Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1416/17.9GAMAI.P1-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: MARGARIDA BLASCO
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
FACTOS PROVADOS
FACTOS GENÉRICOS
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 12/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: REJEITADO O RECURSO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Estipulam os arts. 437.º, n.ºs 1 a 3, e 438.º, n.º s 1 e 2, do CPP que o recurso para fixação de jurisprudência é um recurso excepcional, com tramitação especial e autónoma, que tem como objectivo primordial a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando, desta forma, o conflito originado por duas decisões a propósito da mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação.
A lei processual faz depender a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência da existência de determinados pressupostos, uns de natureza formal e outros de natureza substancial.
Entre os pressupostos de natureza formal, contam-se:
i. a interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito em julgado do acórdão recorrido;
ii. a invocação de acórdão anterior ao recorrido que sirva de fundamento ao recurso;
iii. a identificação do acórdão fundamento, com o qual o recorrido se encontra em oposição;
iv. o trânsito em julgado de ambas as decisões;
v. a legitimidade do recorrente, restrita ao MP, ao arguido, ao assistente e às partes civis. Constituem pressupostos de natureza substancial:
i. a justificação da oposição entre os acórdãos que motiva o conflito de jurisprudência;
ii. e a verificação de identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões. A exigência de oposição de julgados deve considerar-se preenchida quando, nos acórdãos em confronto, manifestamente de modo expresso, sobre a mesma questão fundamental de direito, se acolhem soluções opostas, no domínio da mesma legislação.
A estes requisitos legais, o STJ, de forma pacífica, aditou a incontornável necessidade de identidade de factos, não se restringindo à oposição entre as soluções de direito. É jurisprudência deste STJ que as soluções opostas relativas à mesma questão de direito exigem que a mesma integre o objecto concreto e directo das duas decisões, naturalmente fundado em circunstancialismo fáctico essencialmente idêntico do ponto de vista dos seus efeitos jurídicos.
Em suma, segundo a jurisprudência firmada por este STJ, a oposição de julgados verifica-se quando:
1. Os 2 acórdãos em conflito do STJ e/ou do Tribunal da Relação se refiram à mesma questão de direito;
2. Os 2 acórdãos em conflito do STJ e/ou da Relação sejam proferidos no âmbito da mesma legislação;
3. Haja entre os 2 acórdãos em conflito “soluções opostas “;
4. A questão decidida em termos contraditórios tenha sido objecto de decisão expressa em ambos os acórdãos, não bastando que a oposição se deduza de posições implícitas;
5. As situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos.
II - Entre os pressupostos de natureza formal, e como se disse em sede de exame preliminar, verifica-se que todos se mostram preenchidos. Recordemos:
i. Da tempestividade do recurso.
O recurso foi interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do Acórdão Recorrido (acórdão proferido em último lugar), conforme impõe o art. 438.º, n.º 1, pelo que é tempestivo.
ii. Da invocação de acórdão anterior ao recorrido que sirva de fundamento ao recurso; da identificação do acórdão fundamento, com o qual o recorrido se encontra em oposição.
Tanto o acórdão do TRP proferido nos presentes autos, Proc. n.º X - Acórdão Recorrido -, como o acórdão do TRL, proferido no Proc. n.º Y - Acórdão - Fundamento- este último publicado e acessível na internet, na localização devidamente identificada pelo recorrente, está devidamente identificado. O arguido explicitou, de forma compreensível, o motivo pelo que, no seu entendimento, os acórdãos são conflituantes, conforme decorre da sua peça recursiva, cujas conclusões se mostram transcritas supra 1.
iii. Da legitimidade do recorrente.
O recurso foi interposto por quem tem legitimidade para tal (a qualidade de arguido), nos termos dos arts. 401.º e 437.º, n.º 5, tendo sido fixado o devido efeito (devolutivo), nos termos do art. 438.º, n.º 3.
Também tem interesse em agir. Este pressuposto, conforme salienta Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª edição, 2008, Universidade Católica, p. 1182), traduz-se “na possibilidade de a decisão que resolver o conflito ter uma repercussão favorável ao recorrente no processo em que o recurso foi interposto”.
Ora, o acórdão recorrido foi proferido contra o recorrente, condenando-o, e a fixação da jurisprudência, no sentido por si propugnado, poderá culminar na sua absolvição.
iv. O trânsito em julgado de ambas as decisões.
Ambas as decisões já transitaram em julgado.
v. A instrução do recurso satisfaz o exigido nos arts. 438.º e 439.º.
Nada obsta, deste modo, do ponto de vista formal o seguimento do recurso.
III - Da leitura do recurso e do que se disse quanto à observância dos pressupostos de natureza substancial - a oposição de julgados, digamos, desde já, que não se mostram reunidos os requisitos substanciais.
O recorrente sustenta, em suma que, quer no Acórdão Recorrido, quer no Acórdão Fundamento, os factos dados como provados para sustentar a condenação, são descrições genéricas, que não reúnem a necessária concretização fáctica, para a imputação do crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º, do CP.
E que, perante o mesmo enquadramento temporal e circunstancial, o Acórdão Fundamento considerou os factos como não escritos e insuficientes, para a subsunção no referido crime.
Começando por respigar a argumentação do recorrente, a mesma, por si só, determinaria a rejeição do recurso.
É que, como frisa o arguido, as imputações genéricas têm como consequência que se considere não escrita toda a narração que seja imprecisa, vaga, nebulosa. Se essa é a consequência que pretende “exportar” para o Acórdão Recorrido, o que almeja, finalisticamente, é que se considere não escrito os “acontecimentos da vida real” imputados ao arguido, que o TRP se socorreu para prolação do seu acórdão condenatório. Ora, assim sendo, o que estaria em causa seriam 2 substractos que fundaram uma decisão condenatória que se considerariam não escritos.
De modo que, não seria possível aludir a contradição factual, já que, a sua premissa lógica é que existam factos juridicamente relevantes. Ou seja, factos que se considerem escritos e que relevaram para a condenação.
Ora, isso não sucede nem quando 2 acórdãos os considerem não escritos.
Nem quando, como sucede nos autos, um dos acórdãos - fundamento - considera que os factos imputados se consideram não escritos (em suma, declara que inexistem factos) e um outro - recorrido - em que se reconhece a existência de factos.
Se um dos pressupostos do recurso de fixação de jurisprudência é a identidade de factos, a ausência destes no Acórdão Fundamento, por assim ter sido declarado, não permite concluir pela sua verificação.
Não obstante, mesmo a entender-se que, para efeito do pressuposto da existência de identidade de factos, se deveria atender aos factos julgados conclusivos, vagos, imprecisos no Acórdão Fundamento, e a facticidade julgada correctamente narrada pelo acórdão recorrido, a conclusão é a mesma: inverificação do requisito da identidade.
O Acórdão Fundamento julgou factos que foram considerados relevantes para a condenação pela 1.ª instância, como não escritos (o que determinou a absolvição).
O Acórdão Recorrido entendeu que os factos que sustentaram a condenação estavam devidamente densificados.
Mais concretamente, o motivo aduzido pelo recorrente para fundamentar a oposição de julgados encontra-se sintetizado nos pontos 4 e 5 do seu recurso, onde alega que se verifica uma “patente, oposição de julgamentos relativamente à mesma questão de direito, uma vez que no Acórdão fundamento o mesmo enquadramento temporal e circunstancial demonstrou-se insuficiente para efeitos de subsunção na previsão legal do crime de violência doméstica, p.p., no art. 152. °, do Código Penal, tendo os alegados factos sido dados como não escritos. Ambas as decisões foram proferidas no âmbito da mesma legislação, ou seja, na vigência do estatuído no artigo 152. °, do Código Penal.”.
Na verdade, o Acórdão Recorrido, considerou que a “matéria de facto constante da decisão recorrida encontra-se suficientemente concretizada, não padecendo das características de vaguidade e imprecisão, incompatíveis com o exercício efectivo do direito de defesa” (…) “descrevendo o tribunal a quo as circunstâncias de tempo e de lugar em que os comportamentos do arguido/recorrente ocorreram, por referência ao período temporal em que decorreu a coabitação”,(…) “não tendo sido possível uma concretização temporal rigorosa – como é habitual suceder neste tipo de crimes -, o tribunal efectuou uma descrição dos factos considerados relevantes de forma mais genérica mas, em todo o caso, sempre delimitada por uma barreira temporal e com referência a locais concretos, como se constata da leitura dos pontos 4) a 9) da factualidade assente”.
Por seu turno, o Acórdão Fundamento entendeu que “é manifesto, estes diversos comportamentos do arguido dados como provados em 2.1.2, 2.1.3 e 2.1.4 não se mostram contextualizados temporal e circunstancialmente por falta de indicação dos dias concretos ou, sequer, de um espaço de tempo minimamente balizado em que terão eles ocorrido (basta atentar que mesmo em 2.1.1 não se indica a data do início do relacionamento, ainda que aproximada), bem como das circunstâncias e número de vezes em que se terão verificado, pelo que estamos perante uma descrição vaga e imprecisa. ” Esta indefinição temporal e circunstancial, que vem já da peça acusatória do Ministério Público, impede o efectivo e eficaz contraditório” “obliterando o seu direito de defesa constitucionalmente tutelado no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.”(…)“essencial se mostra a descrição minimamente concreta e circunstanciada dos comportamentos susceptíveis de constituírem violação da dignidade da pessoa humana, da garantia da integridade pessoal ou do livre desenvolvimento da sua personalidade, pois só estes poderão ser subsumidos na previsão legal. Porque assim é, urge concluir que os factos dados como assentes nos pontos 2.1.2, 2.1.3 e 2.1.4 se têm de considerar como não escritos
Brevitatis causa: a divergência (jurídica) que é assinalada prende-se com a interpretação sobre as denominadas “imputações genéricas”. Se quisermos, o nível de concretização factual que é exigível para permitir a condenação por um crime de violência doméstica, salvaguardando o direito de defesa.
O recorrente entende que no Acórdão Fundamento e no Acórdão Recorrido existe “o mesmo enquadramento temporal e circunstancial”.
Importa, assim, primeiro, confrontar os factos que o Acórdão Fundamento julgou não escritos (por entender serem imprecisos, vagos, genéricos), e aqueles que o Acórdão Recorrido considerou escritos (por entender que, apesar de descritos de “forma mais genérica”, em todo caso ainda deveriam considerar-se relevantes, por existir “uma barreira temporal” e “referência a locais concretos”.
No Acórdão Fundamento “os factos dados como assentes nos pontos 2.1.2, 2.1.3 e 2.1.4”, consideraram-se “não escritos”.
Tais factos dados como provados consistiam no seguinte: “2.1.1. O arguido manteve uma relação de namoro com I., durante cerca de um ano e meio, o qual terminou no Verão de 2017 e reiniciou-se em Março de 2018. 2.1.2. No decurso da relação entre ambos, bem como após o terminus da mesma, o arguido infligiu maus-tratos à assistente, nomeadamente, dizia à mesma, pelo menos uma vez por semana, que “demente, filha de uma grande puta, criancinha do caralho, atrasada mental, andas com outros homens”. 2.1.3. No decurso da relação o arguido, motivado por ciúmes, acedia ao telemóvel da assistente, de modo a saber com quem a mesma contactava, bem como comparecia nos locais que a mesma frequentava, sem que a mesma soubesse, de modo a verificar com quem a mesma falava. 2.1.4. No início da relação entre ambos, em data não concretamente apurada, o arguido colocou a mão no braço da ofendida, apertando com força.”.
E, julgaram-se não escritos porque “não se mostram contextualizados temporal e circunstancialmente por falta de indicação dos dias concretos ou, sequer, de um espaço de tempo minimamente balizado em que terão eles ocorrido, bem como das circunstâncias e número de vezes em que se terão verificado”, consubstanciando imputações genéricas que não permitem o exercício do direito de defesa.
Ora, nesse Acórdão Fundamento, e em relação aos factos considerados não escritos, constata-se que:
1) existe uma indefinição temporal, já que se alude a uma relação de namoro de “cerca” de um ano, concretiza-se um término e um reinício, mas, perante a narração, não se sabe quando se iniciou, ou terminou após o reinício;
b) não se identifica nenhum lugar das acções;
c) não se indica nenhum dia concreto ou “espaço de tempo minimamente balizado”.
O mesmo não ocorre no que concerne ao Acórdão Recorrido.
O Acórdão Recorrido realçou que não foi “possível uma concretização temporal rigorosa - como é habitual suceder neste tipo de crimes”, pelo que, “o tribunal efectuou uma descrição dos factos considerados relevantes de forma mais genérica, mas, em todo o caso, sempre delimitada por uma barreira temporal e com referência a locais concretos, como se constata da leitura dos pontos 4) a 9) da factualidade assente”.
Apesar de existirem algumas referências mais genéricas, - como reconheceu o próprio Acórdão Recorrido -, o cerne é apurar se o “grau” de descrição narrativa é idêntico.
E, como se extrai, desde logo, do confronto da fundamentação do Acórdão Recorrido e Acórdão Fundamento, não o é.
Como salienta o Acórdão Recorrido existiu uma delimitação da barreira temporal e foram referidos locais em concreto.
O Acórdão Fundamento, por seu lado, frisou que existiu uma completa indefinição temporal e espacial.
E, na realidade, ao invés da matéria julgada não escrita no Acórdão Fundamento, nos factos dados como provados no Acórdão Recorrido ressalta que:
a) existe um balizamento temporal – descreve-se que os factos ocorreram durante um relacionamento de namoro que se concretiza como tendo ocorrido entre 2013 e 28 de Dezembro de 2017, fazendo referência a factos que ocorreram durante o período de coabitação, que, também, se encontra delimitado entre Julho de 2016 e 28 de Dezembro de 2017 (ponto 1 dos factos dados como provados);
b) concretiza-se o local da residência (ponto 3 da matéria de facto dada como provada); c) narram-se as acções de violência doméstica por referência ao relacionamento de namoro e coabitação, que se encontram balizados temporalmente (pontos 4, 5, 7 a 9 dos factos dados como provados);
d) narram-se factos com referência a concretos meses do ano (ponto 6 dos factos dados como provados);
e) concretiza-se a localização dos acontecimentos – no interior da residência cuja morada foi identificada (nos pontos 4, 5, 8 e 9 dos factos dados como provados).
Verificam-se, como se nota, assinaláveis diferenças na narração dos factos.
No Acórdão Fundamento existe uma incerteza temporal (adveniente do facto de não se descrever o início da relação, ou o seu fim, após o reinício da mesma).
No Acórdão Recorrido descreve-se, temporalmente, a imputação dos factos ao arguido, tendo por reporte: a) o relacionamento do namoro; b) a coabitação, cujo início e fim estão narrados, ao qual acresce que, quanto a determinados actos, se concretiza os meses e o ano.
No Acórdão Fundamento não se densifica o lugar dos atos imputados.
No Acórdão Recorrido assinala-se o “interior da residência”, identificando a morada.
Assim, não se pode concluir, como alega o recorrente como fundamento da oposição de julgados, que o Acórdão Fundamento e o Acórdão Recorrido decidiram com base no “mesmo enquadramento temporal e circunstancial”.
Não existe, assim, uma identidade na narrativa dos factos porque o grau de descrição temporal, e espacial, é diferente.
Mais genérico no Acórdão Fundamento. Mais densificado no Acórdão Recorrido.
Inexistência de coincidência na narrativa fáctica que, por seu turno, inviabiliza que se considere existir entre o Acórdão Recorrido e o Acórdão Fundamento uma solução jurídica, expressamente proferida, que seja conflituante.
Perante tais dissonâncias não se pode concluir pela diversidade de posições jurídicas assumidas nos Tribunais da Relação. É certo que a lei convocável foi idêntica. Ou seja, ambos os acórdãos analisaram se os factos dados como provados permitiam uma subsunção no crime de violência doméstica. E, ambos, analisaram se a descrição factual permitia o exercício do direito do defesa.
Mas, no Acórdão Fundamento, consideraram-se determinados factos como não escritos (o que redundou na absolvição), por se tratar de imputações genéricas, que não permitiam um efectivo contraditório.
No Acórdão Recorrido, pelo contrário, apesar de reconhecer algum grau de generalização, entendeu-se que a concretização factual foi bastante para permitir contraditar. Interpretação quanto ao conceito de “imputações genéricas” que, por partir de uma narrativa com um diverso enquadramento temporal e espacial, não se pode considerar que seja antagónica.
IV - Tem este STJ reconhecido que as imputações genéricas são imprestáveis. Ou seja, quando as formulações são de tal modo vagas, imprecisas, genéricas, com indefinição a nível do tempo, espaço, participação do agente, ao ponto de não permitir um efetivo exercício do contraditório, impossibilitando a cabal defesa do arguido, devem considerar-se não escritas (jurisprudência esta que tem sido emanada, essencialmente, a propósito do crime de tráfico de estupefacientes).
No entanto, o grau de precisão na narração factual não se pode dissociar da concreta criminalidade que está em causa, dos seus contornos, do tempo que perdurou, do peso dos actos isolados ou do comportamento global.
Aliás, esse equilíbrio que é necessário lograr, harmonizando o interesse do Estado na punição do crime e do criminoso, o interesse da vítima em que seja feita justiça, e o interesse do arguido na sua defesa, princípios que emanam do art. 283.º, n.º 3, al. b), ao mencionar que a narração do “lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” será feita “se possível”. O que demonstra que o legislador admite, nestes aspectos, um maior grau de generalização, se a investigação não permitir uma melhor pormenorização fáctica.
Assim, nos crimes de violência doméstica, em que existe uma reiteração de condutas, ao longo de um período de tempo relativamente longo, numa dinâmica intrafamiliar, em que os actos isolados se tornam mais difíceis de concretizar no tempo e espaço, quanto maior o seu número, e o distanciamento temporal entre a ocorrência dos mesmos e as declarações da vítima.
De todo o modo, para efeito de aferir dos pressupostos de admissibilidade do recurso para fixação de jurisprudência, não compete ao STJ analisar a bondade da decisão de direito. Dizendo de outro modo: não compete a este STJ indagar, neste tipo de recurso extraordinário, se a densidade da narração factual impunha que o TRP concluísse pela existência de imputações genéricas. Para este efeito, de verificação dos pressupostos, importa, apenas, aferir se existe uma identidade da narração factual e uma decisão de Direito conflituante.
V - No Acórdão Fundamento e no Acórdão Recorrido, na sua apreciação do Direito, partiram de premissas diversas, sendo diferente o grau de concretização dos factos, quer a nível do balizamento temporal, quer na identificação espacial.
A contradição e dissenso do tratamento da questão de direito não é extraível quando se confrontam os dois acórdãos, porque partem de uma narrativa factual divergente. Ou, se quisermos, não inteiramente coincidente.
No Acórdão Fundamento (e circunscrevendo-nos ao objecto delimitado pelo recurso do arguido), decidiu-se pela existência de imputações genéricas, perante a ausência total de concretização temporal e espacial, que não permitiam o exercício do direito de defesa.
No Acórdão Recorrido entendeu-se que a existência de um balizamento temporal, e a referência a locais concretos, permitiam o exercício do contraditório. O que significa que a densidade da descrição factual não é idêntica.
Pelo que, o caminho jurídico percorrido no Acórdão Recorrido e no Acórdão Fundamento não pode ser considerado conflituante.
Apenas se poderia conceber uma dissonância jurídica relevante no caso do Acórdão Recorrido, perante uma total indefinição temporal, e omissão na identificação de locais onde ocorreram os factos, e se se entendesse que as imputações não eram genéricas. Ou, se o Acórdão Fundamento, perante a existência de narração de factos que delimitassem temporalmente o início e o fim da relação de namoro, e indicação de locais onde ocorreu a violência doméstica, considerasse que estávamos perante imputações genéricas.
O que não é o caso.
Assim sendo, não se pode concluir pela verificação da necessária oposição de julgados entre o Acórdão Recorrido e o Acórdão Fundamento, o que redunda na rejeição do recurso de fixação de jurisprudência, nos termos do disposto no art. 441.º, n.º 1.
VI - Como resulta do exposto, não se verifica o requisito substancial da oposição de julgados exigido pelo art. 437.º, do CPP.
Com efeito, estamos perante um recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, de natureza excepcional, sendo entendimento deste STJ que a interpretação das regras jurídicas disciplinadoras de tal recurso deve fazer-se com as restrições e o rigor inerentes por essa excepcionalidade, sendo a oposição explícita, quanto à mesma questão de direito, só relevando para efeitos de recurso para fixação de jurisprudência se se estiver perante uma factualidade subjacente equivalente.
VII - A não oposição de julgados é fundamento de rejeição do recurso, nos termos do disposto no n.º 1, do art. 441.º. Razão esta em que, e por se não se verificar o requisito substancial previsto no art. 437.º - oposição de julgados - nos leva a rejeitar o presente recurso para fixação de jurisprudência, nos termos do art. 441. °, n° 1, do CPP
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 1416/17.9GAMAI.P1-A. S1

Recurso Extraordinário

Fixação de Jurisprudência

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I.
1. O arguido, AA, vem apresentar recurso extraordinário , com vista à fixação de jurisprudência, nos termos do disposto nos artigos 437.º, n.º 2 e 5, e 438.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), sustentando a oposição entre o acórdão proferido no Processo n.º 1416/17.9GAMAI.P1, em 12.08.2020, do Tribunal da Relação do Porto (TRP), transitado em julgado – doravante, Acórdão Recorrido – e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), proferido no Processo n.º 214/18.7PDAMD.L1.5, em 26.11.2019, – doravante, Acórdão Fundamento - também já transitado em julgado.

Apresenta as seguintes conclusões que se transcrevem:
(…)

1-Pelo Acórdão recorrido, o aqui Recorrente foi condenado, por este Tribunal da Relação do Porto, por Acórdão de 12 de Agosto de 2020, no âmbito dos Autos de recurso penal suprarreferido, pela prática, em concurso efectivo, de dois crimes de violência doméstica (um deles, previsto e punido pelo art. 152.°, n°. 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), 4 e 5 do Código Penal, e o outro, pelo art. 152.°, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a), 4, 5 e 6, do mesmo diploma legal), nas penas parcelares de 2 anos de prisão e na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período temporal, subordinada à proibição (condição) de estabelecer contactos com a assistente e ao cumprimento das penas acessórias de obrigação de frequentar o programa para agressores de violência doméstica, com a duração de 20 meses, e de proibição de uso e porte de armas durante todo o período da suspensão.

Fundando-se nos seguintes factos, dados como provados:

"4. Durante todo o período do relacionamento, com especial incidência e frequência durante o período de coabitação, de modo frequente e reiterado, por mais do que uma vez, no interior da residência de ambos e na presença dos menores acima identificados, o arguido disse à ofendida que ela só queria estar no meio dos homens.

5. Durante todo o período do relacionamento, com especial incidência e frequência durante o período de coabitação, por mais do que uma vez, no interior da residência de ambos e na presença dos menores acima identificados, o arguido agarrou violentamente os braços da ofendida, provocando-lhe dor e hematomas.

6. Em data não concretamente apurada, mas que terá ocorrido entre ……. e ……. de 2017, durante o relacionamento, o arguido agarrou e puxou os cabelos da ofendida e braços, causando-lhe dores.

7. Noutras ocasiões, por mais do que uma vez, o arguido saía com a filha de ambos, alegando que se ia matar e à filha, causando medo e pânico na ofendida.

8. Em data não concretamente apurada, no interior da residência de ambos, o arguido ordenou à ofendida que abandonasse a residência e, logo de seguida, fechou-a e aos filhos dentro de casa, impedindo-os de sair.

9.Durante o período de coabitação, em várias ocasiões, por mais do que uma vez, no interior da residência comum e na presença de BB, o arguido apelidou CC de porco, anormal e deficiente e desferiu palmadas na nuca do mesmo, causando-lhe dores." (sublinhado nosso)

Mais referindo o Acórdão recorrido que "Na verdade, não tendo sido possível uma concretização temporal rigorosa - como é habitual suceder neste tipo de crimes -, o tribunal efectuou uma descrição dos factos considerados relevantes de forma mais genérica, mas, em todo o caso, sempre delimitada por uma barreira temporal e com referência a locais concretos, como se constata da leitura dos pontos 4) a 9) da factualidade assente." (sublinhado nosso)

2- Por sua vez, no Acórdão fundamento suprarreferido, transitado em julgado, foi decidido que: "Se os comportamentos imputados ao arguido não se mostram contextualizados temporal e circunstancialmente por falta de indicação dos dias concretos ou, sequer, de um espaço de tempo minimamente balizado em que terão eles ocorrido, bem como das circunstâncias e número de vezes em que se terão verificado, estamos perante uma descrição vaga e imprecisa.- Esta indefinição temporal e circunstancial, que vem já da peça acusatória do Ministério Público, impede o efectivo e eficaz contraditório obliterando o seu direito de defesa constitucionalmente tutelado no artigo 32°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa, pelo que as imputações genéricas, sem qualquer especificação das condutas em que se traduzem, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente, devendo ter-se como não escritas.- Essencial se mostra a descrição minimamente concreta e circunstanciada dos comportamentos susceptíveis de constituírem violação da dignidade da pessoa humana, da garantia da integridade pessoal ou do livre desenvolvimento da sua personalidade, pois só estes poderão ser subsumidos na previsão legal, uma vez que para que o facto atinja o limiar da dignidade penal se exige ainda que a conduta lesiva se revista de algum relevo, assim se conferindo expressão aos princípios da proporcionalidade, dignidade penal e subsidiariedade, de acordo com os quais o direito penal só deve intervir contra factos de inequívoca danosidade social."

Mais referindo o Acórdão fundamento que "essencial se mostra a descrição minimamente concreta e circunstanciada dos comportamentos susceptíveis de constituírem violação da dignidade da pessoa humana, da garantia da integridade pessoal ou do livre desenvolvimento da sua personalidade, pois só estes poderão ser subsumidos na previsão legal. Porque assim é, urge concluir que os factos dados como assentes nos pontos 2.1.2, 2.1.3 e 2.1.4 se têm de considerar como não escritos."

Tais factos dados como provados consistiam:

"2.1.1. O arguido manteve uma relação de namoro com I., durante cerca de um ano e meio, o qual terminou no …. de 2017 e reiniciou-se em …… de 2018.

2.1.2. No decurso da relação entre ambos, bem como após o terminus da mesma, o arguido infligiu maus-tratos à assistente, nomeadamente, dizia à mesma, pelo menos uma vez por semana, que "demente, filha de uma grande puta, criancinha do caralho, atrasada mental, andas com outros homens".

2.1.3. No decurso da relação o arguido, motivado por ciúmes, acedia ao telemóvel da assistente, de modo a saber com quem a mesma contactava, bem como comparecia nos locais que a mesma frequentava, sem que a mesma soubesse, de modo a verificar com quem a mesma falava.

2.1.4. No início da relação entre ambos, em data não concretamente apurada, o arguido colocou a mão no braço da ofendida, apertando com força." (sublinhado nosso)

3- A questão a resolver no presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência é a de saber se a um arguido pode ser imputado o cometimento do crime de violência doméstica, p.p., no artigo 152.° do Código Penal, quando os comportamentos susceptíveis de constituírem violação da dignidade da pessoa humana, da garantia da integridade pessoal ou do livre desenvolvimento da sua personalidade, não se encontram mínima, concreta e circunstanciadamente descritos, o que se verifica, designadamente quando dos factos provados apenas consta o seguinte enquadramento temporal e circunstancial:

-"Durante todo o período do relacionamento, com especial incidência e frequência durante o período de coabitação";

- "De modo frequente e reiterado, por mais do que uma vez"; -"Por mais do que uma vez";

- "Em data não concretamente apurada";

- "Durante o período de coabitação, em várias ocasiões, por mais do que uma vez".

4- Verifica-se, pois, patente, oposição de julgamentos relativamente à mesma questão de direito, uma vez que no Acórdão fundamento o mesmo enquadramento temporal e circunstancial demonstrou-se insuficiente para efeitos de subsunção na previsão legal do crime de violência doméstica, p.p., no artigo 152. ° do Código Penal, tendo os alegados factos sido dados como não escritos.

5- Ambas as decisões foram proferidas no âmbito da mesma legislação, ou seja, na vigência do estatuído no artigo 152. °, do Código Penal. (…).
 (…).

2. O recurso foi devidamente admitido e certificado.

3. O Magistrado do Ministério Público, junto do TRP, respondeu ao presente recurso, apresentando as seguintes conclusões que aqui se transcrevem:

(…)

1- Como decidiu o Ac. do STJ de 14.11.2007 (proc. nº 07P3165) decidiu que “XIII – Objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e a extensão do caso julgado. É a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal, segundo os quais o objecto do processo deve manter-se o mesmo da acusação ao trânsito em julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente) e – mesmo quando o não tenha sido – deve considerar-se decidido”.

2- Por sua vez, o Tribunal Constitucional, no Ac. 358/04, de 19/05 (P. 807/03, in DR II, de 28/06/04) ponderou: “nos termos do art. 283º, n.º 3, b), a acusação deve conter, sob pena de nulidade, a «narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada».

3- Ou seja, os “factos” que constituem o “objecto do processo” têm que ter a concretude suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido e, sequentemente, a serem sujeitos a prova idónea [art. 283º nº 3 b) do CPP]” - Ac. da RG 03-12-2018 (proc. nº 987/16.1T9VNF.G1).

4- O Supremo Tribunal de Justiça tem-se pronunciado sobre a irrelevância jurídico – penal das imputações genéricas, que depois não encontrem no texto da decisão aquele limiar indispensável de concretização, designadamente em relação à imprecisão da matéria de facto quanto ao tempo e ao local da prática dos factos, designadamente quando a descrição se reduz a mera utilização de fórmulas vagas e genéricas, contende com o direito ao contraditório, constitucionalmente garantido e, nessa medida, ofende as garantias de defesa do arguido, sendo então insusceptível de fundamentar uma condenação penal – [cf., entre outros, os acórdãos STJ de 05.04.2006 (proc. n.º 05P2932), 14 de Setembro de 2006, Proc. 2421/06, 5ª secção, 10.05.2006 (proc. n.º 06P1190), de 17 de Janeiro de 2007, Proc. 06P364424, de 24.01.2007 (proc. 06P3112), de 21 de Fevereiro de 2007, Proc.º 3932/06 - 3.ª Secção, 24.07.2007 (proc. 08P578), de 15 de Novembro de 2007, Proc. 3236/07, 5ª secção, de 2 de Abril de 2008, proc. 578/08, 3ª secção e de 2 de Julho de 2008, 3ª secção, Proc. 3861/07).

5- Também os Tribunais da Relação têm decidido que: “I - A acusação (e a pronúncia) deve conter, ainda que de forma sintética, a descrição dos factos de que o arguido é acusado, efetuada discriminada e precisamente com relação a cada um dos atos constitutivos do crime, pelo que se hão-de mencionar todos os elementos da infração e quais os factos que o arguido realizou, sem imprecisões ou referências vagas” – por todos os citados na substanciação da resposta, o Ac. da RE de 07-04-2015 (proc. nº 159/12.4IDSTB.E1)[1].

6- De acordo com o Ac. do STJ de 02-10-2008 (proc. nº 08P2484; Relator: Exmº Conselheiro SIMAS SANTOS) “1 – O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, como é jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, exige a verificação de oposição relevante de acórdãos que impõe que: (i) – as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para mesma questão fundamental de direito; (ii) – que as decisões em oposição sejam expressas; (iii) – que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticas.

7- Assim, importa indagar se no Acórdão fundamento (Ac. da RL de Novembro de 2019, proferido no processo n.º 214/18.7PDAMD.L1.5) e no Acórdão proferido nestes autos ambos transitados em julgado, “foram proferidos julgados expressos, não implícitos, porém divergentes, em termos de direito, sobre uma base factual pontualmente idêntica, no domínio da mesma legislação, como se diz no Ac. do STJ de 10.02.2010 307/00.7JAFAR.S1-Al.

8- Contrariamente à matéria de facto apreciada no Ac. fundamento, na situação apreciada nestes autos, existiu balizamento temporal dos factos, até porque não se verifica um tempo muito longo durante o qual poderão ter verificado os mesmos; acresce que a maioria dos factos imputados ao arguido se situaram entre …. de 2016 e ……de 2017 – período em que coabitaram e que, de acordo com a factualidade dada como provada, incidiu com mais relevo a actividade criminosa. Por outro lado, no ponto 6 da sentença aponta-se ainda mais para uma data concreta – ……. e ……. de 2017.

9- Como enunciou o Ac. da RG de 23-09-2013 (proc. nº 1631/12.1PBBRG.G1; Relator: Exmº Desembargador Fernando Monterroso) “I – A norma do art. 283 nº 3 al. b) do CPP apenas impõe a obrigatoriedade da narração dos factos da acusação conter a indicação do lugar, do tempo e da motivação da sua prática, se tal for possível. II – No crime de violência doméstica o que está normalmente em causa não é a punição autónoma de cada um dos atos que integram o conceito de violência doméstica, mas um comportamento reiterado. Balizando a acusação o período em que tal comportamento persistiu, com indicação do início e do fim do mesmo, mostra-se cumprida a exigência daquela norma quanto à indicação do «tempo»”.

10- Sem espírito de conveniência, entendemos que nestes autos não existe qualquer similitude com a matéria de facto dada como provada no processo sobre o qual recaiu o Acórdão fundamento, que efetivamente é mais vaga, indefinida, quase conclusiva, sem consistente tradução factual.

11- Assim, salvo melhor apreciação, não se verificam os requisitos necessários que fundamentam o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, designadamente que “as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticas” e, por conseguinte, não ter havido “soluções opostas".

12- Nos termos sobriamente expostos, afigura-se-nos que o recurso deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal.
 (…).

4. A Assistente, DD, veio responder ao recurso extraordinário interposto, apresentando as seguintes conclusões que se transcrevem:

(…)

1 - Vem o Arguido AA interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, do Douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12 de Agosto de 2020, alegando que este se encontra em oposição, relativamente à mesma questão de direito, com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26 de Novembro de 2019, proferido no processo n.º 214/18.7PDAMD.L1.5, Relator: Artur Vargues, publicado in www.dgsi.pt, que indica como acórdão fundamento, nos termos do n.º 2 do artigo 438.º do Código de Processo Penal;

2- Desde já, e salvo sempre o devido respeito por opinião em contrário, se alvitra que o recurso deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal; VEJAMOS,

3- A lei processual faz depender a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência da existência de determinados pressupostos, uns de natureza formal e outros de natureza substancial ─ arts. 437.º, n.ºs 1 a 3, e 438.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.;

4- Entre os pressupostos de natureza substancial conta-se a justificação da oposição entre os acórdãos que motiva o conflito de jurisprudência e a verificação de identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões;

5- E, segundo a doutrina seguida no STJ, os requisitos substanciais ocorrem quando: as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito; as decisões em oposição sejam expressas; as situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas as decisões;

6- Ora, no recurso da douta sentença condenatória, o recorrente sustentou que a descrição factual em que se baseou o tribunal a quo para decidir pela sua condenação é demasiado vaga e genérica, impossibilitando um efectivo exercício do direito de defesa, motivo pelo qual deverá ser excluída da decisão recorrida. E defendeu que os factos constantes dos pontos 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 12º, 13º, 14º, 15º, 16º e 17º, dados como assentes, foram incorretamente julgados – com violação do princípio da livre apreciação da prova;

7– E, no Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, entendeu-se que, diversamente do que sustenta o recorrente, a matéria de facto constante da decisão recorrida encontra-se suficientemente concretizada, não padecendo das características de vaguidade e imprecisão, incompatíveis com o exercício efectivo do direito de defesa, que lhe são apontadas;

8- Discordando, o Arguido/Recorrente considera que os referidos factos provados vertidos nos pontos 4., 5., 6., 7., 8. e 9. e respetivo enquadramento jurídico são idênticos aos factos e seu enquadramento constantes do Acórdão-fundamento que invoca no presente recurso;

9- É, para nós evidente, que não foram proferidos julgados expressos, divergentes, em termos de direito, e sobre uma base factual pontualmente idêntica, no domínio da mesma legislação;

10 - É que, ao contrário da decisão recorrida, a materialidade dada como provada no processo sobre o qual recaiu o Acórdão fundamento é, efetivamente vaga, indefinida, quase conclusiva, sem consistente tradução factual;

11 - Contrariamente, no Acórdão Recorrido, a matéria de facto encontra-se suficientemente concretizada, não padecendo das características de vaguidade e imprecisão, incompatíveis com o exercício efectivo do direito de defesa que invoca o Arguido;

12 - Pois que, considerar que durante todo o período do relacionamento, com especial incidência e frequência durante o período de coabitação, de modo frequente e reiterado, por mais do que uma vez, no interior da residência de ambos e na presença dos menores,

13 - Não é o mesmo e muito menos idêntico que considerar que no decurso da relação entre ambos o arguido infligiu maus tratos à assistente.

14 - Assim, inexiste qualquer similitude entre os factos dados como provados e considerados no Acórdão Fundamento, e os do Acórdão Recorrido proferido pela Relação do Porto;

15 - Pelo que, não se verificam os requisitos necessários que fundamentam o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, designadamente que as situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticas, não existindo julgados opostos;

16 - Deve, assim, ser o presente recurso rejeitado por inadmissibilidade legal.

(…).

5. Os autos foram remetidos a este Supremo Tribunal de Justiça.

6. Nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 440.º, do CPP (sendo doravante deste Diploma as normas sem menção de origem), a Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer, sustentando que o recurso interposto deve ser rejeitado por não se verificar uma oposição de julgados, em conformidade com o disposto nos artigos 440.º, n.ºs 3 e 4 e 441. °, n° 1.  

Não houve resposta.

7. Nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 440.º, foram os autos remetidos para conferência.

II.

8. Estipulam os artigos 437.º, n.ºs 1 a 3, e 438.º, n.º s 1 e 2, que o recurso para fixação de jurisprudência é um recurso excepcional, com tramitação especial e autónoma, que tem como objectivo primordial a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando, desta forma, o conflito originado por duas decisões a propósito da mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação.
A lei processual faz depender a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência da existência de determinados pressupostos, uns de natureza formal e outros de natureza substancial.
Entre os pressupostos de natureza formal, contam-se:
i. a interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito em julgado do acórdão recorrido;
ii. a invocação de acórdão anterior ao recorrido que sirva de fundamento ao recurso;
iii. a identificação do acórdão fundamento, com o qual o recorrido se encontra em oposição;
iv. o trânsito em julgado de ambas as decisões;
v. a legitimidade do recorrente, restrita ao MP, ao arguido, ao assistente e às partes civis.
Constituem pressupostos de natureza substancial:
i. a justificação da oposição entre os acórdãos que motiva o conflito de jurisprudência;
ii. e a verificação de identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões.

A exigência de oposição de julgados deve considerar-se preenchida quando, nos acórdãos em confronto, manifestamente de modo expresso, sobre a mesma questão fundamental de direito, se acolhem soluções opostas, no domínio da mesma legislação.
A estes requisitos legais, o STJ, de forma pacífica, aditou a incontornável necessidade de identidade de factos, não se restringindo à oposição entre as soluções de direito. É jurisprudência deste Supremo Tribunal que as soluções opostas relativas à mesma questão de direito exigem que a mesma integre o objecto concreto e directo das duas decisões, naturalmente fundado em circunstancialismo fáctico essencialmente idêntico do ponto de vista dos seus efeitos jurídicos.

Em suma, segundo a jurisprudência firmada por este Supremo Tribunal, a oposição de julgados verifica-se quando:
1. Os dois acórdãos em conflito do Supremo Tribunal de Justiça e/ou do Tribunal da Relação se refiram à mesma questão de direito;
2. Os dois acórdãos em conflito do Supremo Tribunal de Justiça e/ou da Relação sejam proferidos no âmbito da mesma legislação;
3. Haja entre os dois acórdãos em conflito “soluções opostas “;
4. A questão decidida em termos contraditórios tenha sido objecto de decisão expressa em ambos os acórdãos, não bastando que a oposição se deduza de posições implícitas;
5. As situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos.
9. O caso concreto.
9.1. Entre os pressupostos de natureza formal, e como se disse em sede de exame preliminar, verifica-se que todos se mostram preenchidos. Recordemos:

i. Da tempestividade do recurso.
O recurso foi interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do Acórdão Recorrido (acórdão proferido em último lugar), conforme impõe o artigo 438.º, n.º 1, pelo que é tempestivo.
ii. Da invocação de acórdão anterior ao recorrido que sirva de fundamento ao recurso; da identificação do acórdão fundamento, com o qual o recorrido se encontra em oposição.
Tanto o acórdão do TRP proferido nos presentes autos, Processo n.º 1416/17.9GAMAI.P1 - Acórdão Recorrido -, como o acórdão do TRL, proferido no processo n.º 214/18.7PDAMD.L1.5 - Acórdão - Fundamento- este último publicado e acessível na internet, na localização devidamente identificada pelo recorrente, está devidamente identificado. O arguido explicitou, de forma compreensível, o motivo pelo que, no seu entendimento, os acórdãos são conflituantes, conforme decorre da sua peça recursiva, cujas conclusões se mostram transcritas supra 1.
iii. Da legitimidade do recorrente.
O recurso foi interposto por quem tem legitimidade para tal (a qualidade de arguido), nos termos dos artigos 401.º e 437.º, n.º 5, tendo sido fixado o devido efeito (devolutivo), nos termos do artigo 438.º, n.º 3.
Também tem interesse em agir. Este pressuposto, conforme salienta Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª edição, 2008, Universidade Católica, p. 1182), traduz-se “na possibilidade de a decisão que resolver o conflito ter uma repercussão favorável ao recorrente no processo em que o recurso foi interposto”.
Ora, o acórdão recorrido foi proferido contra o recorrente, condenando-o, e a fixação da jurisprudência, no sentido por si propugnado, poderá culminar na sua absolvição.
iv. O trânsito em julgado de ambas as decisões.
Ambas as decisões já transitaram em julgado.
v. A instrução do recurso satisfaz o exigido nos artigos 438.º e 439.º.
Nada obsta, deste modo, do ponto de vista formal o seguimento do recurso.

9.2. Da leitura do recurso e do que se disse quanto à observância dos pressupostos de natureza substancial - a oposição de julgados, digamos, desde já, que não se mostram reunidos os requisitos substanciais, como analisaremos em seguida.

10.Do fundamento do recurso.

10.1. Do Acórdão Recorrido.

No Acórdão Recorrido proferido no Processo n.º 1416/17.9GAMAI.P1, em 12.08.2020, no TRP, decorre a seguinte matéria de facto[2]:
(…)

1. O arguido AA e a ofendida DD mantiveram uma relação de namoro, pública, com compromisso de fidelidade e exclusividade e manutenção regular de relações sexuais, entre 2013 e …… de 2016, data a partir da qual viveram como se de marido e mulher se tratassem, em comunhão de cama, mesa e habitação, até ……. de 2017, dia em que terminou o relacionamento.

2. Desse relacionamento nasceu, em …… de 2016, BB.

3. O arguido e a ofendida, juntamento com o filho desta, de um anterior relacionamento, CC, nascido a ……. de 2006, e a filha de ambos fixaram residência na Rua ……………, n.º ……, ….º, …………, …………..

4. Durante todo o período do relacionamento, com especial incidência e frequência durante o período de coabitação, de modo frequente e reiterado, por mais do que uma vez, no interior da residência de ambos e na presença dos menores acima identificados, o arguido disse à ofendida que ela só queria estar no meio dos homens.

5. Durante todo o período do relacionamento, com especial incidência e frequência durante o período de coabitação, de modo frequente e reiterado, por mais do que uma vez, no interior da residência de ambos e na presença dos menores acima identificados, o arguido agarrou violentamente os braços da ofendida, provocando-lhe dor e hematomas.

6. Em data não concretamente apurada, mas que terá ocorrido entre …… e …… de 2017, durante o relacionamento, o arguido agarrou e puxou os cabelos da ofendida e braços, causando-lhe dores.

7. Noutras ocasiões, por mais do que uma vez, o arguido saía com a filha de ambos, alegando que se ia matar e à filha, causando medo e pânico na ofendida.

8. Em data não concretamente apurada, no interior da residência de ambos, o arguido ordenou à ofendida que abandonasse a residência e, logo de seguida, fechou-a e aos filhos dentro de casa, impedindo-os de sair.

9. Durante o período de coabitação, em várias ocasiões, por mais do que uma vez, no interior da residência comum e na presença de BB, o arguido apelidou CC de porco, anormal e deficiente e desferiu palmadas na nuca do mesmo, causando-lhe dores.

12.O arguido sabia que ao comportar-se da forma descrita relativamente à ofendida, sua companheira e mãe da sua filha, a submetia a sofrimento físico, causando-lhe dores e lesões corporais, a humilhação e tratamento degradante e atentatório da sua honra, dignidade e autoestima e que afectava a sua liberdade, criando nela sentimentos de insegurança, medo e inquietação, afectando o seu equilíbrio psicológico e emocional, não se coibindo de agir desse modo no interior da residência comum, espaço que

13. Mais sabia o arguido que ao comportar-se da forma descrita relativamente ao filho da sua companheira, cuja idade bem conhecia, e que consigo residia, os submetia a sofrimento físico, a humilhação e a tratamento degradante e atentatório da sua dignidade e autoestima, bem como do seu equilíbrio psicológico e emocional, pondo em causa o livre e equilibrado desenvolvimento da sua personalidade, não se coibindo de agir no interior da residência da vítima e na presença da mesma, o que quis.

14. O arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

15. O arguido provocou na assistente sentimentos de humilhação, vexame, vergonha, falta de amor próprio e auto-estima.

16. A assistente temia que o arguido se «vingasse» nos dois filhos”.

E, mais adiante diz-se no Acórdão Recorrido:
(…)
Como vimos, o recorrente sustenta que a descrição factual em que se baseou o tribunal a quo para decidir a sua condenação é demasiado vaga e genérica, impossibilitando um efectivo exercício do direito de defesa, motivo pelo qual deverá ser excluída da decisão recorrida. E defende que os factos constantes dos pontos 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 12.º, 13.º, 14.º, 16.º e 17.º, dados como assentes, foram incorrectamente julgados - com violação do princípio da apreciação da prova-, impondo a prova produzida na audiência de julgamento decisão diversa, coincidente com a falta de demonstração dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime por que foi condenado, enfermando, ainda, a decisão recorrida dos vícios… (…).
Importa, desde já assinalar que, diversamente do que sustenta o recorrente, a matéria de facto constante de a decisão recorrida encontra-se suficientemente concretizada, não padecendo das características de vaguidade e imprecisão, incompatíveis com o exercício efectivo do direito de defesa, que lhe são apontadas.
Com efeito, se concordamos com o recorrente quando assinala a circunstância de o crime de violência doméstica não se poder fundar em descrições vagas e genéricas, sem o mínimo de concretização espácio – temporal, resulta claramente da leitura da decisão recorrida que essa exigência foi observada, na medida do possível (com apoio, sobretudo, nas declarações da assistente e do ofendido CC) descrevendo o tribunal a quo as circunstâncias de tempo e de lugar em que os comportamentos do arguido /recorrente ocorreram, por referência ao período temporal em que decorreu a coabitação. Na verdade, não tendo sido possível uma concretização temporal rigorosa- como é habitual suceder, neste tipo de crimes-, o tribunal efectuou uma descrição dos factos considerados relevantes de forma mais genérica, mas, em todo o caso, sempre delimitada por uma barreira temporal e com referência a locais concretos, como se constata da leitura dos factos 4) a 9) da factualidade assente.
De qualquer modo, consideramos que a descrição factual efectuada pelo tribunal a quo, contém precisão suficiente para garantir o exercício pelo arguido / recorrente do direito de defesa e do contraditório (ínsito naquele), assegurando, ainda, a possibilidade da sua relevância jurídico-penal. (…)

E, o Acórdão Recorrido concluiu que:

“(…) em conceder parcial provimento ao recurso da sentença, corrigindo-se a redacção do ponto 5) da matéria de facto assente nos termos indicados[3], confirmando-se quanto ao mais decidido a sentença recorrida”. (…).

 10.2.  Do Acórdão-Fundamento.

No Acórdão Fundamento, proferido em 26.11.2019, pelo TRL, no âmbito do Proc. nº 214/18.7PDAMD.L1.5, consta o seguinte:

(…)

2. A Decisão Recorrida.

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

2.1.1. O arguido manteve uma relação de namoro com I, durante cerca de um ano e meio, o qual terminou no …… de 2017 e reiniciou-se em ……. de 2018.

2.1.2. No decurso da relação entre ambos, bem como após o terminus da mesma, o arguido infligiu maus-tratos à assistente, nomeadamente, dizia à mesma, pelo menos uma vez por semana, que “demente, filha de uma grande puta, criancinha do caralho, atrasada mental, andas com outros homens”.

2.1.3. No decurso da relação o arguido, motivado por ciúmes, acedia ao telemóvel da assistente, de modo a saber com quem a mesma contactava, bem como comparecia nos locais que a mesma frequentava, sem que a mesma soubesse, de modo a verificar com quem a mesma falava.

2.1.4. No início da relação entre ambos, em data não concretamente apurada, o arguido colocou a mão no braço da ofendida, apertando com força.

2.1.5. No dia ……. 2018, depois do almoço, o arguido deslocou-se à residência da assistente, sita no Largo …, ……. e iniciou uma discussão com a mesma, por esta ter frequentado, na noite anterior, um estabelecimento de ..........., na sequência da qual agarrou a assistente pelos braços e empurrou uma cadeira, na qual ela estava sentada.

2.1.6. Em consequência de tais agressões, a assistente sofreu dores e lesões nas zonas atingidas.

2.1.7. Ao bater na assistente, com quem mantinha uma relação de namoro, e ao injuriá-la, apesar de saber que ela era sua namorada e como tal tinha o especial dever de a tratar com dignidade, dentro da residência familiar, o arguido agiu com o propósito de molestar a saúde física e psíquica da assistente, de afectar a sua liberdade de decisão, de a humilhar e desconsiderar, com desprezo pela sua dignidade pessoal, não se coibindo de o fazer no interior da residência da assistente, o que conseguiu, ao actuar da forma acima descrita.

2.1.8. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que tais condutas eram proibidas e punidas criminalmente.

2.1.9. Devido ao comportamento do arguido a assistente ficou fragilizada e perdeu a sua auto-estima.

2.1.10. Devido aos factos supra descritos a assistente teve e ainda hoje sente medo do arguido.

2.1.11. Devido aos factos supra descritos a assistente era uma pessoa nervosa e ansiosa.

2.1.12. A assistente é solteira, não tem filhos e mora com a mãe.

2.1.13. É estudante.

2.1.14. Mora em casa da mãe.

2.1.15. Devido à conduta do arguido a assistente foi seguida em vinte consultas de psicologia.

2.1.16. Com estas consultas a mãe da ofendida, AS, despendeu a quantia de €1.200 (mil e duzentos euros).

2.1.17. O arguido é solteiro, não tem filhos e mora com a mãe.

2.1.18. É estudante do 1º ano do curso de ……..

2.1.19. Mora em casa da mãe.

2.1.20. Não tem carro.

2.1.21. Tem o 12º ano de escolaridade.

              2.1.22. Não tem antecedentes criminais.

 (…)”

E no enquadramento legal dos factos provados, diz-se neste Acórdão Fundamento:

“(…)
Pois bem, como é manifesto, estes diversos comportamentos do arguido dados como provados em 2.1.2, 2.1.3 e 2.1.4 não se mostram contextualizados temporal e circunstancialmente por falta de indicação dos dias concretos ou, sequer, de um espaço de tempo minimamente balizado em que terão eles ocorrido (basta atentar que mesmo em 2.1.1 não se indica a data do início do relacionamento, ainda que aproximada), bem como das circunstâncias e número de vezes em que se terão verificado, pelo que estamos perante uma descrição vaga e imprecisa.

Esta indefinição temporal e circunstancial, que vem já da peça acusatória do Ministério Público, impede o efectivo e eficaz contraditório (desde logo pela eventual demonstração de que nos dias que poderiam estar em causa a assistente I. não se encontrava na companhia do arguido, por este estar a frequentar aulas ou qualquer outra razão configurável) obliterando o seu direito de defesa constitucionalmente tutelado no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.

(…)

Com efeito, consagra-se no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, que quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge – alínea a); pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação – alínea b); a progenitor de descendente comum em 1º grau – alínea c); ou a pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite – alínea d) - é punido (…).

O bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime plasmado no artigo 152º, do Código Penal, será a saúde (abrangendo a saúde física, psíquica, emocional e moral), enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, sendo que este bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela dessa dignidade, projectada numa relação de afectividade ou coabitação, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos (…)

Daí que, essencial se mostra a descrição minimamente concreta e circunstanciada dos comportamentos susceptíveis de constituírem violação da dignidade da pessoa humana, da garantia da integridade pessoal ou do livre desenvolvimento da sua personalidade, pois só estes poderão ser subsumidos na previsão legal.

Porque assim é, urge concluir que os factos dados como assentes nos pontos 2.1.2, 2.1.3 e 2.1.4 se têm de considerar como não escritos.

Mas, o tribunal recorrido deu igualmente como provado que:

2.1.5. No dia 23-03-2018, depois do almoço, o arguido deslocou-se à residência da assistente, sita no Largo …, ……. e iniciou uma discussão com a mesma, por esta ter frequentado, na noite anterior, um estabelecimento de ..........., na sequência da qual agarrou a assistente pelos braços e empurrou uma cadeira, na qual ela estava sentada.

2.1.6. Em consequência de tais agressões, a assistente sofreu dores e lesões nas zonas atingidas.

E, explicitou como formou, a propósito a sua convicção, nos seguintes termos:

- Nas declarações da assistente I., que, apesar de naturalmente envolvida nos factos, relatou de modo emotivo, mas coerente, claro, lógico e objectivo, os mesmos, descrevendo, de forma circunstanciada, as agressões, pressões e ameaças de que foi alvo por parte do arguido, bem como o estado psíquico em que a mesma ficou em consequência das mesmas. O seu depoimento foi de tal forma convicto e seguro que mereceu total credibilidade.

(…)

- Referiu que no dia ……. o arguido a empurrou e segurou pelos braços, tendo empurrado a cadeira onde ela estava sentada, sendo que ela apenas não caiu porque se levantou de imediato.

(…)

Quanto ao mais, temos as declarações claras e espontâneas da assistente, que relatou o modo como o arguido a controlava, o modo como lhe batia e as palavras que proferia quando a insultava, sendo que as suas declarações mereceram total credibilidade aos olhos do tribunal.

Quanto ao episódio ocorrido a ……. o tribunal baseou-se igualmente nas declarações da assistente as quais foram bastante convincentes nesta matéria.

Ora, desde logo não conseguimos conceber, fazendo apelo às regras da experiência comum, como é que, relativamente ao episódio de ……. de 2018, tendo ficado simplesmente provado que o arguido agarrou a assistente pelos braços e empurrou uma cadeira, na qual ela estava sentada, este comportamento lhe terá provocado dores e lesões nas zonas atingidas. É que, o singelo acto de agarrar os braços de alguém, tendo ainda em atenção as aludidas regras da experiência, não é susceptível, só por si, de causar dores e lesões nesses membros, o que só poderá acontecer se for utilizada energia significativa, mas tal descrição não consta dos factos provados da sentença, assim como não consta da acusação pública deduzida. E, esse comportamento – único a atender, como se deixou explicitado, por ser aquele que se mostra suficientemente concretizado – também se mostra, de acordo com a experiência da cidadã/cidadão comum, inapto a criar na assistente fragilidade e perda de auto-estima, medo do arguido, tornando-a uma pessoa nervosa e ansiosa. Aliás, a testemunha AR., psicóloga, referiu em audiência de julgamento que já em 2015/2016 a assistente era por si seguida e não se mostra plausível que, só por lhe agarrarem os braços, tivesse esta de frequentar vinte consultas de psicologia. Daí que, se tenham de considerar como não provados os factos vertidos nos pontos 2.1.6, 2.1.7 e 2.1.8, 2.1.9, 2.1.10, 2.1.11 e 2.15, alterando-se a matéria de facto provada em conformidade.

 (…)”

E, conclui o Acórdão Fundamento que:

“(…)

A). Julgam como não escritos os factos dados como provados nos pontos 2.1.2, 2.1.3 e 2.1.4 e como não provados os factos vertidos nos pontos 2.1.6, 2.1.7 e 2.1.8, 2.1.9, 2.1.10, 2.1.11 e 2.15, dos fundamentos de facto da decisão recorrida;

B). Revogam a decisão recorrida, na parte relativa à matéria penal e absolvem o arguido da prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e nºs 2, 4 e 5, do Código Penal, por que vinha acusado;

(…)”.

11.Apreciemos.
Elaborada a síntese que entendemos necessária para o julgamento deste Recurso de Fixação de Jurisprudência, cumpre realçar o seguinte:
O recorrente sustenta, em suma que, quer no Acórdão Recorrido, quer no Acórdão Fundamento, os factos dados como provados para sustentar a condenação, são descrições genéricas, que não reúnem a necessária concretização fáctica, para a imputação do crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º do CP.
E que, perante o mesmo enquadramento temporal e circunstancial, o Acórdão Fundamento considerou os factos como não escritos e insuficientes, para a subsunção no referido crime.

Começando por respigar a argumentação do recorrente, a mesma, por si só, determinaria a rejeição do recurso.
É que, como frisa o arguido, as imputações genéricas têm como consequência que se considere não escrita toda a narração que seja imprecisa, vaga, nebulosa. Se essa é a consequência que pretende “exportar” para o Acórdão Recorrido, o que almeja, finalisticamente, é que se considere não escrito os “acontecimentos da vida real” imputados ao arguido, que o TRP se socorreu para prolação do seu acórdão condenatório. Ora, assim sendo, o que estaria em causa seriam dois substractos que fundaram uma decisão condenatória que se considerariam não escritos.
De modo que, não seria possível aludir a contradição factual, já que, a sua premissa lógica é que existam factos juridicamente relevantes. Ou seja, factos que se considerem escritos e que relevaram para a condenação.
Ora, isso não sucede nem quando dois acórdãos os considerem não escritos.
Nem quando, como sucede nos autos, um dos acórdãos - fundamento - considera que os factos imputados se consideram não escritos (em suma, declara que inexistem factos) e um outro - recorrido - em que se reconhece a existência de factos.
Se um dos pressupostos do recurso de fixação de jurisprudência é a identidade de factos, a ausência destes no Acórdão Fundamento, por assim ter sido declarado, não permite concluir pela sua verificação. 
Não obstante, mesmo a entender-se que, para efeito do pressuposto da existência de identidade de factos, se deveria atender aos factos julgados conclusivos, vagos, imprecisos no Acórdão Fundamento, e a facticidade julgada correctamente narrada pelo acórdão recorrido, a conclusão é a mesma: inverificação do requisito da identidade.

12.Vejamos.

O Acórdão Fundamento julgou factos que foram considerados relevantes para a condenação pela 1.ª instância, como não escritos (o que determinou a absolvição).
O Acórdão Recorrido entendeu que os factos que sustentaram a condenação estavam devidamente densificados.
Mais concretamente, o motivo aduzido pelo recorrente para fundamentar a oposição de julgados encontra-se sintetizado nos pontos 4 e 5 do seu recurso, onde alega que se verifica uma “patente, oposição de julgamentos relativamente à mesma questão de direito, uma vez que no Acórdão fundamento o mesmo enquadramento temporal e circunstancial demonstrou-se insuficiente para efeitos de subsunção na previsão legal do crime de violência doméstica, p.p., no artigo 152. ° do Código Penal, tendo os alegados factos sido dados como não escritos. Ambas as decisões foram proferidas no âmbito da mesma legislação, ou seja, na vigência do estatuído no artigo 152. °, do Código Penal.”.
Na verdade, o Acórdão Recorrido, considerou que a “matéria de facto constante da decisão recorrida encontra-se suficientemente concretizada, não padecendo das características de vaguidade e imprecisão, incompatíveis com o exercício efectivo do direito de defesa” (…) “descrevendo o tribunal a quo as circunstâncias de tempo e de lugar em que os comportamentos do arguido/recorrente ocorreram, por referência ao período temporal em que decorreu a coabitação”,(…) “não tendo sido possível uma concretização temporal rigorosa – como é habitual suceder neste tipo de crimes -, o tribunal efectuou uma descrição dos factos considerados relevantes de forma mais genérica mas, em todo o caso, sempre delimitada por uma barreira temporal e com referência a locais concretos, como se constata da leitura dos pontos 4) a 9) da factualidade assente”.

Por seu turno, o Acórdão Fundamento entendeu que “é manifesto, estes diversos comportamentos do arguido dados como provados em 2.1.2, 2.1.3 e 2.1.4 não se mostram contextualizados temporal e circunstancialmente por falta de indicação dos dias concretos ou, sequer, de um espaço de tempo minimamente balizado em que terão eles ocorrido (basta atentar que mesmo em 2.1.1 não se indica a data do início do relacionamento, ainda que aproximada), bem como das circunstâncias e número de vezes em que se terão verificado, pelo que estamos perante uma descrição vaga e imprecisa. ” Esta indefinição temporal e circunstancial, que vem já da peça acusatória do Ministério Público, impede o efectivo e eficaz contraditório” “obliterando o seu direito de defesa constitucionalmente tutelado no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.”(…)“essencial se mostra a descrição minimamente concreta e circunstanciada dos comportamentos susceptíveis de constituírem violação da dignidade da pessoa humana, da garantia da integridade pessoal ou do livre desenvolvimento da sua personalidade, pois só estes poderão ser subsumidos na previsão legal. Porque assim é, urge concluir que os factos dados como assentes nos pontos 2.1.2, 2.1.3 e 2.1.4 se têm de considerar como não escritos”


Brevitatis causa: a divergência (jurídica) que é assinalada prende-se com a interpretação sobre as denominadas “imputações genéricas”. Se quisermos, o nível de concretização factual que é exigível para permitir a condenação por um crime de violência doméstica, salvaguardando o direito de defesa.


O recorrente entende que no Acórdão Fundamento e no Acórdão Recorrido existe “o mesmo enquadramento temporal e circunstancial”.
Importa, assim, primeiro, confrontar os factos que o Acórdão Fundamento julgou não escritos (por entender serem imprecisos, vagos, genéricos), e aqueles que o Acórdão Recorrido considerou escritos (por entender que, apesar de descritos de “forma mais genérica”, em todo caso ainda deveriam considerar-se relevantes, por existir “uma barreira temporal” e “referência a locais concretos”).


13.Analisemos mais de perto.

No Acórdão Fundamentoos factos dados como assentes nos pontos 2.1.2, 2.1.3 e 2.1.4”, consideraram-se “não escritos”.
Tais factos dados como provados consistiam no seguinte: “2.1.1. O arguido manteve uma relação de namoro com I., durante cerca de um ano e meio, o qual terminou no …. de 2017 e reiniciou-se em …… de 2018. 2.1.2. No decurso da relação entre ambos, bem como após o terminus da mesma, o arguido infligiu maus-tratos à assistente, nomeadamente, dizia à mesma, pelo menos uma vez por semana, que “demente, filha de uma grande puta, criancinha do caralho, atrasada mental, andas com outros homens”. 2.1.3. No decurso da relação o arguido, motivado por ciúmes, acedia ao telemóvel da assistente, de modo a saber com quem a mesma contactava, bem como comparecia nos locais que a mesma frequentava, sem que a mesma soubesse, de modo a verificar com quem a mesma falava. 2.1.4. No início da relação entre ambos, em data não concretamente apurada, o arguido colocou a mão no braço da ofendida, apertando com força.”.
E, julgaram-se não escritos porque “não se mostram contextualizados temporal e circunstancialmente por falta de indicação dos dias concretos ou, sequer, de um espaço de tempo minimamente balizado em que terão eles ocorrido, bem como das circunstâncias e número de vezes em que se terão verificado”, consubstanciando imputações genéricas que não permitem o exercício do direito de defesa.
Ora, nesse Acórdão Fundamento, e em relação aos factos considerados não escritos, constata-se que:
1) existe uma indefinição temporal, já que se alude a uma relação de namoro de “cerca” de um ano, concretiza-se um término e um reinício, mas, perante a narração, não se sabe quando se iniciou, ou terminou após o reinício;
b) não se identifica nenhum lugar das acções;
c) não se indica nenhum dia concreto ou “espaço de tempo minimamente balizado”.


O mesmo não ocorre no que concerne ao Acórdão Recorrido.
O Acórdão Recorrido realçou que não foi “possível uma concretização temporal rigorosa - como é habitual suceder neste tipo de crimes”, pelo que, “o tribunal efectuou uma descrição dos factos considerados relevantes de forma mais genérica, mas, em todo o caso, sempre delimitada por uma barreira temporal e com referência a locais concretos, como se constata da leitura dos pontos 4) a 9) da factualidade assente”.
Apesar de existirem algumas referências mais genéricas, - como reconheceu o próprio Acórdão Recorrido -, o cerne é apurar se o “grau” de descrição narrativa é idêntico.
E, como se extrai, desde logo, do confronto da fundamentação do Acórdão Recorrido e Acórdão Fundamento, não o é.
Como salienta o Acórdão Recorrido existiu uma delimitação da barreira temporal e foram referidos locais em concreto.
O Acórdão Fundamento, por seu lado, frisou que existiu uma completa indefinição temporal e espacial.


E, na realidade, ao invés da matéria julgada não escrita no Acórdão Fundamento, nos factos dados como provados no Acórdão Recorrido ressalta que:
a) existe um balizamento temporal – descreve-se que os factos ocorreram durante um relacionamento de namoro que se concretiza como tendo ocorrido entre 2013 e ……de 2017, fazendo referência a factos que ocorreram durante o período de coabitação, que, também, se encontra delimitado entre …… de 2016 e ……de 2017 (ponto 1 dos factos dados como provados);
b) concretiza-se o local da residência (ponto 3 da matéria de facto dada como provada); c) narram-se as acções de violência doméstica por referência ao relacionamento de namoro e coabitação, que se encontram balizados temporalmente (pontos 4, 5, 7 a 9 dos factos dados como provados);
d) narram-se factos com referência a concretos meses do ano (ponto 6 dos factos dados como provados);
e) concretiza-se a localização dos acontecimentos – no interior da residência cuja morada foi identificada (nos pontos 4, 5, 8 e 9 dos factos dados como provados).


Verificam-se, como se nota, assinaláveis diferenças na narração dos factos.
No Acórdão Fundamento existe uma incerteza temporal (adveniente do facto de não se descrever o início da relação, ou o seu fim, após o reinício da mesma).
No Acórdão Recorrido descreve-se, temporalmente, a imputação dos factos ao arguido, tendo por reporte: a) o relacionamento do namoro; b) a coabitação, cujo início e fim estão narrados, ao qual acresce que, quanto a determinados actos, se concretiza os meses e o ano.

No Acórdão Fundamento não se densifica o lugar dos atos imputados.
No Acórdão Recorrido assinala-se o “interior da residência”, identificando a morada.

Assim, não se pode concluir, como alega o recorrente como fundamento da oposição de julgados, que o Acórdão Fundamento e o Acórdão Recorrido decidiram com base no “mesmo enquadramento temporal e circunstancial”.


Não existe, assim, uma identidade na narrativa dos factos porque o grau de descrição temporal, e espacial, é diferente.

Mais genérico no Acórdão Fundamento. Mais densificado no Acórdão Recorrido.
 
Inexistência de coincidência na narrativa fáctica que, por seu turno, inviabiliza que se considere existir entre o Acórdão Recorrido e o Acórdão Fundamento uma solução jurídica, expressamente proferida, que seja conflituante.


Perante tais dissonâncias não se pode concluir pela diversidade de posições jurídicas assumidas nos Tribunais da Relação. É certo que a lei convocável foi idêntica. Ou seja, ambos os acórdãos analisaram se os factos dados como provados permitiam uma subsunção no crime de violência doméstica. E, ambos, analisaram se a descrição factual permitia o exercício do direito do defesa.
Mas, no Acórdão Fundamento, consideraram-se determinados factos como não escritos (o que redundou na absolvição), por se tratar de imputações genéricas, que não permitiam um efectivo contraditório.
No Acórdão Recorrido, pelo contrário, apesar de reconhecer algum grau de generalização, entendeu-se que a concretização factual foi bastante para permitir contraditar. Interpretação quanto ao conceito de “imputações genéricas” que, por partir de uma narrativa com um diverso enquadramento temporal e espacial, não se pode considerar que seja antagónica.


14.Tem este Supremo Tribunal de Justiça reconhecido que as imputações genéricas são imprestáveis. Ou seja, quando as formulações são de tal modo vagas, imprecisas, genéricas, com indefinição a nível do tempo, espaço, participação do agente, ao ponto de não permitir um efetivo exercício do contraditório, impossibilitando a cabal defesa do arguido, devem considerar-se não escritas (jurisprudência esta que tem sido emanada, essencialmente, a propósito do crime de tráfico de estupefacientes)[4].
No entanto, o grau de precisão na narração factual não se pode dissociar da concreta criminalidade que está em causa, dos seus contornos, do tempo que perdurou, do peso dos actos isolados ou do comportamento global.
Aliás, esse equilíbrio que é necessário lograr, harmonizando o interesse do Estado na punição do crime e do criminoso, o interesse da vítima em que seja feita justiça, e o interesse do arguido na sua defesa, princípios que emanam do artigo 283.º, n.º 3, al. b), ao mencionar que a narração do “lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” será feita “se possível”. O que demonstra que o legislador admite, nestes aspectos, um maior grau de generalização, se a investigação não permitir uma melhor pormenorização fáctica.
Como se assinalou, a propósito do crime de maus tratos, no ac. STJ, Rel. Júlio Pereira, 20.02.2019, Proc. 25/17.7GEEVR.S1 - 5.ª Secção, “se é certo que o contexto temporal de tais condutas não é rigoroso, sendo até muito impreciso, a falta de elementos mais circunstanciados respeitantes à localização temporal dos maus tratos tem que ser compreendida no contexto em que este tipo de crime ocorre, em dinâmica intrafamiliar, a maioria das vezes sem a presença de outras pessoas para além do ofensor e da ofendida” e, mais adiante, “ Perante práticas reiteradas ao longo de dezenas de anos, os episódios em concreto diluem-se na fita do tempo, ganhando antes relevo a visão global da conduta do arguido, um pouco à semelhança de cada árvore que vê a sua individualidade ocultada na floresta.”.
Raciocínio idêntico se pode empreender nos crimes de violência doméstica, em que existe uma reiteração de condutas, ao longo de um período de tempo relativamente longo, numa dinâmica intrafamiliar, em que os actos isolados se tornam mais difíceis de concretizar no tempo e espaço, quanto maior o seu número, e o distanciamento temporal entre a ocorrência dos mesmos e as declarações da vítima.


De todo o modo, para efeito de aferir dos pressupostos de admissibilidade do recurso para fixação de jurisprudência, não compete ao STJ analisar a bondade da decisão de direito. Dizendo de outro modo: não compete a este Supremo Tribunal de Justiça indagar, neste tipo de recurso extraordinário, se a densidade da narração factual impunha que o TRP concluísse pela existência de imputações genéricas. Para este efeito, de verificação dos pressupostos, importa, apenas, aferir se existe uma identidade da narração factual e uma decisão de Direito conflituante.

15.Dito isto,
Assinalámos as diferenças na narrativa factual.

O que nos permite concluir que no Acórdão Fundamento e no Acórdão Recorrido, na sua apreciação do Direito, partiram de premissas diversas, sendo diferente o grau de concretização dos factos, quer a nível do balizamento temporal, quer na identificação espacial.
A contradição e dissenso do tratamento da questão de direito não é extraível quando se confrontam os dois acórdãos, porque partem de uma narrativa factual divergente. Ou, se quisermos, não inteiramente coincidente.

No Acórdão Fundamento (e circunscrevendo-nos ao objecto delimitado pelo recurso do arguido), decidiu-se pela existência de imputações genéricas, perante a ausência total de concretização temporal e espacial, que não permitiam o exercício do direito de defesa.
No Acórdão Recorrido entendeu-se que a existência de um balizamento temporal, e a referência a locais concretos, permitiam o exercício do contraditório. O que significa que a densidade da descrição factual não é idêntica.


Pelo que, o caminho jurídico percorrido no Acórdão Recorrido e no Acórdão Fundamento não pode ser considerado conflituante.
Apenas se poderia conceber uma dissonância jurídica relevante no caso do Acórdão Recorrido, perante uma total indefinição temporal, e omissão na identificação de locais onde ocorreram os factos, e se se entendesse que as imputações não eram genéricas. Ou, se o Acórdão Fundamento, perante a existência de narração de factos que delimitassem temporalmente o início e o fim da relação de namoro, e indicação de locais onde ocorreu a violência doméstica, considerasse que estávamos perante imputações genéricas.
O que não é o caso.


Assim sendo, não se pode concluir pela verificação da necessária oposição de julgados entre o Acórdão Recorrido e o Acórdão Fundamento, o que redunda na rejeição do recurso de fixação de jurisprudência, nos termos do disposto no artigo 441.º, n.º 1.
 

16.Em conclusão:

Tudo visto, e como resulta do exposto, não se verifica o requisito substancial da oposição de julgados exigido pelo artigo 437.º do CPP.

Com efeito, estamos perante um recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, de natureza excepcional, sendo entendimento deste STJ que a interpretação das regras jurídicas disciplinadoras de tal recurso deve fazer-se com as restrições e o rigor inerentes por essa excepcionalidade, sendo a oposição explícita, quanto à mesma questão de direito, só relevando para efeitos de recurso para fixação de jurisprudência se se estiver perante uma factualidade subjacente equivalente.

O que, vimos, não se verifica no presente caso.
17. A não oposição de julgados é fundamento de rejeição do recurso, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 441.º.
Razão esta em que, e por se não se verificar o requisito substancial previsto no artigo 437.º - oposição de julgados - nos leva a rejeitar o presente recurso para fixação de jurisprudência, nos termos do artigo 441. °, n° 1, do CPP.

18.O decaimento total no recurso impõe a condenação do recorrente em custas, nos termos e com os critérios fixados no artigo 521.º, do CPP, e no artigo 8.º e tabela III, estes do Regulamento das Custas Processuais.

III.

19. Pelo exposto,
a) rejeita-se o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pelo recorrente AA;
b) condena-se o recorrente nas custas com a taxa de justiça em 1 (uma) unidade de conta (UC).

10 de Dezembro de 2020

Processado e revisto pela relatora, nos termos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP, e assinado eletronicamente pelos signatários.

(Margarida Blasco- relatora); (Eduardo Loureiro - Adjunto)

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[1] Ainda os Ac. Ac. da Rel. Porto, de 2016-06-15 (Rec. nº 1170/14.6TAVFR.P1), da RP de 13-11-2019 (proc. nº 109/19.7GAARC.P1; Relator: Exmº Desembargador José Carreto); Acs. da RG de 23-09-2013 (proc. nº 490/10.3JABRG.G1) e da Relação de Lisboa de 24-01-2012 (Proc. 68/11.4PATVD.L1), da RC de 09.05.2012 –proc. nº 222/09.9JACBR.C2; Ac. Rel. Coimbra, de 2018-01-17 (Rec. nº 204/10.8GASRE.C1).
[2] Sublinhamos a negrito os factos invocados pelo recorrente, que no seu entender estão na origem deste RFJ.
[3] Foi retirada a expressão “de modo frequente e reiterado”, resultando na redacção transcrita no ponto 1. deste acórdão.
[4] cf., entre outros acórdãos, ac. STJ Rel. Raúl Borges, 28.10.2015, Proc. n.º 10/13.8GAAMT.P1. S1 - 3.ª Secção, ac. STJ, Rel. Raúl Borges, 15.12.2011, Proc. n.º 17/09.0TELSB.L1. S1 - 3.ª Secção ou ac. STJ, Rel. Pereira Madeira, 31.01.2008, Proc. n.º 1411/07 - 5.ª Secção