiro de passageiros, com cor cinzenta, de matrícula …-FR-…, de sua propriedade, na EN ……., antes do km 82,672, no concelho………., no sentido ………./……… .

2 - No mesmo dia, na mesma via e no mesmo sentido de marcha, a distância não apurada à sua frente, EE conduzia o veículo de marca ……, modelo ….., ligeiro de passageiros, com cor cinzenta, de matrícula …..-94-….. .

3 - Neste veículo viajavam como passageiras, no banco traseiro, CC e BB, as quais se dirigiam para a respetiva residência, localizada no lado oposto.

4 - Atento o sentido de marcha dos veículos, a EN ….., no local ……, a faixa de rodagem configurava uma reta, com uma largura total de 7,10 metros, comportando duas hemi-faixas de rodagem, uma em cada sentido de trânsito, divididas por traço longitudinal descontínuo, com bermas alcatroadas de cada lado, tendo a berma do dado direito uma largura de 2,50m.

5 - Encontrando-se a faixa de rodagem ladeada com habitações e com espaços comerciais.

6 - A velocidade instantânea permitida no local era de 90km/hora.

7 - O condutor DD iniciou manobra de ultrapassagem de dois veículos que seguiam na sua frente, imprimindo aceleração ao veículo que conduzia.

8 - Após o que ingressou na hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito no sentido ……../…….. .

9 - Por sua vez, o condutor EE saiu da hemi-faixa de rodagem em que circulava e imobilizou o veículo que conduzia na berma existente no lado direito, para permitir a saída das passageiras CC e BB.

10 - As quais se apearam do veículo pela porta traseira do lado direito, colocando a passageira CC a BB ao colo.

11 - Após o que iniciou a travessia da via em direção à berma do lado oposto.

12 - O condutor EE reiniciou a marcha, efetuando manobra de inversão de marcha a partir da berma, pretendendo ingressar na hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito no sentido ……../……… .

13 - Sem cuidar de avistar o veículo de matrícula FR, conduzido por DD, que se encontrava a concluir a manobra de ultrapassagem.

14 - A CC e a BB encontravam-se a efetuar a travessia da via quando se deu o embate com o veículo de matrícula FR.

15 - Em consequência do embate foram projetadas e ficaram prostradas junto da berma do lado esquerdo, considerando o sentido de marcha ………/……….

16 - De seguida, o veículo de matrícula FR foi embater no veículo de matrícula UI, que realizava a manobra de inversão de marcha, cortando-lhe a linha de marcha.

17 - O embate deu-se entre a parte frontal do veículo de matrícula FR na parte lateral esquerda do veículo de matrícula UI.

18 - Ficando os veículos imobilizados uns metros à frente, sensivelmente junto do eixo da via.

19 - Em consequência do embate com a CC e a BB, o veículo de matrícula FR ficou com a lateral direita amolgada e o para-brisas estilhaçado.

20 - E em consequência do embate no veículo de matrícula UI ficou com a parte frontal destruída, ficando o veículo de matrícula UI com a parte lateral esquerda destruída.

21 - Em consequência do embate sofrido a CC sofreu escoriações no queixo, nas mãos, no ombro esquerdo, nos joelhos e pernas, com abrasões na perna direita, traumatismo craneo-encefálico grave com escala de coma de Glasgow no local de 4, traumatismo torácico com pneumohemotorax, traumatismo abdominal com rotura de baço, edema cerebral difuso e fraturas frontais, fraturas do 90 e 100 arcos costais esquerdos, hemorárax, hemoperitoneu com lacetação esplénica, com fratura do frontal, do temporal esquerdo, do etmóide e do esfenóide.

22 - E a BB sofreu traumatismo craniano, entrou em estado de choque, chorando compulsivamente, sofreu dores, escoriações na face, edema do lábio superior e trauma dos membros superiores e inferiores.

23 - A CC e a BB foram transportadas para o Hospital …….. .

24 - Onde a CC realizou cirurgia abdominal urgente esplenectomina, com drenagem de 1800 cc de sangue intraperitoneal, drenagem toráxica, tendo estado em coma induzido.

25 - Teve evolução desfavorável e foi confirmada a morte cerebral pelas 19h00 do dia ... .12.2013, devido a contusão encefálica por traumatismo craniano com fraturas.

26 - A CC havia nascido no dia 18 de maio de 1986 (cfr.fls.38, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

27 - A BB nasceu no dia … de novembro de 2010 e é filha de AA e de CC (cfr. fls. 37, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

28 - CC deixou como única herdeira a filha BB, sendo cabeça-de-casal na herança AA (cfr. fls. 38, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

29 - O autor AA, na data referida em 1., residia com CC há mais de 5 anos, como marido e mulher se tratassem, partilhando a mesma casa, mesa e cama.

30 - As lesões sofridas pela BB demandaram 388 dias para a cura, dos quais 6 com afetação da capacidade de trabalho, e cicatriz nacarada, rendilhada, na região frontal mediana.

31 - No hospital a BB foi imobilizada em plano dorso e colocado um colar cervical, o que lhe causou desconforto e choro.

32 - Durante o tratamento ali administrado e nos dias seguintes após alta sofreu de vários períodos de polipneia.

33 - Estranhou as pessoas e o hospital, chorando com frequência pelas dores e desconforto da imobilização e meios de tratamento.

34 - Foi submetida à aplicação de soros, injeções, exames radiológicos, colheitas de sangue e aplicação de drenos.

35 - Apresentava respiração habitual sibiloso.

36 - Após alta e regresso a casa a BB tinha dificuldade em adormecer, acordava a chorar com pesadelos e assustada.

37 - Iniciou acompanhamento psicológico no G…… em 24 de janeiro de 2014, devido a dificuldade para dormir, choro frequente, medo, isolamento e tristeza.

38 - Terminou esse acompanhamento psicológico em dezembro de 2014.

39 - Durante meses perguntou ao pai pela mãe e quando esta regressaria a casa.

40 - Fingia falar com a mãe ao telemóvel e na escola fazia desenhos onde incluía a mãe.

41 - Brincava a fingir falar com a mãe e chamava por esta quando a contrariam, acordando, depois da sesta a chorar e muito agitada.

42 - Até 2016 apresentava uma hipersensibilidade e sintomas traumáticos.

43 - A BB era apegada à mãe e esta tinha adoração pela filha.

44 - Atualmente a BB já interiorizou a morte da mãe mas ainda sofre tristeza.

45 - No dia da mãe o pai AA desloca-se à escola para participar nas atividades.

46 - A CC executava serviços domésticos no domicílio de terceiros.

47 - Auferindo por cada hora de trabalho cerca de 7,00 euros.

48 - Não era conhecida a esta e à BB qualquer doença.

49 - Contribuía com o rendimento auferido para o pagamento das despesas do agregado familiar composto por si e pelos autores.

50 - O autor despende por mês, aproximadamente, cerca de €250,00 (duzentos e cinquenta euros) com alimentação, educação e vestuário da BB.

51 - O autor trabalhou até outubro de 2014 auferindo uma remuneração em montante não concretamente apurado.

52 - Atualmente trabalha por conta de outrem, auferindo uma remuneração em montante não concretamente apurado.

53 - Em virtude do falecimento da CC teve de tratar de assuntos relativos ao óbito.

54 - E passou a tratar dos compromissos escolares, sociais e apoio à saúde da BB e das tarefas domésticas.

55 - Acompanhou a BB ao apoio psicológico.

56 - Era uma pessoa alegre e de trato fácil.

57 - Tem desgosto, dor, angústia e depressão pela morte da CC e pelo sofrimento e lesões sofridas pela BB, deixou de ter vida social, perdeu o apetite, teve perturbações do sono, sentimentos de solidão e perda de esperança no futuro.

58 - Na sequência da participação dos embates, foram instaurados os processos na 612/13………. e n.º 323/18………, nos quais foi proferido despacho de não pronúncia quanto ao condutor DD e despacho de arquivamento contra o condutor EE (cfr. doc.44/60 e 63/67, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

59 - Naquele processo n.º 612/13……… os autores constituíram-se assistentes e deduziram pedido de indemnização civil contra a Companhia de Seguros Açoreana, S.A. (cfr. doc. 360/362, 44/60 e 63/67, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

60 - As decisões proferidas no âmbito dos processos referidos em 58. foram, respetivamente, notificadas aos autores por cartas expedidas em 11.01.2018 e 20.07.2018 (cfr. doc. de fls.43vo e 62, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

61 - A responsabilidade emergente da circulação do veículo de matrícula …-FR-…. encontrava-se transferida para a companhia de seguros Açoreana Seguros, S.A., através da apólice n.º 09……… (cfr. doc. de fls.168, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

62 - A Seguradora Unidas, S.A., por fusão e redenominação, assumiu por fusão a posição daquela seguradora (cfr. doc. de fls.42vo/43, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

63 - A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de matrícula …- …-UI encontrava-se transferida para a ré Fidelidade- Companhia de Seguros, S.A. através da apólice n.º 75………. (cfr. doc. de fls.134, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).


B - Factos Não Provados

Não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente que:

a) o condutor do veículo de matrícula FR circulava a velocidade superior a 90km/hora;

b) iniciou a manobra de ultrapassagem a 300 metros do local do embate na CC e na BB;

c) sem se certificar que poderia retomar, em condições de segurança, à faixa de rodagem destinada ao trânsito no sentido de marcha ……/……;

d) ou que poderia parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente;

e) o condutor do veículo de matrícula FR foi embater na CC e na BB quando estas estavam junto da berma do lado esquerdo;

f) o autor tem ajuda de amigos e familiares nas despesas;

g) o autor permanece em casa sem poder ir trabalhar, realizar trabalho suplementar, ou frequentar o curso para licença de condução de veículos pesados/ CAM;

h) a CC teve perceção da iminência da morte e sofreu angústia antes de morrer;

i) a CC no momento do embate agarrou a BB e tentou envolvê-la com o seu próprio corpo para a proteger;

j) a BB no hospital cuspia sangue pela boca e nariz;

k) a BB apenas quer dormir com o pai e tem dificuldade de interação e convívio com amigos e outros familiares, chorando quando este se afasta;

l) até 2016/2017 chorava por coisas triviais do dia a dia e reagia com agressividade para com os colegas de escola e pai;

m) queixava-se de situações de bullying por outros colegas que não sucediam;

n) a BB continua a ter medo de dormir com a luz apagada, só dormindo com uma luz de presença;

o) ainda acorda com pesadelos associados à ausência da mãe;

p) o autor isola-se e permanece em casa;

q) sofre de insónias, mais intensas até 2017, mas ainda hoje recorrentes;

r) passou a ser medicado para o tratamento da ansiedade, angústia e perturbações do sono que o afetam.  

C – O Direito

1. A jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem admitido que uma interpretação atualista das normas conjugadas dos artigos 505.º e 570.º, n.º 2, ambas do Código Civil, comporta a possibilidade de, em determinados quadros fácticos, se aceitar um concurso entre responsabilidade pelo risco do veículo e culpa do lesado. Esta solução é também imposta pelo princípio de interpretação conforme ao Direito Comunitário, como decorre do Acórdão 2007-10-04 (Processo n.º 07B1710), em cujo sumário se concluiu que «5. O texto do art. 505º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo. 6. Ao concurso é aplicável o disposto no art. 570º do CC. 7. A este resultado conduz uma interpretação progressista ou actualista do art. 505º, que tenha em conta a unidade do sistema jurídico e as condições do tempo em que tal norma é aplicada, em que a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções, de solidariedade e justiça. 8. Ademais, na interpretação do direito nacional, devem ser tidas em conta as soluções decorrentes das directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel e no direito da responsabilidade civil, já que as jurisdições nacionais estão sujeitas à chamada obrigação de interpretação conforme, devendo interpretar o respectivo direito nacional à luz das directivas comunitárias no caso aplicáveis, mesmo que não transpostas ou incorrectamente transpostas».


O Supremo Tribunal de Justiça, no citado Acórdão de 2007-10-04, abandonou a tese clássica defendida por Antunes Varela, de acordo com a qual, em matéria de acidentes de viação, a verificação de qualquer das circunstâncias referidas no artigo 505º do CC – maxime, ser o acidente imputável a facto, culposo ou não, do lesado – excluiria a responsabilidade objetiva do detentor do veículo, não se admitindo, em consequência, o concurso do perigo especial do veículo com o facto da vítima, de modo a conduzir a uma repartição da responsabilidade: a responsabilidade pelo risco era automaticamente afastada pelo facto do lesado.

Já Vaz Serra sempre se pronunciou, mesmo depois da entrada em vigor do Código Civil, a favor da tese da concorrência entre risco e culpa, propondo, para o efeito, a aplicação analógica do artigo 570.º do Código Civil.          

Brandão Proença, desde 1997, defende, na sua tese de doutoramento (A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual, Almedina, pp. 275-276), que “a posição tradicional, porventura justificada em certo momento, esquece, hoje, que, por exemplo, o peão e o ciclista (esse «proletariado do tráfego» de que alguém falava) são vítimas de danos, resultantes, muitas vezes, de reacções defeituosas ou pequenos descuidos, inerentes ao seu contacto permanente e habitual com os perigos da circulação, de comportamentos reflexivos ou necessitados (face aos inúmeros obstáculos colocados nas «suas» vias) ou de «condutas» sem consciência do perigo (maxime de crianças) e a cuja danosidade não é alheio o próprio risco da condução”, de tal modo que bem pode dizer-se “que esse risco da condução compreende ainda esses outros «riscos-comportamentos» ou que estes não lhe são, em princípio, estranhos”.

Em consequência defende o Autor, que, na ausência de uma norma específica idêntica à do artigo 7º, n.º 1, do Dec-Lei 389/89 (responsabilidade objetiva do produtor), que expressamente admite a concorrência entre culpa e risco, se deve subsumir o concurso heterogéneo de responsabilidades ao critério do n.º 1 do artigo 570º, “atendendo ao paralelismo das duas situações de concorrência, sintonizadas com a necessidade de uma adequada repartição do dano” (cfr. Brandão Proença, “A conduta do lesado ...”, ob. cit., p. 819).

Em 1998, Brandão Proença (“Acidentes de Viação e Fragilidade por Menoridade (Para uma nova conformação normativa)”, Juris et de Jure, Nos vinte anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa – Porto, 1998, p. 111), desenvolve a ideia segundo a qual a norma do artigo 505.º do Código Civil, baseada no princípio normativo de autoresponsabilidade do lesado e permitindo ao responsável a prova da eficácia causal de qualquer conduta do lesado, vulnerabiliza a posição das crianças no tráfego, criando a injustiça de fazer recair na família dos menores lesados as consequências económicas do acidente. O Autor critica a norma do artigo 505.º do Código Civil, por aglutinar as pessoas à margem da consciência do perigo e valorar puros atos causais, considerando-a desadaptada das exigências da vida e da necessidade de proteção e promoção dos indivíduos mais débeis, como os menores, as pessoas portadoras de deficiência e os idosos. Propõe, assim, que a norma seja construída em função de um direito dos lesados à reparação dos danos, defendendo “a subjectivização do teor do artigo 505.º do Código Civil, orientada para a fixação dos comportamentos que pela sua gravidade conduzam ao afastamento da responsabilidade”, bem como, de iure constituendo, “a necessidade de ser consagrada uma reparação automática dos danos corporais causados aos menores de certa idade”.

O mesmo Autor, (Brandão Proença «Responsabilidade pelo risco do detentor do veículo e conduta do lesado: a lógica do “tudo ou nada”?», Cadernos de Direito Privado, n.º 7 julho/setembro 2004, p.25), demarcou-se da corrente clássica de Antunes Varela, caraterizada pelo pensamento objetivista e pelo afastamento de uma solução concursual entre os riscos próprios do veículo e a conduta do lesado, culposa ou não culposa, afirmando que se baseia numa “(…) mera compreensão lógico-formal dos textos legais, de sabor cristalizado (…)”, e que desconsidera que a tutela dos lesados é o leitmotiv do regime jurídico aplicável aos acidentes de viação. Ademais, defende o Autor que esta tese “(…) nunca teve uma fundamentação legal precisa, se pensarmos que, por ex., no citado Código da Estrada de 1954, só estava prevista a concorrência culposa “do lesado e do condutor ou deste e de terceiro” e que o artigo 484º da 1º revisão ministerial do projecto do Código Civil não é suficientemente persuasivo no sentido de afirmarmos, com ANTUNES VARELA, que foi “repudiada” a tese de VAZ SERRA”.

Tem sido crescente o número de autores que na doutrina defendem esta posição. É o caso de Ana Prata (“Responsabilidade civil: duas ou três dúvidas sobre ela”, in Estudos em comemoração dos cinco anos da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2001, pp. 345 e ss) e de Calvão da Silva (Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 134º, pp. 115 e ss). Mais recentemente, Raul Guichard, em anotação ao artigo 505.º do Código Civil, publicada no Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018, p. 416, adere também a esta orientação, defendendo a possibilidade de concorrência entre o risco do veículo e a culpa do lesado, pelo menos nos casos em que a culpa do lesado não seja grave ou este não seja passível de um juízo de censura, em razão de idade ou de outra causa. Prossegue o autor, invocando a favor desta tese a “especial onerosidade da responsabilidade pelo risco” e o “teor abrangente” do artigo 505.º, bem como “a intenção de proteção do lesado; em muitos casos indivíduos «frágeis», crianças e idosos, que justamente carecem de especial proteção”.

           

2. A corrente tradicional foi rejeitada pela jurisprudência porque se entendeu que tratava igualmente situações desiguais, conduzindo a resultados chocantes, que feriam o sentimento de justiça da comunidade, bem como o objetivo de solidariedade social que preside ao seguro de responsabilidade civil por acidentes de viação.  

O fundamento para o afastamento da doutrina clássica, no Acórdão de 04-10-2007, foi o seguinte:  

«Por outro lado, não podemos deixar de ponderar a justeza da crítica, que à corrente tradicional tem sido dirigida, de conglobar, na dimensão exoneratória da norma do art. 505º, tratando-as da mesma forma, situações as mais díspares, como sejam os comportamentos mecânicos dos lesados, ditados por um medo invencível ou por uma reacção instintiva, os eventos pessoais fortuitos (desmaios e quedas), os factos das crianças e dos (demais) inimputáveis, os comportamentos de precipitação ou distracção momentânea, o descuido provocado pelas más condições dos passeios, uniformizando, assim, “as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos lesados por acidentes de viação”, “desvalorizando a inerência de pequenos descuidos à circulação rodoviária”, e conduzindo, muitas vezes, a resultados chocantes.

Tal corrente mostra, ademais, na sua inflexibilidade e cristalização, uma insensibilidade gritante ao alargamento crescente, por influência do direito comunitário – e tendo por escopo a garantia de uma maior protecção dos lesados – do âmbito da responsabilidade pelo risco, que tem tido tradução em vários diplomas (a que faremos alusão mais adiante) cujo relevo maior radica, por um lado, na exigência, como circunstância exoneratória, de culpa exclusiva do lesado, e, por outro, na expressa consagração, no sector da responsabilidade civil do produtor ou fabricante de produtos defeituosos, da hipótese de concorrência entre o risco da actividade do agente e “um facto culposo do lesado” (art. 7º/1 do Dec-lei 383/89, de 6 de Novembro).

Esta evolução legislativa não pode, a nosso ver, ser ignorada, e dela devem ser retiradas “as devidas consequências para uma actualização interpretativa da rigidez normativa do Código Civil, tanto mais que a partir de meados da década de 80 passaram a coexistir dois regimes diferenciados, ou seja, o rígido sistema codificado e uma série de subsistemas imbuídos de um escopo protector e direccionado para os lesados” Autor e loc. cits. na nota anterior, pág. 29.

Como não deve ser ignorado o papel das directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel e a sua influência no direito da responsabilidade civil do próprio Código Civil. Sendo embora certo que, como é entendimento do Tribunal de Justiça, “na falta de regulamentação comunitária que precise qual o tipo de responsabilidade civil relativa à circulação de veículos que deve ser coberta pelo seguro obrigatório, a escolha do regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos é, em princípio, da competência dos Estados-Membros”, não deixa de ser igualmente verdade que as soluções decorrentes da interpretação das disposições das directivas ou do seu efeito útil penetram (ou devem penetrar) as legislações nacionais nesse domínio; e a sua influência no direito português é visível, quer na erradicação, do texto do art. 504º, dos limites aí estatuídos para a responsabilidade do transportador a título gratuito, quer na alteração dos limites máximos indemnizatórios do art. 508º.

 A corrente jurisprudencial tradicional é igualmente insensível à filosofia que dimana do regime, estabelecido no Código do Trabalho, para os acidentados laborais, onde se estabelece que o dever de indemnização do empregador só é excluído se o acidente “provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado”.

Estas são razões com força suficiente, a nosso ver, para pôr de remissa a interpretação jurisprudencial a que vimos aludindo.

Com a obrigatoriedade de contratação de um seguro de responsabilidade civil como pressuposto da circulação de veículos terrestres a motor – introduzida pelo Dec-lei 408/79, de 25 de Setembro – e verificada a íntima conexão material entre as normas do Código Civil relativas à responsabilidade pelo risco em matéria de acidentes causados por veículos e as deste último diploma (e os subsequentes, sobre a mesma temática do seguro obrigatório), impõe-se que a procura das soluções do nosso direito positivo, nesta matéria, seja penetrada de uma lufada de ar fresco, sensível “às novas linhas de força da relação entre o risco dos veículos e a fragilidade de certos participantes no tráfego” e que conduza à tutela destes últimos, dos lesados mais frágeis.»            

O caso decido por este acórdão foi uma colisão entre um automóvel e uma bicicleta conduzida por uma criança de dez anos, tendo-se entendido que «para o acidente – e para os danos que dele resultaram para a ora recorrente, condutora do velocípede – contribuíram a conduta desta, violadora das regras do direito estradal referidas na sentença da 1ª instância, e os riscos próprios do veículo Renault. O que, de acordo com a interpretação do preceituado no art. 505º, acima operada, reclama a subsunção desta situação concursal de causas do dano à norma de repartição do dano que é o art. 570º».

A jurisprudência do Supremo tem-se pronunciado favoravelmente a esta nova orientação jurisprudencial, como demonstra, entre outros, o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 17-10-2019 (proc. n.º 15385/15.6T8LRS.L1.S1), em cujo sumário se afirmou o seguinte: «VI. Tradicionalmente, desvalorizando o elemento literal que decorre do direito substantivo civil, entendia-se que não era legalmente admissível o concurso do risco do lesante com a culpa do lesado, invocando, para o efeito o regime jurídico decorrente do n.º 2 do art.º 570º do Código Civil, sendo que actualmente está firmada no Supremo Tribunal de Justiça uma interpretação não mecânica do art.º 505º do Código Civil no sentido de que não implica “uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) e os riscos do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau de contribuição causal ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura. Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado, implicando sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa.»

De acordo com a jurisprudência deste Supremo Tribunal, em ordem a apurar se os factos do caso preenchem ou não esta hipótese de concurso entre risco do veículo e culpa do lesado, deve recorrer-se a um método jurídico decorrente do princípio da proporcionalidade e da concordância prática. Como se afirmou no Acórdão de 01-06-2017 (1112/15.1T8VCT.G1.S1), «Compete ao Tribunal formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável ao comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente».


3. Neste juízo de ponderação, como defende o Conselheiro João Bernardo, na sua declaração de voto ao Acórdão de 04-10-2007, deve até ir-se mais longe e assumir-se como fonte da indemnização não a culpa ou o risco, mas as consequências gravosas dos acidentes de viação conjugadas com as regras do seguro obrigatório, ilustrando o seu pensamento com a técnica usada na lei francesa, designada por lei Badinter, na qual «(…) parte-se logo da indemnização às vítimas de acidentes de circulação e, depois, como exceção, surge a culpa grave do lesado (“faute inexcusable”), aliás, não relevante nos casos em que os acidentados têm menos de 16 (…) ou mais de 70 anos ou sejam titulares de incapacidade de, pelo menos, 80%. Não se procurou um estribo na culpa ou em risco (que nem é sequer ali referido) para se indemnizar».

Como refere o ilustre Conselheiro, «Os acidentes com veículos constituem, nas sociedades modernas, a principal causa de morte ou de lesões graves numa longa fase da vida do ser humano. A este depara-se-lhe uma realidade que constitui – na perspectiva que aqui nos interessa dos acidentes e suas consequências – um desvalor particularmente intenso, que justifica que a ideia de indemnização se vá afastando do modo como o acidente se deu, relegando, nomeadamente, para menor importância, a questão da culpa ou dos fins por que o condutor pôs o veículo em movimento. É na própria circulação dos veículos, encarada no seu todo, que se vai procurar, cada vez mais, a razão de ser da indemnização. O acidente em si representará uma concretização já com esse “pano de fundo”».

 

4. Num mundo em que o tráfico rodoviário é cada vez mais intenso e perigoso, o sistema rígido do Código Civil já não serve as necessidades dos cidadãos, havendo de proceder a uma interpretação atualista das normas, tendo como paradigma outros subsistemas de responsabilidade civil, como a responsabilidade por acidentes de trabalho e a responsabilidade do produtor, caraterizados por regimes mais flexíveis e protetores dos lesados. O seguro obrigatório transformou-se, assim, numa medida de alcance social que pretende dar uma resposta cabal aos legítimos interesses dos lesados em acidente de viação. A vulnerabilidade da vítima e a sua necessidade de proteção são fatores também realçados pelas normas de Direito Comunitário e pela jurisprudência do TJUE, assim se ultrapassando (ou relativizando) o estrito tecnicismo da difícil relação entre risco do veículo e culpa do lesado.

As diretivas da UE relativas aos acidentes de viação e a jurisprudência do TJUE têm acentuado a necessidade de socialização dos danos e de proteção das vítimas através de um sistema de seguro obrigatório automóvel, influenciando o direito da responsabilidade civil automóvel. As soluções decorrentes das diretivas ou do seu efeito útil, direto ou indireto, são suscetíveis de provocar alterações na legislação nacional e na jurisprudência. Por exemplo, o Direito Comunitário determinou a modificação do texto do artigo 504º do Código Civil, que deixou de excluir a responsabilidade pelo risco na hipótese de transporte gratuito (DL n.º 14/96, de 06/03, que harmonizou o direito interno com a Diretiva 90/232/CEE, de 14-05-1990) e a alteração dos limites máximos da indemnização fixados no artigo 508.º do Código Civil para os veículos de circulação terrestre nas situações de responsabilidade pelo risco.

O Direito Comunitário tem, assim, dado prevalência à necessidade de as vítimas receberem uma indemnização condigna através do seguro obrigatório, nele incluindo a cobertura dos danos causados às pessoas transportadas, aos peões e aos ciclistas (cfr. Diretiva do Conselho de 30.12.1983 (84/5/CE); Diretiva do Conselho de 8.11.1990 (90/618 CEE); Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 16.5.2000 (2000/26/CE); Diretiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005.  

 Segundo o artigo 1.°-A, inserido pela Diretiva 2005/14/CE, de 11 de maio de 2005, afirma que “O seguro (…) assegura a cobertura dos danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas que, em consequência de um acidente em que esteja envolvido um veículo a motor, têm direito a indemnização de acordo com o direito civil nacional. O presente artigo não prejudica nem a responsabilidade civil nem o montante das indemnizações.’

 Segundo o décimo sexto considerando da Diretiva 2005/14: «Os danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, que constituem habitualmente a parte mais vulnerável num acidente, deverão ser cobertos pelo seguro obrigatório do veículo envolvido no acidente caso tenham direito a indemnização de acordo com o direito civil nacional. Esta disposição não condiciona a responsabilidade civil nem o nível da indemnização por um acidente específico, ao abrigo da legislação nacional.»

Por sua vez, o artigo 12.° da Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO L 263, p. 11), sob a epígrafe «Categorias específicas de vítimas», dispõe que, «1. Sem prejuízo do segundo parágrafo do n.° 1 do artigo 13.°, o seguro referido no artigo 3.° cobre a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, excepto o condutor, resultantes da circulação de um veículo.[...] 3. O seguro referido no artigo 3.° assegura a cobertura dos danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas que, em consequência de um acidente em que esteja envolvido um veículo a motor, têm direito a indemnização de acordo com o direito civil nacional. O presente artigo não prejudica nem a responsabilidade civil nem o montante das indemnizações.»

A jurisprudência do TJUE tem acentuado a necessidade de proteção dos lesados mais vulneráveis, especialmente menores de idade (cfr. Acórdão Ambrósio Lavrador, C-409, de 09-06-2011).

O direito nacional deve ser interpretado à luz do Direito Comunitário, que valoriza a finalidade do seguro como instrumento de solidariedade com as vítimas, secundarizando a culpa do lesado ao papel de um fator entre outros para determinar o montante da indemnização e arredando a tese de que a culpa do lesado absorve automaticamente o risco.

Para o que aqui releva, veja-se, por exemplo, o Acórdão do TJUE, Ambrósio Lavrador, C-409, de 09-06-2011, em que se decidiu o seguinte:

 «A Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e a Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano”.           

           

5. Resolvida a questão de direito, em abstrato, importa, agora, aplicar esta orientação jurisprudencial aos factos do caso em apreço.

O acidente que deu lugar aos danos foi o atropelamento causador da morte de uma jovem mulher que atravessava a via (Estrada Nacional ……) com a filha de três anos ao colo, sem se ter certificado previamente do tráfego.

Os factos provados afirmam, a propósito das circunstâncias em que mãe e filha foram atropeladas e projetadas, que o veículo onde se encontravam como passageiras estacionou na berma do lado direito para permitir a saída de ambas, tendo a mãe atravessado a via para a berma do lado oposto com a criança ao colo. No momento em que estas foram atropeladas pelo condutor do veículo FR, o segurado encontrava-se a fazer uma ultrapassagem e o condutor do veículo onde a autora e a sua mãe foram transportadas estava a sair da berma do lado direito e a fazer inversão de marcha para regressar à hemi-faixa no sentido ……/………., tendo também sido atingido pelo veículo FR. Não se provou que o veículo FR circulasse acima da velocidade admitida, 90 Km/hora. O tribunal de 1.ª instância, em sentença que veio a ser confirmada pelo Tribunal da Relação, tomando como ponto de partida a tese tradicional defendida por Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, Vol. I, 4.ª edição, pp. 597-599) e atribuindo a causa do acidente à culpa exclusiva da jovem mulher falecida, decidiu pela improcedência da ação, interpretando da seguinte forma a dinâmica do acidente:

«No caso dos autos, temos uma conduta culposa da malograda CC que, quando se encontravam pelo menos três veículos em circulação na via (de cor verde, de cor vermelha e o FR), numa via conhecida pelos sucessivos acidentes rodoviários, procedeu ao atravessamento da faixa de rodagem, com a filha de três anos ao colo, sem cuidar que o poderia fazer em segurança e sem comprometer o trânsito. Não se apura que previamente tenha demonstrado tal intenção de atravessamento, sendo que se apura que o embate se deu na lateral direita do veículo FR e no para-brisas deste, com projeção das vítimas para a berma do lado esquerdo. Dispunha o art.º 99.º do Código da Estrada os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas, sem prejuízo de poderem transitar pela faixa de rodagem “com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos”, designadamente quando efetuem o seu atravessamento. Determinando o aludido n.º 1 do art.º 101.º do mesmo Código que os peões “Não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente”. Cuidados a que a sinistrada não se deu, tendo em conta as acima referidas circunstâncias e o facto do condutor do FR circular pela EN ….. em plena manobra de ultrapassagem.

Donde, concluímos que foi a imprudência, a falta de cuidado da vítima que esteve na origem do acidente, quebrando o nexo de causalidade entre quaisquer riscos próprios do veículo e os danos - a descrita atuação culposa da mesma leva à exclusão da responsabilidade pelo risco do condutor do veículo automóvel. Por outro lado, como vimos, não se apurou uma violação culposa de qualquer regra estradal por parte do condutor do veículo FR como causa (ou concausa) do acidente - designadamente que circulasse em excesso de velocidade - nem que o mesmo seguisse desatento à condução. Donde, afigura-se-nos que o sinistro que causou os danos cujo ressarcimento é peticionado se deveu exclusivamente à conduta da sinistrada CC, não se verificando qualquer contribuição causalmente adequada proveniente dos riscos próprios do veículo de matrícula FR».

 A análise que o tribunal fez do acidente, não constitui, contudo, a visão mais acurada da reconstrução do acidente de acordo com a matéria de facto fixada, que peca por escassez de informação. Não se provou a que velocidade circulava o veículo FR, nem a que distância se encontrava do veículo UI no momento da ultrapassagem, nem qual foi o local do embate. Não existem dados que permitam afirmar a culpa do condutor que atropelou mãe e filha durante o atravessamento. Contudo, perante a falta de informação sobre a velocidade de circulação do veículo FR e da distância a que se encontrava das vítimas, também não é possível reconstruir o acidente de forma a concluir pela culpa grave do lesado, neste caso, da mãe que atravessou a estrada com a filha ao colo. Para esse efeito seria essencial saber se o veículo se encontrava a uma distância que tornava arriscado um atravessamento. Só o conhecimento da velocidade de circulação do veículo FR permitiria aferir da possibilidade de a jovem mulher, CC, que veio a falecer em resultado do atropelamento, poder, ou não, prever a possibilidade de colisão para ajustar o seu comportamento. Diferentemente do afirmado pelo tribunal de 1.ª instância, que assertivamente conclui pela culpa exclusiva da vítima, não está este Supremo Tribunal em condições de confirmar esta conclusão, que não goza de suporte na matéria de facto. Pelo contrário, entendemos que a escassez de factualidade, em relação aos elementos apontados (velocidade e distância entre os veículos no momento do atravessamento e local da colisão), não permite inferir a solução mais radical de excluir o contributo causal do risco inerente à circulação do veículo FR e atribuir o acidente unicamente à esfera da vítima ou ao seu comportamento descuidado. Pensamos que, dada a escassez dos factos provados, não se pode afirmar mais do que uma culpa mediana da vítima, que não exclui a relevância causal do risco da condução de veículos, tanto mais que uma dupla ultrapassagem (veículo FR) é sempre uma manobra perigosa. Ademais, como afirma a decisão de facto do tribunal de 1.ª instância, «é certo que se comprovou que, após o embate com as vítimas, o veículo FR embateu no veículo UI, provocando encarceramento do condutor e lesões com alguma gravidade (cfr. elementos clínicos juntos a fls. 349/353)», o que constitui um indício de que a forma como foi realizada a manobra de ultrapassagem contribuiu, pelo menos em termos de causalidade, para a verificação do dano.

Acerca do comportamento da mãe – atravessamento da via com a filha de três anos ao colo – pode dizer-se que, se por um lado aquela tem o dever de estar mais atenta ao trânsito do que é normal para evitar acidentes, por outro lado, a circunstância de ter a filha ao colo faz com que atravesse mais lentamente pois suporta o peso da criança, não tendo reflexos suficientes nem mobilidade para acelerar o passo ou correr, em resposta a um automóvel que apareça na via, de repente, a fazer uma dupla ultrapassagem. Deve ter-se em conta, também, ao avaliar a culpa da lesada, a circunstância de uma mãe que leva a filha ao colo ter mais dificuldade em observar o ambiente exterior, por estar absorvida pelos movimentos da criança ou poder até estar a olhar para o rosto desta ou a atender ao seu choro ou desconforto.

A insuficiência da matéria de facto não pode, neste caso, ser suprida pela baixa do processo ao tribunal recorrido, para ampliação, nos termos do artigo 682.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, uma vez que tendo o tribunal de 1.ª instância dado como não provados factos pertinentes – o local do embate nas vítimas e a velocidade a que circulava o veiculo FR quando efetuou a ultrapassagem – por não haver nem testemunhos nem documentos que os demonstrassem, afigura-se que não será possível, por falta de elementos essenciais para o efeito, proceder a tal ampliação.

Todavia, a insuficiência detetada não impossibilita a decisão de direito, dispondo o Supremo Tribunal de elementos para aplicar o direito aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido. Mas isto não significa que a dinâmica do acidente, tal como interpretada pelo tribunal de 1.ª instância, seja de subscrever.

O acidente de viação, segundo a factualidade descrita nos autos, pode ter tido várias dinâmicas possíveis que não ficaram demonstradas. Assim, entendemos que se trata de um caso de concorrência heterogénea, entre risco e culpa do lesado, na medida em que contribuíram causalmente para o acidente, não só o comportamento da vítima, mas também o risco gerado pela condução do veículo, cujo condutor tem a direção efetiva do mesmo e o utiliza no seu próprio interesse, nos termos do artigo 503.º, n.º 1, do Código Civil. A exclusão da responsabilidade pelo risco do condutor, decidida pelas instâncias, não tem suporte factual, pois os factos do caso não demonstram que o acidente se tenha ficado a dever exclusivamente ao comportamento da peã. Por outro lado, ainda há que graduar a culpa desta, não se devendo assumir, sem mais, que a culpa foi grave e que foi a única causa do dano.

Como “pano de fundo” da resolução do caso não se pode perder de vista que a criança de três anos, que também foi vítima do atropelamento e perdeu a mãe, sofreu danos com uma repercussão grave no seu desenvolvimento, que choca o sentimento da comunidade que não sejam indemnizados. A injustiça do resultado torna-se ainda mais visível se lembrarmos que a criança é uma pessoa diferente da mãe, e que a culpa desta na decisão de atravessar a via naquele momento nunca pode ser imputada à criança, que, precisamente por ser menor de idade, tem direito à proteção do Estado e da sociedade (artigo 69.º, n.º 1, CRP).

A aplicação que alguma jurisprudência faz do conceito de culpa in vigilando, no contexto dos acidentes de viação, deixa as crianças vítimas desprotegidas e olvida que estas não são objetos que pertençam aos seus progenitores, nem é justo que sofram as consequências dos erros dos pais. Como questiona, a este propósito, Brandão Proença (Acidentes de viação e fragilidade por menoridade, ob. cit, p.110): “Entre dois não culpados, por que é que se tem de optar pelo detentor? E será jurídica e economicamente defensável uma solução «assimiladora» que faça recair todo o peso do dano nos vigilantes desses menores, tidos, em todos os casos, como garantes omnipresentes da integridade física dos seus vigiados?”

Os danos causados às crianças projetam-se na sua vida adulta e diminuem necessariamente as suas capacidades produtivas no futuro, acabando por ser também a sociedade a suportá-los, pelo que é essencial que as crianças recebam, desde logo, uma indemnização equitativa, que possa o mais precocemente possível suprir as perdas provocadas pelo acidente, impedindo o agravamento dos danos e criando oportunidades para o acesso à educação e à formação profissional das pessoas menores de idade, que ficam normalmente afetadas nos acidentes mais graves, sobretudo se a criança se encontrava num estádio inicial de desenvolvimento.

             

6. Dispõe o artigo 505.º do Código Civil, sob a epígrafe “Exclusão da Responsabilidade”, que «Sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo».

Por força de uma interpretação atualista e sistemática do preceito, que tem em conta a conjuntura do momento em que a lei é aplicada (a crescente perigosidade e frequência dos acidentes de viação e as necessidades de proteção dos lesados), bem como a unidade da ordem jurídica (vejam-se os lugares paralelos do sistema no regime da responsabilidade do produtor, responsabilidade por acidentes de trabalho e por acidentes causados por aeronaves e embarcações de recreio), aderimos à orientação jurisprudencial fixada no acórdão deste Supremo Tribunal, de 04-10-2007, que admite o concurso entre o risco do veículo e a culpa do lesado.

No mesmo sentido, como vimos, concorre o princípio da interpretação conforme ao Direito Comunitário, de acordo com o qual o juiz nacional deve, entre os métodos permitidos pelo seu sistema jurídico, dar prioridade ao método que lhe permite atribuir à disposição de direito nacional em causa uma interpretação compatível com o direito originário e derivado da União Europeia.

O TJUE, apesar de reconhecer que a escolha do regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos é, em princípio, da competência dos Estados-Membros, e que a culpa da vítima pode excluir ou limitar a indemnização, através de uma apreciação individualizada de cada caso, impede uma exclusão automática da indemnização ou uma redução desproporcionada desta, visando, sobretudo, que os lesados mais vulneráveis, entre os quais incluiu os peões e as crianças, sejam objeto de um tratamento mais favorável.

 No Acórdão Ambrósio Lavrador, o TJUE entendeu que as diretivas sobre responsabilidade civil automóvel e seguro obrigatório ficariam privadas de efeito útil se, “(…) apenas com fundamento na contribuição da vítima para a produção do dano, uma regulamentação nacional, definida com base em critérios gerais e abstractos, recusasse à vítima o direito de ser indemnizada pelo seguro automóvel obrigatório ou limitasse esse direito de modo desproporcionado (v., neste sentido, acórdão Candolin e o, já referido, n.° 29). Por conseguinte, só em circunstâncias excepcionais, com base numa apreciação individual, a extensão da indemnização da vítima poderá ser limitada (acórdão Candolin e o., já referido, n.° 30).».


7. Afirma o tribunal de 1.ª instância, que, tendo atribuído exclusivamente a culpa do acidente à lesada, através de um juízo de ponderação individualizado, não viola o Direito da União, respeitados que estão os critérios fixados na jurisprudência do TJUE. Entendemos, todavia, que os critérios aplicados foram gerais e abstratos, partindo da culpa da mãe, sem ponderar a vulnerabilidade da criança enquanto pessoa, titular de direitos fundamentais e que goza de autonomia em relação aos seus progenitores. Verifica-se, portanto, um erro na aplicação do direito, sindicável pelo tribunal de revista enquanto questão de direito, e que deve ser corrigido, admitindo-se, de forma proporcional, o contributo causal para os danos de todas as partes envolvidas no acidente.

A norma do artigo 570.º, n.º 1, para permitir soluções proporcionais, deve alargar-se ao concurso entre o risco e a culpa do lesado, na medida em que se trata de concausalidades valorativamente semelhantes (Brandão Proença, “Anotação ao artigo 570.º do Código Civil”, ob. cit, p. 580), sendo decisivo, para a solução do caso concreto, o contributo causal do risco dos veículos para o dano e não apenas o juízo de censura que recai sobre a jovem mãe falecida.      

Assim, para além da culpa da lesada no atravessamento da via com a filha ao colo, devem ser ponderadas as consequências do acidente, muito gravosas para as duas peãs, mãe e filha, bem como o contributo causal do risco do veículo FR: a dupla ultrapassagem, uma manobra especialmente perigosa. Conforme atrás explanado, entendemos não se poder classificar como grave a culpa da mãe da criança, nem atribuir ao comportamento desta uma eficácia exoneratória total da responsabilidade pelo risco do veículo, pois, a matéria de facto não fixou a que velocidade circulava o veículo FR, o local do acidente e a distância que mediava entre cada um dos veículos e as peãs. 

Como auxílio para a repartição proporcional da responsabilidade, este Supremo Tribunal pode recorrer à solução prevista no artigo 506.º, n.º 2, do Código Civil, considerando, em caso de dúvida, igual a medida da contribuição de cada um dos veículos, bem como a contribuição da culpa da lesada (cfr. Brandão Proença, “Anotação ao artigo 570.º”, Comentários ao Código Civil, ob. cit., p. 580, propondo, neste contexto, uma especial proteção de certos lesados vulneráveis como peões, crianças, idosos, grávidas, pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida).

 Em conclusão, decide-se pela verificação de um concurso da responsabilidade pelo risco próprio do veículo com a culpa da lesada, fixando-se, para o cálculo da indemnização, uma proporção de 50% para o risco do veículo FR e 50% para o contributo causal do comportamento da lesada.

 

8. Vejamos, então, quais os danos suportados pelos autores:

O Código Civil consagra, em pleno, o princípio da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais (artigo 496.º, n.º 1) e o critério da fixação equitativa da indemnização correspondente (artigo 496.º, n.º 4).  Nos termos da lei (artigo 496.º, n.ºs 2 e 3), por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens (ou à pessoa com quem a vítima vivia em união de facto) e aos filhos ou outros descendentes.

Os danos não patrimoniais, embora insuscetíveis de uma verdadeira e própria reparação ou indemnização, porque não avaliáveis em dinheiro, podem ser, de algum modo compensados. Na verdade, a reparação dos prejuízos, precisamente porque estes são de natureza moral (e, nessa exata medida, irreparáveis) é uma reparação indireta (cf. acórdão de 19-10-2004, Revista n.º 2897/04, 6.ª Secção).

Os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis (a vida, a integridade física, psíquica e sexual, a saúde, a liberdade, o bem-estar físico e psíquico, a alegria de viver, a beleza) e não podem ser reintegrados por equivalente.

A fixação do montante da indemnização por danos não patrimoniais não obedece a critérios matemáticos ou rígidos, baseando-se antes em juízos de equidade, necessariamente incindíveis das particularidades de cada caso concreto, mas com tendência a uma valorização crescente por estarem ligados a bens jurídicos pessoais constitucionalmente tutelados.

Como se entendeu no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 12-03-2015 (Processo n.º 1988/05.0TBOVR), relatado pela agora relatora:

«A valorização dos danos não patrimoniais está relacionada com a dignidade da pessoa humana e com a tutela constitucional dos seus direitos fundamentais – os direitos ao livre desenvolvimento da personalidade, à integridade física, psíquica e moral, o direito à saúde, o direito ao trabalho – direitos estes que beneficiam de tutela civil, por força do art. 70.º, n.º 1 do CC, norma materialmente constitucional, que remete para o catálogo de direitos consagrados na Constituição (arts 24.º e seguintes da CRP)  e que protege um conjunto indeterminado de bens jurídicos pessoais não tipificados, os vários modos de ser físicos, psíquicos e morais da personalidade, de acordo com uma visão mais ampla e rica da pessoa».

O Código Civil não enumera os danos não patrimoniais, confiando ao tribunal o encargo de os apreciar, no quadro das várias situações concretas.

A própria noção de dano, nos acidentes de viação, sai fora das tradicionais categorias, e abrange várias sub-categorias, de forma a melhor expressar os aspetos da dignidade humana que são efetivamente lesados: por exemplo, o dano estético, o dano existencial, o dano da perda de autonomia, o dano sexual, o dano biológico, a perda da alegria de viver.

Como se também afirmou no já citado Acórdão, de 12-03-2015:

«A conceptualização do dano não patrimonial sofrido pela pessoa, a partir da situação concreta em que se encontra em virtude da lesão, conduz ao reconhecimento de várias sub-categorias ou especializações, dentro da categoria geral de dano não patrimonial, consoante o aspecto da vida ou da personalidade que ficou afectado: o dano existencial, como aquele que afecta toda a vida relacional da pessoa lesada com a sua família e a esfera íntima da pessoa; o dano estético, aquele que afecta o seu aspecto físico e a beleza corporal, envolvendo a avaliação personalizada da imagem em relação a si própria e perante os outros; o dano biológico, enquanto dano corporal ou à saúde traduzido na diminuição psicossomática da pessoa, compreende vários factores, suscetíveis de afectar as actividades laborais, recreativas, sociais, a vida sexual e sentimental, e assume um carácter dinâmico, na medida em que tende a agravar-se com o avançar da idade da pessoa lesada, produzindo consequências na mensuração do dano não patrimonial e/ou do dano patrimonial; o dano da perda de autonomia, que afecta a liberdade de iniciativa, a auto-realização e a auto-estima; o dano psicológico, traduzido em angústia e depressão e ligado ao dano da perda da alegria de viver, que altera a forma como a pessoa vê e sente o mundo no seu quotidiano; o dano da afirmação pessoal, que altera a forma como a pessoa se insere no mundo e se sente a si mesma perante os outros; o dano da incapacidade laboral, que, para além da perda de rendimentos, enquanto dano patrimonial futuro, retira à pessoa a sensação de utilidade e de produtividade, acarretando a perda de auto-estima e do sentido da vida; o dano da perda de esperança de vida ou de diminuição da longevidade; o dano da perda da possibilidade de gozar os anos da juventude.

A amplitude da noção de dano não patrimonial, sub-dividida em categorias relativas a diferentes e múltiplos aspectos da personalidade e da vida, ainda que possa criar sobreposições parciais entre as várias sub-espécies de danos não patrimoniais tem a virtualidade de conduzir ao significativo alargamento da compreensão do âmbito dos prejuízos efectivamente sofridos pelas vítimas de factos geradores de responsabilidade civil delitual».


A jurisprudência adota, para a determinação do montante da compensação dos danos não patrimoniais, critérios de equidade e de justa medida, que tenham em conta a gravidade dos prejuízos, o grau de culpabilidade do agente, e demais circunstâncias do caso, todos decorrentes da lei, nos termos do artigo 496.º, n.ºs 1 e 4, do Código Civil.

A este propósito, entendemos que o conceito de dano não patrimonial, porque se reporta ao sofrimento humano – único em cada indivíduo – e não existe um “preço da dor” ou um “preço do sangue”, é um conceito altamente variável e permeável às circunstâncias do caso, em relação ao qual não é possível o estabelecimento de critérios absolutamente uniformes. Contudo, é possível verificar-se, e é aconselhável que assim seja, uma igualdade tendencial entre os sujeitos, ou, pelo menos, que a jurisprudência relativa ao cálculo das indemnizações por danos causados por acidentes de viação não crie disparidades grandes entre os sujeitos sinistrados para casos semelhantes, sem deixar de tratar diferentemente o que é diferente e na medida dessa diferença, como também exige o princípio da igualdade.


9. No caso vertente, estamos perante os danos não patrimoniais causados a uma criança pela perda da sua mãe, vítima de atropelamento.

A filha da vítima tinha, à data do acidente, três anos de idade. Nesta fase do desenvolvimento humano, ainda num estádio inicial, as crianças precisam da manutenção da relação afetiva com a sua pessoa de referência, neste caso, a mãe, para ultrapassar com sucesso cada etapa do seu crescimento. A morte da mãe provoca uma separação repentina e definitiva entre esta e a filha, gerando, em consequência, danos psicológicos graves, que se repercutem negativamente no seu desenvolvimento físico, psíquico e intelectual. A estabilidade da vida e dos afetos são valores primordiais para as crianças. O direito à infância está relacionado com o direito à alegria de viver e de gozar, com descontração, a sua juventude. A perda súbita da mãe provocou um sofrimento à autora pelo qual nenhuma criança devia ter que passar. A BB era apegada à mãe e esta tinha adoração pela filha (facto n.º 43). A dor da perda da mãe, e do seu carinho e conforto, altera o equilíbrio bio-psicológico das crianças, afeta a sua segurança e estabilidade, valores essenciais para o seu desenvolvimento e aquisição de capacidades.

Para além desta perda, a criança sofreu traumatismo craniano, entrou em estado de choque, chorando compulsivamente, sofreu dores, escoriações na face, edema do lábio superior e trauma dos membros superiores e inferiores (facto provado n.º 22) lesões que demoraram 388 dias para a cura (facto provado n.º 30), dores físicas e psíquicas, causadas pelo acidente, pelo internamento e pelos tratamentos, as quais, dada a sua pouca idade, são sentidas com muito mais intensidade do que por uma vítima adulta (factos provados n.º 30, 31, 32, 33, 34 e 35). Tinha dificuldade em adormecer, acordava a chorar com pesadelos e assustada (facto provado n.º 36); iniciou acompanhamento psicológico, devido a dificuldade para dormir, choro frequente, medo isolamento e tristeza (factos n.º 36, 37 e 38). Durante meses perguntou ao pai pela mãe e quando esta regressaria a casa (facto provado n.º 39); fingia falar com a mãe ao telemóvel e na escola fazia desenhos onde incluía a mãe (facto provado n.º 40); brincava a fingir falar com a mãe e chamava por esta quando a contrariam, acordando depois da sesta a chorar e muito agitada (facto provado n.º 41); até 2016 apresentava uma hipersensibilidade e sintomas traumáticos (facto provado n.º 42).

Todos estes aspetos fizeram com que a vida desta criança, pelo menos até 2016, deixasse de ter como pano de fundo o afeto da mãe e a alegria de viver, para ficar marcada pela tristeza, medo e dor. Este sofrimento é suscetível de provocar nas crianças um efeito traumático que pode vir a repetir-se ciclicamente no seu cérebro ao longo da sua vida e refletir-se negativamente no acesso à educação e formação profissional. 

A filha, agora autora, não poderá mais beneficiar do acompanhamento, do amparo, da assistência, do carinho e do afeto da sua mãe ao longo da sua infância e juventude, uma fase da vida crucial para o seu desenvolvimento harmonioso e em que o ser humano mais necessita de amor e de referências.

Em consequência, o dano da perda da mãe, em tão tenra idade, deverá ser reparado com uma indemnização de montante mais alto do que quando a vítima é adulta.


10. Relativamente ao autor, companheiro da vítima falecida, este era uma pessoa alegre e de trato fácil (facto provado n.º 56). Na data do acidente, residia com CC há mais de 5 anos, como marido e mulher se tratassem, partilhando a mesma casa, mesa e cama (facto provado n.º 29). Depois do acidente teve de tratar de assuntos relativos ao óbito (facto provado n.º 53), sofre desgosto, dor, angústia e depressão pela morte da CC e pelo sofrimento e lesões sofridas pela BB, deixou de ter vida social, perdeu o apetite, teve perturbações do sono, sentimentos de solidão e perda de esperança no futuro (facto provado n.º 57), e passou a cuidar sozinho da filha (factos provados n.º 54 e 55).

 

11. Sendo o dano da morte de um familiar próximo indemnizado por este Supremo Tribunal de Justiça através de valores que rondam os 50.000 euros, e tendo os autores pedido um valor de 100.000 euros para ambos, de acordo com uma proporção a decidir por este Supremo Tribunal, julgamos correto atribuir a ambos totalidade do valor peticionado, 100.000 euros, na proporção de 70.000 para a filha menor e de 30.000 para o companheiro da vítima mortal do acidente.


12. Relativamente ao quantum doloris da criança, provocado pelo acidente e pelos tratamentos, e ao dano estético sofrido, em virtude uma cicatriz na cara, considera-se equitativo um montante de 70.000 euros, conforme peticionado, atendendo à circunstância de as crianças não terem, como os adultos, qualquer controlo da sua vida, nem recursos interiores para superarem ou racionalizarem a dor e compreenderem ou aceitarem os eventos trágicos.


13. O autor, AA, sofreu danos não patrimoniais reflexos por ver sofrer a filha, e por se encontrar sozinho a cuidar de uma criança que perdeu a mãe, que constituía a sua principal referência afetiva. Sofreu também o dano da vida de relação ou dano existencial, em virtude de deixar de ter vida social, ter perturbações de sono e perda de alegria de viver. De acordo com a equidade, avaliam-se estes danos em 15.000 euros.  


14. A falecida CC sofreu também danos morais antes de falecer, como atesta o facto provado n.º 21: escoriações no queixo, nas mãos, no ombro esquerdo, nos joelhos e nas pernas, com abrasões na perna direita, traumatismo craneo-encefálico grave com escala de coma de Glasgow no local de 4, traumatismo torácico com pneumohemotorax, traumatismo abdominal com rotura de baço, edema cerebral difuso e fraturas frontais, fraturas do 90 e 100 arcos costais esquerdos, hemorárax, hemoperitoneu com lacetação esplénica, com fratura do frontal, do temporal esquerdo, do etmóide e do esfenóide. Realizou ainda cirurgia abdominal com drenagem de sangue intraperitoneal, drenagem toráxica, esteve em coma induzido (facto provado n.º 24), tendo a morte cerebral sido confirmada às 19h00 do 13-12-2013, cinco dias após o acidente (facto provado n.º 25). Assim, considerando que sofreu dores provocadas pelo acidente e pela intervenção cirúrgica e que o estado de coma é um dano moral em si mesmo, ainda que com perda total ou parcial de consciência, estima-se adequado o montante de 20.000 euros, a dividir pelos autores em partes iguais.

  

15. O montante dos danos patrimoniais sofridos pelos autores, com a perda da mãe da autora e companheira do autor, com quem este vivia em comunhão de vida, partilhando a educação e sustento da filha, e as despesas do agregado familiar, deve ser aferido pelo valor do salário da falecida CC, descontando o valor das despesas pessoais desta, e pelo valor económico do trabalho prestado no lar, tendo em conta a sua esperança média de vida, de forma a permitir à família um capital que supra a falta da remuneração da mãe da menor.

Segundo a matéria de facto, «46- A CC executava serviços domésticos no domicílio de terceiros. 47- Auferindo por cada hora de trabalho cerca de 7,00 euros. 48- Não era conhecida a esta e à BB qualquer doença.  49- Contribuía com o rendimento auferido para o pagamento das despesas do agregado familiar composto por si e pelos autores. 50- O autor despende por mês, aproximadamente, cerca de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) com alimentação, educação e vestuário da BB. 51- O autor trabalhou até outubro de 2014 auferindo uma remuneração em montante não concretamente apurado. 52- Atualmente trabalha por conta de outrem, auferindo uma remuneração em montante não concretamente apurado».

Dada a pouca informação sobre as remunerações auferidas pelos pais da BB, não se aplicam fórmulas matemáticas de cálculo, mas decide-se, de acordo com a equidade (artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil), atribuir um valor de 150.000 euros a título de indemnização por danos patrimoniais, na proporção de 1/3 para o autor e 2/3 para a filha menor, atendendo à idade da jovem mãe, 27 anos à data do acidente, à sua esperança de vida, às possibilidades de promoção profissional, à ajuda que prestaria à filha se fosse viva e às necessidades especiais (apoio psicológico e pedagógico-escolar) de uma criança que viveu em tenra idade um evento tão traumático.


16. Em conclusão, o valor total da indemnização, somadas todas as suas parcelas, é de 355.000 euros, dos quais:

Para a filha menor, BB:

- 70.000 euros pelo dano da morte da mãe;

- 70.000 euros de indemnização por danos não patrimoniais;  

- 100.000 euros por danos patrimoniais futuros;

- 10.000 euros pelos danos não patrimoniais sofridos pela CC.

Para o companheiro, AA:

 - 30.000 euros pelo dano da morte da companheira

- 15.000 euros pelos danos não patrimoniais reflexos  

- 10.000 euros pelos danos morais sofridos pela CC;

- 50.000 euros por danos patrimoniais futuros.


17. Aplicando a taxa de 50%/50% para a divisão da responsabilidade entre o risco do veículo FR, por um lado, e a culpa da vítima, por outro, condena-se a ré Seguradoras Unidas, SA, ao pagamento aos autores de um valor total de 177.500,00 euros.

A responsabilidade da ré Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial, S.A. desde logo ficou excluída pela não intervenção do veículo UI no embate em causa.

De acordo com o AUJ n.º 4/2002, tendo sido a indemnização pecuniária, por facto ilícito ou pelo risco, objeto de cálculo atualizado, vence juros de mora a partir da decisão atualizadora, e não a partir da citação.

O valor total da indemnização para a filha menor, BB, é de 250.000 euros, que terá de ser reduzido em 50%, de acordo com o contributo da lesada para o acidente, perfazendo o montante de 125.000 euros. Deste montante, 75.000,00 são atribuídos a título de indemnização por danos não patrimoniais e 50.000,00 euros, a título de danos patrimoniais futuros. Estes valores, uma vez que foram determinados de acordo com a equidade, vencem juros à taxa legal desde a decisão até efetivo e integral pagamento.

O valor total da indemnização do autor é de 105.000 euros, que, reduzido em 50%, fica em 52.500 euros (uma parcela de 25.000 euros para danos patrimoniais futuros e uma parcela de 27.500 para danos não patrimoniais). Estes valores, determinados de acordo com a equidade, vencem juros à taxa legal desde a decisão até efetivo e integral pagamento.


Anexa-se sumário elaborado ao abrigo do artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

I – Por força de uma interpretação atualista e sistemática do preceito, que tem em conta a conjuntura do momento em que a lei é aplicada (a crescente perigosidade e frequência dos acidentes de viação e as necessidades de proteção dos lesados), bem como a unidade da ordem jurídica (vejam-se os lugares paralelos do sistema no regime da responsabilidade do produtor, responsabilidade por acidentes de trabalho e por acidentes causados por aeronaves e embarcações de recreio), aderimos à orientação jurisprudencial fixada no acórdão deste Supremo Tribunal, de 04-10-2007, que admite a concorrência entre o risco próprio do veículo e a culpa do lesado.

II - No mesmo sentido concorre o princípio da interpretação conforme ao Direito Comunitário, de acordo com o qual o juiz nacional deve, entre os métodos permitidos pelo seu sistema jurídico, dar prioridade ao método que lhe permite atribuir à disposição de direito nacional em causa uma interpretação compatível com o direito originário e derivado da União Europeia.

III - O TJUE, apesar de reconhecer que a escolha do regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos é, em princípio, da competência dos Estados-Membros, e que a culpa da vítima pode excluir ou limitar a indemnização, através de uma apreciação individualizada de cada caso, veda uma exclusão automática da indemnização ou uma redução desproporcionada desta, visando, sobretudo, que os lesados mais vulneráveis, entre os quais incluiu os peões e as crianças, sejam objeto de um tratamento mais favorável.

IV –Não se pode classificar como grave a culpa da mãe da criança que atravessa a estrada com a filha ao colo, nem atribuir ao comportamento desta uma eficácia exoneratória total da responsabilidade pelo risco do veículo, pois, a matéria de facto não fixou a que velocidade circulava o veículo FR, o local do acidente nem a distância que mediava entre o veículo e as peãs.

V- Decide-se, assim, pela verificação de um concurso da responsabilidade pelo risco próprio do veículo FR com a culpa da lesada, fixando-se, para o cálculo da indemnização, uma proporção de 50% para o risco do veículo e 50% para o contributo causal do comportamento da lesada.

VI – O dano da morte da mãe para uma criança de tenra idade deve ser avaliado como superior ao dano sofrido por uma pessoa adulta. Os danos causados às crianças projetam-se ao longo do seu desenvolvimento e diminuem necessariamente as suas capacidades produtivas no futuro, acabando por ser também a sociedade a suportá-los. Assim, é essencial que as crianças recebam, desde logo, uma indemnização equitativa, que possa o mais precocemente possível suprir as perdas provocadas pelo acidente, impedindo o agravamento dos danos e criando oportunidades para o acesso à educação/formação profissional das pessoas menores de idade, que ficam normalmente afetadas nos acidentes de viação, sobretudo se a criança se encontrava num estádio inicial de desenvolvimento.


III – Decisão           

Pelo exposto, decide-se conceder parcialmente a revista e condenar a ré, Seguradoras Unidas, SA, ao pagamento aos autores de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais no valor total de 177.500 euros, acrescidos de juros de mora desde a decisão até efetivo e integral pagamento, repartidos entre o autor, AA, e a autora, BB, nos seguintes moldes:

I – AA:

 –   Indemnização por danos não patrimoniais no valor de 27,500,00 euros;

  –   Indemnização por danos patrimoniais futuros no valor de 25.000,00 euros.  

II – BB:

– Indemnização por danos não patrimoniais, no valor de 75.000;  

–  Indemnização por danos patrimoniais futuros, no valor de 50.000 euros.


Custas a cargo de autores e rés na proporção do seu decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam os autores.


Supremo Tribunal de Justiça, 25 de maio de 2021


Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Alexandre Reis (1.º Adjunto)

Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto)


Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 20/2020, de 1 de maio, atesto o voto de conformidade dos Juízes Conselheiros Alexandre Reis (1.º Adjunto) e Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto). 


(Maria Clara Sottomayor – Relatora)

_____

[1] O valor da ação foi fixado pelo tribunal de 1.ª instância, no despacho saneador, em € 290.450,00, nos termos dos artigos 297.º, n.º 1, 299.º, n.º 1 e 306.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Todavia, o valor global da indemnização peticionada, tal como consta da petição inicial, é de montante superior.