Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
683/11.6TBPDL.L1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DANO BIOLÓGICO
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
LUCRO CESSANTE
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Data do Acordão: 10/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Doutrina:
- ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Volume I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2000 (reimp. 2003), p. 599.
- MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Lições de responsabilidade civil, Principia, Cascais, 2017, p. 341.
- MARIA DA GRAÇA TRIGO, “Adopção do conceito de “dano biológico” pelo direito português”, ROA, Ano 72 – Vol. I, Jan.-Mar. 2012.p. 161-162, 167-169, 177.
- RUI DE ALARCÃO, Direito das obrigações, elaborado por J. Sousa Ribeiro, J. Sinde Monteiro, Almeno de Sá e J. C. Proença, FDUC, Coimbra, 1983, p. 271-272.

Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, N.º 1 E 566.º, N.º 3
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 4/12/2007, PROCESSO N.º 07A3836;
- DE 27/10/2009, PROCESSO N.º 560/09.0YFLSB;
- DE 10/10/2012, PROCESSO N.º 632/2001.G1.S1;
- DE 10/11/2016, PROCESSO N.º 175/05.2TBPSR.E2.S1;
- DE 14/12/2017, PROCESSO N.º 589/13.4TBFLG.P1.S1;
- DE 19/4/2018, PROCESSO N.º 196/11.6TCGMR.G2.S1;
- DE 19/6/2019, PROCESSO N.º 22392/16.0T8PRT.P1.S1;
- DE 19/9/2019, PROCESSO N.º 2706/17.6T8BRG.G1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I. O chamado dano biológico ou corporal, enquanto lesão da saúde e da integridade psico-somática da pessoa imputável ao facto gerador de responsabilidade civil delitual, traduzida em incapacidade funcional limitativa e restritiva das suas qualidades físicas e intelectuais, não constitui uma espécie de danos que se configure como um tertium genus na dicotomia danos patrimoniais vs danos não patrimoniais; antes permite delimitar e avaliar os efeitos dessa lesão – em função da sua natureza, conteúdo e consequências, tendo em conta os componentes de dano real – enquanto dano patrimonial (por terem por objecto um interesse privado susceptível de avaliação pecuniária) ou enquanto dano moral ou não patrimonial (por incidirem sobre bem ou interesse insusceptível, em rigor, dessa avaliação pecuniária).

II. Na fixação dos valores de lucros cessantes, os montantes obtidos através da aplicação de processos objetivos assentes em fórmulas e tabelas matemáticas constituem auxiliar e indicador relevante para uma tradução do quantum indemnizatório, sem que tal obste nem de todo impeça o papel corrector e de adequação da ponderação judicial assente na equidade, perante a gravidade objetiva e subjetiva dos prejuízos sofridos, as circunstâncias específicas do facto e do agente e as variantes dinâmicas que escapam aos referidos cálculos objectivos.

III. A avaliação e quantificação do lucro cessante traduzido no dano biológico patrimonial implica não só atender às perdas salariais resultantes da interrupção de uma carreira profissional motivada pela incapacidade definitiva (resultante de acidente de viação) para o exercício da profissão, mas também reflectir, na indemnização arbitrada com recurso à equidade (art. 566º, 3, para fixar os danos no contexto de aplicação do art. 483º, 1, sempre do CCiv.), a privação de oportunidades profissionais futuras por parte do lesado e o esforço acrescido de reconversão profissional que (nomeadamente se relevante) o grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas da vida profissional e económico-empresarial.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

6ª Secção


I. RELATÓRIO

A) AA intentou contra «BB, S.A.» acção declarativa de condenação, com processo ordinário, alegando, em síntese, que no dia 18 de Maio de 2008, conduzia o seu veículo ligeiro de passageiros de matrícula -ZX, quando inesperadamente este foi embatido violenta e frontalmente pelo veículo de matrícula -VD, seguro pela Ré, que circulava em contramão e cujo condutor deu causa à colisão; mais alegou que, como resultado da colisão o seu veículo ficou totalmente destruído e sofreu lesões que determinaram uma incapacidade permanente parcial de 80%, necessitando ainda de cuidados médicos futuros. Pedia a condenação da Ré: a) a pagar-lhe € 500 000,00 pelos danos patrimoniais consistentes nos lucros cessantes da perda de capacidade de ganho resultante da incapacidade permanente de 80%; b) ou na quantia correspondente à incapacidade que se vier a apurar em exame pericial; c) ou na quantia correspondente à incapacidade que se vier a apurar em execução de sentença; d) a pagar-lhe todas as despesas médicas e medicamentosas de que venha a necessitar no futuro; e) a pagar-lhe a aquisição de equipamentos de saúde de que venha a necessitar no futuro, nos montantes que se vierem a liquidar em sede de execução de sentença; f) a pagar-lhe a quantia de € 9 843,00, correspondente ao valor do seu veículo; g) a pagar-lhe a quantia de € 200 000,00 euros, a título de danos não patrimoniais; h) a pagar-lhe juros de mora à taxa legal sobre todos os pedidos, desde a citação até efectivo pagamento. A Ré contestou invocando a excepção de ilegitimidade passiva por o pedido ultrapassar o capital seguro de € 650 000,00 euros, devendo a acção ter sido intentada também contra os herdeiros do falecido condutor e segurado da Ré, e impugnando os factos relativos à forma como se deu o embate, bem como os danos invocados, alegando que os valores reclamados são exagerados. Concluiu pedindo procedência da excepção de ilegitimidade, com a consequente absolvição da Ré da instância, e a improcedência da acção com a absolvição da Ré do pedido ou a sua redução a valores compatíveis com os provados. A Autora replicou aceitando o valor do capital seguro da Ré e reduzindo o pedido relativo aos danos não patrimoniais para € 135 000,00, passando o pedido  total a ter o valor de € 644.843,00.
B) Admitida a redução do pedido que prejudicava a questão da ilegitimidade (cfr. fls. 148) e realizada audiência preliminar com prolação de despacho saneador, fixação da matéria assente e base instrutória (cfr. fls. 160 e ss), procedeu-se a julgamento em 24/3/2014 (cfr. fls. 508 e ss), findo o qual foi proferida em 2/4/2014 sentença pelo Tribunal Judicial da Comarca de ..., 2.º Juízo (fls. 511 e ss): a acção foi julgada parcialmente procedente, sendo a Ré condenada a pagar à Autora as quantias de € 9 843,00 (danos patrimoniais emergentes), € 499 618,12 (danos patrimoniais resultantes da perda de capacidade de ganho) e € 100 000,00 (danos não patrimoniais), bem como a pagar-lhe as despesas necessárias à fisioterapia, operação cirúrgica e aquisição de equipamento necessário à sua condição física limitada, a determinar em execução de sentença, tudo acrescido de juros de mora desde a data do trânsito em julgado da sentença até integral pagamento.
C) Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação (fls. 544 e ss), pedindo a absolvição do pedido, ou a redução dos montantes indemnizatórios fixados a título de danos morais e de danos patrimoniais por perda de capacidade de ganho, tendo impugnado os pontos 13, 15, 16, 17, 43 e 44 da matéria de facto. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (Ac. RL I) de 9/7/2015 decidiu-se: (1) julgar parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto, mantendo-se a redacção dos pontos 13, 15, 16 e 17, rectificando a redacção do ponto 49 e, em face da contradição entre os pontos 43 e 44, mantendo-se a redacção do ponto 43 e dando-se a seguinte nova redacção ao ponto 44: “Após o acidente, embora mantendo-se no quadro do hospital, a autora deixou de exercer as suas funções, primeiro por ter ficado em coma e internada, depois porque esteve acamada em casa de familiares, tendo estado muitos meses submetida a terapias, só ficando com as lesões consolidadas em 28/12/2011, mas sem que ainda tivesse regressado ao trabalho.”; (2) manter a sentença recorrida quer na parte relativa à atribuição de responsabilidade ao condutor do veículo segurado pela ré, quer na parte relativa à fixação da indemnização por danos não patrimoniais e (3) alterar a indemnização por perda de capacidade de ganho, que foi fixada em € 250 000,00 euros (fls. 597 e ss).
D) Não se resignando, a Autora interpôs recurso de revista para o STJ (fls. 615 e ss), com vista à revogação do acórdão recorrido e substituição por outro que atribuísse à Autora a quantia de € 499 618,12 a título de indemnização por dano patrimonial relatida à perda de capacidade de ganho. Fundando-se na contradição entre os factos 43, 44, 47, 51 e 62, decidiu-se, em acórdão proferido em 10/3/2016, anular o acórdão da Relação e determinar a baixa dos autos para o Tribunal de 2 instância para, se possível com os mesmos Juízes Desembargadores, se proceder a novo julgamento circunscrito à matéria contraditória e de forma a sanar tal contradição, com aproveitamento dos restantes factos compatíveis com a decisão a proferir, sem prejuízo, se o entendesse necessário, de mandar baixar os autos à 1.ª instância (fls. 685 e ss).
E) O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu remeter os autos remetidos à 1.a instância. Aqui, procedeu-se a julgamento relativamente aos factos indicados pelo STJ e, atendendo-se à nova prova, reformularam-se esses factos (fls. 744 e ss) e, depois de nova remessa dos autos à 1.ª instância pelo Tribunal da Relação e em conformidade com a matéria de facto assim alterada, proferiu nova sentença em 14/6/2017: decidiu julgar a acção parcialmente procedente e condenar a Ré a pagar à Autora as quantias de € 9 843,00 (danos patrimoniais emergentes), € 499 618,12 (danos patrimoniais por perda de capacidade de ganho) e € 100 000,00 (danos não patrimoniais), bem como a pagar-lhe as despesas necessárias à fisioterapia, operação cirúrgica e aquisição de equipamento necessário à sua condição física limitada, a liquidar em execução de sentença, tudo acrescido de juros de mora desde a data do trânsito em julgado da sentença até efectivo pagamento (fls. 769 e ss).
F) Novamente inconformada, a Ré interpôs novo recurso de apelação (fls. 788 e ss), restrito à indemnização dos danos patrimoniais decorrentes da perda de capacidade de ganho, pugnando pela sua redução para o montante de € 44.000,00; a recorrida contra-alegou, pugnando pela confirmação da sentença recorrida. Em novo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (Ac. RL II), proferido em 20/12/2018, acordou-se em “julgar parcialmente procedente a apelação e, após eliminação do ponto 52 e da alteração do ponto 50 dos factos provados”, “fixar a indemnização por perda de capacidade de ganho em € 120 000,00 euros, mantendo-se a sentença recorrida no restante”.

G) A Autora/Recorrente interpôs recurso de revista, pugnando pela revogação do acórdão recorrido e sua substituição por decisão deste STJ que lhe “atribua (…) a quantia de € 499.618,12 (quatrocentos e noventa e nove mil, seiscentos e dezoito euros e doze cêntimos), a título de indemnização por dano patrimonial, a título de lucros cessantes pela perda de capacidade de ganho”, e fazendo constar das suas alegações as seguintes Conclusões:

“2. (…) em face da matéria da matéria de facto considerada como provada nos presentes autos[,]  nomeadamente, a idade de 33 anos da Autora, a incapacidade permanente parcial de 53%, a circunstância de ter sido considerada absoluta e permanentemente incapaz para o exercício das suas funções profissionais de enfermeira, as graves lesões física[s] que a acompanham, o Acórdão recorrido deveria ter mantido a indemnização fixada uma vez mais pelo Tribunal de 1a Instância, porque justa e adequada ao actual estado físico de incapacidade para o trabalho da Autora.

3. Com efeito, ao decidir baixar a indemnização a título de perda de capacidade de ganho da Autora para a quantia de €.120.000,00 o acórdão recorrido não fez uma valoração plena dos factos que foram considerados como provados, aqui dados por reproduzidos para os devidos e legais efeitos,

4. nem valorou a circunstância objectiva da Autora se encontrar impedida, porque absoluta e permanentemente incapaz, de voltar exercer a sua profissão de enfermeira, sendo certo que a perda de capacidade de ganho da Autora é um dano patrimonial de per si.

5. Para além do mais, deveria o Tribunal da Relação de Lisboa ter considerado que a Autora, pelo facto de ter ficado absoluta e permanentemente incapaz para o exercício das suas funções de enfermeira, deixou de poder continuar a progredir na sua carreira profissional até atingir o seu topo,

6. bem como de usufruir dos correspondentes índices remuneratórios que acompanham a progressão da dita carreira de enfermagem até ao seu topo, plasmados, ao tempo do acidente de autos, pelo Decreto-Lei n.°437/91 de 8 de Novembro e, agora, pelo Decreto-Lei n.°248/2009 de 22 de Setembro,

7. remunerações estas que não foram tidas em conta no cômputo dos lucros cessantes pela perda de capacidade de ganho da Autora e que decorrem directamente do estatuto profissional desta como Enfermeira, sendo certo que tais remunerações atingem no topo o vencimento base mensal de €.2.849,22.

8. Assim, no cálculo da indemnização por danos patrimoniais, na vertente de lucros cessantes pela perda de capacidade de ganho da Autora, deveria o Tribunal da Relação de Lisboa ter em linha de conta, não só a remuneração que esta auferia à data do acidente dos autos, mas também a circunstância de ter ficado privada de progredir na sua carreira profissional e de receber os índices remuneratórios que acompanham a aludida progressão profissional.

9. Pelo exposto, entendemos, com o devido respeito, que o Tribunal da Relação de Lisboa, não valorou na sua plenitude os factos considerados como provados e a sua relação com a circunstância da Autora ter ficado privada, em virtude do acidente dos autos, de progredir na sua carreira profissional e de receber os índices remuneratórios que acompanham a referida progressão profissional, que atingem no topo da carreira, como Enfermeira-Supervisora, o vencimento base mensal de €.2.849,22.

10. Ao decidir como decidiu entendemos que o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa violou, entre outros, os artigos 483.°, 562.° e 564.° todos do Código Civil (…).”

H) A Ré/Recorrida apresentou contra-alegações, batendo-se pela confirmação do acórdão recorrido.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTAÇÃO

1. Objecto do recurso

Vistas as Conclusões da Recorrente, o recurso está delimitado a apreciar a dimensão quantitativa da indemnização fixada a título de “perda de capacidade de ganho”, pelo facto ilícito, culposo e danoso do qual resulta para a Recorrida, enquanto seguradora, a obrigação indemnizatória nesse segmento de prejuízos.

A única questão a decidir é, assim, a de saber se a decisão recorrida fez ou não a justa aplicação do direito, adoptando a correta interpretação da lei vigente em sede de equidade como critério de julgamento permitido pelo art. 566º, 3, do CCiv., em conjugação e para concretização dos arts. 483º, 562º e 564º do CCiv., quando reduz para € 120.000,00 o valor que a esse título fora decretado pela sentença de 1.ª instância (€ 499.618,12), considerado como justo pela Recorrente lesada para indemnização a fixar a título de “perda de capacidade de ganho”. Em síntese: a definição do “quantum” indemnizatório dessa perda.

2. Factualidade
2.1. Em razão da decisão do acórdão aqui recorrido, consideram-se provados os seguintes factos, tendo em conta a alteração do facto 50. e a eliminação do facto 52. pelo acórdão recorrido:
1- AA, aqui A., nasceu no dia …197….
2- O veículo ligeiro de passageiros de matrícula -VO, conduzido pelo proprietário, CC, encontrava-se à data do embate segurado na R., pela apólice n°....
3- Na sequência do embate, o veículo ligeiro de passageiros de matrícula -ZX, da marca …, modelo …, propriedade da A., ficou totalmente destruído.
4- A R., BB, SA. comunicou à A., após vistoria, que não era viável proceder-se à reparação do veículo, declarando a "Perda Total" do mesmo, pelo que após, "consulta ao mercado da especialidade" e da "consulta às tabelas de desvalorização em uso nesta Companhia", a R. reconheceu que o valor do veículo da A., à data do embate, ascendia à quantia de €9.843,00, conforme carta enviada pela R..
5- A A. é uma funcionária pública adstrita à Caixa Geral de Aposentações.
6- No local do embate existem marcas rodoviárias consistentes em linhas descontínuas separadoras de vias de trânsito e linhas guias (Marca Ml9) delimitadoras da parte da via pública especialmente destinada ao trânsito de veículos.
7- O relatório da autópsia de CC determinou, através de colheita sanguínea da artéria femural do acidentado, uma taxa de 2,52 g/lt de álcool etílico.
8- No dia 18 de Maio de 2008, pelas 23h50, na Estrada Regional ..., freguesia ...(...), concelho de ..., ocorreu um embate entre o veículo ligeiro de passageiros matricula -ZX, de propriedade e conduzido pela A., e o veículo ligeiro de passageiros matricula -VO, de marca ..., modelo ..., de propriedade e conduzido por CC, que veio a falecer na sequência e no local do acidente.
9-  A Estrada Regional ..., freguesia ...(...), concelho de ..., no local onde se deu o embate, é composta por quatro faixas de rodagem, das quais duas delas são de sentido de trânsito único na direcção poente/nascente (…) e as outras duas são de sentido de trânsito único na direcção nascente/poente (…).
10-  As faixas de rodagem encontram-se delimitadas entre si por um separador metálico, que divide os sentidos de trânsito.
11- A velocidade máxima permitida no local é de 100Km/h.
12- Esta estrada tem boa iluminação pública.
13- Na ocasião, a A. conduzia o seu veículo ligeiro de passageiros pela Estrada Regional ..., freguesia … (...), concelho de ..., no sentido de trânsito único poente/nascente, (…).
14- O piso encontrava-se seco e em boas condições.
15- A A. foi surpreendida pela presença do veículo -VO, conduzido por CC, que circulava, na mesma faixa de rodagem por onde ela seguia, mas no sentido nascente/poente (…).
16- O qual embateu com a sua frente na frente do veículo conduzido pela A. que, dada a absoluta imprevisibilidade de tal circulação, não conseguiu evitar o embate.
17- 0 condutor do veículo -VO entrou por acesso proibido na dita Estrada Regional ..., onde circulou até embater na autora.
18- Em virtude da violência do embate, a A. sofreu múltiplos traumatismos, dores e sangrou abundantemente, tendo perdido, de seguida, os seus sentidos, pelo que foi prontamente transportada de ambulância para os Serviços de Urgência do Hospital do ..., em ....
19- Deu entrada nos Serviços de Urgência do Hospital do ..., em ..., no dia … de Maio de 20…., pelas OOhlO, em estado de coma (Glasgow 5/15), politraumatizada, e com escoriações múltiplas na face, tórax, membros superiores e inferiores.
20- A A. foi sedada e analgesiada, tendo sido efectuada entubação Orotraqueal e ventilação mecânica.
21- Após a A. ter sido submetida a exames de RX, TC crânio e torácico foi constatado pela equipa médica que apresentava, entre outras, as seguintes lesões físicas:
- traumatismo craneo-encefálico;
- fratura diafise do úmero esquerdo;
- fratura do cúbito direito com luxação da cabeça do rádio;
- luxação do cotovelo direito com fratura o olecraneo;
- fratura diafise do fémur direito;
- fratura dos ossos da perna direita;
- fratura do côndilo ocipital direito;
- HSA ténue com pequena quantidade de líquido no IV ventrículo;
- edema cerebral moderado;
- contusão pulmonar bilateral, com múltiplas fraturas de costelas.
22- A A. foi então submetida a cirurgia de urgência, tendo-se efectuado:
-   no joelho esquerdo: desbridamento, lavagem e sutura de tendão rotuliano, imobilização com tala cruro-pediosa;
- na perna direita: osteotaxis com fixadores externos AO e sutura de ferida de maleolo interno;
- na coxa direita: osteotaxis com fixadores externos AO;
- no braço esquerdo: Imobilização com tala em U - tala gessada braqui-palmar;
- no cotovelo direito: encavilhamento intramedular do cúbito com dois fios Kirschner e um fio a fixar a tacícula radial.
23- Após a cirurgia de urgência, a A. ficou internada, durante três semanas, na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital do ... de ..., tendo permanecido em ventilação mecânica contínua desde o dia 19.5.2008 até o dia 10.6.2008 (o que corresponde a 696 horas de ventilação mecânica contínua).
24- Data em que foi submetida a traqueostomia.
25- Em 5.6.2008 a A. foi novamente submetida a intervenção cirúrgica por ortopedia, tendo-se efectuado:
- EMOS de fixadores externos e encavilhamento AO rimado estático (13-345) da fratura dos ossos da perna direita;
- EMOS de fixadores externos e encavilhamento AO rimado não aparafusado (12/420) de fratura diafisária do fémur direito;
- encavilhamento não rimado UHN® (6.7/270);
- submissão de terapêutica antibiótica dirigida.
26- Durante o seu internamento no HDES de ..., a A. teve uma evolução favorável, não obstante ter sido objecto das seguintes complicações:
- pneumonia nosocomial por Staphylococcus aureus;
- paralisia da corda vocal direita;
- infecção urinária a Klebesiella pneumonia e Proteus mirabilis;
- quadro de diplopia (observada por oftalmologia e Neurocirurgia).
27- A A. teve alta hospitalar no dia 25.7.2008, com referenciação à consulta de ortopedia, e de urologia, com a seguinte medicação:
- Bactrim forte 1 cp de 12/12 horas;
- Tramadol 50 mg em sos;
- Cipralex 1 cp/dia;
- Lyrica® 50 mg bem como[, com] a submissão a Programa de Reabilitação funcional.
28- Durante o seu período de internamento no Hospital do ... de ..., a A. foi submetida a diversos exames, tais como, tomografia axial computorizada da cabeça (20.5.2008 e 23.5.2008); tomografia axial computorizada do tórax (23.5.2008); tomografia axial do abdómen (23.5.2008);
29- Foi submetida a tratamentos e procedimentos médicos, nomeadamente, entubação NCOP do trato respiratório (19.5.2008); ventilação mecânica contínua por 696 horas; cateterização arterial femural esquerda (19.5.2008); cateterização venosa NCOP na jugular direita (19.5.2008); traqueostomia temporária; inserção de cateter no canal medular p/infusão subst. Terap./paliat. (6.6.2008);
30- Foi submetida a transfusão de sangue e componentes sanguíneos (6.6.2008);
31 - Actualmente, a A. queixa-se de dores, fadiga e fraqueza nos membros inferiores, o que lhe provoca dificuldade na marcha;
32- Está impossibilitada de correr;
33- Na sequência do acidente, e tendo em consideração as diversas especialidades


clínicas, a A. foi observada em 17.6.2010, onde se notou o seguinte quadro clínico: cotovelo direito: Rx mostra pseudartrose do cúbito Extensão - 3
o Flexão 120°; cotovelo esquerdo: Extensão-25° Flexão 120° Rx do braço esquerdo bem; joelho esquerdo: Extensão 0o Flexão 100; joelho direito: Joelho valgo Flexão 120° Extensão 0o Rx tíbia direita bem; anca direita: Rx fémur direito bem Rotação externa e rotação interna limitada e dolorosa. Abdução anca bem. Adução limitada;
34- Por apresentar alguma reacção (dolorosa) ao material de osteossíntese está em lista de espera para remoção do referido material;
35- A A. foi observada em 5.7.2010 e apresentava o seguinte historial e quadro clínico: na sequência de traumatismo crânio-encefálico grave (Escala de Comas de Glasgow 5 à entrada), com hemorragia subaracnoideia e fratura do côndilo occopital direito; fractura - luxação do cotovelo direito; fracturas do úmero esquerdo e do fémur e tíbia direitos; rotura do tendão rotuliano, foi necessário internar a A. em Unidade de Medicina Intensiva, em ventilação mecânica e de submeter a intervenções cirúrgicas ao úmero esquerdo e fémur e tíbia direitos; para além de problemas osteoarticulares e neuromusculares, condicionando o desempenho motor, equilíbrio, marcha e autonomia, apresentava após a extubação alterações na fala e disfagia em relação com parésia da corda vocal direita. Por estes motivos a Autora cumpriu programa de reabilitação (Serviço de Medicina Física e de Reabilitação) com tratamentos de Fisioterapia, Terapia da Fala e Terapia Ocupacional, no decurso de um período de cerca de 10 meses;
neste momento a A. apresenta como principais problemas/sequelas: episódios esporádicos de diplopia; episódios pontuais de disfagia para líquidos; défice global de força muscular, ligeiro (globalmente grau 4 na Escala MRC), mais notório nos estabilizadores da bacia; dismetria dos membros inferiores (encurtamento do membro inferior direito de cerca de 2 cm); dor com ritmo mecânico na coxofemural e tibiotársica direitas; desequilíbrio ortostático com alguns episódios de quedas; limitações dos arcos de movimento de algumas articulações: flexo dos cotovelos (direito 10°, esquerdo 40°); flexão máxima dos joelhos nos 110°;
a A. cumpre presentemente programa de reforço muscular dos estabilizadores da bacia e treino propriocetivo dos membros inferiores no Serviço de MFR do HDES, e foi-lhe recomendada a prática de exercício físico em meio aquático, que cumpre no exterior (hidroginástica e natação);
36- A A. foi observada em 17.9.2010 e apresentava o seguinte o seguinte historial e quadro clínico:
“A A. é seguida na Consulta de Neurologia do Hospital do ... de ..., por quadro pós-traumático sequelar grave de ataxia da marcha, hiperreflexia generalizada e clono bilateral dos pés com limitação nas actividades de vida diária e quadro álgico severo;
A A. apresenta quadro depressivo reactivo ao acidente e à incapacidade por ele gerada”;
37- A A. foi observada em 10.12.2010 e apresentava o seguinte o seguinte historial e quadro clínico:
“A A. foi observada até ao momento em duas consultas de Urologia, nos dias 13.10.2009 e 8.1.2010. Recorreu a esta consulta por quadro clínico caracterizado por infecções urinárias de repetição identificadas por urocultura, associadas a marcadas queixas do trato urinário baixo (disúria e incontinência urinária de urgência);
Como antecedentes pessoais importantes, é de referir acidente de viação em Maio de 2008 resultando em politraumatismo com internamento prolongado na Unidade de Cuidados Intensivos e Serviço de Ortopedia;
Do estudo realizado no âmbito da avaliação urológica, destaca-se urocultura a 15.10.2009, que isolou E Coli; ecografia renal e vesical realizada também em Outubro 2009, que não revelou alterações significativas; e estudo urodinâmico efectuada a 15.12.2009 que não revelou alterações patológicas quer na fase de enchimento, quer na fase de esvaziamento;
O tratamento feito consistiu na antibioterapia dirigida por teste de sensibilidade realizado na urocultura e tratamento sintomático das queixas urinárias irritativas”;
38- A A. foi observada em 1.10.2010 e apresentava o seguinte o seguinte historial e quadro clínico:
“A A. foi submetida traqueotomia, com fixação lateral dos retalhos. Verificou-se uma paralisia da corda vocal direita, tendo sido enviada para terapia da fala recuperando parcialmente a voz”;
            39-A A. foi observada em 3.11.2010 e apresentava o seguinte quadro clínico:
            Doente com história de acidente de viação em 2008. Desde então apresenta diplopia binocular intermitente:
Movimentos oculares VODsc=10/10
VOEsc=10/10;
40- A A. foi observada em 4.6.2010 e apresentava o seguinte o seguinte historial e quadro clínico:
A A. tem sido observada em consultas regulares na Unidade de Dor, referindo que mantinha fisioterapia para reforço muscular e apoio de Psicóloga;
Fez uma tentativa de redução da medicação analgésica e antiepiléptica e apresentou agravamento de dor neuropática, e agravamento do quadro depressivo por recear grave incapacidade. Foi alertada para a necessidade de um acompanhamento regular e a fazer correlacionar os esforços com a reserva funcional que for apresentando, além da manutenção de terapêutica crónica e do exercício progressivo adaptado ao aparecimento de dor;
Reiniciou analgésicos, ansiolíticos, antidepressivos, e aumentou a dose de anti-epiléptico;
Na última consulta, em Abril de 2010, apresentava a dor controlada, melhorou do quadro depressivo, e aparentava compreender o grau de incapacidade;
Ficou medicada com: Zaldiar® 1 a 2 comp, 3 vezes dia, Lyrica® 50 +100mg, Cymbalta® 60 lx dia, Sedoxil® lmg se necessário; fazia fisioterapia;
Em resumo, sofre de dor crónica, algum grau de incapacidade, agravada por componente ansioso e depressivo;
Não tolera esforços físicos acentuados;
Tem marcação de consulta regularmente para reavaliação periódica;
41- A A. foi observada em 6.1.2010 e apresentava o seguinte historial e quadro clínico:
A A. tem dispersas pelo tegumento cutâneo, no tronco membros superiores e membros inferiores, 23 cicatrizes (com 0,5 cm a 17 cm de diâmetro, sendo que tem cicatriz quelóide com 7 cm de diâmetro na face anterior da região cervical;
Tem quadro de perniose idiopática das mãos e dos pés, que se agravou após acidente;
42- A A. foi observada em 19.5.2010 e apresentava o seguinte o seguinte historial e quadro clínico:
A A. foi vítima de um grave acidente de viação que lhe provocou inúmeras feridas e coma. O processo de recuperação físico e psicológico tem sido longo e intenso, contudo, não será capaz de a fazer recuperar totalmente a sua vida diária dado o elevado número de sequelas deixadas;
Ao iniciar o processo de recuperação a A. deixou totalmente de se identificar com a sua personalidade anterior ao acidente, tendo necessidade de modificar o seu guarda-roupa uma vez que o mesmo nada lhe dizia questionando-se inclusivamente como é que tinha sido capaz de usar tais peças; outra alteração também verificada foi a sua atitude perante os outros, isto é, era uma pessoa tímida e reservada tendo passado a ser e agir como uma pessoa extrovertida, aberta e muito conversadora. Se nesta altura tal situação podia ter sido entendida como uma fase de euforia, as dúvidas foram dissipadas uma vez que a A. tinha um bom insight, tendo critica e consciência das alterações que lhe estavam a ocorrer assim como todas as mudanças que efectuava na sua vida, o que por vezes provocou-lhe momentos de grande confusão, ambivalência e angústia;
Tais alterações na sua personalidade implicaram alterações também nas pessoas que lhe eram mais chegadas e queridas, criando problemas a nível pessoal, conjugal, familiar e social;
A A. tem consciência das suas sequelas físicas verbalizando que reconhece que já não tem capacidade física para o exercício da sua profissão (enfermagem);
Relativamente à sua personalidade, comportamentos, cognições e emoções a A. tem vindo a aprender a lidar com as mesmas;
Neste sentido somos de opinião que a A. não reúne as condições mínimas e indispensáveis para o pleno exercício da sua profissão. No entanto, e tendo em atenção a sua idade e experiência de vida é importante que possa vir a ocupar o seu tempo com algum trabalho de voluntariado;
43- A A. exercia, até à data do acidente, as funções inerentes à categoria profissional de Enfermeira Graduada, pertencente ao quadro efectivo do Hospital do ... de ..., desde 30.8.2000 e no Serviço de Obstetrícia, desde o ano de 2003, auferindo o valor mensal bruto de 1 113,05 euros.
44- Na sequência do acidente ficou impossibilitada de exercer as funções apontadas, mantendo-se, contudo, vinculada à instituição Hospital do ... de ..., transitando em 1.1.2011 para a carreira especial de enfermagem, com a categoria de enfermeira, passando a auferir mensalmente a quantia bruta de 1 407,45 euros.
45- A A. padeceu de um Quantum Doloris fixável no grau 6 numa escala de 7 graus de intensidade crescente;
46- No que diz respeito ao dano estético, o mesmo é fixável no grau 4, numa escala de 7 graus de intensidade crescente;
47- Por junta médica de 4.9.2015 foi a A. considerada absoluta e permanentemente incapaz para o exercício das suas funções de enfermeira, contudo com capacidade para o exercício de outra profissão ou trabalho.
48- A A., antes do embate, era uma pessoa normal e saudável, não apresentando quaisquer queixumes de saúde;
49- Desenvolvia e executava, sem qualquer dificuldade, os trabalhos inerentes à sua profissão de Enfermeira Graduada no Hospital do ... de ... – Serviço de Obstetrícia, pela qual auferia o vencimento ilíquido mensal de 1.113,05 (mil cento e treze euros e cinco cêntimos);
50- As lesões físicas sofridas, cuja consolidação se verificou em 28 de Dezembro de 2011, determinaram-lhe um coeficiente global de incapacidade permanente geral de 53% e são incompatíveis com a sua profissão como enfermeira. (alterado)
51- A A., em razão do que está em 47. e por decisão da Caixa Geral de Aposentações de 30.9.2015 passou à situação de aposentação definitiva por invalidez auferindo, desde então, uma pensão mensal de 635,61 euros; também por despacho da Caixa Geral de Aposentações de 23.10.2015 foi fixada à autora uma pensão anual e vitalícia de 12 840,58 euros a que corresponde uma pensão mensal de 917,18 euros em consequência do sinistro aqui em causa que foi considerado de serviço.
52- (eliminado)
53- A A. necessita de cuidados médicos e medicamentosos de futuro;
54- Tais cuidados médicos e medicamentosos, traduzem-se no acesso a sessões de fisioterapia, de exercício físico em meio aquático (hidroginástica e natação), de sessões de terapia da fala (paralisia da corda vocal direita) e administração de medicamentos, bem como de nova cirurgia para remoção de material de osteossíntese;
55- Antes do acidente, a A. era uma pessoa saudável, alegre, divertida, sem defeito físico ou psíquico e sem sujeição a quaisquer medicamentos;
56- Passou por um longo período de tratamentos continuados no Hospital do ... de ...;
57- Aquando do seu internamento no HDES, a A. padeceu de intensas dores e incómodos diversos, na sequência dos tratamentos cirúrgicos de que foi alvo, onde se inclui a sua sujeição a duas intervenções cirúrgicas prolongadas;
58- Teve de permanecer deitada e absolutamente imobilizada, na sequência das profundas e graves lesões de que era portadora;
59- Ao regressar à sua residência a A. teve que permanecer acamada, o que lhe causou vários incómodos e dores no corpo, em virtude da imobilização que teve de cumprir, com vista à sua recuperação;
60- Deslocou-se para os Serviços de Medicina Física e Reabilitação do HDES a muito custo, onde teve de cumprir, pelo período de 10 meses, o programa de reabilitação prescrito;
61- Sempre acompanhada de intensas dores nas zonas das fraturas e incómodos diversos no seu corpo, com um Quantum Doloris fixado no grau 6 (seis);
62- Em face da gravidade das suas lesões, a A. ficou impossibilitada de desempenhar as suas funções de enfermeira graduada no serviço de obstetrícia do Hospital do ... de ..., serviço que gostava muito de desempenhar, não só pelo contacto que desenvolvia com as colegas de trabalho, mas sobretudo porque tinha a possibilidade de acompanhar as mulheres puérperas e os recém-nascidos, o que deixou a autora muito triste, angustiada e revoltada.
63- Passou a sofrer permanentemente de dores incapacitantes, necessitando de efectuar um esforço suplementar para realizar convenientemente as suas tarefas diárias;
64- A actual condição física de "deficiente" deixa a A. muito triste e revoltada, temendo pelo seu futuro;
65- A dismetria dos membros inferiores (encurtamento do membro inferior direito de cerca de 2 cm); dor com ritmo mecânico na coxofemural e tibiotársica direitas; o desequilíbrio ortostático com alguns episódios de quedas; Limitações dos arcos de movimento de algumas articulações: flexão dos cotovelos (direito 10°, esquerdo 40°); flexão máxima dos joelhos nos 110.°; quadro pós-traumático sequelar grave de ataxia da marcha, hiperreflexia generalizada e clon bilateral dos pés causam limitação nas actividades de vida diária e quadro álgico severo;
66- As mesmas originam que a A. tenha muita dificuldade em manter o equilíbrio da marcha, apresentando-se com marcha claudicante.
67- O dano estético deixa A. muito triste, angustiada e extremamente desgostosa.
68- Face às graves lesões que apresenta, a A. encontra-se impedida de exercer qualquer actividade física como, entre outras, correr ou nadar.
69- Não conseguindo caminhar, o que faz lentamente, por períodos não superiores a 10 minutos, face às dores de que padece.
70- A A. sente-se, assim, desde a data do acidente, quando apenas tinha 33 anos, diminuída fisicamente, com muita vergonha do seu corpo, refugiando-se permanentemente de o exibir.
71- Optando sempre por usar vestuário que lhe esconda o corpo.
72- O que a impede de se deslocar à praia, de vestir um bikini ou um fato de banho, sempre com medo e vergonha de exibir as suas cicatrizes.
73- O que lhe provoca intenso nervosismo, angústia, tristeza, revolta e, mais grave, muito insegura e receosa quanto à sua saúde futura, temendo o agravamento do seu estado incapacitante;
74- A A. chora amiúde, em face da sua actual condição física, que a impede de concretizar os seus objectivos profissionais e os seus sonhos pessoais.
75- A A. deixou de se sentir fisicamente atraente, tendo vergonha de exibir o seu corpo.

2.2. Consideraram-se não provados os seguinte factos:

76- Que na ocasião referida em 13 a A. seguisse na faixa de rodagem da direita e a uma velocidade de cerca de 90 km/h.
77- Que na ocasião referida em 15 o condutor do veículo -VO seguia a uma velocidade de 130Km/h.
78- Que o que consta de 17 sucedeu após o respectivo condutor ter circulado na Rua …, freguesia de ..., no sentido sul/norte.
79- Que havia dois sinais de indicação de sentido proibido de trânsito existentes no referido acesso (Sinal de Trânsito Cl).
80- A A. abstém-se de manter relações sexuais com o seu marido.
81- Sentindo, por este facto, um profundo desgosto por ter deixado de usufruir de uma vida sexual saudável e completa.
82- O veículo -ZX foi removido, não se encontrando na posição final após o acidente.
83- O segurado da R., CC, tinha uma taxa de alcoolemia de 2,52 g/lt, quando conduzia o veículo de matrícula -VO.

3. O direito aplicável

3.1. A decisão recorrida julgou o montante indemnizatório pedido pela Autora/Recorrente para efeito de ressarcimento da “perda da capacidade de ganho”, enquanto consequência do facto lesivo – o acidente de viação da responsabilidade do segurado da Ré/Recorrida e a ulterior incapacidade funcional permanente para o exercício da sua profissão de enfermeira e interrupção definitiva da sua carreira laboral pública. É a sua justeza que deve ser aferida neste recurso.

O relevo indemnizatório dessa “perda” (como dano patrimonial) tem sido tipicamente absorvido, nos casos como o dos autos, na autonomização (nomeadamente de responsabilidade jurisprudencial) do chamado “dano biológico” ou “corporal”, enquanto lesão da saúde e da integridade psico-somática da pessoa, imputável ao facto gerador de responsabilidade civil delitual e traduzida em incapacidade funcional limitativa e restritiva das suas qualidades físicas e intelectuais de vida. Como se tem feito entendimento neste STJ, não se trata de uma espécie de danos que se configure como um tertium genus na dicotomia danos patrimoniais vs danos não patrimoniais; antes permite delimitar e avaliar os efeitos dessa lesão – em função da sua natureza, conteúdo e consequências, tendo em conta os componentes de dano real – enquanto dano patrimonial (por terem por objecto um interesse privado susceptível de avaliação pecuniária), por um lado, ou dano moral ou não patrimonial (por incidirem sobre bem ou interesse insusceptível, em rigor, dessa avaliação pecuniária e plasmando-se, como utilidade essencial, na clarificação de danos “para além das dores e do sofrimento”[1])[2].
Quando a vertente patrimonial do dano biológico se convoca, tem a virtualidade de ressarcir não só (i) as perdas de rendimentos profissionais correspondentes à impossibilidade de exercício laboral e/ou económico-empresarial e as frustrações de proveitos existentes à data da lesão (ponderadas até um certo momento de vida activa), mas também (ii) a privação de futuras oportunidades profissionais e o esforço acrescido de reconversão (enquanto determinado pela incapacidade resultante da lesão) para o exercício profissional[3] – num caso e noutro, danos patrimoniais futuros previsíveis, na variante de “lucros cessantes” (arts. 562º, 564º, 1 e 2, CCiv.). 
Neste contexto de dualidade ressarcitória, o dano biológico sofrido pela Autora foi apreciado na sua vertente patrimonial, enquanto “perda de capacidade de ganho”. Os danos que a decisão recorrida designou como “perda de capacidade de ganho” cabem no âmbito de causalidade e de previsibilidade tipicamente associados ao acidente que a autora sofreu e às suas circunstâncias de evolução normal de vida.

3.2. A decisão em revista, ao fixar (reduzindo muito substancialmente em relação ao valor arbitrado em 1.ª instância) o valor de € 120.000 para indemnizar essa “perda de capacidade de ganho”, considerou como elementos para esse cálculo os seguintes fatores:
— a idade da lesada (33 anos) e a profissão de enfermeira graduada à data do acidente;
— o vencimento mensal ilíquido (em rigor, a sua remuneração-base, sem contar com subsídio de refeição, suplementos e remuneração por “horário acrescido” e “horas extraordinárias”: cfr. fls. 116 e ss, 734) à data do acidente;
“após períodos de incapacidades temporárias, as suas lesões, consideradas incompatíveis com a sua profissão de enfermeira, consolidaram-se em 28/12/2011, passando então a ficar com uma incapacidade permanente geral de 53%”.
Sem prejuízo, ponderou-se ainda:
— a manutenção do  vínculo com o hospital onde trabalhava, transitando para a carreira especial de enfermagem, tendo passado a auferir o vencimento mensal ilíquido de 1 407,45 euros (mais uma vez, tratar-se-á a remuneração-base: cfr. fls. 735) a partir de 1/1/2011;
— a confirmação por junta médica, em Setembro de 2015, do seu estado de absoluta e permanentemente incapacidade para o exercício das suas funções como enfermeira, mas com capacidade para o exercício de outra profissão ou trabalho, tendo-lhe sido fixada uma pensão anual e vitalícia de 12 840,58 euros a partir de Outubro de 2015.
Daqui partiu para o seguinte juízo:
“Deste modo, são os danos futuros da autora parcialmente determináveis, pois em 2015, quando tinha 41 anos, o seu rendimento anual de 19 704,30 euros (1 407,45x14) passou a ser de 12 840,58 euros, ou seja, o seu rendimento anual passou a ser menos 6 863,72 euros. Como a pensão que lhe foi fixada é vitalícia, deverá considerar-se esta diferença até à idade da reforma, num período de 25 anos (66 anos–41 anos), pelo que está demonstrado que, devido ao acidente dos autos, a autora vai deixar de auferir a quantia de 171 593,00 euros até aos 66 anos (6 863,72x25 anos).”
Mais referiu que:
“Haverá que ter em conta, por um lado, que o capital a receber pela autora não deve representar um enriquecimento injustificado devido ao seu recebimento antecipado, devendo o mesmo sofrer uma redução, mas, por outro lado, não poderá deixar de se atender ao facto de, independentemente de haver ou não perda de rendimentos, se dever considerar sempre a incapacidade permanente geral para outros trabalhos como um dano autónomo, que, no caso da autora[,] é de 53%”.

            A Recorrente não se resigna com esta forma de cálculo, uma vez que não se valorou:

            — a incapacidade definitiva de exercício da anterior profissão de enfermeira, numa argumentação que nos remete para a perda de oportunidade profissional;

— a impossibilidade consequencial de progressão até ao topo nessa carreira de enfermagem, com a ablação dos correspondentes índices remuneratórios que acompanhariam essa progressão.

A Recorrida, por sua vez, no intuito de sufragar o entendimento do acórdão recorrido, alegou, para além da desconsideração do argumento da progressão na carreira e a sua elevação remuneratória, que, ainda assim, a Autora saíra beneficiada: “É que, efetivamente, a diferença entre o rendimento mensal auferido pela A. ora recorrida à data do acidente e o rendimento mensal atual é de apenas € 195,87 mensais, o que corresponde à perda de ganho efetivo sofrido pela recorrida. Mais, o TRL foi ainda benigno para a A. ao não ter presente um outro critério importante fixado pela jurisprudência. É que aos montantes indemnizatórios há que deduzir as despesas decorrentes do exercício da profissão (deslocações para e de o trabalho, formação profissional) que a autora ora recorrida deixará de realizar. Assim, o montante indemnizatório que deveria ter sido fixado num montante máximo de € 44.000,00. É que tendo em conta a idade ativa da A. ora recorrida de mais 23 anos, a perda de rendimentos de apenas 195,87 €, verifica-se que o montante máximo perdido pela A. ao longo deste período de tempo é de 63070,00 €”.
Mesmo que precedido de cálculos objectivos para as perdas remuneratórias resultantes da incapacidade permanente resultante do facto lesivo, foi com recurso à equidade que o Tribunal da Relação, aqui escrutinado, fixou a final o montante indemnizatório colocado em crise pela Recorrente, por pecar por defeito, para superior apreciação do STJ.


3.3. O art. 564º do Código Civil preceitua: «1. O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, mas também os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão. / 2. Na fixação da indemnização pode ainda o tribunal atender aos danos futuros, desde que previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior.»
A obrigação de indemnização, enquanto sanção do preenchimento dos requisitos da responsabilidade civil extra-negocial prescrita no art. 483º, 1, do CCiv. – que não se discutem na presente revista –, «deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação» (art. 562º do CCiv.). A indemnização tem por escopo reconstituir a situação hipotética que existiria não fora a lesão sofrida, no caso sub judice a lesão resultante do acidente de viação, causa de graves e prolongadas consequências para a lesada Recorrente. Não sendo isso possível ou quando a reconstituição natural não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor, deve a indemnização ser fixada em dinheiro, tal como prescreve o art. 566º, 1, do mesmo CCiv. Como salvaguarda da fixação do dano de cálculo (“o valor, expresso numa soma de dinheiro, do prejuízo efectivamente sofrido pelo lesado”[4]), não sendo possível averiguar esse valor exacto, o tribunal julgará segundo a equidade e dentro dos limites considerados provados – art. 566º, 3, CCiv. Esta salvaguarda é premente no caso dos danos patrimoniais futuros, campo por excelência da susceptibilidade de indemnização dos “lucros cessantes” ou “frustrados” previstos no art. 564º, 1, 2ª parte, do CCiv., isto é, os benefícios que o lesado deixa de obter por causa do facto ilícito, mas a que não tinha direito à data da lesão[5].

Como se pode ter como consensual, nesta sede “a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça deve reservar-se à formulação de um juízo crítico de proporcionalidade dos montantes decididos em face da gravidade objetiva e subjetiva dos prejuízos sofridos (…). A sua apreciação cingir-se-á, por conseguinte, ao controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado”[6].
O caminho a seguir com este critério-matriz de controlo judicial não é, contudo, linear perante as especificidades correspondentes ao arbitramento do montante indemnizatório para reparação dos danos resultantes da perda associada ao dano biológico. O desafio no julgamento é a procura do acerto no contexto de uma margem de discricionariedade que assiste ao julgador, devidamente assistida por critérios jurisprudenciais que concretizem a segurança na aplicação do direito e não se fundem apenas em procedimentos objectivos (cálculos financeiros, tabelas financeiras, aplicação de tabelas[7], etc.), mesmo que esses não deixem de ter valor auxiliar e indicativo na ponderação tendente ao arbitramento indemnizatório.
De acordo com a síntese feita pelo recente Ac. do STJ de 19/6/2019[8], com recurso ao elenco pertinente de arestos relevantes, a atribuição de indemnização por perda de capacidade de ganho/dano biológico patrimonial, segundo um juízo equitativo, tem-se baseado em função dos seguintes factores principais: a idade do lesado; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho, antes da lesão, tanto na profissão habitual, ou previsível profissão habitual, como em profissão ou actividade económica alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações; a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, ou da previsível actividade profissional habitual do lesado, assim como de actividades profissionais ou económicas alternativas, tendo em consideração as competências do lesado.
Na mesma decisão do STJ, reitera-se o que há muito se refere na jurisprudência: a indemnização para reparação da perda da capacidade futura de ganho deve apresentar como conteúdo pecuniário “um capital produtor do rendimento que o lesado deixará de perceber em razão da perda da capacidade aquisitiva futura e que se extingue no termo do período de vida, atendendo-se, para o efeito, à esperança média de vida do lesado”, sem deixar de “considerar a natural evolução dos salários”. Neste âmbito, será de entender como relevante o valor líquido da remuneração auferida pelo lesado, uma vez que tal corresponde em rigor à aplicação da teoria da diferença consagrada no art. 566º, 2, do CCiv. e “não deve prescindir do que é normal acontecer (id quod plerumque accidit) no que se refere à expectativa média de vida (…) e ao período de vida ativa (em regra, até aos 70 anos), bem como à natural progressão na carreira e ao previsível impacto na massa salarial a receber”[9].
Por fim, é ainda de registar que, “ponderando-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros”, importa “introduzir um desconto no valor achado, condizente ao rendimento de uma aplicação financeira sem risco, e que, necessariamente, deverá ser tida em consideração pelo tribunal que julgará equitativamente”[10]. No entanto, como se advertiu no Ac. do STJ de 19/4/2018, “o recebimento de uma só vez do montante indemnizatório não releva atualmente como em tempos não muito recuados já relevou, tendo em conta que a taxa de juro remuneratório dos depósitos pago pelas entidades bancárias é muito reduzido (…), o que implica, por si só, a elevação do capital necessário para garantir o mesmo nível de rendimento”[11].

3.4. Confrontados com o dissenso das instâncias, interessa destacar, acentuando ou acrescentando ao juízo do acórdão recorrido, para o cálculo do quantum indemnizatório em discussão:
(i) comprovou-se um défice funcional permanente de 53 pontos,  cuja consolidação se verificou em 28 de Dezembro de 2011 e determinou a incompatibilidade para o exercício da profissão de enfermeira (cfr. facto provado 50.);
(ii) comprovou-se a incapacidade absoluta e permanente da lesada para o exercício das funções de enfermeira em 4 de Setembro de 2015, tendo a lesada então 41 anos, ainda que sem obstar à prática de outra profissão ou trabalho (cfr. facto provado 47.);
(iii) depois de todas as intervenções, exames e tratamentos médico-cirúrgicos feitos ao longo de vários anos (cfr. factos provados 18. a 30., 33. a 42., 56. a 58., 60.-61.), nos quais ressalta a extrema gravidade das lesões, os dolorosos procedimentos e os longos períodos de clausura hospitalar, a lesada apresenta “limitação nas actividades de vida diária e quadro álgico severo” (facto provado 76.), “queixa-se de dores, fadiga e fraqueza nos membros inferiores, o que lhe provoca dificuldade na marcha” (facto provado 31.) e “encontra-se impedida de exercer qualquer actividade física como, entre outras, correr ou nadar” (facto provado 68.), destacando-se cronologicamente por último o quadro clínico descrito no ponto 76. da matéria de facto provada: “A dismetria dos membros inferiores (encurtamento do membro inferior direito de cerca de 2 cm); dor com ritmo mecânico na coxofemural e tibiotársica direitas; o desequilíbrio ortostático com alguns episódios de quedas; Limitações dos arcos de movimento de algumas articulações: flexão dos cotovelos (direito 10°, esquerdo 40°); flexão máxima dos joelhos nos 110.°; quadro pós-traumático sequelar grave de ataxia da marcha, hiperreflexia generalizada e clon bilateral dos pés”;
(iv) o grau de probabilidade de manutenção e agravamento das sequelas produzidas, tendo em conta a idade à data do acidente (33 anos) e o termo da sua vida activa e a idade correspondente à esperança média de vida dos cidadãos nacionais do sexo feminino nascidos em 1974 (segundo a base de dados PORDATA, é de 71,4 anos[12]); tanto mais que é equilibrado e ponderado entender que será mais próximo desse termo do período de vida que mais provavelmente os condicionamentos, dependências, restrições e necessidades, relacionados com as lesões e suas sequelas (cfr. factos provados 53. e 54.), mais se acentuarão, o que permitirá reconstituir com maior fidedignidade a situação a reconstituir se não se tivesse verificado o evento lesivo[13];
(v) a atribuição da pensão por “aposentação definitiva” por invalidez e da pensão de “sobrevivência” pelo acidente em serviço (€ 635,61, mensal ilíquido), acrescida da atribuição de pensão anual vitalícia de € 12.840,58 (mensal = € 917,18), compensam a perda total de rendimentos como enfermeira (cfr. facto provado 51.), razão pela qual a fórmula matemática usada pelo acórdão recorrido, sendo adequado no seu uso a remuneração à data do atestado de incapacidade e da aposentação (e disponível desde 2011) e não à data do acidente (cfr. factos provados 44. e 47), é um indicador razoável (mas não esgotante) para a justa e ponderada indemnização[14];
(vi) por seu turno, também é de julgar que o cálculo dos valores em perda, referidos a 2015, não consideram a previsível progressão remuneratória da carreira pública em que a lesada se integrava, o que necessariamente afecta em baixa o valor comparativo a que chegou o acórdão recorrido, tendo em conta o impacto na massa salarial a receber na progressão normal se imune ao acidente lesivo;
(vii) a incapacidade total e definitiva para o exercício da anterior profissão de enfermeira – cujas consequências a Recorrente pugna por uma superior tradução indemnizatória –, em conjugação com a idade e as exigências actuais de recrutamento do mercado de trabalho, não deixam de fazer antever um juízo de prognose reservado quanto à obtenção de emprego ou início de nova carreira profissional ou empresarial, ainda que noutro ramo de actividade, mesmo que conexo com a área da saúde, nomeadamente com a estabilidade que o vínculo existente à data do acidente proporcionava à lesada; assim, a ponderação casuística do julgador não pode ignorar a privação de futuras oportunidades profissionais assim como o esforço acrescido de reconversão profissional que o relevante grau de incapacidade irá envolver para o desempenho de quaisquer outras tarefas (desde logo limitadas pelas restrições de ordem física) e consequente realização pessoal da lesada, ainda para mais sendo previsível (pelo menos numa primeira fase) que tais tarefas possam ocasionar perda de rendimentos em comparação com os auferidos à data do decretamento da incapacidade permanente; com efeito, “a perda relevante de capacidades funcionais (…) constitui uma verdadeira «capitis deminutio» num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades de exercício profissional (…), eliminando ou restringindo seriamente a carreira profissional expectável – e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à sua disposição –, erigindo-se, deste modo, em fonte actual de possíveis e futuramente acrescidos lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais”[15]; por outras palavras e palavras conclusivas para o que aqui interessa, deverá aditar-se ao lucro cessante, decorrente da perda de remunerações, uma quantia que, em adição ou complemento, constitua justo ressarcimento de uma outra manifestação do dano biológico, que traduz essa privação de futuras oportunidades profissionais e o esforço acrescido para o exercício de nova vida profissional. 

Confrontada a factualidade ponderada com os critérios e factores elencados, é de reconhecer, nomeadamente atenta a diferença significativa dos valores encontrados entre a 1.ª instância e a Relação, que, como se salientou na nossa jurisprudência[16], o valor mais ou menos estático da aplicação de tabelas e fórmulas “terá de ser temperado através do recurso à equidade – que naturalmente desempenha um papel corrector e de adequação do montante indemnizatório às circunstâncias específicas e à justiça do caso concreto, permitindo ainda a ponderação de variantes dinâmicas que escapam, em absoluto, ao referido cálculo objectivo: evolução provável na situação profissional do lesado, aumento previsível da produtividade e do rendimento disponível e melhoria expectável das condições de vida, inflação provável ao longo do extensíssimo período temporal a que se reporta o cômputo da indemnização (e que, ao menos em parte, poderão ser mitigadas ou compensadas pelo «benefício da antecipação», decorrente do imediato recebimento e disponibilidade de valores pecuniários que normalmente apenas seriam recebidos faseadamente ao longo de muitos anos, com a consequente possibilidade de rentabilização imediata em termos financeiros).”
Tudo ponderado, incluindo o contexto comparativo das decisões jurisprudenciais em matéria de danos causados por acidentes de viação, afigura-se-nos acertado fixar o montante indemnizatório de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros) para ressarcir os prejuízos sofridos pela Recorrente quanto à perda de capacidade de ganho/dano biológico patrimonial. Dá-se, assim, provimento parcial à revista.  

III. DECISÃO

Nesta conformidade, acorda-se em julgar a revista parcialmente procedente, alterando o acórdão recorrido e condenando a Ré a pagar à Autora a quantia de € 250.000,00, a título de indemnização pelo dano patrimonial resultante de capacidade de perda de ganho/dano biológico.

*
Custas pela Recorrente e pela Recorrida na proporção do respectivo decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

STJ/Lisboa, 29 de Outubro de 2019

Ricardo Costa (Relator)

Assunção Raimundo


Ana Paula Boularot

Sumário (arts. 663º, 7, 679º, CPC)

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[1] Assim, MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Lições de responsabilidade civil, Principia, Cascais, 2017, pág. 341.
[2] V., na doutrina e com diálogo jurisprudencial até à data do escrito, MARIA DA GRAÇA TRIGO, “Adopção do conceito de “dano biológico” pelo direito português”, ROA, Ano 72 – Vol. I, Jan.-Mar. 2012, págs. 161-162, 167-169, 177.
Para exemplo judicativo desse entendimento, socorremo-nos ilustrativamente do Ac. do STJ de 27/10/2009, processo n.º 560/09.0YFLSB, Rel. Sebastião Póvoas, in www.dgsi.pt: “o chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral. A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão originou, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade” (sublinhado nosso).
[3] Assim: Acs. do STJ de 10/11/2016, processo n.º 175/05.2TBPSR.E2.S1, Rel. Lopes do Rego, in www.dgsi.pt – “Não parece efectivamente que a vertente patrimonial da figura do dano biológico – consistente essencialmente em determinar em que medida é que, para além da perda efectiva de rendimentos ocorre também a perda de chance profissional como consequência das sequelas das lesões sofridas – se possa cindir ou autonomizar totalmente da quantificação do dano patrimonial futuro – sendo este precisamente o resultado da adição ou soma dos prováveis rendimentos profissionais futuros perdidos, face ao grau de incapacidade que afecta permanentemente o lesado, e da perda inelutável de oportunidades profissionais futuras, inviabilizadas irremediavelmente pelas limitações físicas de que passou a padecer de modo definitivo. E, assim sendo, considera-se que, ao avaliar e quantificar o dano patrimonial futuro, pode e deve o tribunal reflectir também na indemnização arbitrada a perda de oportunidades profissionais futuras que decorra do grau de incapacidade fixado ao lesado, ponderando e reflectindo por esta via na indemnização, não apenas as perdas salariais prováveis, mas também o dano patrimonial decorrente da inevitável perda de chance ou oportunidades profissionais por parte do lesado.” (antes, com o mesmo Rel., o Ac. de 10/10/2012, processo n.º 632/2001.G1.S1, in www.dgsi.pt) –, e de 19/4/2018, processo n.º 196/11.6TCGMR.G2.S1, Rel. António Piçarra, in www.dgsi.pt (“A vertente patrimonial do dano biológico tem como base e fundamento a substancial e relevante restrição às possibilidade de exercício de uma profissão ou de uma futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pela lesada, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente a vai afectar.” – ponto II. do Sumário).
[4] RUI DE ALARCÃO, Direito das obrigações, elaborado por J. Sousa Ribeiro, J. Sinde Monteiro, Almeno de Sá e J. C. Proença, FDUC, Coimbra, 1983, págs. 271-272.
[5] ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, Volume I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2000 (reimp. 2003), pág. 599.
[6] Ac. do STJ de 14/12/2017, processo n.º 589/13.4TBFLG.P1.S1, Rel. Fernanda Isabel Pereira, in www.dgsi.pt.
[7] Como a tabela descrita e aplicada no Ac. do STJ de 4/12/07, processo n.º 07A3836, Rel. Mário Cruz, in www.dgsi.pt.
[8] Processo n.º 22392/16.0T8PRT.P1.S1, Rel. Oliveira Abreu, in www.dgsi.pt.
[9] Agora de acordo com o Ac. do STJ de 19/9/2019, processo n.º 2706/17.6T8BRG.G1.S1, Rel. Maria do Rosário Morgado, in www.dgsi.pt.
[10] Assim, o Ac. do STJ de 19/6/2019, cit. nt. 8.
[11] Cit. nt. 3.
[12] Cfr. https://www.pordata.pt/DB/Portugal/Ambiente+de+Consulta/Tabela.
[13] V., neste sentido, o Ac. do STJ de 10/11/2016, cit. nt. 3.
[14] Ainda que atenda a valores-base e ilíquidos, o que não corresponde, como vimos, ao melhor critério perante a “teoria da diferença”; mas são esses os montantes que constam da matéria de facto provada e não deixam de fornecer uma projecção dos valores em confronto para ponderação de controlo pela equidade.
[15] As pertinentes transcrições pertencem ao Ac. do STJ de 10/11/2016, cit. nt. 3.
[16] V. novamente o cit. Ac. do STJ de 10/11/2016, com ênfase da nossa responsabilidade.