Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3252/05TVLSB.L1.SI
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SÉRGIO POÇAS
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
ÓNUS DA PROVA
ERRO MÉDICO
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA
Apenso:
Data do Acordão: 06/30/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Legislação Nacional: LEGISLAÇÃO APLICÁVEL: ARTIGOS 342º,483º, 494º,496º,798º,799º E 1154º, TODOS DO CÓDIGO CIVIL
Sumário :

1.Porque no domínio da responsabilidade contratual, tendo a paciente alegado e provado existência de um incumprimento defeituoso de que resultou um dano – a intervenção na artéria quando devia ter sido na veia, o que veio a determinar nova intervenção com a consequente assistência hospitalar – competia ao devedor (hospital) alegar e provar que o cumprimento defeituoso não resultou de culpa sua

2.As despesas que derivam da inexecução defeituosa do contrato recaem sobre o autor do cumprimento defeituoso.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal da Justiça

I- Relatório
Sociedade Gestora do Hospital das Descobertas, S.A., intentou esta acção, com processo ordinário, contra AA, pedindo seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 13.715,49 acrescida da quantia de € 3.598,34, correspondente aos juros de mora, à taxa legal, vencidos até 20 de Maio de 2005, e da quantia correspondente aos juros de mora, à taxa legal, vencidos desde então e vincendos até integral e efectivo pagamento.
A ré, na contestação, deduziu incidente de intervenção principal provocada para chamar a intervir BB, CC, DD e EE, como associados da autora, concluiu pela improcedência da acção e deduziu reconvenção pedindo a condenação daqueles e da autora a solidariamente pagarem-lhe a quantia € 38.028,49, € 13.028,49 de indemnização a título de danos patrimoniais e € 25.000,00 de indemnização a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora contados desde a citação, ou melhor desde a data da notificação da reconvenção, até efectivo e integral pagamento.
A autora replicou.
Foi proferido despacho que convidou a autora a apresentar petição inicial com a concretização dos serviços alegadamente prestados à ré, em consequência a autora apresentou esse articulado, respondeu a ré para manter a sua posição, posteriormente admitiu-se ainda a substituição dessa petição por outra petição, a que se seguiu resposta da ré, mantendo a contestação e a reconvenção, nova réplica e sobre esta tréplica.
Foi proferido despacho que indeferiu o referido incidente e que, em consequência, não admitiu o pretendido chamamento, admitiu-se reconvenção, decidiu-se nada obstar ao conhecimento de mérito, organizou-se a selecção da matéria de facto, com base instrutória, procedeu-se à audiência de julgamento com gravação e em que não foi apresentada qualquer reclamação contra a decisão da matéria de facto, seguiu-se sentença impugnada pela autora mediante recurso de apelação e neste decidiu-se alterar a decisão sobre a matéria de facto e também ampliar da matéria de facto com a consequente anulação da sentença e repetição do julgamento.
Foi proferido despacho que procedeu à referida ampliação e ordenou a notificação das partes para efeitos do artigo 512º do Código de Processo Civil e, na sequência da notificação, as partes arrolaram testemunhas.
Na subsequente audiência de discussão e julgamento procedeu-se à inquirição da testemunha EE, arrolada pela autora, que ao interrogatório preliminar, como consta da respectiva acta, disse ser médica, acrescentou «ser funcionária da autora, na qualidade de médica de medicina interna, na Unidade de Cuidados Intensivos, acompanhando por vezes alguns doentes.». Disse ainda que teve «algumas intervenções no tratamento da ré.»
Como consta também da respectiva acta, quando foi concedida «a palavra ao ilustre mandatário da ré para os esclarecimentos tidos por convenientes, o mesmo requereu que lhe fosse concedida a palavra para um requerimento», que é o seguinte:
«Com todo o respeito e consideração pela honra e dignidades pessoais e profissionais da testemunha, a ré vem requerer a contradita da mesma pelos seguintes termos e fundamentos:
A testemunha integra o corpo clínico da autora, mais precisamente prestando serviço na Unidade onde a ré esteve internada há data dos factos em apreciação.
Reportando-se a matéria factual sub judice a actos médicos praticados, acompanhados ou mesmo supervisionados pela testemunha enquanto ao serviço e sob a orientação da autora, mesmo que salvaguardada a discricionariedade técnica, a mesma não é alheia à sorte que a presente acção possa vir a ter, por, nomeadamente no limite existir eventual direito de regresso da autora sobre a testemunha. Como tal o seu depoimento deve ser enquadrado e apreciado como tendo interesse directo no desfecho da presente acção, o que afecta a credibilidade do mesmo e consequentemente diminuindo a fé que possa merecer.”.
Ouvida a parte contrária, sobre este requerimento foi proferido o seguinte despacho:
«Compreende-se a posição assumida pela ré, através da pessoa do seu mandatário, quanto a questionar a credibilidade que o depoimento da testemunha possa merecer, na medida em que a mesma teve intervenção directa pelo menos em parte dos factos em discussão.
No entanto, afigura-se-nos que tal não é causa bastante para fundamentar a contradita, na medida em que um eventual interesse no desfecho da acção será sempre, apenas e só, um interesse indirecto. Acresce, aliás, que a circunstância de a testemunha ter tido intervenção apenas em parte dos factos sempre evidenciaria alguma dificuldade em estabelecer um nexo causal necessário e adequado entre a prática dos actos médicos por ela praticados e o resultado final imputáveis exclusivamente à testemunha, que desse modo pudesse suportar a invocada eventual acção de regresso.
Por fim, não pode deixar de se dizer que a presente diligência constitui uma reabertura do julgamento já iniciado, tendo por objecto a prova de quesitos aditados m cumprimento do Acórdão da Relação. Isto para dizer que o depoimento desta e das outras testemunhas já inquiridas no âmbito deste julgamento caracterizam-se pela unicidade, de tal sorte que a ser requerida a contradita, e a ser a mesma admissível, ela teria de ter sido suscitada aquando do depoimento da testemunha ocorrido na sessão de 25 de Setembro de 2007, o que não se verificou, tal como se pode constatar da acta de folhas 482 e seguintes dos autos.
Assim, sem necessidade de mais e maiores considerações, indefere-se o incidente da contradita, sem prejuízo de, naturalmente, o Tribunal ponderar, como lhe impõem as normas legais aplicáveis, a credibilidade que a testemunha possa ou não ter em razão da sua intervenção pessoal e da sua relação com as partes.».
A ré interpôs recurso de agravo deste despacho apresentando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1ª- A testemunha contraditada praticou actos médicos sobre a agravante, na qualidade de comissário da agravada, pelo que tem um interesse natural e directo sobre a sorte da presente lide;
2ª- O douto despacho recorrido ao concluir pela improcedência da contradita, mas considerando o interesse da testemunha no desfecho da acção, viola o disposto no artigo 617° do Código de Processo Civil;
3ª- O douto despacho recorrido é ainda nulo por notória oposição entre a decisão proferida (indeferimento da contradita) e a fundamentação da mesma (interesse da testemunha no desfecho da acção, ainda que eventual e indirecto);
4ª-Não tem razão o M.° Juiz a quo ao decidir pela extemporaneidade da contradita, fundamentando no principio da unicidade que a mesma deveria ter sido anteriormente requerida, quando é apenas em consequência do aditamento determinado pela Relação de Lisboa que a testemunha presta depoimento quanto a factos e actos técnicos exercidos no âmbito do seu ofício e enquanto comissária da agravada.
Termos em que pretende o despacho recorrido substituído por decisão que receba a contradita.
Nas contra-alegações propugna-se pela confirmação da decisão.
Foi proferida decisão, sem reclamação, sobre a matéria de facto aditada à base instrutória e a sentença julgou a acção procedente e a reconvenção improcedente, condenando a ré a pagar à autora a quantia de € 13.715.49 acrescida de juros de mora vencidos até 20 de Maio de 2005, no valor de € 3.598,34, e dos entretanto vencidos e vincendos desde aquela data, sobre o valor de € 13.715 49, até efectivo e integral pagamento às taxas de juros sucessivamente aplicáveis aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais.
Para tanto ponderou-se, em jeito de conclusão, «que os custos parcelares correspondentes à cateterização da veia femural esquerda e às consequências da punção da artéria femural que ocorreu aquando da tentativa daquela cateterização, consequências essas ao nível do internamento, medicação e subsequente intervenção cirúrgica correctora, que se mostram incluídos na factura, respeitam a uma sequência de actos médicos cuja prática se revelou necessária ao restabelecimento da saúde da R. e que foram praticados com respeito pelas legis artis, não havendo assim por parte da A. qualquer cumprimento defeituoso da sua obrigação contratual e, concomitantemente, conclui-se pela ausência de negligência ou erro grosseiro do corpo clínico ao serviço da A., em que a R. alicerçou o seu pedido reconvencional.
Afastada a negligência e erro grosseiro nas práticas médicas desenvolvidas, necessariamente terá de claudicar o pedido reconvencional que neles se fundamentava.».
Desta decisão interpôs recurso a Ré para o Tribunal da Relação.

Neste Tribunal, para além do mais que agora não releva, foi decidido: “ julgando o recurso de apelação parcialmente procedente e improcedente na parte restante, absolvem a ré do pedido formulado na acção e condenam a autora a pagar à ré a quantia de € 10.000,00 acrescida de juros de mora vencidos desde a data da notificação da reconvenção, 26 de Setembro de 2005, até integral pagamento, contados à taxa legal que, desde então e actualmente, é de 4% ao ano e assim, apenas nesta medida, revogam a sentença recorrida.

Inconformada, recorre a autora para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo do modo seguinte.
1.A matéria de facto provada aponta inequivocamente para a celebração, entre Autora e Ré, de um contrato de prestação de serviços médicos;
2.Se assim foi, a Autora obrigou-se a prestar à Ré os melhores cuidados de saúde ao seu alcance, em conformidade com as leges artis e a Ré obrigou-se a pagar os serviços que lhe viriam a ser prestados;
3.Perante este cenário, a obrigação contraída pela que a Autora é uma obrigação de meios e, como tal, resulta claro que, em juízo, caberá ao credor in casu, a Ré) provar que existiu desconformidade entre a conduta do devedor e aquela que, em abstracto, proporcionaria o resultado pretendido (o que manifestamente não sucedeu).
4.Aliás, no caso em apreço e perante a matéria dada como provada, entende a Autora, ao contrário do que vem dito no douto aresto recorrido, que tal ónus não foi cumprido.
5.Mas mesmo que assim não se entenda, o certo é que o corpo clínico da Autora actuou sempre pautado pelas regras e princípios da leges artis, levando a cabo a cateterização da veia da ré, porque tal procedimento era absolutamente necessário para a administração de fármacos, sendo que a punção acidental da artéria decorre, não de qualquer omissão de diligência ou competência exigível, mas antes de um risco do procedimento, risco este personificado no trajecto anatómico paralelo dos dois vasos, bem como no facto de o procedimento ser efectuado através de conhecimentos anatómicos e pontos de referência e não por visualização directa dos vasos;
6.Os procedimentos clínicos adoptados visaram sempre o restabelecimento da Ré e não causar-lhe qualquer dano. Aliás, nestes casos, exige a lei que seja aplicada à actuação do médico o critério abstracto previsto no n.°2, do art. 487 ° do C.Civ., critério este que impõe a avaliação da culpa pela "diligência do bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso".
7.A aplicação deste critério ao caso em apreço (algo que o tribunal a quo não fez) imporia diversa decisão, dado que a matéria dada com provada não reflecte qualquer desvio ao comportamento diligente que se exige do corpo clínico.
8.Face ao exposto, entende a Autora que o aresto recorrido violou o teor dos artigos 406°, n°l, 563°, 762°, n°2, 798°, 799°, n°l, todos do Código Civil;
9.No que concerne à condenação no pagamento de indemnização à Ré, a Autora entende que para além das considerações já tecidas a propósito da absolvição da Ré do pagamento dos serviços prestados, é necessário sublinhar que não foi provada matéria que permita concluir pela existência de danos não patrimoniais passíveis de indemnização;
10. As "sequelas" que são apontadas como causadoras do dever de indemnizar não se encontram plasmadas na matéria de facto dada como provada.
11. Mesmo que assim não fosse, o certo é que a Ré não logrou estabelecer um nexo causal entre as "sequelas" e a punção acidental da artéria, nexo este cujo ónus probatória recaía sobre a Recorrida;
12.Ademais, a fixação do quantum indemnizatório não levou em linha de conta os imperativos legais decorrentes do art. 496.° do C. Civ.;
13.Esta norma impõe que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito;
14. A lei não enumera tais danos, deixando ao critério do tribunal determinar, caso a caso, se esses danos são ou não merecedores de protecção jurídica, sendo que só serão indemnizáveis quando atingirem uma gravidade que os tornem dignos dessa protecção, sendo certo que a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo;
15.Em face do que foi dito, entende a Autora que existe uma clara violação do disposto no art. 496.° do C. Civ., motivo pelo qual também neste ponto deverá a decisão proferida ser revogada por outra que absolva a Autora do pedido.

Houve contra-alegações

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Sem prejuízo do conhecimento oficioso que em determinadas situações se impõe ao tribunal, o objecto e âmbito do recurso são dados pelas conclusões extraídas das alegações (artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC).
Nas conclusões, o recorrente deve - de forma clara e sintética, mas completa – resumir os fundamentos de facto e de direito do recurso interposto.
Face ao exposto e às conclusões formuladas importa resolver:
a) se autora cumpriu defeituosamente e com culpa o contrato de prestação de serviços médicos celebrado com a Ré;
b) se se verificam os pressupostos de obrigação de indemnizar a Ré pela autora e se o montante fixado por danos não patrimoniais viola nomeadamente o disposto no artigo 496º .

II. Fundamentos
II.I Dos factos
Nas instâncias foram dados como provados os factos seguintes:
1- A autora prestou assistência médica e hospitalar à ré no seu estabelecimento de saúde denominado Hospital Cuf Descobertas;
2- A ré foi admitida naquele estabelecimento em 5 de Setembro de 2002 e ali permaneceu até 3 de Outubro de 2002, quer na unidade de cuidados intensivos polivalentes, quer em quarto individual;
3- Na altura em que foi admitida de urgência no estabelecimento identificado em 1, a ré apresentava-se em estado de choque hipovolémico, destacando-se a presença de volumosa hérnia inguinal esquerda, irredutível;
4- A ré foi internada com um quadro de oclusão intestinal na sequência de um episódio de gastroenterite aguda;
5- A ré foi de imediato submetida a intervenção cirúrgica com achados de herniação do transverso, com isquémia, tendo-lhe sido efectuada ressecção segmentar do transverso e correcção da hérnia;
6- No pós-operatório foi necessário sujeitar a ré a suporte ventilatório por insuficiência respiratória global durante alguns dias;
7- Após rápido restabelecimento do trânsito intestinal a ré iniciou alimentação entérica;
8- O que fez mediante assistência e monitorização pós-operatório por parte da ré;
9- Em 17/9/2002, na sequência de tentativa de cateterização da veia fémural esquerda foi puncionada a artéria fémural com quadro hemorrágico importante;
10-O que condicionou choque hipovolémico e descida significativa de hemoglobina e insuficiência renal aguda oligúrica;
11-A cateterização na ré prendia-se com a necessidade de administração de fármacos no pós-operatório;
12- A cateterização arterial serve para monitorizar a existência de gases no sangue e a cateterização venosa serve para efectuar tratamentos através da administração de fármacos;
13- A cateterização era absolutamente necessária no quadro clínico da ré;
14- A veia femural e a artéria femural têm um trajecto anatómico paralelo;
15- Pode acontecer a punção da artéria femural em vez da veia femural e vice-versa;
16- A punção da artéria femural em vez da veia femural é um risco no tipo de intervenção a que a ré foi submetida;
17- A punção arterial não pretendida (acidental), em regra, origina apenas um hematoma de cura espontânea;
18- Por isso o entendimento clínico foi esperar o tempo que foi tido por necessário e normal à respectiva cura;
19- Só em último caso se recorre à cirurgia vascular para correcção da ferida arterial;
20- A ré padecia de lesões de arteriosclerose;
21- As lesões de arteriosclerose, em virtude da existência de placas de arteroma, contribuíram para a ausência de cura espontânea da laceração feita na artéria femural;
22- Em 19/9/2002 a ré foi submetida a nova intervenção cirúrgica no estabelecimento hospitalar referido em 1, por cirurgia vascular para suturação da veia (1). perfurada, com observação de laceração da artéria fémural, arteriorragia (para correcção da punção arterial) e drenagem do hematoma, ao mesmo tempo que efectuou exposição da artéria radial, não caracterizada por lesão ateromatosa e exposição da artéria umeral direita, canalizada para monitorização e colheitas;
23- Em 20/9/2002 a ré foi desconectada e extubada, continuando a ser-lhe prestada a assistência necessária à sua situação clínica, após o que foi transferida do estabelecimento hospitalar identificado em 1;
24- Em 3 de Outubro de 2002 a autora (2) foi transferida para o Hospital Amadora-Sintra, acamada e de ambulância, acompanhada por uma médica do corpo clínico da autora, Dra Susana Passô;
25- A ré permaneceu no hospital referido em 24 durante cerca de duas semanas;
26- Após ter alta do hospital referido em 24, a ré permaneceu oito dias em casa, findos os quais foi internada no Hospital Curry Cabral, devido a uma infecção urinária, onde permaneceu vários dias;
27- Após ter alta do Hospital Curry Cabral, a ré ingressou no Centro Lisgeri, actualmente denominado Centro dos Olivais, em Lisboa, aí lhe tendo sido prestada assistência médica e fisioterapeutica;
28- A ré permaneceu no Centro referido em 22 durante vários meses;
29- Em despesas de internamento e em consumíveis no Centro identificado em 22, a ré despendeu a quantia de € 10.528,49;
30- À data em que foi internada no estabelecimento referido em 1, a ré era urna pessoa jovial, auto-suficiente e activa;
31- Entre a realização da punção referida em 9 e a intervenção cirúrgica referida em 22, a autora permaneceu prostrada, com momentos de profunda agitação e convulsão, sem falar ou reconhecer quem quer que fosse;
32- A ré correu risco de vida durante todo o período em que esteve internada no estabelecimento da autora identificado em 1;
33- O custo total da assistência médica e hospitalar prestada pela autora à ré, assim como dos medicamentos que lhe foram ministrados e dos materiais despendidos naquela assistência, ascendeu à importância total de € 35.715.49;
34- Em 26/11/2002 a autora emitiu e enviou à ré a factura n.º 116254, cuja cópia constitui o documento de fls.6 a 69 no montante global de € 37.715,49
35- Em 10/2/2003 a autora instou a ré para proceder ao pagamento da quantia referida em 34, tendo esta entregue àquela a quantia de € 22.000,00.

II.II. Do Direito
1. Da decisão da matéria de facto
Como se sabe, o STJ conhece, em regra, somente de matéria de direito, aplicando definitivamente aos factos provados pelo Tribunal da Relação o regime jurídico e como resulta nítido dos artigos 722.º, n.º 2, e 729.º, n.º 2, está vedado a este Tribunal apurar eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
De facto, só muito raramente a decisão definitiva da matéria de facto não é uma decisão das instâncias.
No caso, uma vez que a decisão da matéria de facto não é questionada nos termos excepcionais, acima referidos, e porque se não verifica a situação prevista no nº 2 do artigo 729ºdo CPC, os factos têm-se como assentes nos termos em que foram decididos pelas instâncias.
2. Do incumprimento contratual da ré /da responsabilidade civil da autora
Insurge-se a Autora contra a decisão que absolveu a Ré do pagamento das despesas hospitalares reclamadas e da sua condenação em indemnização a favor da Ré.
A recorrente não tem razão.
A Relação decidiu bem.
Fundamentemos:
Da análise da matéria de facto provada, parece inquestionável que houve um erro: tratava-se de uma intervenção, no período pós-operatório, sobre a veia femural que o quadro clínico (devidamente descrito na matéria de facto) exigia e não sobre artéria femural, como foi feito.
É evidente que com esta afirmação nada fica, desde já, decidido.
Na verdade, do facto de haver um incumprimento defeituoso, um erro na execução, não se conclui automaticamente por uma conduta culposa, como adiante se retomará.
Como se sabe, a responsabilidade civil por acto ilícito (artigo 483ºdo CC (3)) seja contratual, seja extracontratual depende da verificação do facto, da ilicitude do facto, do nexo de imputação do facto ao agente que coenvolve a imputabilidade e a culpa, do dano e do nexo causal entre o facto e o dano
E se é verdade que os factos integradores dos primeiros requisitos indicados devem ser alegados e provados pelo lesado seja na responsabilidade contratual seja na extracontratual (artigo 342º, nº 1, factos constitutivos do direito alegado), já no que diz respeito ao último, à culpa, na responsabilidade contratual (mas não na extracontratual) compete ao devedor alegar e provar que o incumprimento ou o cumprimento defeituoso não procede por culpa sua (artigo 799º, nº 1)6.(4)
Assim, e em primeiro lugar, importa apreciar se a situação que cuidamos deve ser enquadrada dentro da responsabilidade contratual ou se na responsabilidade extracontratual.
Neste particular – atente-se nomeadamente nas conclusões 1ª e 2ª – parece não haver dissenso. As partes estão de acordo de que se está em presença de um contrato de prestação de serviços médicos a ser enquadrado no artigo 1154º Entendimento que este tribunal acolhe, porque adequado.
De facto, face à factualidade provada, não questionada pela recorrente, conclui-se que a Autora se obrigou (uma obrigação de meios) a prestar à Ré os cuidados de saúde ao seu alcance, em conformidade com as leges artis e a Ré obrigou-se a pagar os serviços que lhe viriam a ser prestados, ou seja, as partes celebraram um inequívoco contrato de prestação de serviços (5)
Sendo assim, como é, a questão da responsabilidade civil (porque contratual) deve ser analisada tendo em atenção designadamente o disposto nos artigos 798º e 799º.
Sendo inquestionável que a paciente alegou e provou existência de um incumprimentos defeituoso de que resultou um dano – a intervenção na artéria quando devia ter sido na veia o que veio a determinar nova intervenção com a consequente assistência hospitalar –, o que importa agora saber (atente-se designadamente ao disposto no mencionado nº 1 do artigo 799º) é se resultou provado que nas circunstâncias concretas, os profissionais de saúde da autora, fizeram tudo o que podiam e deviam de modo a evitar aquele resultado danoso.
É que se aquela prova (da falta de culpa) não foi feita, por força da presunção do referido nº 1 do artigo 799º, a autora, para além de não ter direito ao pagamento das despesas relativas à intervenção acima referida (porque a elas teria dado causa), é ainda responsável pelos danos causados à ré.
Fez a autora prova de que a indubitável falha não procede de culpa sua?
A resposta é negativa.
Vejamos:
(Era preciso actuar sobre a veia femural e não sobre a artéria femural, lembre-se)
Tendo em atenção as conclusões formuladas pela recorrente e que definem o objecto do recurso, atentemos nos factos interessantes.
Resultou provado, nomeadamente:
14- A veia femural e a artéria femural têm um trajecto anatómico paralelo;
15- Pode acontecer a punção da artéria femural em vez da veia femural e vice-versa;
16- A punção da artéria femural em vez da veia femural é um risco no tipo de intervenção a que a ré foi submetida;
17- A punção arterial não pretendida (acidental), em regra, origina apenas um hematoma de cura espontânea;
18- Por isso o entendimento clínico foi esperar o tempo que foi tido por necessário e normal à respectiva cura;
19- Só em último caso se recorre à cirurgia vascular para correcção da ferida arterial;

Ora, e salvo o devido respeito, o facto da artéria e veia terem um trajecto anatómico paralelo (14º) não pode constituir justificação para o erro verificado.
Na verdade, sabendo que assim é (ou tendo a obrigação de saber, dada a qualificação profissional), impunha-se, naquelas circunstâncias concretas, ao médico especial cuidado para que não ocorresse o engano verificado.
O facto da punção da artéria femural em vez da veia femural ser um risco no tipo de intervenção a que a ré foi submetida (16º), por si só não constitui justificação para o sucedido. Por um lado, não está caracterizado aquele risco (na verdade, nada se sabe da dimensão do risco), pelo outro, o facto de haver risco exigia um cuidado acrescido de modo a evitar o dano.
Concluindo: não resultando provado, como não resulta, que a autora (os seus profissionais de saúde), nas circunstâncias concretas, (atente-se para além do acima exposto, na história clínica da ré que não podia nem devia ser ignorado) tivesse actuado com o cuidado e diligência que devia e podia de modo a evitar o resultado, é inequívoco que a ré não está obrigada a pagar as despesas acrescidas (consequências da actuação culposa da autora) resultantes da nova intervenção cirúrgica reclamada pela anterior e defeituosa intervenção que temos vindo a apreciar.
De facto, estando em causa, como estão, despesas que derivaram da inexecução defeituosa do contrato elas necessariamente recaem sobre o autor desse cumprimento defeituoso.
Finalmente nenhuma censura merece a decisão no que diz respeito à indemnização arbitrada por danos não patrimoniais a favor da ré (note-se que improcedeu a pretensão da ré no que diz respeito a pedida indemnização por danos patrimoniais).
Como a autora reconhecerá – tenha-se em atenção a matéria de facto provada sob os artigos 30º,31º e 32º para o que se remete – só por lapso certamente, se refere à ausência de factos consubstanciadores do dano não patrimonial. Aquela matéria é eloquente no que respeita à dor, ao sofrimento e à angústia sofridos pela ré, indubitavelmente indemnizáveis nos termos dos artigos 494º e 496º, como se decidiu, sendo equilibrado o montante arbitrado. Finalmente a autora não tem qualquer razão quando alega a falta de nexo causal entre a sua conduta e os danos verificados. Na verdade, a matéria de facto acima identificada não deixa quaisquer dúvidas sobre o nexo causal (remete-se para a argumentação expressa na questão da responsabilidade da autora.)

III. Decisão
Com os fundamentos expostos, nega-se a revista e mantém-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.
Lisboa, 30 de Junho de 2011

Sérgio Poças (Relator)
Granja da Fonseca
Silva Gonçalves

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(1) Certamente, como é manifesto na economia da acção, que se deve entender «para suturação da artéria perfurada», pese embora se refira «veia», mas naturalmente por lapso, nos articulados da autora (artigo 9º da petição inicial) e na al. M) da selecção da matéria de facto.
(2) Só por lapso se escreveu «autora», pois é evidente que a matéria se refere à ré.
(3) Doravante, se o contrário não for dito, os preceitos indicados, fazem parte do Código Civil
(4).Neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ de 18/09/2007, Proc.07ª2334 e de 27/11/2007, Proc. 07A3426, acessíveis na dgsi, internet,
(5) Assim e nomeadamente os acórdãos do STJ indicados na nota anterior