Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
153/13.8TCGMR.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: CULPA IN CONTRAHENDO
DEVER ACESSÓRIO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
DANO
LUCRO CESSANTE
INTERESSE CONTRATUAL NEGATIVO
INTERESSE CONTRATUAL POSITIVO
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 11/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
PROCESSO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / PERFEIÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / JULGAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
- Maria da Graça Trigo, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, p. 507, 508, 512 e 513;
- Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 1321 a 1349;
- Rudolf von Jhering e Gustav Demelius, Culpa in contrahendo oder Shadenersatz bei nichtigen oder nicht zur Perfektion gelangten Vertragen, Jahrbucher fur Dogmatik des heutigen romischen und deutschen Privatrechts, Vol. IV, 1861, p. 1 e ss., traduzido Culpa in contrahendo ou indemnização em contratos nulos ou não chegados à perfeição, Almedina, Coimbra, 2008.

Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 227º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 608º, 609º, 615º, N.º 1, ALÍNEA C), 635º, N.º 4 E 682º N.º3.
Sumário :
I. Reconhecendo-se que o teor da fundamentação do acórdão recorrido não se apresenta isento de dúvidas, afigura-se que as mesmas não são causa das invocadas nulidades, antes poderão consubstanciar erros de julgamento, a apreciar como tal.

II. O conhecimento das alegadas violações da lei processual e de direito probatório, suscitadas a respeito da reapreciação pela Relação da decisão da matéria de facto apenas se justificará se não ficar prejudicado pela resolução das questões relativas aos alegados erros na interpretação e aplicação do direito substantivo.

III. A resolução da questão da alegada não verificação dos pressupostos do art. 227º do CC encontra-se dependente da estabilização da matéria de facto pelo que não poderá ser resolvida sem previamente se tomar posição quanto às questões referidas em II.

IV. Estando em causa, na responsabilidade pré-contratual, o desrespeito por deveres acessórios e não por deveres de prestação (principais ou secundários), a natureza da mesma não é inteiramente líquida, podendo discutir-se a sua qualificação como responsabilidade contratual ou como responsabilidade extracontratual; e admitindo-se, em alternativa, a configuração como uma situação da denominada “terceira via” da responsabilidade civil.

V. Independentemente do mais, deve enfrentar-se aquela que se afigura ser a questão crucial do presente recurso: apurar se os danos pelos quais o acórdão recorrido condenou a 1ª ré a pagar indemnização, a liquidar, estão devidamente qualificados e se são susceptíveis de ser ressarcidos na presente acção de responsabilidade civil pré-contratual por ruptura de negociações.

VI. Tendo a autora invocado a perda dos lucros que teria auferido com o cumprimento do contrato de fornecimento, exigindo uma indemnização que a colocasse na situação em que estaria se tal cumprimento tivesse ocorrido, tal pedido indemnizatório não é compatível com o fundamento da acção, a ruptura injustificada das negociações contratuais; a não ser que (e mesmo assim apenas para alguns) tivesse sido invocado – e não o foi – a existência, no caso dos autos, de um verdadeiro dever de contratar, e respectiva violação.

VII. Assim, numa acção como a presente, fundada em responsabilidade por violação de deveres pré-contratuais, não pode senão concluir-se pela inviabilidade da ressarcibilidade dos lucros cessantes peticionados, aqueles lucros que a autora teria obtido se o contrato tivesse sido cumprido pela contraparte.

VIII. Perante a conclusão relativa à decisão de direito enunciada em VII, fica prejudicada a apreciação das questões indicadas em II uma vez que, qualquer que fosse a solução das mesmas questões, sempre a presente acção teria de improceder.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




1. AA - Indústria e Comércio, Unipessoal, Lda. intentou, em 16 de Maio de 2013, a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB Limited, sociedade comercial de direito inglês, e CC, Lda., pedindo que as RR. sejam condenadas solidariamente a pagar à A. uma indemnização no montante global de € 421.679,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento.

Alegou, em síntese, que mantinha uma relação comercial com as RR. há cerca de dois anos, tendo estas procedido à ruptura injustificada, unilateral, abusiva e repentina da mesma, não obstante sempre terem sido cumpridas as obrigações assumidas pela A. Tal ruptura ocorreu depois de terem sido acordados entre as partes todos os elementos do negócio que tinham em curso, designadamente o preço, a quantidade e o prazo de entrega dos pares de … encomendados, fazendo sempre crer à A. que esta iria produzir todo aquele … . Ambas as RR. agiram, pois, com manifesta má fé, tendo A., em consequência directa, necessária e adequada da conduta das mesmas, sofrido avultados prejuízos de que nesta acção pede para ser ressarcida.

O valor da indemnização peticionada (€ 421.679,00) resulta da soma dos seguintes valores parciais, correspondentes aos “lucros que deixou de auferir com a retirada da encomenda”:

- € 249,900,00, correspondente à diferença entre os custos da produção e entrega da mercadoria à 1ª R. e o preço que esta pagaria à A. com a aquisição de 60.000 pares de … do modelo item 850296 (artigos 45º a 47º da petição inicial);

- € 129,267,00, correspondente à diferença entre os custos da produção e entrega da mercadoria à 1ª R. e o preço que esta pagaria à A. com a aquisição de 40.000 pares de ... do modelo item 852387 (artigos 48º a 50º da p.i.);

- € 42.512,00, correspondente à diferença entre os custos da produção e entrega da mercadoria à 1ª R. e o preço que esta pagaria à A. com a aquisição de 10.600 pares de … do modelo item 856368 (artigos 51º a 53º da p.i.).


As RR. contestaram, impugnando a factualidade alegada pela A., afirmando que sempre actuaram com lisura e de acordo com os trâmites definidos e acordados há muito tempo e que eram do conhecimento da A. e aceites por esta, nunca tendo dado à A. qualquer expectativa em como seria o fornecedor escolhido para as encomendas em causa nos autos, e muito menos para as quantidades de … referidas na petição, que são completamente irrealistas para uma encomenda, sendo que nunca chegaram sequer a ser definidos preços e prazos de entrega, o que necessariamente teria influência no potencial ganho da A., que obviamente não teria a margem de lucro que alega. Mais alegam que a encomenda foi entregue a outras empresas por causa dos preços mais reduzidos apresentados por estas e também pela melhor qualidade apresentada.

Alegando que a A. tinha conhecimento de todo o processo, e que apenas por má-fé o oculta, deve a mesma ser condenada como litigante de má-fé, no pagamento de uma multa e indemnização às RR. e demais consequências legais.

Findos os articulados, e proferido o despacho saneador, realizou-se a audiência de discussão e julgamento.

A fls. 506 foi proferida sentença, na qual, para além da absolvição da A. do pedido de condenação como litigante de má-fé, se decidiu julgar a acção improcedente, absolvendo-se as RR. do pedido.

Inconformada, a A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de fls. 605 foi alterada a matéria de facto e, a final, foi proferida a seguinte decisão:

“Na procedência parcial das alegações de recurso revoga-se a sentença recorrida e condena-se a Ré CC, Lda na quantia que se vier a liquidar posteriormente nos termos do artigo 609º, nº 2 do CPC e absolve-se a Ré BB, do pedido.”


2. Veio a R. CC, Lda. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

“A) Os fundamentos da presente revista são os seguintes:

A) Nulidade do douto acórdão recorrido;

B) Violação ou errada aplicação da lei do processo;

C) Violação da lei substantiva.

B) O presente processo foi instaurado contra a ora recorrente e a empresa BB LIMITED com base no instituto da culpa na formação de contratos ou "culpa in contrahendo", também conhecido por "responsabilidade pré-contratual - previsto no Art. 227° n° 1 do Código Civil.

C) De acordo com a versão dos factos trazida na douta petição inicial, as Rés agiram de manifesta má-fé ao terem procedido à rutura da relação comercial com a Autora "depois de ter acordado entre ambas as partes todos os elementos do negócio, designadamente o preço, a quantidade e o prazo de entrega dos pares de ... e de terem feito, assim, ver à Autora de que esta iria produzir todo aquele … ." - Art. 36° do articulado inicial.

D) Ainda de acordo com a douta petição inicial, como "consequência direta, necessária e adequada da conduta das Rés, a Autora sofreu avultados prejuízos", que enunciou da seguinte forma: "lucros que deixou de auferir com a retirada da encomenda" e que liquidou nos artigos 46° a 54° do articulado inicial.

E) A douta sentença proferida em sede de 1ª instância, fazendo uma análise crítica atenta e exaustiva aos diversos meios de provas produzidos, julgou a ação totalmente improcedente, por não provados os referidos fundamentos, seja quanto ao comportamento das Rés, seja quanto aos alegados prejuízos.

F) Por sua vez, o douto Acórdão recorrido alterou parcialmente a decisão sobre a matéria de facto proferida em sede de 1ª instância e condenou a ora recorrida em quantia a liquidar posteriormente.

G) Tal decisão foi proferida completamente ao arrepio da prova produzida e das normas legais aplicáveis, sejam processuais ou substantivas.

H) Os factos de 1.° a 30.°, mencionados supra, fixados como provados em sede da 1ª instância não foram colocados em causa nem pela Autora e nem pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, pelo que não poderão deixar de ser atendidos na mui douta decisão que vier a ser proferida por Vossas Excelências.

I) Aos factos provados mencionados imediatamente acima, foram acrescentados pelo Tribunal da Relação do Porto os seguintes:

i. A Autora negociou e acordou a aquisição das peles e dos pares de solas necessários à produção de toda aquela quantidade de … - Provado

ii. Ambas as Rés ao entregarem o fabrico daquele ... a um outro fabricante, designadamente à DD, beneficiaram dos conhecimentos técnicos e do desenvolvimento feito pela Autora nas diversas amostras que tinha enviado à Primeira Ré - Provado

iii. Provado que A encomenda referente aos modelos aludidos em 14°, item 850296, 852387, e 856368, foi entregue apenas em Março de 2013 a outras empresas, uma das quais a EE Importação e Exportação, Lda. (DD).

iv. Foi discutido entre as partes o preço do … a produzir pela autora - Provado

v. Há artigos de … pretendidos pela primeira ré que são imediatamente solicitados a um só fabricante, não ocorrendo qualquer situação de prévia escolha entre vários fabricantes, o que sucede designadamente quando ambas as rés conhecem o fabricante, a qualidade e capacidade de fabrico e com ele tenham tido relações comerciais anteriores, o que sucedeu por inúmeras vezes com a autora - Provado

vi. No mês de Dezembro de 2012, a primeira ré, por intermédio da segunda ré, enviou à autora os três modelos de … de criança, aludidos em 14°, com vista ao fabrico de 60.000 pares do modelo item 850296, 40.000 pares do modelo item 852387, e 10.600 do modelo item 856368 - Provado

vii. A autora produziu tais amostras do modelo final dos … pretendidos, que enviou à primeira ré - Provado

viii. A autora programou a atividade fabril no sentido de não aceitar outras encomendas para o período em que seriam confecionados os aludidos pares de ... destinados à primeira ré- Provado

ix. Era do conhecimento de ambas as rés que a autora tinha assegurado quer o processo produtivo, quer a matéria-prima destinada à confeção daquele …, e que a tinham convencido de que iria efetivamente produzir e vender o mesmo à primeira ré - Provado

x. Provado que Em consequência direta, necessária e adequada da conduta das rés, a autora, deixou de auferir lucros, e suportou custos no que se prende com a aquisição das matérias-primas com vista ao fabrico do … .

J) O Acórdão Recorrido é Nulo por oposição dos fundamentos com a decisão, nos termos da al. c) do n.° 1 do art. 615.°, aplicável por força da al. c) do n.° 1 do art. 674.°, ambos do CPC;

K) No elencar de factos que entende como provados, no douto Acórdão começa-se por dar como assente que a "Ré encomendou determinada quantidade de pares de … de criança/adolescente com 3 referências à Autora" (sublinhado nosso);

L) Reiterando essa declaração em vários momentos no decorrer do texto do Acórdão, quando exara que a Recorrente gerou na Autora "uma confiança razoável fundada na celebração do contrato em causa com formalização de encomendas", entre outras;

M) É dado como assente que o contrato entre as Rés e a A. se consumou – tendo ocorrido violação do mesmo por parte da aqui recorrida;

N) O que é absolutamente contraditório à conclusão do mesmo Tribunal quando aplica o regime legal que a autora trouxe ao processo - culpa na formação dos contratos;

O) É dado como assente um facto (encomenda formalizada, contratada) e é aplicado um regime legal apenas compatível com a não celebração do contrato, pelo que estamos perante a nulidade prevista na alínea c) do n° 1 do art. 615° do CPC, aplicável por força do disposto na alínea c) do n° do art 674° do mesmo código;

P) O fundamento da decisão está, assim, em contradição com esta mesma, o que torna o Acórdão nulo;

Q) Não estamos perante um mero erro de julgamento ou discordância quanto ao regime legal aplicável, mas uma nulidade que resulta inequivocamente do próprio texto da douta decisão;

R) Está a decisão de que se recorre também ferida de nulidade por ser ambígua e por evidente contradição dos factos entre si;

S) Na verdade, são completamente contraditórios entre si no contexto de uma eventual responsabilidade pré-contratual da Recorrente os seguintes factos dados como provados com os, também dados como provados, factos xiv. e xv.:

- A autora era fornecedora de … da primeira ré, desde há cerca de dois anos, sendo intermediária ou agente a segunda ré.

- Assim, o processo habitualmente utilizado na colocação de encomendas nas indústrias portuguesas, passa pela criação pela primeira ré dos modelos de … que pretende adquirir, os quais são enviados a diversos fabricantes de …, indicados pela segunda ré, nos quais se incluem habitualmente a autora.

- Na posse de tais modelos, os potenciais fornecedores da primeira ré desenvolvem, confecionando, amostras dos mesmos.

- Produzidas amostras e enviadas à primeira ré, esta inspeciona as mesmas e, caso considere necessário, manda retificar.

- Com a confeção da amostra de compra, passa-se à fase de negociações com vista afixação do preço dos … .

- Depois de acordado o preço dos …, quantidades e prazos de entrega dos mesmos, é emitida a ordem de encomenda pela primeira ré por intermédio da segunda ré.

- No mês de Dezembro de 2012, autora e primeira ré iniciaram negociações com vista ao fabrico por parte da autora de três modelos de … de criança, dos modelos item 850296, 852387, e 856368.

- As rés nunca chegaram a efetivar qualquer nota de encomenda no que se refere aos aludidos modelos de … .

- A encomenda só é adjudicada a determinado fabricante quando a primeira ré emite um documento intitulado de "BookingForm", que tem em anexo um outro documento intitulado de "Next Terms and Conditions of Purchase", tudo constituindo o contrato de fornecimento entre a primeira ré e o fabricante escolhido.

- Antes de chegar a esta fase, um moroso e complexo processo de seleção de amostras de diversa natureza, matérias-primas, …, modelos, etc, etc, decorre no qual participam os vários potenciais fabricantes e diversos departamentos das rés.

- Ao longo do processo de seleção do fabricante para determinada encomenda, os diversos concorrentes desenvolvem várias amostras, correndo o custo de produção em exclusivo pelos potenciais candidatos ao fabrico do ... que estiver em causa na encomenda.

- Ainda numa fase em que se encontram vários fabricantes a concorrer ao fabrico e fornecimento da encomenda em causa, os serviços técnicos das rés intervêm no sentido de serem desenvolvidas - pelos potenciais fornecedores - amostras de acordo com o pretendido.

- Vão sendo analisadas essas amostras feitas pelos concorrentes, ainda antes de decidido o fornecedor da mercadoria.

- Nessa altura, é solicitado ao fabricante escolhido o fornecimento de uma "amostra de compra", que terá de ser aprovada pela primeira ré.

- E só nessa altura, e após a confirmação por parte do fornecedor das datas em que efetuará o fornecimento e acordado o preço, é que a primeira ré emite o contrato denominado "Bookins Form", acima referido.

- Tal contrato, que inclui o número de encomenda, as quantidades a fornecer, os preços acordados, as datas acordadas para fornecimento, é o documento que titula a adjudicação da encomenda ao fabricante escolhido.

- E que permite a este começar a encomendar matéria-prima aos seus fornecedores, baseada nas quantidades do ... a fábrica, nas datas acordadas.

T) A factualidade transcrita é contraditória e não se vislumbra como pode a mesma ser compatível com o facto xiv., no qual está vertido que as mesmas Rés "a tinham convencido de que iria efetivamente produzir e vender o mesmo à primeira Ré";

U) Mais, o último facto dado como provado (xv) não passa de um facto conclusivo sem qualquer sustentação nos restantes factos concretos dados como provados;

V) Dar-se como provado o "convencimento" da Autora por parte das rés, implica necessariamente dar-se como provados factos concretos praticados por estas últimas que possam resultar nesse convencimento.

W) Além disso, Os "factos" xv. e xiv.. fls. 633. são já uma aplicação do instituto previsto no art. 227.° do CC ao caso concreto;

X) Os "factos" xv. e xiv., em rigor, não são factos, na medida em que contêm matéria que envolve juízos de direito, assim como juízos conclusivos, posto o que é ilegal a manipulação da matéria de facto de forma a obter determinado resultado e esses factos, a serem considerados, devem ser considerados matéria de direito - neste sentido, Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, processo n.° 1332/07.2TTVNG.P1.SI, relatado pelo colendo Sr. Juiz Conselheiro Sampaio Gomes, de 9 de Novembro de 2011;

Y) A decisão da matéria de facto não deverá conter formulações de direito ou conclusivas, nos termos do disposto no n.° 4 do artigo 607° do CPC ex vi n.° 2 do art. 663.° do mesmo diploma legal;

Z) Há pois uma contradição insanável nos factos dados como provados;

AA) Está, por conseguinte, em causa a antinomia dos fundamentos entre si e com [a] decisão;

BB) Tal desinteligência no corpo do Acórdão edifica um vício na sua estrutura;

CC) Posto o que, nos termos da al. c) do n.° 1, do art. 615.°, ex vi art. 674.°, n.° 1, al. c), ambos do CPC, deve, pelo ínclito Tribunal ad quem, ser declarada a nulidade da decisão do Tribunal a quo;

DD) Além da nulidade com fundamento na al. c), também será de julgar o Acórdão posto em crise nulo por total ausência de fundamentação, nos termos do disposto na al. b), ambas alíneas do n.° 1 do art. 615.° do CPC;

EE) O douto acórdão da Relação deu como provado que a primeira ré, por intermédio da segunda ré, enviou à autora modelos de … "com vista ao fabrico de 60.000 pares do modelo item 850296, 40.000 pares do modelo item 852387 e 10.600 do modelo 856398" - ponto viii. dos factos provados;

FF) No Acórdão não é especificado um só meio de prova que, eventualmente, sustente tal facto pelo que é nulo, por total falta de fundamentação, nos termos da alínea b) do n° 1 do art. 615.° do CPC;

GG) Não é invocado um só documento ou uma só testemunha que corrobore a quantidade de … supra referida;

HH) A prorrogativa de o Tribunal da Relação reapreciar e alterar a decisão sobre a matéria de facto está inerente o dever de fundamentação dessa sua decisão;

II) Simultaneamente, a condenação da decisão em análise conhece questões de que não poderia tomar conhecimento nos termos da al. d) do n° 1 do art. 615° do CPC;

JJ) Ora, por muito esforço que se faça, não se consegue vislumbrar porque é que o Venerando Tribunal da Relação do Porto concluiu e deu como provado que a Autora "suportou custos no que se prende com a aquisição das matérias-primas com vista ao fabrico do … ";

KK) Tal não foi nem alegado nem peticionado pela Autora, ora Recorrida;

LL) Esta limita-se a discriminar os custos que suportaria na produção das referidas quantidades de ... ;

MM) Ou seja, não suportou custo algum;

NN) Nesse contexto, como tema de prova foi incluído o seguinte ponto:

"5 - Saber quais os custos que a A. suportaria na produção dos ... descriminados no art 28° da P.I. ";

OO) O douto Acórdão em causa é ainda nulo na parte em que deu como provado que a A. suportou custos com a aquisição de matérias-primas e nesse pressuposto, condenou a recorrente a pagar uma quantia a liquidar posteriormente, pronunciando-se sobre uma matéria (custos decorrentes da aquisição de matéria-prima) que não está em causa neste processo e, nesse sentido, é nulo nos termos da alínea d) do n° 1 do art. 615° do CPC;

PP) Acresce que, quanto à condenação, no Acórdão posto em crise, ocorre condenação em objeto diverso do pedido, nos termos da al. e) do n.° 1 do art. 615.° do CPC;

QQ) A Autora intentou a presente ação, pedindo a condenação das Rés no pagamento dos lucros que deixou de auferir com a rutura da encomenda, que liquidou em €421.679,00;

RR) A condenação em si é ininteligível, mas pelo excerto de Acórdão a fls. 637, a que se segue da frase "Estes danos, pela falta de elementos, serão liquidados posteriormente (...)", pressupõe-se que sejam os danos que vêm referidos na transcrição efetuada de um outro processo, que versa sobre outro caso concreto e que não correspondem aos que estão em causa na presente ação - vide artºs. 46.°, 49.°, 52.°, 53.°, 54.° e pedido, todos da P.I.;

SS) Não tendo a Recorrida provado absolutamente dano algum em concreto nem tão pouco peticionado uma indemnização pelas despesas ou interesse contratual negativo, e podendo tê-lo feito, não se compreende a condenação do Tribunal a quo;

TT) Ainda que que a nulidade arguida não proceda, o Tribunal em causa efetuou ainda violação da aplicação da lei do processo;

UU) Na decisão em análise não são bem aplicadas as normas a que o Tribunal da Relação está adstrito no âmbito da modificação do quadro factual;

VV) Não está aqui em causa, o princípio da livre apreciação das provas, mas antes a violação da lei processual por parte do douto Acórdão da Relação do Porto ao dar como provados factos:

- em contradição com o teor de documentos com força probatória legal plena;

- sem especificar os fundamentos decisivos para a sua convicção;

- contrariados por confissão;

E como não provados factos:

- provados por documentos autênticos ou autenticados;

WW) Existe uma empresa chamada FF, Lda. que até 08/01/2013 era a empresa detentora da fábrica e dos meios de produção do … fornecido e a fornecer à Primeira Ré BB;

XX) Esta fábrica, considerada como um estabelecimento industrial destinado ao fabrico de …, foi trespassada à A. em 8 de Janeiro de 2013 - cfr escritura pública de fls 359 e sgts dos autos;

YY) A data da celebração da referida escritura, eram únicos sócios da FF, Lda: GG e HH (cfr. novamente o referido documento de fls 359 e ss. dos autos);

ZZ) O II (como é mencionado no acórdão) era funcionário da FF;

AAA) Nunca a autora foi sócia da sociedade FF;

BBB) Ora, no douto Acórdão diz-se que a FF é "presentemente pertencente à autora", o que não corresponde à verdade, uma vez que, conforme se pode comprovar pela certidão anexa e pela escritura de fls 359 e ss. dos autos, não pertence e nunca pertenceu à autora;

CCC) A qualidade de sócia (e, consequentemente, ser-se proprietária de parte ou totalidade) de uma sociedade por quotas é nos termos do disposto nos arts. 7.°, n° 1 e 228.°, n° 1 do Código das Sociedades Comerciais;

DDD) A relevância desse facto instrumental dado como provado é magnânima;

EEE) Socorrendo-nos apenas do que diz o douto Acórdão e das atas da audiência de julgamento, é fácil concluir que os contactos da aqui recorrente foram apenas com a FF, na pessoa dos referidos JJ, HH e II, e nunca com a Autora;

FFF) A A. foi criada apenas em 7 de Abril de 2011 (ou seja, tinha pouco mais de um ano) e dedica-se ao comércio por grosso de têxteis, vestuário e calçado e atividades de trading;

GGG) A FF foi constituída em 1 de Fevereiro de 2006 por KK, à data casada com o JJ, e dedica-se à fabricação de … (corte e costura);

HHH) O próprio Tribunal nem se dá conta da implicação jurídica das suas afirmações no sentido de reiterar que quem contactava com a Recorrente eram os sócios e trabalhadores de pessoa coletiva absolutamente distinta da Autora;

III) Ou seja, o trespasse em questão ocorreu a 8 de Janeiro de 2013 e o Tribunal da Relação do Porto declara expressamente, a fls. 629 que: "Em 2012 solicitou (a Recorrente) à autora a produção de amostras com vista à produção dos referidos … de criança." - Destacado nosso - e dá ainda como provado no facto viii., fls. 633, que em dezembro a Recorrente enviou determinados modelos de … à Recorrida com vista ao fabrico de determinadas quantidades (que não se aceitam conforme já mencionado);

JJJ) Tendo em conta que a Autora não possuía estabelecimento industrial e recursos humanos até janeiro de 2013 e que todos os contatos existentes foram com funcionários da FF, não se vislumbra quais os factos em que se alicerçou para considerar provado que:

- "a DD beneficiou dos conhecimentos técnicos e do desenvolvimento feito pela Autora nas diversas amostras que tinha enviado à Primeira Ré";

- "Foi discutido entre as partes o preço do ... a produzir pela autora";

- "No passado as rés escolheram a autora como fabricante";

- "O envio de modelos por parte da 1ª Ré para a Autora fabricar";

- "A autora produziu amostras";

- "A autora programou atividade fabril e assegurou o processo produtivo";

KKK) Isto Posto, o douto Acórdão violou ainda o disposto no n° 1 do art. 662° do CPC, uma vez que deu como provado que "em consequência direta, necessária e adequada da conduta das rés, a autora, deixou de auferir lucros, suportou custos no que se prende com a aquisição das matérias-primas com vista ao fabrico …";

LLL) Tal facto está cabalmente contrariado pela confissão do legal representante da A. que se encontra transcrita na douta sentença de primeira instância;

MMM) Bem como não teve em consideração os documentos juntos aos autos e não impugnados pelas partes;

NNN) Tais documentos, de per si, têm força probatória plena, entre os quais o doc. 4 a fls. 182, ou o doc. 3 a fls.456 (verso) - entre outros - em que se verifica sempre o mesmo tipo de discurso por parte da Recorrente de forma a garantir que a recetora da mensagem assimila que nada está confirmado;

OOO) É, sobretudo, momentosa a desconsideração do documento relativo ao trespasse de estabelecimento entre a FF e a Autora, que apenas sucedeu em Janeiro de 2013, cfr. escritura pública de fls. 359 e ss. dos autos;

PPP) Nenhum documento é citado em concreto, é efetuada uma mera menção genérica aos documentos: "Essa convicção resulta dos documentos juntos e dos depoimentos das testemunhas (...)", o que ademais se demonstra manifestamente insuficiente enquanto fundamentação ao abrigo do n.° 4, in fine, do art. 607.° do CPC;

QQQ) A menção no Acórdão em questão, ainda que na generalidade, de documentos em termos que contrariam a força probatória plena que lhes é conferida pelo art. 376.° do CC, consubstancia um caso subsumível ao n.° 3 do art. 674.° do CPC, ao violar o disposto nos arts. 352.°, 371.°, 376.°, e 362.° e ss., ambos do CC;

RRR) Tratando-se de documentos com força probatória plena, a única forma de a contrariar seria, nos termos do disposto no artigo 347.° do CC, através de "meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto, sem prejuízo de outras restrições especialmente determinadas na lei";

SSS) E tal não se verificou;

TTT) Não foi ainda respeitada a força probatória da confissão do legal representante da Recorrida, obtida nos termos previstos no art. 452.° e ss. do CPC.

UUU) Tem a Recorrente plena consciência da competência da Relação no que respeita à alteração, em definitivo (662.° n.° 4 do CPC), da matéria de facto, no exercício dos poderes que lhe são conferidos pelos n.°s 1 e 2 do art.° 662.° do CPC;

VVV) Esta decisão é, no entanto, sindicável nos termos do n.° 3 do art. 674.°do CPC;

WWW) Mesmo que em razão das regras de experiência, que nem sequer foram invocadas, ou outro critério dessa génese, a parte tem que extrair de uma forma objetiva, ou pelo menos lógica, qual o raciocínio que levou o Tribunal recorrido a dar como provados os factos que deu como assentes, principalmente quando alguns desses factos são fortemente contraditórios a meios de prova cuja força está fixada na lei;

XXX)    A douta decisão recorrida viola o disposto nos art. 662° n° 1, 663° n° 2 e 607° n° 4 e 5, todos do CPC, devendo este Colendo Supremo Tribunal de Justiça revogá-la, nos termos dos arts. 674° n° 1 b) e n° 3, e 682° n° 2, do mesmo código;

YYY) Da mesma forma que deve ser revogada por errada aplicação do art. 609.°, n.° 2 do CPC;

ZZZ) O Acórdão recorrido viola os arts. 608.°, e o n.° 2 do 609.°, ambos do CPC;

AAAA) A Autora optou por apresentar um pedido de condenação líquido sustentado em factos concretos que alegou (n.° de pares de ... a produzir, preço médio, diversos custos envolvidos);

BBBB) Alegou prejuízos que à data da propositura da acão estavam consolidados;

CCCC) O objeto e as quantidades do pedido estavam definidos;

DDDD) No entanto, não cumpriu o ónus que lhe cabe de os provar;

EEEE) Será de sublinhar que nem o poderia fazer uma vez que admite desde logo que os seus danos são puramente ficcionais: "suportaria".

FFFF) E, do douto Acórdão da Relação aqui em causa, não resulta qualquer fundamentação quer para a existência de prejuízos por parte da A. quer para justificar a sua dificuldade na sua comprovação;

GGGG) Neste sentido, vide Ac. do STJ de 17 de janeiro de 2006, Ver. N.° 3748/05-1.3: Sumários: janeiro 2006: "No caso ajuizado, todos os acontecimentos ocorreram antes da acão declarativa ter sido proposta; o autor tinha, então, ao seu dispor todos os elementos para fazer a prova dos factos por si articulados. III - Se a prova fracassou, a lei não permite às partes que vão à procura de melhor prova para, numa segunda oportunidade, virem a conseguir o objecto e a quantidade pensados mas não provados no momento e local próprios." - destacado e sublinhado nosso;

HHHH) A Autora pede uma indemnização no valor que ganharia se a encomenda tivesse sido concretizada e não pede por danos que não teria sofrido se não tivesse confiado na conclusão do contrato! - Vide, a propósito o art. 53.°e 54.°daP.I.;

IIII) Não tendo a Recorrida provado absolutamente dano algum em concreto nem tão pouco peticionado uma indemnização pelas despesas ou interesse contratual negativo, e podendo tê-lo feito, não se compreende a condenação em liquidação nos termos do 609.°, n.° 2 do CPC pelo Tribunal a quo;

JJJJ) Ver convenientemente adiada a liquidação dos danos ao abrigo do art. 609.°, n.° 2 do CPC, não é, evidentemente, o escopo dessa norma;

KKKK) Posto o que, a condenação na quantia que vier a ser liquidada posteriormente nos termos do art. 609° n° 2 do CPC, não se aplica ao presente caso;

LLLL) SEM PRESCINDIR E NA EVENTUALIDADE DO SUPRA ALEGADO NÃO PROCEDER: ainda que por V. Exas. não sejam acolhidos os argumentos que antecedem, não concorda a Recorrente com a própria aplicação da lei substantiva à factualidade assente (que nunca se poderá aceitar);

MMMM) Sempre esteve firmado entre as partes que o potencial custo com o desenvolvimento conjunto das amostras é um risco que corre por conta da fabricante sem nenhuma garantia de adjudicação;

NNNN) A Recorrente não pode ser responsabilizada pela programação interna de atividade fabril que a Recorrida faz e essa programação nunca foi consequência de uma garantia de que lhe seria adjudicada a produção dos bens em questão - vide facto xii, fl. 633, dado como não provado;

OOOO) Há sempre que ser relembrado que cada parte na presente demanda tem a sua estratégia empresarial autónoma e é responsável pelos riscos próprios das suas decisões;

PPPP) Mais, os próprios factos apresentados no acórdão de que se recorre explicitamente referem que não foi em circunstância alguma confirmada a formalização da encomenda, nem mesmo a mera promessa de formalização;

QQQQ) As testemunhas ouvidas afirmaram, sem exceção, que quem negociava e comunicava com a Recorrente em todo este processo sempre foram o Sr. JJ, funcionário da FF, II, funcionário da FF e HH, sócio gerente da FF;

RRRR) Vide, a propósito, de fls. 629 a 631, o Acórdão de que se recorre;

SSSS) Jamais se extrai da factualidade - com exceção daquela que é uma clara conclusão jurídica transformada em facto - que a possível confiança que a outra parte tenha formado na concretização do contrato seja devida a qualquer comportamento concreto da Recorrente, que nunca foi violador das regras do art. 227.° do CC;

TTTT) Não logrou a Recorrida demonstrar no presente processo que tivessem sido acordados todos os elementos do negócio, designadamente, o preço, a quantidade e o prazo de entrega (email fls. 209 (verso) datado de 20 de Dezembro de 2012, que é manifestamente antagónico ao alegado em 20.° da P.I.);

UUUU) O imediatamente acima referido é um indicador expressivo da prematuridade das negociações e vem reforçar que não é razoável constatar que a planificação da produção fabril da autora se deva à fase avançada dessas negociações, quanto mais à certeza da concretização do negócio;

VWV) "Qualquer negociador prudente deve contar sempre com o risco do malogro das negociações, dado que constitui princípio básico do direito civil a liberdade contratual, (...)" - Exma. Sra. Juiz Paula Cardoso na Sentença prolatada nos presentes autos em 1.ª instância;

WWWW) E uma contradição gritante que resulta da confrontação da P.I. da Autora e da prova produzida com a decisão posta em crise é a questão da suposta negociação de aquisição de matérias primas ou outros materiais;

XXXX) Destarte, não chegou a Autora sequer a adquirir matéria prima para a produção, o que seria a primeira coisa a assegurar face à ordem natural do processo de fabrico;

YYYY) Não se extrai do caso concreto que o homem médio, colocado nas condições da Recorrida, pudesse estar convicto da concretização do contrato, ao ponto de congelar ou recusar o fabrico de produtos de terceiro;

ZZZZ) Em epítome, resulta dos autos que a conduta da Recorrente se regeu pelas regras da Boa fé, ou, pelo menos, não resulta dos autos o contrário;

AAAAA) A FF, que não é parte no presente processo foi a única com quem a Recorrente negociou e tal é, inconscientemente, reconhecido no Acórdão posto em crise;

BBBBB) A FF seria a única, através dos seus sócios gerentes e funcionários, que poderia atestar sobre o comportamento negocial da Recorrente;

CCCCC) A Autora, ora Recorrida, tratava apenas do trading e comércio por grosso;

DDDDD) Se por um lado, não logrou a Recorrida provar que a Recorrente não pautou a sua atuação pelo dever de honestidade, lealdade e transparência, e todas as restantes regras subjacentes aos deveres de proteção;

EEEEE) por outro lado, também não fez prova de que sofreu os prejuízos por si alegados em sede de petição inicial e incluídos no pedido de condenação da Recorrente;

FFFFF) A conduta da Recorrente não é apta a preencher os pressupostos do art. 227.° do CC;

GGGGG) E ainda que preenchesse tais pressupostos - e não preenche - a Recorrida não peticionou indemnização alguma por danos não patrimoniais ou lucros cessantes, especificando laboriosamente cada custo que suportaria (art. 52.° da P.I.) e pedindo a condenação no valor que supostamente deixou de auferir com este negócio específico (42.512,00 €), que corresponderia a diferença entre os custos da produção e entrega da mercadoria à Primeira Ré e o preço que esta pagaria à Autora, ora Recorrida, com a aquisição daquele … (art. 53.°da P.I.), não tendo conseguido fazer prova de nenhum dano alegado, liquidado e peticionado em sede da presente ação”.


Termina pedindo que a Recorrente seja absolvida do pedido como consequência de ser:

“a) Declarada nula a decisão do Tribunal a quo ao abrigo das alíneas b), c), d) e e) do n° 1 do art. 615° do CPC, ex vi art. 674.°, n.° 1, al. c), mantendo-se a egrégia decisão proferida em 1.ª instância;

b) Revogada a decisão posta em crise, inclusive no que respeita à matéria de facto por esta fixada, por violação do disposto no art. 662° n° 1, 663° n° 2 e 607° n° 4 e 5, todos do CPC, e nos termos dos arts. 674° n° 1 b) e n° 3, e 682° n° 2, do mesmo código;

c) Revogada, mesmo não procedendo o peticionado em b), pela errada aplicação da lei substantiva e direito em geral aos factos dados como provados, uma vez que perante estes não há lugar à aplicação do preceito normativo relativo à Responsabilidade Pré Contratual, art. 227.° do CC, tendo a conduta da ora Recorrente seguido sempre os ditames da boa-fé e enquadrando-se no âmbito do legitimo exercício da sua Liberdade Contratual, consagrada no art. 405.° do mesmo diploma legal.”


      Não houve contra-alegações.


3. Por despachos de fls. 728 e de fls. 761 determinou a relatora deste Supremo Tribunal que, ao abrigo do nº 5 do art. 677º do Código de Processo Civil, baixassem os autos ao Tribunal da Relação para conhecimento das invocadas nulidades do acórdão recorrido.


4. A fls. 780, foi proferido acórdão em conferência do Tribunal da Relação, no sentido da não verificação das nulidades invocadas pela Recorrente.


5. Vem provado o seguinte (mantêm-se a identificação e a redacção da Relação):

Factos dados como provados pela 1ª instância:

Da petição inicial:

1º A autora dedica-se, com carácter habitual e fim lucrativo, ao comércio por grosso de têxteis, vestuário e calçado, actividades de trading e indústria de … .

2º A primeira ré dedica-se ao comércio de artigos diversos, designadamente artigos de calçado e de têxteis, explorando, para o efeito, estabelecimentos comerciais que detém no Reino Unido.

3º A segunda ré é agente de comércio por grosso de têxteis, vestuário, calçado e artigos de couro.

4º A autora era fornecedora de … da primeira ré, desde há cerca de dois anos, sendo intermediária ou agente a segunda ré.

5º A primeira ré adquire habitualmente em Portugal artigos de …, que são fabricados por empresas portuguesas angariadas pela segunda ré, mediante os modelos criados pela primeira ré.

6º Assim, o processo habitualmente utilizado na colocação de encomendas nas indústrias portuguesas, passa pela criação pela primeira ré dos modelos de … que pretende adquirir, os quais são enviados a diversos fabricantes de …, indicados pela segunda ré, nos quais se incluem habitualmente a autora.

7º Na posse de tais modelos, os potenciais fornecedores da primeira ré desenvolvem, confeccionando, amostras dos mesmos.

8º Uma vez confeccionadas as amostras são enviadas para Inglaterra, para a sede da primeira ré, através da segunda ré ou, pelo menos, com o seu conhecimento.

9º Na posse das amostras enviadas pelos diversos fabricantes, a primeira ré selecciona as amostras.

10º O processo é sempre acompanhado pela segunda ré.

11º Produzidas amostras e enviadas à primeira ré, esta inspecciona as mesmas e, caso considere necessário, manda rectificar.

12º Com a confecção da amostra de compra, passa-se à fase de negociações com vista à fixação do preço dos … .

13º Depois de acordado o preço dos …, quantidades e prazos de entrega dos mesmos, é emitida a ordem de encomenda pela primeira ré por intermédio da segunda ré.

14º No mês de Dezembro de 2012, autora e primeira ré iniciaram negociações com vista ao fabrico por parte da autora de três modelos de … de criança, dos modelos item 850296, 852387, e 856368.

15º Na posse de tais modelos, a autora desenvolveu-os, confeccionando amostras dos mesmos que enviou à sede da primeira ré, com o conhecimento da segunda ré.

16º A primeira ré solicitou, então, à autora o fabrico e envio de amostras fotográficas, amostras para fitar e amostras designadas por “grades”.

17º A autora ficou com a expectativa de vir a fabricar o descrito … para a primeira ré, tendo iniciado negociações com vista à aquisição da matéria-prima (peles e …) necessária ao fabrico do … .

18º As rés nunca chegaram a efectivar qualquer nota de encomenda no que se refere aos aludidos modelos de … .

Das contestações:

19º A encomenda só é adjudicada a determinado fabricante quando a primeira ré emite um documento intitulado de “Booking Form”, que tem em anexo um outro documento intitulado de “Next Terms and Conditions of Purchase”, tudo constituindo o contrato de fornecimento entre a primeira ré e o fabricante escolhido.

20º Antes de chegar a esta fase, um moroso e complexo processo de selecção de amostras de diversa natureza, matérias – primas, …, modelos, etc., etc., decorre no qual participam os vários potenciais fabricantes e diversos departamentos das rés.

21º Durante o qual, e de acordo com as selecções que vão sendo feitas, vão sendo também discutidos e acordados outros componentes essenciais da encomenda final, como as datas de entrega, quantidades e preços.

22º Tudo para assegurar que os produtos fabricados sejam entregues aos clientes da primeira ré com a qualidade pretendida e dentro dos prazos acordados.

23º Ao longo do processo de selecção do fabricante para determinada encomenda, os diversos concorrentes desenvolvem várias amostras, correndo o custo de produção em exclusivo pelos potenciais candidatos ao fabrico do … que estiver em causa na encomenda.

24º Ainda numa fase em que se encontram vários fabricantes a concorrer ao fabrico e fornecimento da encomenda em causa, os serviços técnicos das rés intervêm no sentido de serem desenvolvidas – pelos potenciais fornecedores - amostras de acordo com o pretendido.

25º Vão sendo analisadas essas amostras feitas pelos concorrentes, ainda antes de decidido o fornecedor da mercadoria.

26º [dado como não provado pela Relação]

27º Nessa altura, é solicitado ao fabricante escolhido o fornecimento de uma “amostra de compra”, que terá de ser aprovada pela primeira ré.

28º E só nessa altura, e após a confirmação por parte do fornecedor das datas em que efectuará o fornecimento e acordado o preço, é que a primeira ré emite o contrato denominado “Booking Form”, acima referido.

29º Tal contrato, que inclui o número de encomenda, as quantidades a fornecer, os preços acordados, as datas acordadas para fornecimento, é o documento que titula a adjudicação da encomenda ao fabricante escolhido.

30º E que permite a este começar a encomendar matéria-prima aos seus fornecedores, baseada nas quantidades do … a fábrica, nas datas acordadas.

31º A encomenda referente aos modelos aludidos em 14º, item 850296, 852387, e 856368, foi entregue apenas em Março de 2013 a outras empresas.

Mais factos dados como provados pela Relação:

i. A Autora negociou e acordou a aquisição das peles e dos pares de solas necessários à produção de toda aquela quantidade de … - Provado.

ii. Ambas as Rés ao entregarem o fabrico daquele … a um outro fabricante, designadamente à DD, beneficiaram dos conhecimentos técnicos e do desenvolvimento feito pela Autora nas diversas amostras que tinha enviado à Primeira Ré- Provado

iii. Provado que A encomenda referente aos modelos aludidos em 14º, item 850296, 852387, e 856368, foi entregue apenas em Março de 2013 a outras empresas, uma das quais a EE - Importação e Exportação, Lda. (DD).

iv. Foi discutido entre as partes o preço do ... a produzir pela autora- Provado

vi. Há artigos de ... pretendidos pela primeira ré que são imediatamente solicitados a um só fabricante, não ocorrendo qualquer situação de prévia escolha entre vários fabricantes, o que sucede designadamente quando ambas as rés conhecem o fabricante, a qualidade e capacidade de fabrico e com ele tenham tido relações comerciais anteriores, o que sucedeu por inúmeras vezes com a autora- Provado

viii. No mês de Dezembro de 2012, a primeira ré, por intermédio da segunda ré, enviou à autora os três modelos de … de criança, aludidos em 14º, com vista ao fabrico de 60.000 pares do modelo item 850296, 40.000 pares do modelo item 852387, e 10.600 do modelo item 856368 – Provado.

x. A autora produziu tais amostras do modelo final dos … pretendidos, que enviou à primeira ré- Provado

xii. A autora programou a atividade fabril no sentido de não aceitar outras encomendas para o período em que seriam confecionados os aludidos pares de ... destinados à primeira ré- Provado

xiv. Era do conhecimento de ambas as rés que a autora tinha assegurado quer o processo produtivo, quer a matéria-prima destinada à confecção daquele …, e que a tinham convencido de que iria efetivamente produzir e vender o mesmo à primeira ré- Provado.

xv. Provado que Em consequência direta, necessária e adequada da conduta das rés, a autora, deixou de auferir lucros, e suportou custos no que se prende com a aquisição das matérias-primas com vista ao fabrico do … .


Factos dados como não provados pela Relação:

26º Este só é seleccionado pelas rés, após a selecção final da amostra e depois de acordado o preço final.

v. Feita a seleção das amostras, a primeira ré dá instruções apenas ao fabricante selecionado para este produzir e enviar-lhe diversas amostras específicas do … pretendido.

vii. Só depois de selecionado o fabricante do … é que lhe é solicitado o fabrico das amostras.

ix. A primeira ré aprovou as amostras enviadas pela autora, informando e solicitando à mesma a confeção das amostras de compra, ou seja, o modelo final dos ... que pretendia adquirir.

xi. A segunda ré confirmou à autora que iria ser formalizada a encomenda dias depois, tal como era habitual.

xiii. As rés fizeram sucessivas promessas de que iriam formalizar a encomenda junto da autora.


6. Tendo em conta o disposto no nº 4 do art. 635º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões. Assim, o presente recurso tem como objecto os seguintes grupos de questões:

A) Nulidades do acórdão recorrido;

B) Violação ou errada aplicação da lei do processo;

C) Violação da lei substantiva.

Discriminadamente:

A) Invoca a Recorrente as seguintes nulidades do acórdão recorrido:

- Nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão (art. 615º, nº 1, alínea c), do CPC) [concls. J) a Q)];

- Nulidade por ambiguidade da decisão e por contradição dos factos entre si, incluindo a inserção de factos conclusivos (art. 615º, nº 1, alínea c), CPC [concls. R) a CC)];

- Nulidade por falta de fundamentação (art. 615º, nº 1, alínea b), do CPC) [concls. DD) a HH)];

- Nulidade por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, alínea d), do CPC) [concls. II) a OO)];

- Nulidade por condenação em objecto diverso do pedido (art. 615º, nº 1, alínea e), do CPC) [concls. PP) a SS)].

B) Invoca a Recorrente que o acórdão recorrido incorreu nas seguintes violações da lei processual e de direito probatório:

- Ao dar como provados factos:

o Em contradição com o teor de documentos com força probatória legal plena [concls. WW) a JJJ);

o Sem especificar os fundamentos decisivos para a sua convicção [concl. VV)];

o Contrariados por confissão [concls. KKK, LLL) e TTT)];

- Ao dar como não provados factos provados por documentos autênticos ou autenticados [concls. MMM) a SSS)];

- Ao violar as regras do art. 608º e do art. 609º, nº 2, do CPC [concls. XXX) a KKKK)].

C) Invoca a Recorrente que o acórdão recorrido padece dos seguintes erros na aplicação da lei substantiva:

- Erro do juízo sobre a verificação dos pressupostos do art. 227º do Código Civil [concls. MMMM) a FFFFF)];

- Erro do juízo sobre a ressarcibilidade dos danos peticionados em sede de responsabilidade pré-contratual, assim como quanto à prova dos mesmos danos [concls. WWWW), XXXX) e GGGGG)].


7. Antes de apreciar as questões objecto do recurso, importa proceder ao seu devido enquadramento, considerando tanto os termos em que a acção foi proposta como o sentido da decisão de cada uma das instâncias.

  A A. intentou a presente acção com fundamento em responsabilidade civil por ruptura injustificada das negociações de um contrato, uma das modalidades da denominada culpa in contrahendo ou responsabilidade pré-contratual, consagrada no art. 227º do Código Civil. Como decorre do relatório supra, peticionou a condenação solidária das RR. a pagar-lhe uma indemnização no montante global de € 421.679,00, acrescida de juros moratórios, sendo que o referido montante resulta da soma dos seguintes valores parciais pelos “lucros que deixou de auferir com a retirada da encomenda”: €249,900,00, correspondentes à diferença entre os custos da produção e entrega da mercadoria à 1ª R. e o preço que esta pagaria à A. com a aquisição de 60.000 pares de … do modelo item 850296; € 129,267,00, correspondentes à diferença entre os custos da produção e entrega da mercadoria à 1ª R. e o preço que esta pagaria à A. com a aquisição de 40.000 pares de … do modelo item 852387; € 42.512,00, correspondentes à diferença entre os custos da produção e entrega da mercadoria à 1ª R. e o preço que esta pagaria à A. com a aquisição de 10.600 pares de … do modelo item 856368.

   A sentença da 1ª instância deu como provado que o processo de negociação do contrato de fornecimento de … em causa nos autos se revestia de elevada complexidade, uma vez que, antes de contratarem, as RR. auscultavam diversos fabricantes, apresentando-lhes especificações para a produção de amostras de cada modelo de ... e, só depois de avaliarem a qualidade de tais amostras, escolhiam o fabricante a contratar. Este sistema – que não era estranho à A., por já ter sido adoptado aquando da negociação e celebração de outros contratos – implicava que, no decurso dos procedimentos, não podia a A. dar como certa que viria a ser escolhida para fabricar os produtos em causa. Assim sendo, e na medida em que, no caso concreto, não tinha havido decisão de contratar nem as partes tinham fixado as condições essenciais do contrato, não se poderia censurar a conduta das RR. ao terem escolhido um outro fabricante.

      Entendeu também a sentença que, mesmo que se concluísse diversamente, isto é, que se verificara a violação da recta conduta negocial, a pretensão da A. sempre improcederia por falta de demonstração de danos efectivos.

     Tendo a A. apelado, a Relação alterou a matéria de facto e, apenas quanto à 1ª R., julgou verificados os pressupostos da responsabilidade pré-contratual nos termos que, em seguida, se reproduzem dada a sua importância para a apreciação das múltiplas questões objecto do presente recurso:


Vejamos o mérito da causa.

Pretende a autora a condenação das rés em indemnização emergente de responsabilidade civil pré contratual consagrada no artigo 227º, nº 1 do CC Artigo 227.º - 1. “Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”.

Infere-se deste preceito que a actuação de boa fé se impõe na fase negociatória, constituída pelos actos tendentes à celebração do contrato, desde os primeiros contactos estabelecidos entre as partes até à conclusão do acordo pela fusão da proposta e da aceitação, quer na fase decisória, constituída pela conclusão do acordo, resultante da emissão de duas declarações vinculativas, simultâneas ou sucessivas, a proposta e a aceitação. 

Em todo o iter contratual, devem as duas partes proceder segundo as regras da boa fé, conforme prescreve o preceito em causa, de tal modo que, se alguma delas assim não agir, responderá pelos danos que culposamente causar à outra parte.

O dever de agir de boa fé traduz-se em agir lealmente, correctamente, honestamente – A. Varela, Das Obrigações em Geral, II, 7ª ed. Pág 10 e RLJ, 122º, 148.

Através da responsabilidade pré contratual tutela-se directamente a confiança fundada de cada uma das partes em que a outra conduza as negociações segundo a boa fé.

Ana Prata in Notas sobre a Responsabilidade Contratual, Separata da R. Bana, nº 16 e 17, pág. 37, refere que a boa fé “constitui um princípio normativo de conduta, com um significado objectivo que nenhuma relação tem com o estado de espírito ou o animus dos sujeitos a ela submetidos, pelo que não é legítimo considerar a sua violação como sinónimo de má fé ou necessariamente ligada a qualquer intenção de prejudicar”

“A responsabilidade pré contratual pressupõe uma conduta eticamente censurável, e de forma acentuada, em termos idênticos ao abuso de direito” – Ac. STJ de 9.2.98, in CJ/STJ, I, 84.

A responsabilidade em causa pressupõe que a parte que rompe as negociações traia as expectativas que legitimamente incutiu na parte com quem negociava, de modo que a frustração do negócio exprima uma indesculpável violação de uma obrigação.

À responsabilidade contratual aplica-se o regime da responsabilidade civil contratual pois que aquela deriva da violação de uma obrigação.

São pressupostos da responsabilidade civil contratual o facto – danoso - objectivo do não cumprimento, a ilicitude – desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado -, o prejuízo sofrido pela credora/ lesada e o nexo de causalidade entre aquele facto e o prejuízo (artºs 406º, nº1, 762º, nº 1, 798º e 799º do CC.

Os factos assentes permitem imputar à 1ª Ré CC, Lda uma conduta geradora de responsabilidade civil pré contratual, uma vez que violou a sua obrigação de contratar bem, isto é, segundo as regras da boa fé e não já à co Ré BB. Na realidade esta 2ª Ré não teve qualquer intervenção nestas negociações, sendo a 1ª ré a entidade que tinha autonomia no processo da escolha do fabricante até dada a proximidade com estes.

No processo de negociação a 1ª Ré gerou na autora nesta uma confiança razoável fundada na celebração do contrato em causa com a formalização de encomendas, tendo em conta que o processo das amostras e protótipos estava concluído, fizeram imensas alterações e as partes já eram clientes habituais.

A Ré CC, Lda não agiu de boa fé, isto é, não actuou com diligência, zelo. Não se pautou pelos cânones da lealdade e probidade correspondentes aos interesses legítimos da autora enquanto contra parte. Não teve uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade, a fim de não prejudicar os interesses da outra parte. Na realidade A Ré nem sequer informou a autora perante todo o longo processo de realização das amostras e protótipos - não só não contratou como não informou que o negócio não lhe seria adjudicado, apresentando qualquer justa causa e foi contratar com uma 3ª sociedade que replicou as amostras da autora.

Assim temos de concluir que esta ré procedeu, no desenvolvimento e condução das negociações tomando posição que prejudicou a autora.

Extraem-se dos factos apurados uma conduta violadora das regras da boa fé ou ilícita e culposa (de salientar que porque estamos no âmbito de responsabilidade pré contratual a culpa presume-se de acordo com o disposto no artigo 799º do CC) susceptível de integrar os pressupostos da responsabilidade civil pré contratual dos quais advieram danos correspondente ao lucro que a autora deixou de auferir – interesse contratual negativo - sendo estes danos decorrentes e consequentes desta conduta da Ré - nexo causal (‘Esses danos correspondem, no caso, ao chamado interesse contratual negativo ou da confiança, ou seja, os danos que os autores não teriam sofrido se porventura não tivessem confiado na conclusão do contrato de sociedade. Nessa medida, devem, pois, os réus proceder à reconstituição da situação que existiria anteriormente à criação da confiança, designadamente reembolsando os autores das despesas que efectuaram e dos trabalhos que realizaram, directamente ou através de familiar, na perspectiva da conclusão do contrato (e que não teriam efectuado e realizado se não tivessem confiado), o que engloba tanto os danos patrimoniais e não patrimoniais fixados no acórdão recorrido’ - Ac. STJ de 18-12-2012in www.dgsi.pt).

Estes danos, pela falta de elementos serão liquidados posteriormente nos termos do artigo 609º, nº 2 do CPC.

Na procedência parcial das alegações de recurso revoga-se a sentença recorrida e condena-se a Ré CC, Lda na quantia que se vier a liquidar posteriormente mos termos do artigo 609º, nº 2 do CPC e absolve-se a Ré BB, do pedido.” [negritos nossos]


  Contra esta decisão se insurge a Recorrente, suscitando as questões supra enunciadas de que, em seguida, passamos a conhecer por ordem de precedência, salvo se a resposta dada a uma questão prejudicar a resolução de outra ou outras questões.


8. Consideremos antes de mais, as invocadas nulidades do acórdão recorrido.


8.1. Quanto à questão da alegada nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão (art. 615º, nº 1, alínea c), do CPC), invoca a Recorrente essencialmente que enquanto na respectiva fundamentação o acórdão recorrido considera que A. e 1ª R. celebraram o contrato de fornecimento de …, a decisão de condenação assenta em responsabilidade civil pré-contratual por ruptura das negociações que tinham em vista o contrato.

     Reconhece-se que o teor da fundamentação da decisão de direito do acórdão recorrido não se apresenta isento de dúvidas, em especial a passagem na qual se declara que “No processo de negociação a 1ª Ré gerou na autora [nesta] uma confiança razoável fundada na celebração do contrato em causa com a formalização de encomendas, tendo em conta que o processo das amostras e protótipos estava concluído, fizeram imensas alterações e as partes já eram clientes habituais.”. Ainda assim, afigura-se que tal não é, por si só, susceptível de configurar uma oposição entre os fundamentos e a decisão, mas antes de poder consubstanciar um erro de julgamento, a apreciar infra, a respeito das questões relativas à interpretação e aplicação do direito substantivo.


8.2. Quanto à questão da alegada nulidade por ambiguidade da decisão susceptível de conduzir à ininteligibilidade da decisão (art. 615º, nº 1, alínea c), do CPC), invoca a Recorrente, no essencial, que ocorre uma antinomia entre os fundamentos de facto entre si e entre estes e a decisão, assim como, alega a Recorrente (concls. U) a Y)), existem factos de natureza conclusiva que, por o serem, não devem ser considerados.

     Ora, segundo o entendimento comum da jurisprudência deste Supremo Tribunal, a qualificação de ambígua aplica-se à decisão a que seja razoavelmente possível atribuírem-se, pelo menos, dois sentidos díspares sem que seja possível identificar o prevalente.

      Não é este o caso da decisão do acórdão recorrido que condena no pagamento dos danos a liquidar, único sentido possível da decisão.

      Quanto à alegada existência de contradições da matéria de facto, a verificar-se, não constitui ela causa de nulidade do acórdão recorrido, antes poderá conduzir à decisão de ampliação da matéria de facto nos termos do nº3 do art. 682º do CPC.

      Do mesmo modo, a eventual existência de factos de natureza conclusiva não gera nulidade do acórdão, devendo antes ser apreciada em conjunto com as questões das alegadas violações da lei processual, suscitadas a respeito da reapreciação da decisão da matéria de facto.


8.3. Quanto à questão da alegada nulidade por falta de fundamentação (art. 615º, nº 1, alínea b), do CPC), invoca a Recorrente que a Relação deu como provado o ponto viii (“No mês de Dezembro de 2012, a primeira ré, por intermédio da segunda ré, enviou à autora os três modelos de ... de criança, aludidos em 14º, com vista ao fabrico de 60.000 pares do modelo item 850296, 40.000 pares do modelo item 852387, e 10.600 do modelo item 856368”) sem especificar qualquer meio de prova para o efeito.

     Porém, a falta de fundamentação de facto ou de direito não se confunde com este alegado erro na apreciação da matéria de facto, o qual só pode ser sindicado por este Supremo Tribunal nas hipóteses limitadas previstas na parte final do nº 3 do art. 674º do CPC ou, segundo a jurisprudência, não unânime deste Supremo Tribunal, se ocorrer ilogicidade manifesta no uso de presunções judiciais.

     Em qualquer caso, a questão suscitada apenas pode ser equacionada no âmbito das alegadas violações da lei processual e de direito probatório, suscitadas a respeito da reapreciação da decisão da matéria de facto.


8.4. Quanto à questão da alegada nulidade por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, alínea d), do CPC), invoca a Recorrente ter o acórdão recorrido dado como provado que a A. suportou custos com a aquisição de matérias-primas, o que não terá sido alegado nem peticionado.

    Também a este respeito se dirá que a nulidade por excesso de pronúncia não se confunde com o, ora invocado, erro na apreciação da matéria de facto, o qual – reafirma-se – só pode ser sindicado por este Supremo Tribunal nas hipóteses previstas na parte final do nº 3 do art. 674º do CPC ou, segundo a jurisprudência, não unânime deste Supremo Tribunal, se ocorrer ilogicidade manifesta no uso de presunções judiciais.

Também aqui a questão suscitada apenas pode ser equacionada no âmbito das alegadas violações da lei processual e de direito probatório, suscitadas a respeito da reapreciação da decisão da matéria de facto.


8.5. Por fim, relativamente à questão da alegada nulidade por condenação em objecto diverso do pedido (art. 615º, nº 1, alínea e), do CPC), invoca a Recorrente que, enquanto a A. peticionou o pagamento de indemnização por lucros que deixou de auferir com a ruptura das negociações contratuais, o acórdão recorrido condenou a 1ª R. a pagar indemnização por danos a liquidar posteriormente relativos a despesas suportadas pela A.

      Vejamos.

     Como resulta do relatório supra, do presente acórdão, a A. peticionou uma indemnização por “lucros que deixou de auferir com a retirada da encomenda”, não tendo peticionado qualquer compensação por despesas ou custos suportados.

Tendo isto persente, reconhecendo-se, mais uma vez, não ser o teor do acórdão recorrido isento de dúvidas, tanto pelos termos da fundamentação da decisão de direito transcritos supra, no ponto 7, como pela introdução do facto xv na factualidade dada como provada, no qual se enuncia que “a autora, deixou de auferir lucros, e suportou custos no que se prende com a aquisição das matérias-primas”.

Porém, lida atentamente a decisão condenatória verifica-se nela não se reconhece uma indemnização por custos ou despesas suportadas pela A., mas antes, nos seus próprios termos, pelos “danos correspondente[s] ao lucro que a autora deixou de auferir – interesse contratual negativo”.

Assim sendo, admite-se que possa ocorrer erro de julgamento quanto à qualificação e ressarcibilidade dos danos assim definidos – a apreciar no momento próprio – mas não o vício de nulidade por condenação em objecto diverso do pedido.


Conclui-se, assim, pela não verificação das alegadas nulidades, sem prejuízo da reapreciação dos pontos assinalados como eventuais erros de julgamento.


9. Pela mesma ordem de razões que levaram a considerar não se verificar nulidade por excesso de pronúncia nem por condenação em objecto diverso do pedido, entende-se não ter o acórdão recorrido desrespeitado as regras legais que delimitam as questões a resolver (art. 608º do CPC) ou que definem os limites da condenação (609º do CPC), tendo designadamente em conta que existe a possibilidade de condenação em quantia a liquidar sempre que o tribunal entender não haver elementos para fixar o objecto ou a quantidade da condenação (nº 2 do referido art. 609º).


10. Quanto a violações da lei processual e de direito probatório, suscitadas a respeito da reapreciação pela Relação da decisão da matéria de facto, invoca a Recorrente que o acórdão recorrido:

- Deu como provados factos: (i) Em contradição com o teor de documentos com força probatória legal plena; (ii) Sem especificar os fundamentos decisivos para a sua convicção; (iii) Contrariados por confissão;

- Deu como não provados factos provados por documentos autênticos ou autenticados.


A estas questões acrescem ainda, tal como indicado supra, no ponto 8.2. do presente acórdão, aquelas outras relativas à alegada contradição de factos provados entre si (concls. recursórias S), T), Z) e AA)), assim como à alegada inserção de factos de natureza conclusiva (concls. recursórias U) a Y)). Assim como, tal como indicado supra, nos pontos 8. 3 e 8.4 do presente acórdão, os alegados erros na apreciação da matéria de facto, os quais – reafirma-se – só podem ser sindicados por este Supremo Tribunal nas hipóteses limitadas previstas na parte final do nº 3 do art. 674º do CPC ou, segundo a jurisprudência não unânime deste Supremo Tribunal, se ocorrer ilogicidade manifesta no uso de presunções judiciais.

Na perspectiva da Recorrente, trata-se, afinal, de colocar em causa o inteiro juízo probatório feito pela Relação ao dar como não provado o ponto 26º que a 1ª instância dera como provado; e ao dar como provados dez pontos que a 1ª instância dera como não provados.

Contudo, o conhecimento de cada uma das sub-questões ora enunciadas apenas será relevante se não ficar prejudicado pela resolução das questões relativas aos alegados erros na interpretação e aplicação do direito substantivo.

Passemos, assim, a apreciar estas últimas.


11. Invoca a Recorrente que o acórdão recorrido padece dos seguintes erros na interpretação e aplicação da lei substantiva:

- Erro de juízo quanto à verificação dos pressupostos do art. 227º do Código Civil;

- Erro de juízo quanto à ressarcibilidade dos danos reconhecidos, assim como quanto à prova dos mesmos. Recorde-se que, tal como se indicou supra nos pontos 8.1. e 8.5. do presente acórdão, se terão de ponderar as demais questões conexas suscitadas pela Recorrente (qualificando-as como causas de nulidade do acórdão recorrido), e que entendemos ser de apreciar em sede de eventual erro de julgamento de direito. Em suma, do que se trata é de saber se os danos pelos quais o acórdão recorrido condenou a 1ª R. a pagar indemnização a liquidar em incidente próprio: (i) se encontram provados; e (ii) se estão devidamente qualificados e se são ressarcíveis na presente acção de responsabilidade civil pré-contratual por ruptura de negociações.


11.1. A questão do alegado erro do juízo quanto à verificação dos pressupostos do art. 227º do Código Civil encontra-se dependente da estabilização da matéria de facto pelo que, logicamente, não poderá ser resolvida sem que previamente se tenha tomado posição quanto às questões enunciadas no ponto 10 do presente acórdão.

     Ainda assim, o teor da fundamentação do acórdão recorrido, na parte relativa à natureza e regime da responsabilidade pré-contratual (cfr. transcrição integral feita supra no ponto 7), suscita-nos algumas reservas que importa referir por poderem vir a ter repercussões na resolução das questões subsequentes.

         Consideremos, em especial, a seguinte passagem:

“A responsabilidade em causa pressupõe que a parte que rompe as negociações traia as expectativas que legitimamente incutiu na parte com quem negociava, de modo que a frustração do negócio exprima uma indesculpável violação de uma obrigação.

À responsabilidade [pré-]contratual aplica-se o regime da responsabilidade civil contratual pois que aquela deriva da violação de uma obrigação.

São pressupostos da responsabilidade civil contratual o facto danoso - objectivo do não cumprimento, a ilicitude - desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado, o prejuízo sofrido pela credora/lesada e o nexo de causalidade entre aquele facto e o prejuízo (artºs 406º, nº1, 762º, nº 1, 798º e 799º do CC.” [negrito nosso]

        

      Não pode acompanhar-se plenamente estas afirmações nas quais, praticamente, se identifica a responsabilidade pré-contratual com a responsabilidade contratual.

      Na verdade, e como é de conhecimento comum, o instituto da culpa in contrahendo reveste-se de bem maior complexidade dogmática. A genialidade de Ihering (cfr. “Culpa in contrahendo oder Shadenersatz bei nichtigen oder nicht zur Perfektion gelangten Vertragen”, Jahrbucher fur Dogmatik des heutigen romischen und deutschen Privatrechts, Vol. IV, 1861, págs. 1 e segs., texto traduzido para português com o título ‘Culpa in contrahendo’ ou indemnização em contratos nulos ou não chegados à perfeição, Almedina, Coimbra, 2008) resulta da “descoberta” de que, na fase que antecede a celebração de um contrato e o momento da produção dos inerentes efeitos obrigacionais, se encontram as partes adstritas a respeitar deveres acessórios (ou laterais) de conduta impostos pela boa fé.

Para os propósitos do presente acórdão, socorremo-nos aqui da síntese contida em anotação ao artigo 227º da autoria da aqui relatora:

II. A atenção prestada à fase anterior à celebração do contrato permitiu identificar deveres acessórios de conduta a respeitar, bem como tipos de situações a incluir na responsabilidade pré-contratual. Entre as múltiplas enumerações de deveres propostos pela doutrina e pela jurisprudência, estrangeiras e nacionais, saliente-se aquela que distingue entre deveres de segurança, deveres de lealdade e deveres de informação. Quanto às tipologias de responsabilidade, identificam-se essencialmente três: a responsabilidade pela conclusão de um contrato inválido ou ineficaz que, por esse motivo, causa danos a uma das partes; a responsabilidade pela celebração de um contrato válido e eficaz de um modo tal que cause prejuízos a uma das partes; e ainda a modalidade, entre nós algo tardiamente reconhecida, da responsabilidade por rutura das negociações (…)” (Maria da Graça Trigo, anotação ao artigo 227º, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, pág. 512).

E ainda:

“IV. Para a orientação maioritária, a boa fé concretiza-se em deveres pré-contratuais, revelando-se vantajoso, tanto no plano dogmático, como no plano operacional, discriminá-los em função das três tipologias de responsabilidade enunciadas em II. Na responsabilidade pela rutura de negociações, o lesado confiou justificadamente na prossecução das mesmas e o responsável violou deveres pré-contratuais de lealdade sendo obrigado a indemnizar. Não falta quem alargue este tipo de responsabilidade ao ponto de, em certas hipóteses, defender que o dever de lealdade obriga à celebração do contrato. O princípio da liberdade contratual conheceria os seus limites quando a boa fé exigisse a formalização de consensos negociais já existentes (ver Acs. STJ 11.01.2007 e 28.04.2009).” (ibidem, pág. 513)


Deste modo, estando em causa, na responsabilidade pré-contratual, o desrespeito por deveres acessórios e não por deveres de prestação (principais ou secundários), a natureza da mesma não é inteiramente líquida.

Na síntese que temos vindo a utilizar:

“VII. Suscita-se a questão da natureza da responsabilidade pré-contratual. Tradicionalmente, a doutrina qualifica-a como responsabilidade obrigacional ou como responsabilidade delitual. Autores há que a consideram exemplo de uma terceira via de responsabilidade, orientação que permite aplicar o regime de uma ou outra daquelas categorias de responsabilidade civil, em função do problema em causa. Convocar-se-ia o regime da presunção de culpa do art. 799º, nº 1, assim como, quanto à responsabilidade por actos de auxiliares, o disposto no art. 800º, nº 1. Diversamente, para além da sujeição ao regime de prescrição do art. 498º, por expressa remissão do nº 2 do preceito, tornam-se ainda aplicáveis a possibilidade de redução da indemnização em caso de mera culpa, prevista no art. 494º, e o regime de solidariedade do art. 497º.” (ibidem, págs. 507-508).

     Aplicando os dados dogmáticos recolhidos ao caso dos autos, trata-se afinal de apreciar o eventual desrespeito por deveres pré-contratuais de lealdade. Sendo que, a existir, tal desrespeito gera responsabilidade pré-contratual, podendo discutir-se a sua qualificação como responsabilidade contratual ou como responsabilidade extracontratual; e admitindo-se, em alternativa, a configuração como uma situação da denominada “terceira via” da responsabilidade civil.

     Aqui chegados, temos porém que admitir que a devida aplicação do direito ao caso dos autos – no que à verificação dos pressupostos do artigo 227º do Código Civil diz respeito – sempre pressuporia a estabilização da factualidade dada como provada. O que, repete-se, implicaria o conhecimento prévio das questões indicadas no ponto 10 do presente acórdão.


11.2. Falta apreciar a segunda questão relativa à interpretação e aplicação da lei substantiva, nos termos supra enunciados, de forma a compreender todas as sub-questões, respeitantes à prova e ressarcibilidade dos danos, suscitadas pela Recorrente: Saber se os danos pelos quais o acórdão recorrido condenou a 1ª R. a pagar indemnização a liquidar em incidente próprio: (i) se encontram provados; e (ii) se estão devidamente qualificados e se são ressarcíveis na presente acção de responsabilidade civil pré-contratual por ruptura de negociações.

         Vejamos.

     Antes de mais, tendo a Relação inserido na matéria de facto dada como provada o ponto xv (“Provado que Em consequência direta, necessária e adequada da conduta das rés, a autora, deixou de auferir lucros, e suportou custos no que se prende com a aquisição das matérias-primas com vista ao fabrico do …”), não pode pôr-se em causa a prova da existência de danos, salvo se tal viesse a resultar do reconhecimento do alegado desrespeito das regras de direito probatório e das normas processuais que regulam os poderes da Relação na reapreciação da matéria de facto (cfr. ponto 10 do presente acórdão).

      O que não obsta a que se tenha de enfrentar aquela que se afigura ser afinal a questão crucial do presente recurso: apurar se os danos pelos quais o acórdão recorrido condenou a 1ª R. a pagar indemnização, a liquidar em incidente próprio, estão devidamente qualificados e se são susceptíveis de ser ressarcidos na presente acção de responsabilidade civil pré-contratual por ruptura de negociações.

      Consideremos, de novo, os termos em que o acórdão recorrido fundamentou a decisão de condenação no pagamento de indemnização a liquidar:

         “(…)

Os factos assentes permitem imputar à 1ª Ré CC, Lda uma conduta geradora de responsabilidade civil pré contratual, uma vez que violou a sua obrigação de contratar bem, isto é, segundo as regras da boa fé e não já à co Ré BB. Na realidade esta 2ª Ré não teve qualquer intervenção nestas negociações, sendo a 1ª ré a entidade que tinha autonomia no processo da escolha do fabricante até dada a proximidade com estes.

No processo de negociação a 1ª Ré gerou na autora nesta uma confiança razoável fundada na celebração do contrato em causa com a formalização de encomendas, tendo em conta que o processo das amostras e protótipos estava concluído, fizeram imensas alterações e as partes já eram clientes habituais.

A Ré CC, Lda não agiu de boa fé, isto é, não actuou com diligência, zelo. Não se pautou pelos cânones da lealdade e probidade correspondentes aos interesses legítimos da autora enquanto contra parte. Não teve uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade, a fim de não prejudicar os interesses da outra parte. Na realidade A Ré nem sequer informou a autora perante todo o longo processo de realização das amostras e protótipos - não só não contratou como não informou que o negócio não lhe seria adjudicado, apresentando qualquer justa causa e foi contratar com uma 3ª sociedade que replicou as amostras da autora.

Assim temos de concluir que esta ré procedeu, no desenvolvimento e condução das negociações tomando posição que prejudicou a autora.

Extraem-se dos factos apurados uma conduta violadora das regras da boa fé ou ilícita e culposa (de salientar que porque estamos no âmbito de responsabilidade pré contratual a culpa presume-se de acordo com o disposto no artigo 799º do CC) susceptível de integrar os pressupostos da responsabilidade civil pré contratual dos quais advieram danos correspondente ao lucro que a autora deixou de auferir – interesse contratual negativo - sendo estes danos decorrentes e consequentes desta conduta da Ré - nexo causal (‘Esses danos correspondem, no caso, ao chamado interesse contratual negativo ou da confiança, ou seja, os danos que os autores não teriam sofrido se porventura não tivessem confiado na conclusão do contrato de sociedade. Nessa medida, devem, pois, os réus proceder à reconstituição da situação que existiria anteriormente à criação da confiança, designadamente reembolsando os autores das despesas que efectuaram e dos trabalhos que realizaram, directamente ou através de familiar, na perspectiva da conclusão do contrato (e que não teriam efectuado e realizado se não tivessem confiado), o que engloba tanto os danos patrimoniais e não patrimoniais fixados no acórdão recorrido’ - Ac. STJ de 18-12-2012 in www.dgsi.pt).

Estes danos, pela falta de elementos serão liquidados posteriormente nos termos do artigo 609º, nº 2 do CPC.

(…)” [negritos nossos]


    Assim, e para o que ora releva, temos que o acórdão recorrido:

- Considera estarem reunidos os pressupostos da responsabilidade pré-contratual por ruptura injustificada das negociações por parte da 1ª R.;

- Reconhece ter a A. deixado de auferir lucros que qualifica como integrando o “interesse contratual negativo”;

- A respeito do que seja o interesse contratual negativo cita o teor de um acórdão do STJ no qual se afirma que “devem, pois, os réus proceder à reconstituição da situação que existiria anteriormente à criação da confiança, designadamente reembolsando os autores das despesas que efectuaram e dos trabalhos que realizaram…”.


Esta estrutura da fundamentação do acórdão ora recorrido – mais concretamente, ao intercalar a citação de um acórdão do STJ, proferido em outro processo, sem contudo clarificar as diferenças entre o caso dos autos e o caso em apreciação no dito acórdão – levou a Recorrente a, de forma reiterada ao longo das alegações e conclusões recursórias, invocar ter sido condenada em danos não peticionados, concretamente ter sido condenada no pagamento de despesas e custos suportados pela A. tendo em vista a aquisição de matérias-primas e a produção dos bens a fornecer às RR.

Na sequência do que ficou dito nos pontos 8.1 e 8.5 do presente acórdão, uma leitura atenta do acórdão recorrido, e em especial da decisão de condenação, não permite sufragar tal entendimento. Não obstante a utilização da técnica pouco rigorosa de intercalar a definição dos danos indemnizáveis com uma citação de decisão proferida a respeito de outro caso judicial, constata-se que o acórdão recorrido decidiu condenar a 1ª R. no pagamento de lucros cessantes que a A. deixou de auferir por causa da conduta da mesma R. e que, ao menos implicitamente, entendeu que tais lucros correspondiam aos lucros cessantes peticionados pela A.

Neste contexto, a afirmação feita pela Relação de que os lucros cessantes a indemnizar integram o “interesse contratual negativo” coloca-se ao nível da qualificação, susceptível de ser alterada nos termos do nº 3 do art. 5º do CPC.

Por outras palavras, independentemente da qualificação como interesse contratual negativo ou como interesse contratual positivo, o acórdão recorrido deu como provado que a A. ficou privada de lucros cessantes, como peticionado, e condenou a 1ª R. a ressarci-los no montante a apurar em incidente de liquidação.

Nesta sede, o que importa ajuizar é se, efectivamente, os lucros cessantes peticionados pela A. são ressarcíveis numa acção de responsabilidade pré-contratual por ruptura injustificada de negociações, com a configuração da presente.

Consideremos os termos exactos em que a indemnização por danos foi peticionada:



43º


Em consequência direta, necessária e adequada da conduta das Rés, a Autora sofreu avultados prejuízos.



44º


Desde logo decorrentes dos lucros que deixou de auferir com a retirada da encomenda. Com efeito,

45º


a Autora iria produzir e vender à Primeira Ré 60.000 pares de … para criança, do modelo item 850296, pelo preço supra referido, ou seja, pelo preço médio por par de 16,00 €, o que perfaz o preço global de 960.000,00 €.

46º


Na produção dos referidos ..., a Autora suportaria custos no valor global de 710.000,00 €, assim descriminados:

A) Matéria-prima:

a) solas (1,30 € por par): 78.000,00 €;

b) pele (138.000 pés x 1,50 €): 207.000,00 €;

c) forro (0,10 € por par): 6.000,00 €;

d) papel sulfito: 2.000,00 €;

e) palmilhas (0,33 € por par): 19.800,00 €;

f) plantares (0,50 € por par): 30.000,00 €;

g) tarifas (5000 unidades x    0,50 €): 2.500,00 €;

h) etiquetas (0,10 € unidade): 6.000,00 €;

i) Sacos plástico: (0,10 € unidade): 6.000,00 €;

j) Cruzetas: (0,10 € unidade): 6.000,00 €;

B) Mão-de Obra:

a.  Corte e costura: 150.000,00 €;

b. Montagem da obra: 180.000,00 €;

C) Custos administrativos, luz, telefones, telemóveis, combustíveis, seguros: 9.000,00 €;

D) Despesas de transporte: 7.800,00 €;


47º


Deste modo a Autora deixou de auferir 249.900,00 €, correspondente à diferença entre os custos da produção e entrega da mercadoria à Primeira Ré e o preço que esta pagaria à Autora com a aquisição daquele … .

48º


A Autora iria igualmente fabricar e vender à Primeira Ré 40.000 pares de … para criança, do modelo item 852387 pelo preço supra referido, ou seja, pelo preço médio por par de 15,30 €, o que perfaz o preço global de 612.000,00 €.

49º


Na produção dos referidos ..., a Autora suportaria custos no valor global de 482.733,00 €, assim descriminados:

A) Matéria-prima:

a) solas (1,60 € por par): 64.000,00 €;

b) pele (88.000 pés x 1,50 €): 132.000,00 €;

c) forro (0,10 € por par): 4.000,00 €;

d) papel sulfito: 1.500,00 €;

e) palmilhas (0,33 € por par): 13.200,00 €;

f) plantares (0,50 € por par): 20.000,00 €;

g) tarifas: 2.833,00 €;

h) etiquetas (0,10 € unidade): 4.000,00 €;

i) Sacos plástico: (0,10 € unidade): 4.000,00 €;

j) Cruzetas: (0,10 € unidade): 4.000,00 €;

k) Espumas: 2.000,00 €;

E) Mão-de Obra:

a. Corte e costura: 100.000,00 €;

b. Montagem da obra: 120.000,00 €;

F) Custos administrativos, luz, telefones, telemóveis, combustíveis, seguros:

1.590,00 €;

G) Despesas de transporte: 5.200,00 €;


50º


Deste modo a Autora deixou de auferir 129.267,00 €, correspondente à diferença entre os custos da produção e entrega da mercadoria à Primeira Ré e o preço que esta pagaria à Autora com a aquisição daquele … .

51º


Por último, a Autora iria fabricar e vender à Primeira Ré 10.600 pares de … para criança, do modelo item 856368 pelo preço supra referido, ou seja, pelo preço médio por par de 15,80 €, o que perfaz o preço global de 167.480,00 €.

52º


Na produção dos referidos …, a Autora suportaria custos no valor global de 124.968,00 €, assim descriminados:

A) Matéria-prima:

a) solas (1,50 € por par): 15.900,00 €;

b) pele (24.380 pés x 1,50 €): 36.570,00 €;

c) forro (0,10 € por par): 1.060,00 €;

d) papel sulfito: 350,00 €;

e) palmilhas (0,25 € por par): 2.650,00 €;

f) plantares (0,50 € por par): 5.300,00 €;

g) tarifas: 750,00 €;

h) etiquetas (0,10 € unidade): 1.060,00 €;

i) Sacos plástico: (0,10 € unidade): 1.060,00 €;

j) Cruzetas: (0,10 € unidade): 1.060,00 €;

k) Espumas: 60,00 €;

B) Mão-de Obra:

a. Corte e costura: 29.680,00 €;

b. Montagem da obra: 26.500,00 €;

C) Custos administrativos, luz, telefones, telemóveis, combustíveis, seguros: 1.590,00 €;

D) Despesas de transporte: 1.378,00 €;


53º


Deste modo a Autora deixou de auferir 42.512,00 €, correspondente à diferença entre os custos da produção e entrega da mercadoria à Primeira Ré e o preço que esta pagaria à Autora com a aquisição daquele … .

54º


Tem, pois, a Autora o direito de receber das Rés, e estas o dever de pagarem àquela, uma indemnização do montante global de 421.679,00 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.”


Da leitura das alegações da A. resulta evidente ter esta peticionado uma indemnização resultante da soma dos valores que teria auferido (isto é, lucros cessantes) se o contrato de fornecimento de … tivesse sido cumprido pelas RR. Trata-se daquilo que a doutrina vem qualificando como reparação do interesse contratual positivo ou dano de cumprimento.

Não oferece dúvida que esses danos seriam ressarcíveis numa acção que tivesse como causa de pedir o incumprimento contratual, isto é, numa acção de responsabilidade contratual. Mas será que também o são numa acção, como a presente, que tem como causa de pedir a violação de deveres pré-contratuais?

Socorremo-nos, também aqui, das palavras da anotação ao artigo 227º supra citada:

“VIII. Uma das questões mais controvertidas acerca do regime jurídico da responsabilidade pré-contratual consiste na determinação da forma de cálculo da obrigação de indemnização, designadamente no que se reporta à opção entre o ressarcimento do interesse contratual negativo do lesado ou do seu interesse contratual positivo. A posição maioritária da doutrina e da jurisprudência tem sido no sentido da defesa da indemnização pelo interesse contratual negativo, abrangendo, não apenas danos emergentes, tais como, por exemplo, despesas tidas com as negociações, como também lucros cessantes, tais como a perda de oportunidades de negócio. Posição diversa é a dos que analisam os diferentes tipos e subtipos de responsabilidade pré-contratual e, em função dos deveres violados, concluem pela ressarcibilidade do interesse contratual positivo, ao menos na modalidade de contratos válidos e eficazes (cfr. o Ac. STJ 23.03.2012) ou na modalidade da rutura de negociações para quem defenda que esta se estende mesmo a casos em que existe uma obrigação de contratar (cit. pág. 514).


Quer isto dizer que, na presente acção, a A. poderia ter alegado e provado que a ruptura injustificada das negociações lhe causara lucros cessantes por perda de oportunidade de realização de (outros) negócios, exigindo uma indemnização que a colocasse na situação em que estaria se tais negociações não tivessem tido lugar (o denominado interesse contratual negativo ou dano de confiança).

      Contudo, não foi isto o que fez a A.

     Antes invocou a perda dos lucros que teria auferido com a celebração e cumprimento do contrato de fornecimento, exigindo uma indemnização que a colocasse na situação em que estaria se tal cumprimento tivesse ocorrido. Ora, tal pedido indemnizatório não é compatível com o fundamento da acção, a ruptura injustificada das negociações contratuais; a não ser que (e mesmo assim apenas para alguns - ver, por todos, Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, págs. 1321 e segs., especialmente págs. 1342 a 1349) tivesse sido invocado – e não o foi – a existência, no caso dos autos, de um verdadeiro dever de contratar, e respectiva violação pelas RR.

Numa acção como a presente, fundada em responsabilidade por violação de deveres pré-contratuais, não pode senão concluir-se pela inviabilidade da ressarcibilidade dos lucros cessantes peticionados, aqueles lucros que a A. teria obtido se o contrato tivesse sido cumprido pela contraparte e que correspondem afinal, em princípio, a uma acção de responsabilidade contratual.


12. Devendo a pretensão da Recorrente proceder pela razão enunciada (não serem os lucros cessantes peticionados ressarcíveis na presente acção de responsabilidade pré-contratual), fica prejudicada a necessidade de conhecer das questões relativas ao alegado desrespeito por regras de direito probatório e por normas processuais que regulam os poderes da Relação na reapreciação da matéria de facto (enunciadas supra, ponto 10).

      Por outras palavras, a apreciação de tais questões fica prejudicada pela decisão de direito uma vez que, qualquer que fosse a solução das mesmas, sempre a presente acção teria de improceder.


13. Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se a decisão do acórdão recorrido e absolvendo-se a 1ª R. do pedido.


Custas pela Recorrida, sem prejuízo do benefício judiciário de que beneficia


Lisboa, 7 de Novembro de 2019


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Maria Rosa Tching

Rosa Maria Ribeiro Coelho