Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P3252
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA MADEIRA
Descritores: HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
MAUS TRATOS A OUTREM
MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
MEIO INSIDIOSO
MEDIDA DA PENA
ESPECIAL CENSURABILIDADE DO AGENTE
CLÁUSULA GERAL
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
Nº do Documento: SJ200310300032525
Data do Acordão: 10/30/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2 J T POMBAL
Processo no Tribunal Recurso: 300/01
Data: 04/28/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário : I - Tratando-se de recurso de deliberação do tribunal de júri, o Supremo Tribunal de Justiça só pode sindicar a matéria de facto por via da «revista alargada» com o alcance consentido pela indagação dos vícios a que se reporta o artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
II - Nesse contexto, o que disseram ou não disseram as testemunhas, o arguido e demais intervenientes processuais, o que valem ou não valem os relatórios ou documentos juntos ou não ao processo, enfim, a avaliação das provas produzidas submetida em audiência pública à livre apreciação do tribunal de júri - o de mais democrática composição que em 1.ª instância se pode conceber entre nós - é agora um dado incontornável do julgamento sem que alguém mais aí possa dizer diferente, objectivada que está e sobejamente motivada, a razão de ser da convicção assumida em audiência.
III - Por meio insidioso entende-se aquele "cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas às do veneno - do ponto de vista do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto e que, justamente por sê-lo, não poderá deixar de ser também, «especialmente perigoso», justamente por causa da dissimulação e, portanto, da sua acrescida capacidade de eficiência por via da natural não oposição de qualquer resistência por parte da vítima que, em regra, perante a insídia, nem sequer suspeitará de que está a ser atingida.
IV - Se, no caso, não se conhece a razão por que se precipitou a cena violenta de que só o arguido e a vítima foram os protagonistas, se, não obstante a surpresa, não foi, naturalmente, possível ao arguido ocultar o uso das facas com que cometeu o uxoricídio, se, enfim, com conhecimento do arguido havia pessoas no exterior da casa, cuja presença impediria, decerto, qualquer hipótese de o acto criminoso passar despercebido, então só pode concluir-se pela não verificação daquela agravante-padrão.
V - Porém, afastados do caso os possíveis exemplos-padrão de agravamento ou qualificação, não fica afastada a possibilidade qualificação do homicídio, acaso os factos revelem especial perversidade ou censurabilidade do agente.
VI - No caso, sendo a vítima, esposa do arguido, uma boa mãe que lhe merecia, no mínimo, respeito e cooperação - art.º 1672.º do Código Civil; tendo o arguido agido de modo traiçoeiro e inesperado, com a vítima impossibilitada de resistir a um agressor armado e com provada superioridade sobre aquela, surpreendida e indefesa; as circunstâncias que rodearam o caso levavam a que por parte dela, tivesse surgido um compreensível baixar da guarda, com o contributo activo do próprio arguido, nomeadamente, a insistência manifestada naquele dia para que ela o visitasse, a preocupação concretizada em ir pessoalmente buscá-la a casa dos pais, a encenação de normalidade de que fez parte, inclusivamente, a presença de um amigo e dos dois filhos do casal, enfim, tudo conducente na direcção de um certo relaxamento da vítima, naturalmente confiada em que, perante um quadro de tamanha aparente normalidade, nada de mal estaria para lhe acontecer, não há que censurar o tribunal recorrido, ao considerar, nas apontadas circunstâncias, de ilicitude extrema, o homicídio agravado, tendo em conta, no caso, uma realização do facto de forma especialmente desvaliosa, numa palavra, aqui especialmente censurável.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. Sob acusação pública para julgamento em processo comum com intervenção de tribunal de júri, foi pronunciado RCMM, devidamente identificado, imputando - se - lhe a prática, como autor material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. no art.º 152º/2 do CP, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. no art.º 275.º/3 do CP, por referência ao art. 3.º/1/f do DL 207-A/75, de 17/04, e de um crime de homicídio qualificado, p. e p. nos arts. 131.º e 132.º/1/2/c/h/i do CP, tudo por ter praticado os factos melhor descritos na decisão instrutória que consta de fls. 462 a 472.
FOP, também identificado nos autos, foi admitido a intervir como assistente.
O mesmo FOP e esposa, JNC, FMGC e esposa, CMNP, também identificados no processo, na qualidade de legais representantes dos menores RPM e RPM, deduziram pedido de indemnização contra o arguido, requerendo a condenação deste a pagar aos primeiros demandantes a quantia de € 1.038, acrescida da quantia que vier a ser equitativamente fixada nos termos mencionados no art.º 9.º do pedido de indemnização, e aos segundos demandantes a quantia global de € 165.210.47, tudo acrescido de juros calculados à taxa legal, desde a notificação do pedido de indemnização e até integral pagamento, o que reputam necessário e suficiente para ressarcimento dos danos patrimoniais e morais emergentes do crime de homicídio imputado ao arguido.
O Instituto de Solidariedade e Segurança Social, com sede em Lisboa, deduziu pedido de indemnização contra o arguido, requerendo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 1.108, 52, correspondente ao subsídio por morte pago pelo demandante por causa do crime de homicídio imputado ao arguido, acrescida de juros de mora a contar da notificação do pedido de indemnização e até integral pagamento.
Efectuado o julgamento, o tribunal de júri veio a decidir, além do mais o seguinte:
1. condenar o arguido como autor de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. nos termos dos arts. 131º, 132º/1/2/h CP, na pena de vinte e dois anos de prisão, e como autor de um crime de maus tratos p. e p. no art. 152º/2 do CP, na pena de três anos de prisão, fixando em vinte e três anos e seis meses de prisão a pena única em que o arguido ficou condenado;
2. absolver o arguido da acusação, na parte em que se lhe imputava o preenchimento das circunstâncias qualificativas das alíneas c) e i) do n.º 2 do art. 132º do CP, bem assim como na parte em que se lhe imputava a prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. no art. 275º/3 do CP;
3. condenar o arguido a pagar aos demandantes F e esposa a quantia de € 1.038, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a data da notificação para contestar o pedido de indemnização e até integral pagamento;
4. condenar o arguido a pagar a cada um dos demandantes R e R a quantia de € 43. 699, acrescida de juros moratórios legais vincendos, a contar de hoje e até integral pagamento;
5. condenar o arguido a pagar a cada um dos demandantes R e R a quantia a liquidar em execução de sentença, correspondente à privação dos alimentos que lhes eram e continuariam a ser prestados por sua mãe, acrescida de juros moratórios legais vencidos e vincendos, a contar da data da notificação do pedido de indemnização e até integral pagamento, não podendo ser excedida, na liquidação, a quantia global de € 77. 812, 47;
6. absolver o arguido de tudo o mais que os demandantes F e esposa peticionam;
7. condenar o arguido a pagar ao ISSS a quantia de € 1.108, 52, acrescida dos juros moratórios legais, a contar da notificação do arguido para contestar e até integral pagamento.
Inconformado recorre o arguido ao Supremo Tribunal de Justiça, a quem confronta, em peça processual de patente deficiência técnica e manifesto desrespeito pelas normas que lhe impõem um resumo das razões do pedido e, assim, uma delimitação cuidada e sintética do objecto do recurso - art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal - com esta verdadeira avalanche de conclusões:
1.º Nenhuma das testemunhas que descreveu em julgamento a vivência conjugal do arguido e da infeliz vítima referiu que os actos dados como provados nos pontos 2°) a 24°) dos factos provados foram repetidamente praticados, pelo menos desde 1999.
2° Aliás, as duas irmãs da vítima, CMP e PMPA, com depoimentos gravados respectivamente na cassete n.o 6, lado A, de 1463 a 2340, e do lado H, de 002 a 1720 e na cassete n.o 7, lado A, de 2134 a 2360 e do lado H, de 003 a 1226, bem como o pai da C M, FOP, com depoimento gravado na cassete n.o 2, lado A, de 1326 a 2360, nunca referiram que os maus-tratos padecidos pela CM teriam ocorrido a partir, pelo menos, de 1999.
3° Acresce que, estes familiares, por tão próximos, prestaram depoimentos claramente exagerados, pouco credíveis e sinceros, nitidamente marcados por impulsos, totalmente compreensíveis face às circunstâncias, de vingança.
4° Tais testemunhas não souberam precisar com segurança e credibilidade quando e como ocorreram os referidos maus-tratos, se existiram hiatos de tempo entre os diferentes comportamentos, se tais comportamentos eram repetitivos ou se se estava perante actos isolados.
5.º A verdade, porém, é que nunca fizeram referência ao tal ano de 1999, tendo a própria C, no seu pedido de divórcio, junto aos autos, referenciado apenas o seu último ano de vida como aquele em que ocorreram os maus-tratos que justificavam o alegado pedido, período este aliás que coincide exactamente com a progressiva deterioração do estado de saúde mental do Arguido, tal como foi referenciado pelo próprio (depoimento gravado na cassete n.º 1, lado A, de 002 a 2630, e lado H, de 002 a 631), e pelas testemunhas MFM (depoimento gravado na cassete n.o 8, lado A, de 1056 a 2360, e lado H, de 003 a 1687) e GFMM (depoimento gravado na cassete n.o 9, lado A, de 0010 a 2360 e lado H, de 006 a 1619).
6° As irmãs e o pai da vítima confirmaram que esta só lhes tinha confidenciado os referidos maus-tratos no último mês que antecedeu a sua morte e que nunca presenciaram quaisquer agressões físicas perpetradas pelo Arguido contra a C M ou lhe vislumbraram marcas de agressões, bem como nunca tiveram conhecimento que a mesma se tenha dirigido alguma vez ao hospital para receber tratamento médico.
7.º Também a testemunha, ama dos filhos do arguido e da C, e que estava com a vítima todos os dias da semana, afirmou que nuca se apercebeu de quaisquer marcas de agressões - depoimento gravado na cassete n.º 4, lado A, de 1226 a 1930.
8° No que concerne às agressões físicas refira-se, ainda, que a testemunha F Portela principiou por afirmar, no seu depoimento, gravado na cassete n.º 2, lado A, de 1326 a 2360, que nos primeiros anos de casada de sua filha, presenciou a mesma a ser agredida pelo Arguido, mas acabou por explicitar que ouviu apenas gritos no âmbito de uma discussão entre o casal.
9.º Também as testemunhas HMF, com depoimento gravado na cassete n.o 7, lado A, de 474 a 1230 e MIASG, com, depoimento gravado na cassete 7, lado B, de 1990 a 2360 e cassete n.o 8, do lado A, de 003 a 448, cabeleireiras que trabalhavam no salão contíguo ao centro de estética propriedade da infeliz vítima, afirmaram que a C apenas lhes tinha , confidenciado os seus problemas conjugais nos últimos dois meses antes da sua saída de casa, nunca lhes tendo afirmado que o marido a agredia fisicamente, mas que apenas tinha muito medo dele.
10° Também a testemunha DMMB (depoimento gravado na cassete n.o 10, lado B, de 1103 a 1510) amiga comum do casal e que esteve diversas vezes com ambos cerca de um mês antes da morte da C revelou em tribunal que, ao contar-lhe que tinha sido vitima de maus-tratos por parte do seu ex-marido lhe tinha perguntado directamente se o R a maltratava fisicamente ou a ameaçava, ao que a C respondeu que não.
11° A testemunha CMM (depoimento gravado na cassete n.o 10, lado H, de 0141 a 1103) referiu, igualmente, que durante os anos em que a C foi sua empregada nunca presenciou quaisquer maus tratos perpetrados pelo Arguido à C. .
12° A testemunha GFMM (depoimento gravado na cassete n.o 9, lado A, de 0010 a 2360 e lado B, de 006 a 1619) referiu que conhecia muito bem o casal, visitava amiúdas vezes a casa de ambos, tanto antes como depois da separação, e que trabalhou durante um período de quatro meses junto da C M no seu gabinete de estética, mas nunca presenciou quaisquer maus-tratos físicos ou ameaças por parte do arguido para com a vítima.
13° Questionada quanto ao facto de o arguido não deixar descansar a sua esposa durante a noite, pois insistia em falar com ela a maior parte da noite, a testemunha afirmou que tal deveria ser verdade, uma vez que quando pernoitou em casa de ambos depois da C M já de lá ter saído, o arguido fazia-lhe a mesma coisa devido ao estado de profunda perturbação psicológica em que se encontrava.
14° O tribunal a quo considerou provado, com base única e exclusiva no testemunho de CMJS (depoimento gravado na cassete n.º 5, lado A, de 002 a 1121) que, por ocasião da colocação dos alumínios na casa de morada de família.
15° Ora, o depoimento desta testemunha revela-se em toda a sua extensão muito pouco credível.
16° Com efeito, a testemunha é primo direito da mãe da vítima e tal como os familiares mais próximos da C está profundamente imbuído de espírito de vingança, sentimento este que o levou a declarar ter ouvido o R dizer, quando saiu da casa de morada de família e depois da C já estar morta, a frase "Já está!", com ar de grande satisfação.
17° Ora, nem a testemunha AF - a primeira pessoa a chegar ao local do crime - (depoimento gravado na cassete n.o 5, lado A, de 2230 a 2620 e lado B, de 002 a 1463) - nem a testemunha MJ (depoimento gravado na cassete n.o 8, lado A, de 448 a 1056) que chegou ao local ao mesmo tempo que o referido CMJS ouviram o arguido dizer o que quer que seja.
18° Refira-se, também, que esta testemunha afirmou, impregnando o seu relato de tons fantasiosos, que a testemunha FARS, quando foi pedir ajuda ao café, depois de não ter consigo entrar na casa do casal, gritou que o R estava a matar a mulher à facada, quando todos os outros só c o ouviram dizer que o R estava a matar a mulher.
19° Por tudo isto, afigura-se-nos claro que tal depoimento não merece qualquer credibilidade e como tal não pode ser considerado provado que o arguido tenha agredido a C por ocasião da colocação dos alumínios na casa de morada de família.
20° Quanto à circunstância de o Arguido insistentemente pedir dinheiro à sua esposa e de algumas vezes, ao fim do dia, retirar à C, contra a vontade desta, a quase totalidade dos rendimentos por ela realizados durante o dia de trabalho refira-se que as testemunhas H e MI só ouviram a C referir esse facto uma única vez, pelo que o tribunal só pode ter considerado que esta era uma prática corrente com base nos testemunhos claramente exagerados e pouco credíveis das irmãs e pai da vítima.
21° Também os pontos 5°), 7.º) 9.º) e 11°) dos factos provados forma considerados provados com base única e exclusiva nos testemunhos de F e CP e PPA, que, pela s razões já enunciadas não nos merecem grande credibilidade, pelo que não deveria o tribunal tê-los considerado provados.
22° O tribunal a quo considerou, de igual forma, que nos últimos meses da vida da C, o Arguido não exercia, sem qualquer justificação para o efeito, qualquer actividade profissional, bem como que o arguido nunca desenvolveu hábitos regulares de trabalho, não lhe sendo conhecido um emprego estruturado - pontos 12°) e 92°) dos factos dados como provados
23° No entanto, considerou também como provado que no ano que precedeu a morte da C, aquando da sua mudança para as Meirinhas, o Arguido passava os dias deitado no sofá, mantinha a casa às escuras e começou a isolar-se em casa, atitudes típicas de uma sintomatologia depressiva que mais tarde lhe veio a ser diagnosticada na primeira consulta tido no Hospital de Santo André em Leiria, conforme informações clínicas juntas aos autos, bem como no relatório da perícia médico-psiquiátrica também junto aos Autos a fls. 952 a 970.
24° Acresce que, para além desta sintomatologia depressiva também lhe foi diagnosticada adinamia, isto é, o R encontrava-se naquela altura bastante débil e prostrado - vide informação clínica do Hospital de Santo André, datada de 28/05/2001 - o que justifica o facto de o arguido não estar em condições psicológicas para exercer qualquer actividade profissional.
25° Para além do mais, e conforme relatório da perícia psiquiátrica e esclarecimentos prestados em audiência pela Ex.ma Senhora Perita - depoimento gravado na cassete n.º 1, lado H, de 631 a 2350, e cassete n.º 2, lado A, de 002 a 1326 -, a perturbação de Estado-Limite da Personalidade, que o Arguido sofre e sofria caracteriza-se, entre outros factores por uma inconstância sócio-profissional.
26° Destarte, nunca o tribunal poderia ter considerado como provado que o Arguido não exercia naquela época qualquer actividade profissional sem justificação para o efeito - a justificação encontra-se no estado da sua saúde mental.
27° No que concerne ao ponto 13°) da matéria de facto dada como provada sempre se dirá que nem sequer dos testemunhos das irmãs e pai da vítima pode resultar como provado que o R obrigava a C, quase diariamente, antes de sair de casa para ir trabalhar a comprar-lhe tabaco e cerveja.
28° Do testemunho de M MGMM, gravado na cassete n.o 3, lado A, de 2176 a 2360, e lado B, de 002 a 1357, apenas podemos concluir que a C efectivamente comprava quase todos os dias de manhã tabaco e cerveja, mas nunca que era obrigada a tal.
29° O facto de a C não ter dinheiro para pagar as rendas do local onde exercia a sua actividade profissional, bem como as mensalidades da ama que cuidava dos filhos do casal tem como único suporte o depoimento do pai da vítima, Sr. F P, afigurando-se-nos deveras estranho que nem as testemunhas H e M I, que trabalhavam num salão de cabeleireiro ao lado do gabinete de estética da C e que se apercebiam das suas dificuldades diárias, nem a ama dos filhos do casal, Sr.a terem feito qualquer referência a estes factos.
30° O Tribunal a quo considerou que o Arguido era pessoa violenta porque tinha na sua posse, guardadas na sua residência uma pistola de alarme, sem carregador e que não constitui por isso qualquer perigo, a qual, nas palavras do próprio arguido era uma recordação do seu pai já falecido (depoimento gravado na cassete n.o 1, lado A, de 002 a 2630, e lado B, de 002 a 631) e um punhal tipo borboleta, que havia ganho de presente de um amigo.
31° Ora, a testemunha F Portela referiu no seu depoimento que nunca a C lhe confidenciou, nem mesmo quando foram os dois buscar as referidas armas a casa do casal que o Arguido alguma vez a tivesse ameaçado com as referidas armas, pelo que da simples posse das mesmas nunca se pode concluir que o R tivesse uma personalidade violenta.
32° Atendendo aos factos dados como provados nos pontos 48°) a 51°), 57.º), 85° e 94° a 100°, não se pode considerar como provado que o Arguido agiu voluntária, livre e conscientemente e que se determinou, conforme vem descrito nos pontos 23° e 24° dos factos provados.
33° Acresce que, e considerando tudo o supra alegado sempre se dirá que não se pode considerar como provado que desde pelo menos 1999, o arguido tenha ofendido e maltratado a C de forma contínua e reiterada, uma vez que tal como afirmámos em 8° deste articulado, nenhuma das testemunhas que depuseram sobre a vivência conjugal do R e da C souberam precisar com segurança e credibilidade quando e como ocorreram os referidos maus-tratos, se existiram hiatos de tempo entre os diferentes comportamentos, se tais comportamentos eram repetitivos ou se se estava perante actos isolados. Em diversos espaços temporais.
34 ° Pelo que desde já se requer a V. Ex.as se dignem absolver o Arguido da prática do crime previsto e punido no art. 152° n.º 2 do CP. 35° Ou caso assim se não entenda, deverá o tribunal ad quem, atendendo a tudo o supra alegado bem como aos factos dados como provados nos pontos 48°) a 51°), 57.º), 85° e 94° a 100°, atenuar especialmente a pena uma vez que existem circunstâncias anteriores e contemporâneas do crime que diminuem por forma acentuada a culpa do agente, nos termos do disposto no art. 72° n.º 1 do CP .
36° No que concerne ao ponto 33° dos factos provados cumpre-nos salientar que as referidas janelas, conforme nos foi relatado pelo testemunha NJCC (depoimento gravado na cassete n.º 5, lado A, de 1121 a 2230), vizinha do casal, se encontravam sempre fechadas, o que aliás se justifica pelo facto de o R se encontrar profundamente deprimido e gostar de manter as janelas fechadas, funcionando as mesmas como uma espécie de protecção contra O mundo.
37° Isto significa que o Arguido não as tinha fechado de propósito naquele dia para impedir a acesso ao interior da casa: as janelas da moradia familiar encontravam-se sempre fechadas.
38° Aliás, ao considerar que as janelas estavam trancadas para impedir o acesso ao interior da casa, o tribunal a quo entrou em nítida contradição, uma vez que tal indicia premeditação e o tribunal considerou como não provada a existência de tal circunstância qualificativa do homicídio.
39° O tribunal considerou que o Arguido atingiu a C M de modo súbito, sorrateiro e com total surpresa para a vítima, mas uma vez que ninguém presenciou os factos para além do arguido e este não relatou quaisquer acontecimentos concernentes ao homicídio, o tribunal apenas pode presumir o modo como o mesmo ocorreu, mas não pode saber ao certo se o arguido, por exemplo, não mostrou primeiro as facas à vítima, não as ameaçou com elas e só depois por qualquer motivo, é que terá desferido os golpes, ou se foi a vítima quem se muniu primeiro das facas para se defender das ameaças do arguido e que depois tenha ocorrido uma luta entre ambos e a vítima tenha perdido a posse das referidas armas, as hipótese são inúmeras...
40° O tribunal não pode considerar provado o ponto 41° dos factos dados como provados mas apenas presumir que o Arguido atingiu a C quando esta se encontrava descuidada e confiante, uma vez que não pode saber se o ataque foi de surpresa pela razões supra referidas.
41° Quanto à superioridade física do Arguido referenciada como motivo justificativo nesse ponto 41°, diga-se que o Arguido padecia na altura de adinamia, que se traduz por grande debilidade física e prostração.
42° E quando ao facto das janelas e das portas estarem fechadas repita-se o que se afirmou supra e acrescente-se que não se provou quem fechou as portas, se o Arguido ou a vítima.
43° Refira-se, igualmente, que mais uma vez, porque ninguém presenciou o referido ataque para além das duas pessoas envolvidas que, não se pode dar como provado que a C M estivesse absolutamente impedida de se defender do ataque do arguido, em primeiro lugar porque não sabemos de que modo e em que circunstâncias ocorreu o ataque e em segundo lugar porque a divisão da casa onde ocorreu o crime apresentava claros sinais de luta, nas palavras da testemunha NJCC, delegado de saúde que foi chamado ao local e cujo depoimento se encontra gravado na cassete n.º 1 - declarações para memória futura, do lado A, não sendo possível indicar os números de voltas, porque os mesmos não vêm indicados na acta da audiência final em que foi ouvido este depoimento.
44° Já no que concerne ao ponto 43°) dos factos dados como provados cumpre- nos afirmar que não resultou de qualquer dos depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento ou de qualquer dos documentos juntos aos autos que o arguido tivesse detido o punhal apreendido e descrito nos autos em idênticas circunstâncias às descritas no ponto 42°) dos factos dados como provados e sem justificar a sua posse.
45° Atendendo aos factos dados como provados nos pontos 48°) a 51°) , 57°), 85° e 94° a 100°, não se pode considerar como provado que o Arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, conforme vem dado como provado no ponto 47.º).
46° não podem dar-se como provados, pelos motivos supra referenciados, os factos que serviram de fundamento para se ter como preenchida a circunstância qualificativa "utilização de meios insidiosos", prevista no art.º 132° n.º 2 al. h) do CP.
47.º Acresce que, insídia é um termo sinónimo de cilada, emboscada, estratagema., isto é, os meios insidiosos passam por comportamentos claramente estudados e preparados (ac. do STJ, Processo n.o 044698, de 28/10/93, in www.dgsi.pt).
48° Ora, o tribunal ad quo (sic) decidiu, e bem, considerar como não provado que o Arguido tivesse atraído a C M à casa do casal para aí executar a decisão previamente tomada de a matar, considerou como não provado que o arguido tivesse delineado um plano para alcançar esse objectivo, uma vez que para além disso ser pouco ou nada compatível com a personalidade do arguido e com o tipo de patologia que o afecta, como claramente referiu em julgamento a Ex.ma Sr.a Perita Dr.a AA, isso também é pouco conciliável com o facto do arguido ter convidado a testemunha FS para beber uma cervejas na casa do casal, minutos antes de ter cometido o homicídio aqui em questão, logo, pelos mesmos motivos deveria ter considerado como não provado a utilização de meios insidiosos, que, tal considerou este tribunal passam por comportamentos claramente estudados e preparados.
49° Quando a lei (art. 132°, n.o 2 h) do CP) fala em meio insidioso não quer necessariamente abarcar os instrumentos usuais de agressão (o pau, o ferro, a faca a pistola, etc.) ainda que manejados de surpresa, mas sim aludir tanto às hipóteses de utilização de meios ou expedientes com uma relevante carga de perfídia, como aos que são particularmente perigosos, ou seja, que revelem uma perigosidade muito superior ao normal nos meios usados para matar, e que não pondo em risco o agente, do mesmo passo tornam difícil ou impossível a defesa da vítima ( ac. STJ, de 11 de Junho de 1987; BMJ, 368, 312), o que de facto não se aplica não se aplica de toda aos factos ora em análise.
50° Assim, no caso do meio insidioso, o agente há-de saber que a vítima não nutre qualquer suspeita ou que se encontra totalmente indefesa e querer precisamente aproveitar-se da confiança existente para praticar o homicídio. A existência do dolo fundamenta, nestas circunstâncias, a atitude particularmente censurável do agente, uma atitude desumana e desapiedada, susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente
51° Contudo o agente tem de estar consciente para que possam afirmar-se motivos ou certas intenções ou finalidades. Se uma tal consciência ou conhecimento não estiver presente, não estaremos em face de motivos, mas apenas de instintos, não estaremos em face de finalidades, mas apenas de impulsos. Ou seja tem de poder afirmar-se que o agente estava em situação de poder dominar e dirigir a sua reacção emocional ou instintiva através da sua vontade
52° Ora, foi dado como provado pelo tribunal ad quo (sic) que o arguido sofre e sofria, à data da prática dos factos de uma Perturbação Estado Limite da Personalidade que se caracteriza, exactamente, entre outros factores, por raiva intensa e inapropriada ou dificuldades de a controlar, por impulsividade, por incapacidade de tolerar as frustrações que se traduz num comportamento impulsivo, a passagem ao acto, a qual no caso do arguido se traduz por comportamentos hetero-agressivos.
53° O Assim sendo, não pode afirmar-se que o arguido na altura da prática dos factos estava em condições de poder dominar a sua reacção emocional através da sua vontade.
54° Ora, a falta de representação ou a deficiente representação dos pressupostos de um exemplo padrão pelo agente determina, pois a não aplicação da moldura penal agravada, na medida em que nestas circunstâncias não pode ter-se como indiciada a especial censurabilidade ou perversidade do agente - in Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 79.
55° Para além do mais, consideramos igualmente, que muitos dos factos que estiveram na base de fundamentação da decisão do tribunal em considerar como preenchida a circunstância qualificativa ora em apreciação, não passam de presunções.
56° Ora, na opinião de Teresa Serra em obra já citada, o preenchimento presumido de uma das circunstâncias do n.o 2 do art. 132° n.o 1 não é suficiente para indiciar uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.
57° Para além de se basear nos factos que considerou provados e que fundamentaram o preenchimento da circunstância qualificativa "utilização de meios insidiosos", o tribunal recorrido alicerçou a sua consideração de que a conduta do arguido revela especial censurabilidade ou perversidade, na circunstância de a vítima ser sua esposa e mãe dos seus filhos, razão pela qual, impendiam sobre o arguido especiais deveres de em relação à vítima se abster de, assumir comportamentos violentos e no facto de o arguido saber que no exterior da residência onde golpeava a C M estavam os filhos do casal que se aperceberam dos gritos de dor e sofrimento da sua mãe, tendo no entanto ignorado tal circunstância.
58° Ora, o homicídio, mesmo simples, porque violador do extremo bem que é a vida humana, é já altamente censurável, pelo que a especial censurabilidade de que fala o art. 132° n.o 1 do CP há-de ser algo mais que acrescerá à culpa do agente. Sendo assim, este terá de ser olhado na sua situação concreta, não abstracta, na sua personalidade, na sua educação e instrução e no seu meio ambiente, bem como nas demais circunstâncias remotas ou próximas presentes no caso concreto.
59° Estamos perante uma situação em que o indivíduo dominado por uma emoção violenta que não consegue controlar, age de modo que sabe reprovável e proibido mas sem que o possa evitar, pois, nas palavras de Bettiol "a vontade perde os seus freios inibitórios".
60.° A perturbação da personalidade afecta a capacidade de decisão e o domínio da vontade pelo indivíduo mesmo que se esforce para evitar a prática de actos ilícitos.
61° Afigura-se-nos assim claro que um homicídio cometido nestas circunstâncias não revela perfídia, crueldade, insensibilidade, pelo que o arguido deve ser condenado pelo crime de homicídio simples, previsto e punido pelo art. 131° do CP.
62° Na verdade, o homicídio cometido nessas condições não revela, da parte do agente, aquela especial censurabilidade ou perversidade, exigida pela lei para a sua qualificação, o que implica que, se se verificar as apontadas condições, a eventual concorrência de algum ou alguns dos factores exemplificativos indicados no n.º 2 do art. 132° citado não permite considerar como cometido o crime previsto neste artigo. 63° O tribunal ad quo considerou que apesar de ter sido dado como provado que o arguido padecia, no momento da prática dos factos de uma redução da sua capacidade de avaliar a licitude ou ilicitude do seu comportamento e de se determinar de acordo com essa avaliação, não se está perante uma situação que justifique a declaração de inimputabilidade do arguido, nos termos e para os efeitos do art. º 20° n.º 2 do CP, porque não resulta dos factos provados, assim como não resulta do relatório psiquiátrico, nem dos esclarecimentos complementares prestados em audiência pela sua autora que esteja em causa uma situação de significativa redução daquelas capacidades de avaliação e de actuação que justifique a equiparação do arguido a um inimputável.
64° Por outro lado, dos factos dados como provados resulta, igualmente, que o arguido deve ser censurado pela circunstância de não dominar a doença do foro psiquiátrico que determina a redução daquelas capacidades de avaliação e de actuação, uma vez que foi conduzido a um hospital psiquiátrico, sendo que vez de aceitar manter-se internado naquele hospital, sujeitando-se ao tratamento adequado para a sua situação, o arguido exigiu a sua alta de internamento e por outro lado, ingeriu bebidas no dia 23.06.2001.
65° Ora, cumpre-nos afirmar que, a Ex.ma Sr.a Perita nos primeiros esclarecimentos que prestou ao tribunal, gravados na cassete n.º 1, lado B, de 631 a 2350, e cassete n.º 2, lado A, de 002 a 1326, não desejou quantificar o nível de redução a capacidade de avaliar a licitude e ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação, no entanto, nos segundos esclarecimentos que prestou em tribunal gravados na cassete n.º 11, lado A, de 000 a 2116 confirmou que a doença de que o arguido padece afecta sensivelmente, se bem que não decisivamente aquelas capacidades.
66° No que concerne ao facto de o arguido ter exigido alta do estabelecimento hospital para o qual for a conduzido, cumpre-nos afirmar que na altura o arguido encontrava-se profundamente descompensado e com a certeza de que toda as pessoas estavam contra ele e lhe queriam mal, por isso, ainda dominado pela doença de que padecia exigiu alta.
67° No entanto, no mesmo dia em que exigiu a alta voltou voluntariamente ao referido hospital psiquiátrico para ser consultado, não se tendo revelado necessário, de acordo com o diagnóstico então efectuado, que o arguido fosse internado, mantendo-se, no entanto, em consultas - vide informações clínicas do hospital de Santo André juntas aos Autos.
68° Acresce que, de acordo com os esclarecimentos prestados pela Ex.ma Sr.a Perita, gravados na cassete n.º 1, lado B, de 631 a 2350 e na cassete n.o 11, lado A, de 000 a 2116, o tempo durante o qual o arguido esteve sujeito a tratamento com psicofármacos até à morte da vítima poderia ou não ser suficiente para, e apenas, atenuar os efeitos da doença, mas tudo dependia do grau de intensidade da sintomatologia apresentada, bem como da sua qualidade,
69° pelo que não foi o facto de o arguido ter ingerido bebidas alcoólicas - cuja quantidade e forma como foram ingeridas, isto é, se acompanhadas ou não de ingestão de alimentos, não foi determinada pelo tribunal, - que não lhe permitiu dominar os efeitos da sua anomalia psíquica.
70° Assim sendo, e contrariamente ao decido pelo tribunal recorrido somos da opinião que estão verificados todos os pressupostos que permitem a aplicação do art. 20° n.º 2 do CP.
71° Ora, cumpre-nos salientar que, no âmbito das teorias da prevenção geral nunca uma pessoa que sofra de uma anomalia psíquica, se reconhecida como estranha aos padrões socialmente praticados, poderá desempenhar o papel de bode expiatório. A comunidade não se reverá nele, os seus actos não desencadearão as pulsões ocultas de vingança, a necessidade de restauração do equilíbrio quebrado pelo criminoso e sentida pela comunidade, e ainda que tal suceda o seu sacrifício não servirá para as compensar.
72° É um facto que, em parte, o efeito intimidatório se perde na medida em que a população se não reconhece totalmente no doente do foro psiquiátrico. Se se trata de passar a mensagem de que a quem proceder de igual modo, será aplicado castigo igual, o sentido é distorcido, pois o indivíduo, não pode evitar o acto praticado.
73° Já no que concerne às exigência de prevenção especial ou de ressocialização sempre se dirá que o que se pretende em última instância é que pelo cumprimento de determinada pena o agente se torne útil para a sociedade, ora não é o facto de o arguido cumprir 23 anos e seis meses de prisão que os traços da sua personalidade se alterarão ou que diminuirão os riscos de o mesmo vir a cometer novos actos violentos, mas somente a sua submissão a tratamento.
74° Ora é nosso entendimento que, a apontada situação de tensão emocional provocada por anomalia psíquica, que, como se frisou, conduz a um estado de imputabilidade diminuída, conforme é do conhecimento comum, leva a que a medida da punição deva ser determinada em harmonia com as regras dos artigos 72° e 73° do CP.
75° É inquestionável que, neste caso, a culpa do agente se encontra sensivelmente diminuída, por força de condicionalismos exógenos e endógenos, a que está sujeito e contra os quais nada pode. Logo deve a pena aplicar, atendendo à sua menor culpa, ser correspondentemente atenuada.
76° O Tribunal a quo violou assim o disposto no art. 400 n.o 2 e art. 71° n.ºs 1 e 2 doCP.
77° Assim sendo, e caso não se considere dever aplicar ao caso presente o art. 20° n.02 do CP, deve o arguido ser absolvido pela prática do crime de maus tratos ou caso também assim se não entenda, deve ser-lhe aplicada uma pena, especialmente atenuada, de um ano.
78° No que concerne ao crime de homicídio, deve o arguido ser condenado pela prática do crime de homicídio p. e p. pelo art. 131°, devendo ser-lhe aplicada uma pena de 12 anos.
Nestes termos
E nos mais de direito aplicáveis, com o douto suprimento de V. Ex.as deverá o presente recurso merecer provimento, por provado e deverá o arguido ser considerado inimputável ao abrigo do disposto no art. 20.º n.02 do CP, e caso não se considere dever aplicar ao caso presente o art. 20° n.o 2 do CP, deve o arguido ser absolvido pela prática do crime de maus tratos ou caso também assim se não entenda, deve ser-lhe aplicada uma pena, especialmente atenuada, de um ano.
No que concerne ao crime de homicídio, deve o arguido ser condenado pela prática do crime de homicídio p. e p. pelo art. 131°, devendo ser-lhe aplicada uma pena de 12 anos.
Só assim se fará justiça!!!
Ao que respondeu o MP junto do tribunal recorrido, concluindo em suma:
1 - Da análise dos factos considerados provados e não provados, vertidos no acórdão recorrido, não se divisa qualquer contradição na sua apreciação e interpretação, resultando antes que a sua valoração está isenta de mácula.
2 - No tocante ao crime de maus tratos, depara-se como incólume a posição vertida no acórdão relativamente à apreciação da prova produzida.
3 - Apontando esta, inquestionavelmente para a prática reiterada, ao longo de pelo menos dois anos, de factos que consubstanciam a prática de tal crime, inexistindo qualquer fundamento para pôr em causa a idoneidade do depoimento das testemunhas nos quais o Tribunal alicerçou a sua convicção.
4 - Bem como isenta de crítica se depara a posição do Tribunal ao considerar como provada a utilização de meio insidioso, circunstância esta relevante para que ao arguido deva ser imputada a autoria do crime de homicídio qualificado.
5 - E no que concerne à inimputabilidade do arguido, apesar da doença que o afectava no período em que ocorreram os factos, não é legítimo concluir-se, até porque assim o não fizeram os peritos médicos ouvidos em audiência nem tal consta do relatório constante dos autos relativo ao exame às suas faculdades mentais, que tal doença lhe determinasse, no momento da prática dos factos, uma capacidade sensivelmente diminuída para avaliar a ilicitude destes ou para se determinar de acordo com essa avaliação.
6 - Quanto às penas aplicadas, apesar da posição do Tribunal relativamente à do crime de homicídio qualificado merecer alguma reflexão, as mesmas justificar-se-ão ponderando-se, essencialmente, que a ilicitude dos factos é significativa, à forma de actuação do agente, aos meios de agressão empregues e circunstâncias decorrentes do facto ilícito e, sobretudo, serem elevadas as exigências de prevenção geral.
7 - Termos em que deve manter-se o acórdão recorrido, assim se negando provimento ao recurso.
Todavia em alto critério V.as Ex.as irão ponderar e decidirão. JUSTIÇA
E os assistentes:
1- A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
2- Daí que, todas as considerações que, no recurso interposto se fazem, nomeadamente, acerca da credibilidade oferecida pelos depoimentos prestados por algumas testemunhas, mais concretamente, pelas que foram arroladas pela acusação, não seja susceptível de inverter a apreciação que o Tribunal a quo fez desses mesmos depoimentos.
3- Acresce que as ilações agora retiradas pelo recorrente relativamente a quanto foi testemunhado em sede de julgamento, também não coincide rigorosamente com o que ali foi referido por cada uma das testemunhas, cujos depoimentos fundamentaram a convicção dos julgadores.
4- Depois, entende-se que não tem cabimento esgrimir-se com a doença do recorrente, traduzida numa perturbação Estado - limite da Personalidade - e, para, desse facto, concluir por uma diminuição acentuada da culpa do agente.
5- A conjugação de toda a prova produzida relativamente à compreensão do comportamento do arguido permitiu considerar como provado que o recorrente tinha, " à data da prática dos factos, capacidade para avaliar a licitude ou ilicitude dos seus comportamentos e de se pautar de acordo com essa avaliação, embora, por causa da perturbação acabada de referir, tal capacidade se encontrasse reduzida ".
6- Vigorando a presunção da capacidade penal de todos os indivíduos a partir de determinada idade, só poderá concluir-se o oposto se forem demonstrados, para além de qualquer dúvida, factos que ilidam essa presunção. Não se alcançando essa prova, o indivíduo será considerado imputável.
7- Na hipótese concreta dos autos, nenhum facto ficou demonstrado no sentido de que, no momento da agressão, o arguido não estivesse plenamente capaz de avaliar o alcance dos seus actos.
8- Aliás, em bom rigor, a perturbação de personalidade atribuída ao arguido em nada colide com aquela capacidade, seja em que momento for.
9- Atentando na insistência do arguido para levar a mulher ao que fora a casa do casal e na rapidez com que tudo se passou poder-se-á concluir tal como o Tribunal a quo, pela surpresa da vítima e pela forma súbita, sorrateira e traiçoeira da actuação do arguido.
10- Assim entende-se que as penas aplicadas são perfeitamente adequadas à gravidade dos factos, à intensidade do dolo, às exigências de prevenção geral e especial que a hipótese concreta dos autos impõem.

Subidos os autos, manifestou-se o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no sentido de nada obstar ao conhecimento do recurso.

Tirando as questões de facto para onde o recorrente ilicitamente pretende arrastar a discussão, aqui incluindo a sua pretensão de ser declarado inimputável, as questões a decidir são em suma:
1. Legalidade da condenação pelo crime de maus tratos a cônjuge.
Subsidiariamente, a discussão da medida concreta da pena aplicada por tal crime e que o recorrente defende dever ser especialmente atenuada e situar-se no máximo de 1 ano.
2. Indagar se a correcta qualificação dos factos permite ou não ter o crime de homicídio como qualificado por especial censurabilidade ou perversidade, mormente por não se verificar a circunstância agravante da alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal - meio insidioso - ou, antes, se deve ficar-se pela de homicídio simples, a punir com a pena correspondente fixada em 12 anos de prisão, como impetra o recorrente.
2. Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir.
Factos provados
1º) O arguido e a C M das NPM, beneficiária da Segurança Social n° 111380076, eram casados entre si desde 27 de Novembro de 1993 (fls. 107);
2º) Pelo menos desde 1999 que o arguido começou a tratar mal a C M, sua esposa;
3º) Com efeito, pelo menos a partir de 1999, por diversas vezes, em circunstâncias de tempo e de lugar que não foi possível determinar com exactidão, o arguido dirigiu ameaças a sua esposa, dizendo - lhe, várias vezes, que havia de a matar;
4º) Insistentemente, o arguido pedia dinheiro a sua esposa;
5º) Por vezes, o arguido não deixava a sua esposa sair de casa para ir trabalhar;
6º) Frequentes vezes, o arguido não deixava a sua esposa descansar durante a noite, pois insistia em falar com ela durante a maior parte da noite, bem sabendo que na manhã seguinte a sua esposa teria que ir trabalhar e que, por isso, precisava de descansar durante a noite;
7º) Também era frequente o arguido acordar a sua esposa a meio da noite e obrigá-la a tomar banho consigo;
8º) Algumas vezes, o arguido obrigou a sua esposa, contra a vontade desta, a ter relações sexuais consigo;
9º) Algumas vezes, o arguido apertou o pescoço a sua esposa;
10º) Os actos descritos nos pontos 3º) a 9º) foram repetidamente praticados pelo arguido, durante, pelo menos, cerca de 2 anos;
11º) Para lá do descrito nos pontos 3º) a 10º) dos factos provados, pelo menos duas vezes, o arguido encerrou a C na casa de banho da casa onde habitavam, obrigando - a passar toda a noite nesse compartimento, estando os filhos do casal presentes nessa casa, razão pela qual se aperceberam de tal conduta do arguido e do facto de a C se encontrar encerrada, contra a sua vontade, naquele compartimento;
12º) Por outro lado, pelo menos nos últimos onze meses da vida da C, o arguido não exercia, sem justificação para o efeito, qualquer actividade profissional, nem tinha qualquer fonte de rendimento, passando a quase totalidade dos dias em casa, sem nada fazer, nada contribuindo para os encargos normais da vida familiar deles e dos filhos do casal, razão pela qual tinha que ser a C a suportar, integralmente, aqueles encargos;
13º) Porque não tinha dinheiro para o efeito e porque não prescindisse de ter tabaco e cerveja para consumir durante o dia, o arguido obrigava a C, quase diariamente, antes da mesma sair para trabalhar, a deslocar - se a um estabelecimento de café existente próximo da casa onde habitavam, para aí comprar tabaco e cervejas que depois transportava para aquela casa, para que aí o arguido consumisse esses bens durante o dia;
14º) Algumas vezes, ao fim do dia, o arguido passava no estabelecimento onde a C exercia a sua actividade profissional, retirando à C, contra a vontade desta, a quase totalidade dos rendimentos por ela realizados durante o dia de trabalho;
15º) A falta de qualquer contribuição do arguido para os encargos da vida familiar, agravada pela conduta do arguido referida no ponto 14º) dos factos provados, fez com que a C se debatesse com grandes dificuldades financeiras, a ponto de não satisfazer alguns encargos que tinha assumido, como por exemplo a renda do local onde exercia a sua actividade profissional e a mensalidade da ama que cuidava dos filhos do casal;
16º) Em data exacta que não foi possível determinar, mas compreendida nos últimos doze meses de vida da C e por ocasião da colocação dos alumínios na casa de morada de família sita na Travessa da Igreja, s/n, nas Meirinhas, o arguido agrediu a sua esposa de forma concreta que não foi possível determinar, sendo que nesse dia o arguido também impediu a sua esposa de ir trabalhar;
17º) Cerca de um mês antes da morte da C, o arguido agrediu - a à bofetada;
18º) Por causa de todos os comportamentos a que foi sendo sujeita por parte do arguido e que atrás se relataram, a C foi - se mostrando, cada vez mais, como uma pessoa triste, amargurada e atemorizada, receando que o arguido alguma vez pudesse concretizar as ameaças de morte que fazia;
19º) No dia 24 de Maio de 2001, o arguido ordenou a sua esposa que ela saísse da casa onde viviam, sita na Travessa da Igreja, s/nº, em Meirinhas, razão pela qual a C saiu dessa casa, sendo que juntamente com os seus dois filhos, RPM, nascido a 15/1/98, e RPM, nascido a 1/7/99, foi viver para casa de seus pais;
20º) O arguido era pessoa violenta e detinha na sua posse, guardadas na sua residência, as armas descritas e examinadas a fls. 231 dos autos, concretamente, uma pistola de alarme e um punhal tipo borboleta, com o cabo de abrir e fechar, de inox cromado, com cerca de 10 cm de lâmina e 12 cm de cabo;
21º) Ao maltratar a C M, pela forma e durante o lapso de tempo atrás referidos, o arguido agiu sempre voluntária, livre e conscientemente, com intenção de a molestar física e psicologicamente, do modo descrito, como fez, bem sabendo que dessa forma provocava ofensas no corpo e na saúde daquela, como pretendia e conseguiu;
22º) Conhecia bem que a C M era sua esposa;
23º) Sempre que assim agiu fê--lo com o conseguido propósito de a ofender e maltratar, intimidando-a, ameaçando - a e colocando-a no justo receio de concretização das ameaças que lhe fazia, de forma contínua e reiterada, actuando o arguido, sempre, de molde a atingir a dignidade humana e a saúde física e mental da C M, como visou e conseguiu;
24º) O arguido determinou-se, durante todo o lapso de tempo referenciado, reiterando sucessivamente os mesmos propósitos, cometendo de forma homogénea os repetidos actos, favorecido pelas mesmas circunstâncias exteriores (o facto de viverem juntos) e servindo-se dos mesmos métodos que, sucessiva e repetidamente, se foram revelando aptos para atingir os seus fins;
25º) Apesar de se encontrarem separados desde o dia 24/5/01, o arguido e a C continuaram a encontrar-se regularmente;
26º) A maior parte dos encontros referidos no ponto 25º) dos factos provados ocorreram na casa onde viveram juntos até à separação, sita na Travessa da Igreja, s/nº, nas Meirinhas;
27º) Noutras ocasiões, esses encontros ocorreram na cidade da Marinha Grande, para onde a C M se deslocava, com os seus filhos, a fim de se encontrarem com o arguido;
28º) Na manhã do dia 23/6/01 o arguido deslocou - se ao salão onde a C trabalhava e falou com ela pessoalmente, tentando convencê-la a deslocar - se à mencionada casa;
29º) Para lá disso, durante todo esse dia, o arguido telefonou inúmeras vezes à C M, procurando o arguido convencer a C a deslocar - se, nesse dia, a essa casa, sendo certo que durante o dia 23/6/01 o arguido ingeriu bebidas alcoólicas;
30º) Perante a insistência do arguido, atendendo a que se vinha encontrando regularmente com o mesmo, apesar de se encontrarem separados, e sem suspeitar de que o arguido poderia atentar contra a sua vida, a C M acedeu a encontrar-se com o arguido na casa onde viveram juntos, razão pela qual, cerca das 20 horas desse dia 23/6/01, o arguido foi buscar a C na sua viatura automóvel à residência dos pais dela;
31º) Juntamente com os seus identificados filhos menores, a C entrou, então, na viatura do arguido, que os conduziu para a casa do casal sita na Travessa da Igreja, s/ n°, Meirinhas, Pombal, onde chegaram minutos depois;
32º) Aí chegados, o arguido dirigiu-se a FARS, que aí aguardava a chegada do arguido para com ele e a seu convite conversarem e consumirem cervejas, disse-lhe que precisava de falar a sós com a esposa, após o que o arguido e a C entraram sozinhos para o interior daquela casa, deixando os seus filhos no exterior, ficando o R Portela na companhia do FS e o R em local concreto que não foi possível determinar;
33º) Logo depois do arguido e a C terem entrado naquela casa, ele ou a C trancou a porta da cozinha por onde entraram, para impedir que alguém acedesse ao interior da casa a partir do seu exterior, sendo certo que anteriormente, em momento exacto que não foi possível determinar, o arguido já tinha trancado todas as janelas e as outras portas de acesso ao interior da casa;
34º) Já no interior da casa, a C M ficou sem as sapatilhas que trazia calçadas e sem a blusa que envergava, ficando com o soutien;
35º) Foi nessa ocasião, instantes depois do arguido e a C terem entrado nessa casa, que, por razões que, de todo, não foi possível determinar, o arguido se muniu de duas facas que ali se encontravam, facas essas que estão apreendidas e examinadas nos autos a fls. 374 a 377, uma com lâmina de 25 cm de comprimento e 3 cm de largura e a outra com lâmina de 10,5 cm de comprimento e 2 cm de largura, e com elas começou a desferir facadas no corpo da C M, provocando-lhe, designadamente e além de outros ferimentos:
- Ferida corto-perfurante, na transição da base da região dorsal esquerda para a região lombar esquerda ( ferida A da fotografia n° 2 de fls. 181 ), tendo a lâmina penetrado na cavidade abdominal a nível da região dorsal esquerda;
- 3 feridas corto-perfurantes na região dorso-lombar e do flanco direito (fotografia n° 3 de fls. 182 ), sendo que a ferida de localização superior media 5,5 cm de comprimento por 1,5 de abertura de bordos, apresentava a nível da extremidade mais posterior uma lesão linear e superficial que alargava e aprofundava para a extremidade mais anterior que apresentava já um aspecto arredondado (ferida corto-perfurante B), a ferida de localização mais anterior media 2,5 cm de comprimento por 1 cm de abertura de bordos (ferida C), a ferida de localização mais inferior media 5 cm de comprimento por 2,5 cm de abertura de bordos (ferida corto-perfurante D), sendo certo que nas feridas B e C a lâmina penetrou até ao tecido celular sub - cutâneo com um trajecto paralelo à superfície do corpo, iniciando-se num dos ferimentos e exteriorizando-se no outro, parecendo tratar-se da ferida de entrada e da ferida de saída da mesma facada, e na ferida D a lâmina penetrou na cavidade abdominal a nível da região dorso-lombar direita, seguiu um trajecto obliquamente descendente, de trás para a frente e de fora para dentro, até à fossa ilíaca direita, onde lesou o soas e seccionou a artéria ilíaca externa;
- 2 feridas corto-perfurantes a nível da face anterior do tórax (fotografia n° 4 de fls. 182 ), uma na linha média abaixo da linha dos mamilos (ferida E, onde a lâmina penetrou no tecido celular subcutâneo até atingir o corpo do externo) e outra situada 2 cm à esquerda da linha média ao nível do apêndice xifoide (ferida F, na qual a lâmina penetrou na cavidade abdominal a nível do epigastro, num trajecto da frente para trás e de cima para baixo e ligeiramente oblíquo da esquerda para a direita, lesou o lobo direito do fígado, o duodeno proximal, a cabeça do pâncreas e o peritoneu parietal a nível do 11º espaço intercostal);
- 3 feridas a nível da face anterior da base da grelha costal esquerda, uma ferida corto - perfurante a nível do hipocôndrio esquerdo, com 3 cm de comprimento por 2 cm de abertura de bordos (ferida G - fotografia n° 4 de fls. 182), onde a lâmina penetrou na cavidade abdominal a nível do flanco esquerdo, num trajecto oblíquo de fora para dentro, de cima para baixo, e lesionou o peritoneu parietal imediatamente à direita da linha média e abaixo da cicatriz umbilical;
- escoriação na face antero-interna do terço inferior do braço direito e escoriação na face anterior do cotovelo direito;
- escoriação em V na face posterior do terço médio do braço esquerdo (fotografia 7 de fls. 184);
- duas feridas incisas na face postero-externa do terço superior do antebraço esquerdo;
- duas infiltrações sanguíneas discretas do couro cabeludo na região temporo-parietal direita (fotografia 10 de fls. 185) e outra na região occipital (foto 11 de fls. 186 ), e ainda outra a nível da região parieto-occipital;
- ferida incisa do peritoneu parietal a nível da parte posterior do 11° espaço intercostal, à direita, na continuação da ferida corto-perfurante F;
- ferida incisa do peritoneu parietal a nível da parte posterior do 10° espaço intercostal esquerdo, em relação com a ferida corto-perfurante A;
- ferida incisa do peritoneu parietal a nível do flanco direito, em relação com a ferida corto-perfurante D;
- ferida incisa do peritoneu parietal, imediatamente à direita da linha média e abaixo da cicatriz umbilical, na continuação da ferida corto-perfurante G;
- ferida incisa do peritoneu parietal, a nível do flanco esquerdo, em relação com a ferida corto-perfurante G;
- ferida incisa do músculo soas, à direita, em relação com ferida corto - perfurante D;
36º) As lesões acabadas de referir estão melhor descritas e examinadas no relatório de autópsia ao cadáver da vítima constante de fls. 176 a 180 dos autos.
37º) As lesões traumáticas descritas foram produzidas por instrumento corto--perfurante manejado pelo arguido, com violência, e vieram a causar, directa e necessariamente, a morte da C M, que lhe sobreveio de imediato;
38º) Ao actuar da forma descrita procedeu o arguido com o propósito de tirar a vida à C M, ao procurar atingi-la, como fez, com pelo menos 7 facadas, em zona onde se localizam órgãos vitais do corpo, para onde dirigiu os golpes, com profundidade tal que lhe atingiu o abdómen;
39º) O arguido bem sabia que daí poderia resultar, -como visava e conseguiu, a morte da vítima;
40º) O arguido atingiu a C M de modo súbito, sorrateiro, traiçoeiro e com total surpresa para a C M;
41º) O arguido atingiu a C M quando esta se encontrava descuidada e confiante, retirando-lhe, assim, qualquer possibilidade de defesa, quer pela surpresa do ataque, quer pela violência desse mesmo ataque, quer pela superioridade física do arguido, quer ainda porque as portas e janelas da casa se encontravam trancadas;
42º) O arguido utilizou as ditas facas descritas e examinadas a fls. 375 dos autos, para com elas esfaquear e matar a C M, bem sabendo que as não podia deter e usar para esse efeito, como fez, nas descritas circunstâncias, por tal lhe ser proibido;
43º) Em idênticas circunstâncias e sem justificar a sua posse, o arguido deteve o punhal apreendido e descrito nos autos, que lhe pertencia, cujas características foram dadas por reproduzidas;
44º) O arguido desferiu, pelo menos, sete golpes profundos na C M;
45º) O arguido manejou as facas com violência tal que a mais pequena se partiu;
46º) Quis, do modo descrito, provocar a morte da vítima, o que efectivamente veio a conseguir;
47º) O arguido agiu, sempre, de modo livre, voluntário e consciente;
48º) Nos últimos meses que antecederam o dia 23/6/2001 e neste mesmo dia, o arguido revelava um quadro pouco consistente de sintomatologia depressiva, com inconstância funcional afectiva e sócio - profissional, salpicada, aqui e ali, por relatos de atitudes violentas, quando contrariado, com mecanismos projectivos na avaliação dos factos, sendo muitas vezes desconfiado, com dificuldade em integrar de forma saudável as dificuldades do quotidiano, ultrapassando-as ao fazer exigências cada vez mais frequentes e sistemáticas a sua esposa, reflectindo nestas a sua instabilidade afectiva, a sua impulsividade de difícil controle, que o levava, por vezes, a consumos imoderados de bebidas alcoólicas;
49º) Revelava, também, ideação paranóide em relação a sua esposa e restante família, achando-se uma pessoa para quem todos seriam injustos, sendo este um aspecto de funcionamento global psico-afectivo que se mantinha de forma constante no seu estar de personalidade perante o quotidiano;
50º) O arguido sofria, e ainda sofre, de uma perturbação de Estado-Limite de Personalidade (borderline) - 301.83 do DSM IVTR, doença esta que torna aconselhável a que o arguido seja sujeito a tratamento psiquiátrico adequado, pois que na falta desse tratamento há sério risco do arguido vir a praticar comportamentos violentos em relação a si próprio e em relação a terceiros;
51º) O arguido tinha, à data da prática dos factos, capacidade para avaliar a licitude ou ilicitude dos seus comportamentos e de se pautar de acordo com essa avaliação, embora, por causa da perturbação acabada de referir, tal capacidade se encontrasse reduzida;
52º) O arguido conhecia bem que todo o seu comportamento supra descrito lhe estava legalmente vedado, por ser ilícito e criminalmente punível;
53º) No decurso da avaliação psicométrica a que foi sujeito no decurso deste processo e a que se reporta o relatório de fls. 962 a 970, o arguido apresentou - se orientado em termos temporais e espaciais, a sua postura e expressão facial eram tranquilas, o discurso era conexo e o nível de vocabulário de acordo com o seu nível sócio-cultural, sendo que facilmente aderiu às tarefas que lhe foram propostas, com a atenção captável e fixável, não tendo sido detectadas atitudes de simulação;
54º) Trata-se de um indivíduo com funcionamento intelectual global que se inclui no nível médio;
55º) Apresentava um quociente de inteligência total entre os 90 e 100 pontos;
56º) Apresentava uma superioridade significativa do quociente de inteligência verbal relativamente ao quociente de inteligência de execução, sem, contudo, apresentar algum tipo de lesão cerebral, sendo que a existência daquela diferença significativa entre os dois quocientes poderá ser explicada pelo facto das provas de execução serem limitadas no tempo e na altura da administração do teste o arguido estava sob o efeito de psicofármacos, o que implica uma certa lentificação em termos psicomotores;
57º) Ao nível das dimensões psicopatológicas da personalidade, o arguido apresenta:
- sintomas associados clinicamente com níveis altos de ansiedade;
- sintomas característicos do síndroma clínico da depressão;
- ideação paranóide (engloba as características primárias do pensamento do tipo paranóide, tais como elevado grau de suspeição, hostilidade, ideias persecutórias - convicção de que está a ser perseguido e alvo de um complot para o prejudicar);
- instabilidade emocional (sentimentos de tristeza, acessos de cólera, irritabilidade e níveis altos de ansiedade);
- incapacidade de tolerar as frustrações que se traduz num comportamento impulsivo, a passagem ao acto, a qual pode revestir-se de comportamentos auto-agressivos (auto-mutilação, tentativas de suicídio, acessos bulímicos, etc.) ou/e comportamentos hetero-agressivos (acessos de cólera e mesmo de violência), sendo que no caso do arguido parece haver predominância dos comportamentos hetero-agressivos e um funcionamento predominantemente no plano extra-punitivo;
58º) O arguido nasceu em França, dado que seus pais eram emigrantes;
59º) É o quarto filho de uma frataria de cinco;
60º) A gravidez de que nasceu foi acidental;
61º) A gravidez e o parto foram normais;
62º) Teve um desenvolvimento psico-motor dentro dos padrões normais;
63º) A família do arguido regressa a Portugal quando o R tinha cinco anos, na sequência de opção tomada pelo pai, que queria que os filhos estudassem em Portugal, sendo que o arguido e seus irmãos adaptaram-se bem;
64º) O arguido ingressa na escola primária aos seis anos e faz o percurso escolar com bom aproveitamento até ao 6° ano de escolaridade, altura em que reprova por faltas;
65º) Por sugestão da professora o arguido interrompe os estudos, em Junho de 1984, durante um ano;
66º) Quando o arguido tinha onze anos e nove meses (Agosto de 1984), o pai faleceu vítima de acidente de viação;
67º) A dinâmica familiar sofre, então, profundas alterações;
68º) Aos treze anos o arguido retoma os estudos mas desiste passados dois ou três meses;
69º) Começa, então, a acompanhar os empregados de uma empresa de furos artesianos;
70º) Em 1987, a mãe do arguido cumpriu cerca de seis meses de pena efectiva de prisão;
71º) A irmã mais velha (G) vai viver com o namorado e é a irmã G que assume toda a responsabilidade de cuidar dos irmãos, sendo que as ajudas dos familiares foram esporádicas e escassas;
72º) Desde os doze anos e ao longo de toda a adolescência o arguido frequentou assiduamente bailes e discotecas, tendo colaborado com vários grupos musicais (inicialmente transportando o material e mais tarde trabalhando nas mesas de mistura de som);
73º) Era frequente, conjuntamente com os amigos, fazerem apostas para seduzirem raparigas;
74º) Os relacionamentos foram múltiplos e mantinha vários em simultâneo;
75º) A superficialidade nas relações afectivas, o menosprezo pelos sentimentos dos outros e ausência de sentimentos de culpabilidade, são bem evidentes no arguido, estando patente, também, o carácter impulsivo e a procura constante de excitação que provém do jogo e da mentira;
76º) Aos dezanove anos inicia o relacionamento com a C, também na sequência de uma aposta;
77º) Aos vinte e um anos contrai casamento com a C;
78º) Desde início o arguido considerou os sogros como pessoas que se intrometiam na sua vida e controlavam os seus passos;
79º) Pouco tempo depois, ocorre a ruptura da relação do arguido com os sogros;
80º) O arguido saiu de casa dos sogros, onde o casal residia, e sozinho foi viver com a mãe, estando a C grávida do primeiro filho;
81º) Passados três meses, o arguido e a esposa alugam um apartamento em Pombal e aí permanecem dois anos;
82º) Por insistência da esposa constroem uma casa nas Meirinhas, num terreno cedido pelos pais da C, terreno esse que fica junto à casa dos sogros e das cunhadas do arguido;
83º) A mudança para Meirinhas acontece no Verão de 2000;
84º) Se anteriormente a relação entre o casal era pautada pela instabilidade a vários níveis, com a mudança para Meirinhas os conflitos agudizam-se;
85º) O arguido inicia o consumo excessivo de álcool e começa a isolar-se em casa;
86º) Passa os dias deitado no sofá a ver televisão e mantém a casa às escuras;
87º) Em 24/5/01, ordena à C que saísse da casa de morada de família, o que esta cumpriu nos termos descritos no ponto 19º) dos factos provados;
88º) A ideação de tonalidade paranóide, que inicialmente era focalizada nos sogros (sentimento de que o espiavam, que o perseguiam e o queriam prejudicar), foi - se estruturando e abrangendo, igualmente, a C, os familiares mais próximos do arguido e todas as pessoas de uma forma indiscriminada;
89º) Dada a progressiva deterioração do estado de saúde mental do arguido e as manifestações de agressividade e violência, os familiares da C resolveram tomar providências, na sequência do que participaram à GNR local, contactaram a Associação de Apoio à Vítima e da Delegada de Saúde de Pombal obtêm uma declaração médica (datada de 24/05/01) que é entregue no Tribunal com o objectivo de requerer o Internamento Compulsivo do arguido;
90º) O arguido é conduzido pela GNR ao serviço de urgência do Hospital de Leiria, em 25/05/01, sendo medicado e tendo tido alta por exigência própria, forçando sua irmã G a assinar o termo que consta de fls. 264;
91º) Nesse mesmo dia, volta a ser atendido nas urgências de psiquiatria do Hospital de Santo André, assim como nos dias 28/05/01 e 11/06/01;
92º) O arguido não desenvolveu hábitos regulares de trabalho, não lhe sendo conhecido um emprego estruturado, sendo identificado como um indivíduo que vivia a expensas da esposa, uma vez que lhe exigia grande parte do dinheiro que obtinha do desempenho da sua actividade de esteticista;
93º) Junto dos seus familiares e afins o arguido apresentava-se como um indivíduo teimoso, com espírito de contradição, quezilento, muito ciumento e possessivo;
94º) A perda precoce do pai, as limitações e dificuldades sentidas pela mãe em exercer a dupla função e, mais tarde, a ausência da mãe traduzem uma interacção com a figura materna de natureza pouco vinculativa;
95º) Este factor e a ausência da figura paterna tiveram repercussões no processo de maturação psicológica e concomitantemente no padrão comportamental/relacional adoptado pelo arguido;
96º) Provavelmente, estes factores estiveram na génese da instabilidade/labilidade emocional (irritabilidade, desespero, ansiedade e tristeza), de uma perturbação da identidade caracterizada por uma marcada e persistente instabilidade da auto-imagem ou do sentimento de si próprio e, ainda, de um sentimento de profunda insegurança com dúvidas constantes relativamente às intenções reais dos outros;
97º) Durante os períodos de stress extremo pode ocorrer ideação paranóide transitória (elevado grau de suspeição, hostilidade, ideias persecutórias e de auto-referência - convicção de que está a ser perseguido e alvo de um complot para o prejudicar);
98º) Estes episódios surgem mais frequentemente como resposta ao abandono real ou imaginado, sendo acompanhados pelas angústias de abandono e pelos sentimentos de rejeição (no caso em questão o distanciamento afectivo da C);
99º) O consumo excessivo de álcool aumenta em termos de frequência nesta fase de descompensação;
100º) O arguido padece de uma perturbação Estado - Limite da Personalidade (Borderline) caracterizada por:
- esforços frenéticos para evitar o abandono real ou imaginado;
- perturbação da identidade: instabilidade persistente e marcada da auto - imagem ou do sentimento de si próprio;
- impulsividade;
- instabilidade afectiva por reactividade de humor marcada (por exemplo, episódios intensos de disforia, irritabilidade ou ansiedade);
- sentimento crónico de vazio;
- raiva intensa e inapropriada ou dificuldades de a controlar (por exemplo, episódios de perda da calma, raiva constante, brigas constantes);
- ideação paranóide transitória reactiva ao stress;
101º) No estabelecimento prisional o arguido tem vindo a ser acompanhado clinicamente, desde 20/7/01, por síndroma depressivo com ideação suicida, revelando, além do mais, ideias delirantes persecutórias, alucinações auditivo verbais, sensação de estranheza, ansiedade, humor depressivo, com ideias ruminativas, tendo sido sujeito à seguinte medicação: Mutabon D 3cp/dia; Haldol 5 mg 1 cp/dia; Metamidol 10mg 3cp/dia; Normison ou Morfex 30 mg 1 cp/dia;
102º) O arguido foi sujeito a electroencefalograma apresentando traçados de vigília prejudicados por abundantes artefactos oculopalpebrais e de movimento, traçados com ritmo de base alfa irregulares com frequência aproximada de 11/12 Hz de média amplitude, de predomínio posterior, simétrico, reacção de bloqueio ao abrir dos olhos incompleta, isentos de aspectos com significado patológico;
103º) Foi, também, sujeito a tomografia cranioencefálica na qual se concluiu que o arguido não apresenta alterações endocraneanas significativas com tradução tomodensitométricas;
104º) Cerca de um mês antes da data em que ocorreu a morte da C, o arguido encontrava-se de tal forma descontrolado, de tal forma perturbado, que a C, a mãe do arguido e a sua irmã GFFM providenciaram pelo seu internamento compulsivo;
105º) Para o efeito, em 24/05/01, a Dr.ª M AB emitiu uma declaração na qual afirma que o arguido possuía problemas de foro psiquiátrico e que necessitava de ser internado compulsivamente, declaração essa que consta de fls. 117 dos presentes autos dada por integralmente reproduzida;
106º) A progressiva degradação da sanidade mental do arguido foi descrita pela C como um dos fundamentos para requerer contra o arguido a dissolução, por divórcio, do casamento entre eles celebrado (cfr. 98 a 105 dos presentes autos);
107º) Em 23 de Junho de 2001, aquando da detenção do arguido pela GNR de Pombal, foram apreendidas, nomeadamente, uma caixa de comprimidos de marca Risperdal, usada, e uma caixa de comprimidos de marca Cloxam, também usada, fármacos estes que se encontravam na posse do arguido nesse dia 23/6/2001 e que o mesmo tomava nessa ocasião;
108º) O Risperdal está indicado para o tratamento de uma grande variedade de doentes com esquizofrenia, incluindo primeiro episódio, exacerbação aguda de esquizofrenia, esquizofrenia crónica e outras situações psicóticas, nas quais sejam dominantes os sintomas positivos (tais como alucinações, ideias delirantes, perturbações do pensamento, hostilidade, desconfiança) e/ou os sintomas negativos (tais como, embotamento afectivo, isolamento social, pobreza de discurso);
109º) O Risperdal também pode aliviar os sintomas afectivos (tais como depressão, sentimentos de culpa, ansiedade) associados com a esquizofrenia;
110º) O Risperdal também está indicado como tratamento prolongado para a prevenção de recidivas (exacerbações agudas) em doentes esquizofrénicos crónicos;
111º) Para além disso, está indicado para o tratamento de perturbações no comportamento em doentes com demência em que sejam dominantes sintomas tais como agressividade (violência física e verbal), perturbações da actividade motora (agitação, vaguear) ou sintomas psicóticos;
112º) Quando for necessário sedar o doente, pode-se associar à administração do Risperdal uma benzodiazepina;
113º) O Cloxam é uma benzodiazepina;
114º) As benzodiazepinas só são indicadas quando a doença é grave, incapacitante ou o indivíduo está sujeito a angústia extrema;
115º) As benzodiazepinas podem induzir amnésia anterógrada e podem provocar reacções de inquietação, agitação, irritabilidade, agressividade, ilusões, ataques de raiva, pesadelos, alucinações, psicoses;
116º) O arguido refere não se recordar de nada do que aconteceu, no dia 23/6/01, no interior da casa onde havia habitado com a C, depois de nela ter entrado juntamente com a C;
117º) A perturbação Estado - Limite da Personalidade é uma doença com as características de diagnóstico, as características e perturbações associadas, as características específicas da cultura, idade e género, a prevalência, a evolução, o padrão familiar e o diagnóstico diferencial melhor descritos a fls. 1090 a 1095.
118º) Os demandantes FOP e esposa eram os pais da C;
119º) Os menores R e R, são filhos dela e do arguido;
120º) Na acção especial com o n° 343/01, do 2º juízo do Tribunal de Pombal, o arguido foi suspenso de exercer o poder paternal relativamente aos filhos, até decisão definitiva na acção de inibição do poder paternal, ficando os menores confiados aos tios F e C;
121º) Os demandantes F e esposa despenderam, com o funeral de sua filha, a quantia de 1.038 euros;
122º) Se estivessem verificados os respectivos pressupostos legais, a CM poderia ser obrigada a prestar alimentos a seus pais, sendo que à data do seu falecimento a mesma C não prestava alimentos a seus pais, pois estes deles não careciam;
123º) A CM nasceu em 26/11/72 (fls. 129);
124º) Os demandantes F e esposa nasceram, respectivamente, em 4/8/1938 e 20/6/1941;
125º) À data do seu falecimento, a C era sócia de PERFECT - Gabinete de Beleza, L.da, trabalhando como esteticista num estabelecimento dessa sociedade, auferindo um rendimento médio mensal que não foi possível determinar;
126º) Nesta altura o arguido não presta alimentos a seus filhos;
127º) Os menores ouviram os gritos de sua mãe ao ser esfaqueada pelo arguido, viram sua mãe morta, ainda no local onde a mesma foi morta pelo arguido, logo depois do arguido ter saído do interior da residência em que a matou, viram os instrumentos do crime e o sangue que escorria de sua mãe, com o qual acabaram por se sujar, e jamais esquecerão tais sons e imagens;
128º) Por causa da conduta do arguido, os menores ficaram privados dos cuidados e carinhos de sua mãe, dos quais dependiam e tinham necessidade;
129º) Nenhum parente, por mais atenções e cuidados que lhes dispense, substituirá o amor da mãe que lhes foi subtraído;
130º) A saudade da mãe será uma constante pelo resto das suas vidas;
131º) A C era uma mulher activa, com enorme força de viver, apesar da sua vivência conjugal com o aqui arguido;
132º) Era uma mãe irrepreensível, encantadora, trabalhando o mais que lhe era possível para que nada faltasse aos seus filhos;
133º) Tinha ânimo e tempo para brincar com os seus filhos, procurava disfarçar o seu mau relacionamento com o arguido e o mau viver daí decorrente, e esforçava - se para manter um bom relacionamento com a generalidade das pessoas das suas relações pessoais e profissionais;
134º) Com base no falecimento da C foram requeridas ao Centro Nacional de Pensões, pelos seus filhos R e R, as respectivas prestações por morte, as quais foram deferidas;
135º) Em consequência, o CNP pagou aos referidos filhos, a título de subsídio por morte, o montante de € 1.108,52;
136º) O arguido é primário.

Factos não provados
Para lá dos acabados de descrever, nenhuns outros factos se provaram, de entre os alegados na pronúncia, nos pedidos de indemnização e na contestação do arguido.
Em especial, não se provou que:
- o arguido chamasse nomes a sua esposa e que lhe dissesse que tinha amantes;
- fossem quase diárias as ameaças referidas no ponto 3º) dos factos provados;
- constantemente, o arguido se dirigisse a sua esposa dizendo-lhe que não era boa mãe nem boa mulher;
- o arguido obrigasse a sua esposa a pedir dinheiro emprestado ao pai dela;
- a agressão descrita no ponto 16º) dos factos provados tenha sido a murro e à bofetada;
- a agressão descrita no ponto 17º) dos factos provados tenha sido a murro;
- a C tivesse saído da casa onde vivia com o arguido pelo facto de mais uma vez ter sido ameaçada pelo arguido;
- tivesse sido da iniciativa da C M a saída de casa descrita no ponto 19º) dos factos provados;
- por vezes, o arguido transportasse as armas descritas no ponto 20º) dos factos provados;
- o arguido utilizasse as armas referidas no ponto 20º) dos factos provados para com elas consumar as ameaças na pessoa de sua esposa;
- tivesse sido por decisão sua, voluntariamente tomada na sequência dos maus tratos a que era sujeita por parte do arguido, que a C M tivesse abandonado a residência familiar, indo viver com os seus pais;
- quando o arguido telefonou à C M nos termos descritos no ponto 29º) dos factos provados o mesmo já tivesse decidido concretizar as ameaças que constantemente fazia a sua esposa, procurando, através desses telefonemas, atraí-la para um local onde a pudesse matar;
- o R P tenha ficado na companhia do FS;
- o arguido se tenha munido das facas descritas no ponto 35º) dos factos provados, que já aí tinha para com elas matar a C, logo que entrou na casa;
- o arguido atraiu a C M à casa onde viveram juntos, com o propósito já formulado de a matar, para, desse modo, melhor e mais facilmente concretizar os seus intentos;
- o arguido alguma vez tenha utilizado o punhal apreendido nos autos;
- o punhal apreendido ao arguido seja instrumento sem aplicação definida;
- o arguido actuou com premeditação e com prévia reflexão sobre a forma de actuação e sobre os meios a empregar para matar a C, tendo planeado matá-la com as facas que já tinha seleccionado para o efeito;
- o arguido determinou-se com frieza de ânimo, sangue frio, insensibilidade e indiferença, com uma vontade formada de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso e calmo na preparação e execução do crime, escolhendo de entre os meios que tinha disponíveis o mais idóneo e apto a atingir os seus objectivos;
- o arguido tenha procurado aumentar o sofrimento da C M antes desta falecer;
- só por si, independentemente do modo como sejam usadas, do circunstancialismo em que sejam usadas, do momento da decisão de as usar e do momento da concretização dessa decisão, as facas sejam meio particularmente perigoso e insidioso;
- efectivamente, o arguido não se recorde de nada do que aconteceu, no dia 23/6/01, no interior da casa onde havia habitado com a C, depois de nela ter entrado juntamente com a C;
- tivesse sido com navalhas que o arguido desferiu na CM inúmeras navalhadas das quais decorreram para a C os ferimentos e lesões traumáticas que lhe provocaram a morte;
- à data do seu falecimento a CM auferisse um rendimento médio mensal de 130.000$00 ( 648.44 euros );
- tenha sido sempre a CM a providenciar por todas as despesas inerentes à sobrevivência dos filhos dela e do arguido;
- o arguido nunca contribuiu com o que quer que fosse para os encargos da vida familiar;
- os menores R e R terminarão a sua vida académica não antes de atingirem os vinte e cinco anos e, só então, terão capacidade para prover ao seu próprio sustento;
- os menores R e R tivessem visto o arguido golpear a CM, nos termos melhor descritos no factos provados.

Convicção do tribunal
«A convicção do tribunal formou-se, no que aos factos provados respeita, com base na prova globalmente produzida e examinada na audiência de julgamento e, em especial, com base na conjugação dos seguintes elementos de prova:
- documentos juntos aos autos, designadamente, os constantes de fls. 6 a 11, 22, 23, 38, 46 a 52, 97 a 118, 129, 230 a 233, 261 a 271, 374 a 377, 404, 432 a 439, 599 a 602, 634 a 638, 647, 780 a 794, 822, 960, 961, 1089 a 1095;
- relatório de autópsia de fls. 175 a 180 e fotografias de fls. 181 a 187;
- relatórios do IRS de fls. 297 a 300 e 616 a 620;
- relatório de avaliação psicológica que consta de fls. 962 a 970;
- relatório da perícia psiquiátrica realizada ao arguido e que consta de fls. 953 a 959, complementado pelos esclarecimentos orais prestados pela autora (Dr.ª AMSA) desse relatório em audiência de julgamento, de tudo resultando que à data da prática dos factos e actualmente o arguido padecia e padece da perturbação Estado - Limite de Personalidade referida nos factos provados, sendo que de acordo com o juízo científico da Sr.ª Dr.ª AA essa perturbação causava no arguido, à data da prática dos factos, uma redução da sua capacidade de avaliar a licitude ou ilicitude do seu comportamento e de se determinar de acordo com essa avaliação, com a consequente imputabilidade diminuída do arguido, para lá de que essa mesma perturbação torna recomendável, no juízo científico da mesma clínica, a sujeição do arguido a adequado tratamento psiquiátrico, sem o qual há sério risco do arguido tornar a praticar comportamentos violentos;
- confissão do arguido relativamente à detenção, na sua residência, das armas descritas no ponto 20º) dos factos provados;
- depoimentos conjugados de FOP (pai da C, a quem esta contou, a partir de certa altura, especialmente a partir de 24/5/01, o seu relacionamento conjugal com o aqui arguido, designadamente, os maus tratos físicos e psíquicos a que o arguido a sujeitava, sendo certo que uma vez o declarante pôde ouvir os gritos emitidos por sua filha, no interior da casa onde residia, por causa de estar a ser agredida pelo arguido, tendo o declarante a percepção de que a sua filha andava cada vez mais triste por causa dos comportamentos do arguido a que era sujeita; o depoente relevou, também, conhecimentos sobre o modo de vida e personalidade do arguido, além de ser testemunha presencial das circunstâncias de tempo, de modo e de lugar em que a C entrou no veículo conduzido pelo arguido, onde já se encontravam os filhos de ambos, no próprio dia 23/6/01, momentos antes do arguido ter tirado a vida à C; o declarante relatou, ainda, as circunstâncias em que da casa onde habitava o arguido foram retirados o punhal e a arma de alarme referidos nos factos provados; finalmente, o declarante pronunciou-se sobre as despesas que suportou com o funeral de sua filha;), FARS (pessoa que no dia 23/6/01, cerca das 19 h 30 m estava no café Mercado, na companhia do arguido, quando este saiu para ir ao encontro da C M, e que se dirigiu para a casa onde o arguido habitava com o objectivo de ali aguardar pelo arguido, pois este tinha - o convidado, no momento em que saiu do café, para ir à referida casa e ali conversarem e consumirem cerveja; a testemunha estava junto ao pátio dessa casa quando ali chegaram o arguido, a C e os filhos de ambos, sem que fossem perceptíveis sinais de desentendimento entre o arguido e a C, após o que o arguido e a C se dirigiram para o interior da casa, dizendo o arguido que precisava de falar a sós com a C, tendo a testemunha e os filhos daqueles ficado no exterior da casa, sendo que instantes depois a testemunha começou a ouvir gritos femininos no interior daquela casa, razão pela qual procurou entrar no interior da mesma, o que não conseguiu, pois todas as portas e janelas estavam trancadas; a testemunha pronunciou-se, ainda, sobre o comportamento evidenciado pelo arguido no dia 23/6/01, antes do arguido ter entrado na sua casa na companhia da C, não tendo denotado qualquer anomalia nesse comportamento por referência ao que normalmente era assumido pelo arguido;), VFPF e JMMG (elementos da PJ que se deslocaram à casa onde a C foi morta, com o objectivo de ser realizada uma recolha de vestígios lofoscópicos, tendo eles chegado a essa casa numa ocasião em que o cadáver da C ainda aí se encontrava, tendo sido estas testemunhas que tiraram as fotografias que constam de fls. 46 a 52;), (ama dos filhos do arguido e da C que esteve na companhia dos primeiros desde a manhã do dia 23/6/01 até ao final desse dia, tendo relatado as circunstâncias em que a C foi buscar os seus filhos a casa da testemunha no final do dia 23/6/01, para lá de se ter pronunciado sobre as qualidades da C enquanto mãe e do arguido enquanto pai; a testemunha também relatou especiais preocupações que a C vinha revelando relativamente à guarda de seus filhos nas ausências dela determinadas por razões profissionais e relativamente a contactos que pudessem ocorrer entre o arguido e os filhos de ambos; a testemunha presenciou, igualmente, um encontro entre o arguido e a C na manhã do dia 23/6/01, no estabelecimento onde a C desempenhava a sua actividade profissional, tendo ficado com a impressão de que existiam desentendimentos entre eles; finalmente, a testemunha também se pronunciou sobre a tristeza que a C revelava no seu comportamento;), M MGMM (empregada de um estabelecimento comercial de café próximo da casa onde o arguido tirou a vida à C M, estabelecimento onde, quase diariamente, a C comprava tabaco e cerveja para o arguido, estabelecimento esse em que o arguido esteve durante a manhã e durante a tarde de 23/6/01, tendo realizado vários telefonemas a partir desse estabelecimento, tendo sido nesse estabelecimento que ao fim da tarde desse dia o arguido se encontrou com a testemunha FS, tendo o arguido saído desse café antes dessa testemunha;), CACS e JFB (soldados da GNR que acorreram ao local onde o arguido matou a C M, instantes depois dessa morte se ter produzido, aí tendo procedido à detenção do arguido, que transportaram para o posto da GNR de Pombal, sendo o primeiro autor dos autos de fls. 2 a 4, 6 e 7;), FALB (bombeiro voluntário que, em serviço, se deslocou ao local onde a CM foi golpeada pelo arguido, tendo aí procurado, de modo infrutífero, reanimar a CM;), CMJS (testemunha que se encontrava numa praça próxima da casa do arguido e da CM, na altura em que nessa praça apareceu FAR a dizer que o arguido estava a matar a C M, razão pela qual a testemunha se deslocou para aquela casa com o propósito de socorrer a CM, o que não conseguiu, pois que quando ali chegou o arguido já estava no exterior da residência, encontrado - se a C M morta no interior da casa, sendo certo que os filhos do arguido e da C andavam, a chorar e sujos com o sangue da mãe, em volta do cadáver desta; a testemunha também se pronunciou sobre o modo de vida do arguido e sobre uma agressão física que o arguido infligiu à C M, algum tempo antes de 23/6/01, por ocasião da colocação dos alumínios na casa do arguido e da C M;), NJCC (vizinha do arguido e da C M, durante cerca de um ano, sendo que no dia 23/6/01 assistiu à chegada do arguido, da C e dos filhos do casal à casa onde o arguido acabou por matar a C; a testemunha também assistiu a vários encontros ocorridos entre a C M e o arguido, na casa do casal, mesmo depois dos mesmos se encontrarem separados;), AF (primeira pessoa que, com o propósito de socorrer a CM, se deslocou à casa onde a mesma estava a ser golpeada pelo arguido, facto de que teve conhecimento através de FAR, o qual surgiu junto ao café Mercado, quando esta testemunha chegava a esse café, dizendo o referido FS que o arguido estava a matar a CM;), ZCPG (psicóloga de profissão e cliente da CM, a quem esta, cerca de um mês antes de 23/6/01, lhe pediu ajuda, por recear que o arguido a matasse, sendo certo que na sequência desse pedido a C manteve com a testemunha conversas diversas em que lhe relatou aquilo que tinha sido a sua vivência conjugal com o arguido e o mau tratamento físico e psicológico que este lhe dispensou; na sequência desse pedido de ajuda, a testemunha tentou mediar o conflito conjugal existente entre o arguido e a CM, tendo, até, promovido e participado numa reunião entre a C, o advogado desta e o arguido, reunião essa no decurso da qual o arguido acabou por ameaçar de morte a CM; a testemunha também envidou esforços, junto da GNR e do Tribunal, no sentido de se obter um internamento psiquiátrico do arguido, pois era notório que o mesmo se encontrava psicologicamente transtornado; finalmente, sem interferência da sua parte, a testemunha também foi contactada pela mãe e por uma irmã do arguido, que lhe relataram preocupação pela situação que era vivenciada pelo arguido e pela C, tendo a mãe e irmã do arguido relatado à testemunha episódios de agressividade e violência do arguido em relação a seu padrasto e a terceiros;), CMP (irmã da CM, a quem esta relatou, depois da separação entre ela e o arguido, a vivência conjugal de ambos e os maus tratos que o arguido dispensava à C; a testemunha também relatou ao tribunal a vivência da CM no último dia de vida desta, dando conta do facto do arguido ter telefonado para a C, durante esse dia, inúmeras vezes, com o propósito de a convencer a ir à casa do casal; finalmente, a testemunha deslocou - se ao local onde sua irmã foi morta pelo arguido, instantes depois dessa morte ter sido produzida, aí tendo encontrado os seus sobrinhos a gritar à volta do cadáver da CM;), PMPA (irmã da CM, a quem esta relatou, depois da separação entre ela e o arguido, a vivência conjugal de ambos e os maus tratos que o arguido dispensava à C;), JMB (soldado da GNR que assinou, como recebedor, o auto de fls. 230, além de ter lavrado os autos e termo de fls. 231 a 233, tendo relatado as circunstâncias em que procedeu à apreensão da pistola e punhal referidos nesses autos e termo;), HMOF(pessoa que trabalhava no mesmo edifício e piso onde trabalhava a CM e a quem esta relatou, depois da separação entre ela e o arguido, aquilo que tinha sido a vivência conjugal dela com o arguido;), M LM (tia do arguido a quem este confessou ter agredido fisicamente a CM, cerca de um mês antes de 23/6/2001;), MIAG (pessoa que trabalhou com a CM durante cerca de quatro anos, sendo que a C lhe relatou os maus tratos físicos e psicológicos a que foi sujeita pelo arguido durante o tempo em que viveram juntos;), MAAB (médica que escreveu e assinou a declaração escrita que consta de fls. 117, o que fez com base em informações unânimes que para o efeito lhe foram fornecidas pela mãe do arguido, por GFM, irmã do arguido, e por CP, cunhada do arguido;) MFM (mãe do arguido, qualidade em que se pronunciou sobre o comportamento do arguido nos tempos que antecederam o dia 23/6/01;), GFM (irmã do arguido que o acompanhou a consultas da especialidade de psiquiatria em Leiria, que, depois da separação entre o arguido e a C, viveu em casa do arguido durante duas semanas, que participou numa tentativa de internamento compulsivo do arguido, a qual não produziu os resultados desejados; a testemunha também se pronunciou sobre os encontros quase diários que continuaram a registar-se entre o arguido e a C, mesmo depois de eles se terem separado, e sobre o comportamento do arguido nos tempos que antecederam o dia 23/6/01;), DMA (pessoa que conheceu o arguido cerca de um mês e meio antes de 23/6/01 e que durante esse período esteve na companhia da CM e do arguido, na Marinha Grande, por três vezes;), FAM (irmão do arguido que presenciou um encontro entre ele e a CM, na Marinha Grande, numa altura em que o arguido e a C já estavam separados;).
Não se produziu qualquer outra prova que tivesse permitido a formação de uma convicção positiva do tribunal no sentido da efectiva verificação de outros factos para lá daqueles que se descreveram como tendo resultado provados, designadamente daqueles que se descreveram como não tendo resultado provados.

A este propósito, deve dizer - se que, na sequência do alegado na acusação, a pronúncia alega que o arguido decidiu matar a CM, sendo que, na sequência dessa decisão anteriormente tomada, o arguido procurou convencer a C a ir a casa do casal, com o objectivo de aí a matar com o uso de facas que aí já tinha para o efeito (cfr. parágrafos 5º e 9º de fls. 466, 4º e 7º de fls. 469, 1º e 2º de fls. 470).
Nada disso resultou provado.
Com efeito, relativamente ao pilar essencial em que assenta todo esse raciocínio, referente ao momento em que o arguido decidiu matar a CM, nenhuma prova objectiva se produziu, pois que as testemunhas ouvidas em audiência de julgamento não foram capazes de, objectiva e fundadamente, indicar esse momento.
A única testemunha que opinou sobre essa matéria e que afirmou ser sua convicção a de que o arguido já tinha decidido matar a C quando com esta insistiu para se encontrarem na casa do casal foi FMC.
Porém, convidado a alicerçar essa sua convicção em elementos objectivos reveladores ou meramente indiciadores de que o arguido já tinha decidido matar a C quando insistia em encontrar - se com ela, a testemunha não foi capaz de indicar nenhum elemento objectivo que permitisse ao tribunal concluir nesse sentido.
Por outro lado, dos autos não consta nenhuma outra prova que permita afirmar o que quer que seja relativamente a essa matéria.
Com efeito, relativamente ao documento que consta de fls. 10 que foi apreendido ao arguido, único elemento de prova relevante a considerar para estes efeitos, deve dizer - se que não se sabe em que momento foi o mesmo redigido, podendo até suceder que o mesmo tenha sido escrito depois de a C ter sido esfaqueada pelo arguido.
Por outro lado, a interpretação desse documento não é inequívoca e isenta de dúvidas, tendo em conta, designadamente, que o mesmo pode ser interpretado no sentido de que através do mesmo o arguido anunciava a sua própria morte, que não a da C, tendo sido essa, de resto, a explicação apresentada pelo arguido para a existência desse documento, por exemplo, no seu primeiro interrogatório judicial.
Consequentemente, tal elemento de prova não permite concluir, por si só ou conjugado com outro que tenha sido produzido, no sentido de que o arguido já tinha decidido matar a C quando insistia com ela para se encontrarem na casa do casal.
Fica, assim, sem se saber quando é que o arguido decidiu matar a CM (terá sido durante o dia 23/6/01, antes do arguido e a C terem entrado na casa de morada de família? terá sido antes do dia 23/6/01? terá sido no dia 23/6/01, mas depois do arguido e da C terem já entrado na referida casa?)
É certo que, como resulta dos factos provados, durante o dia 23/6/01 o arguido insistiu em encontrar - se com a CM em casa do casal e onde o homicídio acabaria por consumar-se.
Simplesmente, esse facto isolado não é suficiente, só por si, para com base nele se concluir e afirmar que o arguido tinha já tomado a decisão de matar a C quando insistiu em encontrar - se com a mesma, tanto mais que apesar de se encontrarem separados de facto, o arguido e a C continuavam a encontrar-se, naquela casa e fora dela, sendo certo que não se sabe se os anteriores encontros ocorridos entre a C e o arguido também ocorriam, ou não, por idêntica insistência do arguido.
Por outro lado, se o arguido tivesse atraído a CM à casa do casal para aí executar a decisão previamente tomada de a matar, isso significa que o arguido teria delineado um plano para alcançar esse seu objectivo que passaria por insistir com a C para se deslocar à casa do casal, onde o arguido já tinha seleccionado os meios com que a havia de matar.
Ora, para lá disso ser pouco ou nada compatível com a personalidade do arguido e com o tipo de patologia que o afecta, como claramente o referiu em julgamento a Ex.ma perita médica, Dr.ª AA, isso também é pouco conciliável com o facto do arguido ter convidado um amigo (a testemunha FS) para beber umas cervejas na casa do casal, minutos antes de nessa mesma casa cometer o homicídio aqui em questão, numa altura em que o arguido saía do café em que se encontrava na companhia daquele amigo, para ir buscar a C para a trazer para a casa do casal, sendo certo que quando o arguido e a C chegaram a essa casa já se encontrava no exterior da mesma aquele amigo.
Além disso, não se sabe porque razão o arguido passou a golpear a C com as facas referidas nos factos provados (terá sido porque o arguido já tinha decidido matá-la, mesmo antes de se encontrarem no interior da casa? terá sido porque a C terá assumido relativamente ao arguido um qualquer comportamento que esteve teve por provocatório? terá sido porque nesse momento o arguido foi atacado por um dos acessos de raiva intensa que caracterizam a sua personalidade? ...).
Finalmente, nessa, como noutras matérias, o arguido beneficia do "In dubio pro reo", interpretado no sentido de que a persistência de uma dúvida razoável após a produção de prova tem de conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido - F. DIAS, Direito Processual Penal, I, pág. 215, CRISTINA MONTEIRO, Perigosidade de Inimputáveis e In Dubio Pro Reo, pág. 53, FERNANDO GONÇALVES, Lei e Crime, pág. 134, COSTA PIMENTA, Introdução ao Processo Penal, pág. 216.
Por tudo isso, entendeu o tribunal dar como não provado que o arguido já tivesse decidido matar a C M antes de com ela se encontrar na casa do casal.
Dado como não provado tal facto, a consequência lógica daí decorrente foi a de dar como não provados todos os outros factos que na dependência do mesmo foram alegados e que só faziam sentido no pressuposto de que o arguido já tinha decidido matar a C quando insistiu em encontrar - se com ela, designadamente, todos os factos que tinham que ver com a prévia selecção dos meios (facas) com que haveria de matar a C, com uma actuação premeditada, com a formação fria, lenta, reflexiva, cautelosa de uma vontade de matar a CM, com a preparação fria, lenta, reflexiva, cautelosa de um plano para matar a C.
Diga-se, neste momento e ainda a propósito dos factos não provados, que não se aceitou o juízo pericial constante do relatório que consta de fls. 311 a 313 no sentido de que o arguido é plenamente imputável, pelas razões que summente passamos a aduzir:
I. O arguido não foi sujeito, por ocasião do exame médico agora em questão, a qualquer exame de avaliação psicológica que se nos afigura decisivo para poder ser formulado, de modo consistente e fundamentado, um juízo sobre a (in)imputabilidade do arguido;
II. Apesar do arguido ter antecedentes psiquiátricos, nada se explicou no relatório em causa para desvalorizar esses antecedentes na apreciação que se fez da (in)imputabilidade do arguido;
III. Por outro lado, tão-pouco se entendeu necessário, como seria desejável, realizar entrevistas subsidiárias com pessoas do círculo relacional próximo do examinado, informações que reputamos de fundamentais, visando o conhecimento dos traços característicos da sua personalidade e, destarte, um retracto claro, vivo e preciso da pessoa em causa;
IV. E uma tal asserção resulta tanto mais pertinente, quanto é certa a existência de uma conflitualidade latente, não recente, mantida entre o arguido, por um lado, a CM e os familiares desta, por outro lado;
V. Finalmente, aquele juízo de plena imputabilidade foi posto em causa, de modo consistente e fundamentado, pelos resultados da nova perícia psiquiátrica realizada ao arguido, na qual a autora dessa perícia concluiu pela imputabilidade diminuída do arguido, sendo certo que a essa nova perícia e respectivo relatório não podem ser dirigidas as críticas acabadas de apontar ao relatório de fls. 311 a 313.»

Aqui chegados, cumpre entrar no conhecimento do recurso.
Como resulta do sumário acima ensaiado das questões a decidir, (a que, afinal, teria sido possível reduzir a parte conclusiva da motivação do recorrente), o longo rosário de conclusões por que aquele se embrenhou (1) implica que algo se diga, liminarmente, sobre o que está legitimamente em causa num recurso directo da decisão final do júri para o Supremo Tribunal de Justiça que, como se sabe, é um tribunal de revista, só conhece matéria de direito, e de cujos poderes cognitivos, portanto, escapa a sindicância da matéria de facto, exceptuado o que resulta do exacto contexto do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal isto é, da eventualidade de o texto do acórdão recorrido ostentar algum dos vícios a que ali se alude, no que se convencionou designar, por isso, revista alargada - art.ºs 432.º, c), e 434.º, do mesmo diploma.
E por aí vamos começar.
Lendo com a devida atenção a matéria de facto apurada pelo tribunal colectivo, logo salta à vista o cuidado com que os factos foram recolhidos, mostrando-se bem sistematizada e expurgada de conceitos de direito.
Por outro lado, o conjunto dos factos recolhidos permite folgadamente assentar a conclusão jurídica a que finalmente se chegou, sendo certo, por outra via, que, conjugados os factos constantes da pronúncia e da defesa, os provados e não provados, com facilidade se atinge que houve o cuidado de esgotar o objecto do processo fixado para o caso, o que, em suma, quer significar que não se verifica o vício de insuficiência a que alude o artigo 410.º, n.º 2, a), do Código de Processo Penal.
A fundamentação, quer de facto, quer de direito, constitui uma peça processual notável, pelo esmero posto, passo a passo, no seu desenvolvimento, muito para além, mesmo, do que se constata ser a qualidade deste tipo de trabalho judicial com que diariamente se vai lidando.
E, pese, embora, o recorrente não lhe reconhecer este mérito, já que, como se viu, pretende estar a fundamentação de facto manchada pelo vício de contradição, não tem razão alguma.
Pretende ele, como se viu, que «ao considerar que as janelas estavam trancadas para impedir o acesso ao interior da casa, o tribunal a quo entrou em nítida contradição, uma vez que tal indicia premeditação, e o tribunal considerou como não provada a existência de tal circunstância qualificativa do homicídio» - conclusão 38.
Diga-se, antes de tudo, que aqui surge alguma confusão do recorrente, já que uma coisa é dar como provado ou não provado um facto, outra, bem diferente, a consequência jurídica que dele se extrai.
Num caso, o domínio é da matéria de facto, no outro já de discussão jurídica.
Não resultaria daí, pois, necessariamente, a invocada contradição.
Mas avançando algo mais, cumpre notar, que, mesmo olhadas as coisas sob o puro prisma dos factos, está fora de cogitação qualquer contradição.
Com efeito, afirma o tribunal recorrido a dado passo «(...) Finalmente imputa-se ao arguido o preenchimento da circunstância qualificativa enunciada na alínea i) do n.º 2 do art. 132.º.
Não resulta provado que o arguido tenha persistido na intenção de matar por mais de 24 horas.
Portanto, a conduta do arguido não pode subsumir - se ao disposto na parte final do art. 132º/2/i.»
No ponto 33 dos factos apurados supra transcritos, ficou exarado, por seu turno, que «Logo depois do arguido e a C terem entrado naquela casa, ele ou a C trancou a porta da cozinha por onde entraram, para impedir que alguém acedesse ao interior da casa a partir do seu exterior, sendo certo que anteriormente, em momento exacto que não foi possível determinar, o arguido já tinha trancado todas as janelas e as outras portas de acesso ao interior da casa».
Ora, é apodíctico que daqui não resulta contradição alguma, muito menos, insanável.
Tenha ou não havido premeditação do arguido - e o tribunal recorrido teve-a como não provada - o certo é que, em momento não apurado o arguido havia trancado todas as janelas e outras portas de acesso ao interior da casa.
Mas este acto tanto pode, como não, ser visto como ligado ao objectivo criminoso que acabou por ser consumado. Impedir que alguém acedesse ao interior da casa a partir do exterior pode significar, simplesmente, que quem assim procedeu tinha em vista preservar a intimidade do encontro.
Tanto mais que, no ponto de facto em causa, assenta a possibilidade de a própria C ter trancado a porta da cozinha por onde entraram, «ele ou a C trancou a porta da cozinha (...) para impedir que alguém acedesse (...)», justamente com esse objectivo de «impedir que alguém acedesse ao interior da casa a partir do seu exterior».
Portanto, não se vislumbra vestígio algum de contradição, sobretudo se, apenas, em relação com a não prova de premeditação. Pois, se esta se reporta a uma resolução tomada com mais de 24 horas de antecedência, a circunstância de não se saber em que momento as janelas e portas foram trancadas, arruma definitivamente a hipótese de os dois factos serem contraditórios.
Para mais, sabendo-se como se sabe que um facto não provado, não significa a prova do contrário.
Ou seja, o facto de não se haver provado que o arguido haja resolvido matar a mulher mais de 24 horas antes, não significa que esteja provado que a resolução aconteceu menos de 24 horas antes. Apenas que esse facto - resolução tomada mais de 24 horas antes - não pode relevar para a solução de direito. Não é um facto, nem a sua não prova constitui o seu contrário. É, apenas e só, um não facto.
Donde a reafirmação convicta de que não se verifica a apontada contradição, e outras não se vislumbram.
Finalmente, quem ler, mesmo sem grande atenção, a fundamentação do acórdão recorrido, mormente no que à matéria de facto respeita, logo se aperceberá do extremo cuidado posto na avaliação da prova produzida, analisada verdadeiramente à lupa de todos os seus aspectos relevantes.
E dessa leitura, seguramente, não é possível extrair, sequer, a suspeita de erro na apreciação da prova, muito menos, como seria mister, de erro notório, a entrar pelos olhos dentro.
A matéria de facto recolhida está, pois, isenta de vícios que a afectem, mormente os do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, motivo por que se tem como definitivamente adquirida, nos precisos termos em que se encontra extractada no aresto impugnado.

Traçadas estas linhas, por força das quais haverá que concluir-se, em suma que, em sede de matéria de facto, o Supremo Tribunal de Justiça já decidiu in casu o que lhe cumpria decidir, logo se atinge que o grosso das conclusões do recorrente está deslocado, não tem, mesmo, razão de ser num recurso de revista, mesmo alargada.
E por isso não vai merecer qualquer outra referência no conhecimento do recurso.
O que disseram ou não disseram as testemunhas, o arguido e demais intervenientes processuais, o que valem ou não valem os relatórios ou documentos juntos ou não ao processo, enfim, a avaliação das provas produzidas submetida em audiência pública à livre apreciação do tribunal de júri - o de mais democrática composição que em 1.ª instância se pode conceber entre nós - é agora um dado incontornável do julgamento sem que alguém mais aí possa dizer diferente, objectivada que está e sobejamente motivada, a razão de ser da convicção assumida em audiência.
Daí que, de todas as conclusões da motivação respectiva, o Supremo Tribunal apenas vá debruçar-se sobre as que corporizam as questões de direito supra enunciadas e que, como se viu, começam por colocar a questão de saber se foi ou não cometido o crime de maus-tratos a cônjuge, já que, não obstante as perturbações da personalidade de que o arguido sofria, a questão da imputabilidade recebeu reposta na matéria de facto apurada, mormente nos artigo 51º:
« O arguido tinha, à data da prática dos factos, capacidade para avaliar a licitude ou ilicitude dos seus comportamentos e de se pautar de acordo com essa avaliação, embora, por causa da perturbação acabada de referir, tal capacidade se encontrasse reduzida;»
e 52.º «O arguido conhecia bem que todo o seu comportamento supra descrito lhe estava legalmente vedado, por ser ilícito e criminalmente punível;»
E que essa resposta não foi tomada de ânimo leve, faz-se ressaltar do já supra transcrito ponto da fundamentação do facto exarada pelo juiz relator do acórdão recorrido, confrontado que foi o tribunal com um relatório pericial que considerava o arguido plenamente imputável:

«Diga-se, neste momento e ainda a propósito dos factos não provados, que não se aceitou o juízo pericial constante do relatório que consta de fls. 311 a 313 no sentido de que o arguido é plenamente imputável, pelas razões que sumariamente passamos a aduzir:
I. O arguido não foi sujeito, por ocasião do exame médico agora em questão, a qualquer exame de avaliação psicológica que se nos afigura decisivo para poder ser formulado, de modo consistente e fundamentado, um juízo sobre a (in)imputabilidade do arguido;
II. Apesar do arguido ter antecedentes psiquiátricos, nada se explicou no relatório em causa para desvalorizar esses antecedentes na apreciação que se fez da (in)imputabilidade do arguido;
III. Por outro lado, tão-pouco se entendeu necessário, como seria desejável, realizar entrevistas subsidiárias com pessoas do círculo relacional próximo do examinado, informações que reputamos de fundamentais, visando o conhecimento dos traços característicos da sua personalidade e, destarte, um retracto claro, vivo e preciso da pessoa em causa;
IV. E uma tal asserção resulta tanto mais pertinente, quanto é certa a existência de uma conflitualidade latente, não recente, mantida entre o arguido, por um lado, a C M e os familiares desta, por outro lado;
V. Finalmente, aquele juízo de plena imputabilidade foi posto em causa, de modo consistente e fundamentado, pelos resultados da nova perícia psiquiátrica realizada ao arguido, na qual a autora dessa perícia concluiu pela imputabilidade diminuída do arguido, sendo certo que a essa nova perícia e respectivo relatório não podem ser dirigidas as críticas acabadas de apontar ao relatório de fls. 311 a 313.»
E já na pertinente fundamentação de direito:
«(...) Resulta dos factos provados, porém, que o arguido padecia, no momento da prática dos factos, de uma redução da sua capacidade de avaliar a licitude ou ilicitude do seu comportamento e de se determinar de acordo com essa avaliação.
Estamos, assim, perante uma situação de imputabilidade diminuída.
Refira-se, a este propósito, não estar aqui em causa, para nós, uma situação que justifique a declaração de inimputabilidade do arguido, nos termos e para os efeitos do art. 20º/2 do CP.
Em primeiro lugar, porque não resulta dos factos provados, assim como não resulta do relatório psiquiátrico de fls. 953 a 959, nem dos esclarecimentos complementares prestados em audiência pela sua autora, que esteja aqui em causa uma situação de significativa redução daquela capacidade de avaliação e de actuação que justifique a equiparação do arguido a um inimputável.
De resto, essa equiparação foi negada em audiência pela autora daquele relatório psiquiátrico e que nestes autos exerceu funções de perita médica.
Por outro lado, desses mesmos factos e elementos de prova não resulta que o arguido não devesse ser censurado pelo facto de não dominar a doença do foro psiquiátrico que determinava a redução daquelas capacidades de avaliação e de actuação.
Essa censura deveria, até, ser - lhe feita.
Com efeito, o arguido foi conduzido a um hospital psiquiátrico, na sequência de diligências que nesse sentido foram feitas por sua irmã, pela sua mãe e por uma sua cunhada, atendendo a que existiam indícios clínicos e sociais de que o mesmo padecia de perturbações do foro psiquiátrico, sendo que em vez de se conformar com tal situação e aceitar manter - se internado naquele hospital, sujeitando - se ao tratamento adequado para a sua situação, o arguido exigiu a sua alta de internamento, tendo sido sua irmã quem, por sua exigência, aceitou assinar o termo de responsabilidade que consta de fls. 118 - cfr. pontos 89º e 90º dos factos provados.
Por outro lado, resulta dos factos provados que apesar de estar sujeito, no dia 23/6/01, a medicação própria para tratamento de doenças do foro psiquiátrico, o certo é que o arguido ingeriu bebidas alcoólicas nesse dia, com as conhecidas consequências que esse comportamento tem relativamente à eficácia daquela medicação - cfr. pontos 29º, 107º a 115º dos factos provados.
Tudo para concluir no sentido de que não é caso de aplicação, na situação em apreço, do art. 20º/2 do CP.»
Nada a censurar nem a acrescentar.

Passemos, pois, às referidas questões de direito:

1.ª questão :
A condenação por crime de maus-tratos
Sobre este exacto ponto discorreu o tribunal recorrido (2):
«(...)"Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:
a) Lhe infligir maus tratos físicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente;
b) A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou
c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos;
é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo art. 144º." - art. 152º/1 CP.
"A mesma pena é aplicável a quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos." - art. 152º/2 CP.
O normativo acabado de considerar penaliza, na parte que para estes autos interessa, a violência na família.
Essa violência foi caracterizada pelo Conselho da Europa como "acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade." - BMJ 335º, pág. 5.
O bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja susceptível de por em causa o supra referido bem estar (3).
Trata-se de um crime específico, que pressupõe no agente uma determinada relação com o sujeito passivo (4).
O crime dominante no artigo em questão é o de maus tratos.
Resulta do próprio dispositivo legal que não basta uma acção isolada do agente para que se preencha o tipo.
Terá, por isso, de se tratar de uma acção plúrima e repetitiva, reiterada (5).
Porém, também não é preciso que se registe uma situação de habitualidade (6).
Trata-se de um crime doloso (7).
Atendendo ao acabado de referir e considerando os factos descritos nos pontos 2º) a 24º) dos factos provados, nenhumas dúvidas suscita a conclusão segundo a qual o arguido cometeu, relativamente à C M, o crime previsto e punido no art. 152º/2 do CP.»

O recorrente põe em causa esta conclusão.
Inocuamente, porém.
É que a base da sua discordância assenta na prova dos factos, não verdadeiramente sobre as razões jurídicas avançadas pelo que nada mais é necessário para concluir pela improcedência deste aspecto do recurso, já que são pertinentes aquelas razões de direito, relativamente às quais o Supremo Tribunal, perfilhando-as, entende ser supérfluo qualquer acrescento.
E no tocante à medida da pena encontrada para tal crime, também posta em causa pelo recorrente que a quer ver especialmente atenuada, tratar-se-á a final, depois de dilucidadas as questões da qualificação do homicídio e respectiva pena concreta.

2.ª questão

Homicídio simples ou qualificado?
O tribunal recorrido, depois de qualificar os factos como integrando a prática de um crime de homicídio afastou do caso as hipóteses de agravação relativa às seguintes alíneas do n.º 2, do artigo 132.º, do Código Penal:
c):
«Na alínea c) do art. 132º/2 do CP referem - se as situações de emprego de tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima.
Tortura ou acto de crueldade é todo o meio que produz padecimento físico inútil ou mais grave do que o necessário e suficiente para a consumação do homicídio. É o meio bárbaro, martirizante, denotando, da parte do agente, a ausência de elementar sentimento de piedade.
"Tortura é o meio cruel por excelência, revelando culpabilidade extrema", consistindo "na inflição de suplícios ou tormentos que obrigam a vítima a sofrer antes da morte." (8).
Estão aqui em consideração aquelas situações em que o agente se serve "...de uma forma de actuação causadora da morte em que o sofrimento físico ou psíquico infligido, pelo acto de matar ou pelos actos que o antecedem, ultrapasse sensivelmente, pela sua intensidade ou duração, a medida necessária para causar a morte (...)." (9).
De notar que não estão aqui em causa as situações de mera repetição dos golpes causadores da morte, nem os actos para abreviar a morte, nem tão - pouco os actos praticados post - mortem sobre o cadáver (10); o que aqui está verdadeiramente em causa são aquelas situações em que alguém decide matar outrem e, em vez de logo lhe produzir a morte com a prática dos actos que considera indispensáveis para a sua obra, começa por mutilá-lo, por atormentá - lo, por lhe fazer sentir a vinda da morte.
De notar, ainda e como de algum modo já decorre do exposto, que só pode ter - se por preenchida a circunstância agravante em consideração quando o agente actua de forma tortuosa ou cruel para aumentar o sofrimento da vítima (11).
Os factos provados não permitem concluir no sentido de que o arguido preencheu a circunstância qualificativa acabada de referir.»
g):
«Na alínea g) refere - se, além do mais, a utilização de um meio particularmente perigoso.
A este respeito cumpre aqui referir que está em consideração aquele tipo de situações em que o agente se serve, para matar, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que, não envolvendo a prática de um crime de perigo comum, crie ou seja susceptível de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes.
Ora, como é sabido, a generalidade dos meios usados para matar são perigos e mesmo muito perigosos.
Porém, o que a lei refere não são meios perigosos, mas sim particularmente perigosos.
Assim sendo, é necessário que o meio utilizado revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar, não cabendo no exemplo - padrão, por exemplo, os revólveres, as pistolas, as facas ou outros vulgares instrumentos corto - contundentes (12)-(13).
Assim, afigura-se que as facas de cozinha utilizadas pelo arguido não podem ser qualificadas, para os efeitos em análise, como meio particularmente perigoso.
Significa isso que, no nosso entender, a utilização das referidas facas por parte do arguido é insusceptível de integrar o exemplo - padrão agora sob apreciação.
Porém, nesse mesmo exemplo faz-se referência à utilização de um meio que implique ou traduza a prática de um crime de perigo comum.
Embora a lei o não refira expressamente, os crimes de perigo comum nela referidos são aqueles que como tal são qualificados pelo CP, designadamente os previstos nos respectivos arts. 272º a 286º (14).
Assim, tudo está em saber se a utilização das mencionadas facas de cozinha se traduziu ou não na prática de um crime de perigo comum, pois que, nos termos do art. 275º/3 do CP, é crime de perigo comum, a detenção de armas proibidas.
Poderão ser qualificadas como armas proibidas as referidas facas?
O art. 275º não define o que são armas proibidas, definição que é dada por lei especial, ou seja, pelo DL nº 207-A/75.
No que agora interessa, o art. 3º, n.º 1, f) deste diploma estipula a proibição das "armas brancas ou de fogo com disfarce ou ainda outros instrumentos sem aplicação definida, que possam ser usados como arma letal de agressão, não justificando o portador a sua posse.".
As facas de cozinha utilizadas pelo arguido são instrumentos de aplicação definida, razão pela qual não podem as mesmas considerar-se proibidas à luz da última parte do normativo acabado de citar.
Sempre se entendeu que a expressão "arma branca" abrange todo um conjunto de instrumentos cortantes e perfurantes, normalmente de aço (e daí a sua designação, face à cor dessa liga metálica), a maioria deles utilizados habitualmente nos usos ordinários da vida, mas podendo sê-lo também, como infelizmente e com certa frequência até acontece, para ferir e matar (cfr. o Ac. do STJ de 30/11/83, in BMJ 331/357).
Assim, dúvidas não há de que as facas utilizadas pelo arguido são armas brancas.
Mais discutível é saber se constituem armas brancas proibidas.
É que, como resulta do citado art. 3º, n.º 1, f), para que a arma branca se considere proibida é necessário que a mesma esteja dotada de um disfarce, razão pela qual não é punível a detenção de uma arma branca sem disfarce (15).
Como assim, as facas utilizadas pelo arguido não constituem armas proibidas, já que as mesmas não estavam dotadas de qualquer disfarce.
Finalmente, não está aqui em causa arma de fogo.
Consequentemente, entendemos que a utilização daquelas armas brancas, nas circunstâncias dos autos, não integra a autoria de um crime p. e p. pelo art. 275º/2 do CP.
De tudo se conclui, pois, que não pode ter - se por verificada a circunstância qualificativa do homicídio que está sob consideração.»
i):
Finalmente, imputa-se ao arguido o preenchimento da circunstância qualificativa enunciada na alínea i) do n.º 2 do art. 132º.
Não resulta provado que o arguido tenha persistido na intenção de matar por mais de 24 horas.
Portanto, a conduta do arguido não pode subsumir - se ao disposto na parte final do art. 132º/2/i.
Actua com frieza de ânimo quem forma a sua vontade de matar outrem de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução, persistente na resolução; trata-se, assim, de uma circunstância agravante relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, devendo reconduzir-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução (16).
Os factos provados não permitem ter por preenchida esta circunstância agravante, uma vez que, como se disse, nem sequer se sabe em que momento tomou o arguido a decisão de matar a C M.
Por reflexão sobre os meios empregados deve entender - se a escolha, o estudo ponderado dos meios de actuação que facilitem a execução do crime ou pelo menos diminuam a vulnerabilidade da concretização do desígnio criminoso.
Assim, para o preenchimento deste exemplo - padrão é necessário que o agente tenha procedido a uma escolha de entre os meios disponíveis ou possíveis dos mais idóneos e dos susceptíveis de revelar maior capacidade de êxito, com a consequente ampliação da eficácia da acção e diminuição das possibilidades de defesa da vítima.
Nada disso resultou provado, no caso em apreço, relativamente ao arguido e aos instrumentos por ele utilizados para matar a C M.»

Todas estas considerações se mostram pertinentes e bem fundamentadas, não tendo o Supremo Tribunal de Justiça qualquer censura a fazer-lhes, pelo que as acompanha e acolhe.

Já no que toca à alínea h), com o devido respeito não se acompanha a decisão do tribunal de júri que é do seguinte teor:
«Na alínea h) do art. 132º/2 CP refere-se a utilização de veneno ou de qualquer outro meio insidioso.
Não está em causa, manifestamente, uma situação de utilização de veneno.
Resta considerar se o arguido utilizou ou não meio insidioso.
Meio insidioso é o meio dissimulado na sua intenção maléfica. É o meio fraudulento ou sub - reptício por si mesmo, como por exemplo, as armadilhas, os venenos físicos (vidro moído, limadura metálica, germes patogénicos, etc.), a traição (ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso), a emboscada (dissimulada espera da vítima em lugar por onde terá de passar), a simulação (ocultação da intenção hostil, para acometer a vítima de surpresa).
São enquadráveis neste exemplo - padrão aqueles casos em que o agente age com falsas mostras de amizade, ou de tal modo que a vítima, iludida, não tem motivo para desconfiar do ataque e é apanhada desatenta e indefesa.
"...a noção de meio insidioso abrange não apenas os meios materiais especialmente perigosos de execução do facto, mas também a eleição das condições em que o facto pode ser cometido de modo mais eficaz, dada a situação de vulnerabilidade e de desprotecção da vítima em relação ao agressor; ... ."(17).
De notar, ainda, que o fundamento da agravação radica no facto de se utilizarem meios que, dado o seu carácter enganador, sub-reptício, dissimulado ou oculto, tornam especialmente difícil a defesa da vítima ou arrastam consigo o perigo de lesão de uma série indeterminada de bens jurídicos (18).
De tudo resulta, assim, que quando a lei fala em meio insidioso não quer necessariamente abranger os instrumentos usuais de agressão, como por exemplo o ferro, o pau, a faca, a pistola, mesmo que usados de surpresa (19).
O que se pretende abranger são aqueles casos em que se usam meios particularmente perigosos ou incomuns de agressão, bem assim como aqueles outros em que são utilizados meios ou expedientes com uma relevante carga de perfídia, situações em que a defesa por parte da vítima se torna muito difícil ou mesmo impossível.
Dos factos provados resulta que instantes depois do arguido e a C M terem entrado na casa, com todas as portas e janelas desta trancadas, quando a C se encontrava descuidada e confiante, o arguido atacou - a com duas facas de cozinha que manejou violentamente, de modo súbito e imprevisível, sem a C contar com esse ataque e sem ter qualquer possibilidade de contra ele se defender, dada a surpresa do ataque, os meios utilizados e a violência aplicada nessa utilização, a superioridade física do arguido e o facto de as portas e janelas se encontrarem trancadas - cfr., v.g., pontos 30º, 33º, 35º, 40º, 41º dos factos provados.
Neste contexto, não pode deixar de considerar - se que o arguido agiu de modo desleal para com a C M, pois atacou - a num momento e em circunstâncias em que ela não tinha que contar com esse ataque; por outro lado, dessa actuação desleal do arguido resultou uma absoluta impossibilidade da C se defender do ataque do arguido.
Tanto basta para se ter como preenchida a circunstância qualificativa que está em apreciação.»
Com efeito, como resulta das conclusões da motivação respectivas contra este ponto insurge-se o recorrente, com alguma razão.
Tem este Supremo Tribunal (20) vindo a entender por meio insidioso aquele "cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas às do veneno - do ponto de vista do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto". (21)
O meio insidioso, justamente por sê-lo, não poderá deixar de ser também, «especialmente perigoso», justamente por causa da dissimulação e, portanto, da sua acrescida capacidade de eficiência por via da natural não oposição de qualquer resistência por parte da vítima que, em regra, perante a insídia, nem sequer suspeitará de que está a ser atingida.
No caso, não se sabe das razões porque tudo começou lá no interior da casa - facto 35.
Nem sequer quem deu início à cena violenta.
Sabe-se, é certo, que:
«40º) O arguido atingiu a C M de modo súbito, sorrateiro, traiçoeiro e com total surpresa para a C M;
41º) O arguido atingiu a C M quando esta se encontrava descuidada e confiante, retirando-lhe, assim, qualquer possibilidade de defesa (...).»
Porém, a vítima, justamente pelos sucessivos maus tratos a que continuadamente fora sujeita, não desconhecia - não devia desconhecer - o comportamento agressivo e violento do arguido. Nessa medida, o surto violento do arguido que ora lhe foi fatal qualquer que tenha sido a faúlha causadora do atear do rastilho - cuja razão de ser, como se disse, ficou por conhecer-se - não pode ter-se como algo de absolutamente para si inesperado, ao menos no seu an, embora o pudesse ser no seu quantum isto é, na forma de violência extrema que veio a revestir.
Em todo o caso, a actuação criminosa de que veio a resultar a morte da vítima está longe de revestir aquele ocultismo em regra associado e preponderante na caracterização do típico caso de insídia, como por exemplo acontece no envenenamento.
Tanto mais que o arguido dera a conhecer ao seu amigo FARS a sua presença e da vítima naquele local, e que este o esperava no exterior da casa para irem «consumir umas cervejas».
A insídia não poderá ver-se desligada da resolução e subsequente actuação criminosa do agente, na medida em que, tratando-se de um procedimento oculto, justamente porque destinado a obter o resultado sem o conhecimento da vítima (22) e sem que ela de nada se aperceba.
E só o meio usado com vista ao resultado querido pelo arguido deve ser valorado ou não, como oculto, não já, a intenção do agente, que, em regra, o será sempre, na insídia ou fora dela.
Se, no caso, não se conhece a razão por que se precipitou a cena violenta de que só o arguido e a vítima foram os protagonistas (23), se, não obstante a surpresa, não foi, naturalmente, possível ao arguido ocultar o uso das facas, se, enfim, com conhecimento do arguido havia pessoas no exterior da casa, cuja presença impediria, decerto, qualquer hipótese de o acto criminoso passar despercebido, então só pode concluir-se pela não verificação da agravante-padrão ora em causa.
Neste ponto, embora por razões distintas, assiste razão ao recorrente quando pretende não se verificar esta circunstância agravante do homicídio.

Mas o tribunal de júri não baseou a sua opção pela qualificação agravada do homicídio apenas na existência daquela qualificativa.
Com efeito, do acórdão recorrido consta ainda, em sede de qualificação jurídica dos factos, o seguinte:
«De resto, é tempo de dizer, neste momento, ser entendimento do tribunal o de que o arguido preencheu, com a sua actuação, o tipo de culpa do art. 132º/1 do CP, independentemente de se ter ou não por preenchido qualquer dos exemplos - padrão do art. 132º/2 CP.
Na verdade, em primeiro lugar é preciso ter em devida conta que a vítima era esposa do arguido, razão pela qual impendiam sobre o arguido especiais deveres de em relação à vítima se abster de assumir comportamentos violentos.
Em segundo lugar, deve sublinhar - se que a vítima era mãe dos filhos do arguido, facto que faz acrescer a intensidade dos deveres abstencionistas acabados de referir.
Apesar disso, o arguido ignorou esses especiais deveres e ultrapassou os limites de actuação deles decorrentes, facto claramente revelador da especial intensidade da culpa do arguido.
Por outro lado, resulta dos factos provados que o arguido insistiu com a C para que esta se deslocasse à casa onde ambos residiram até à separação de facto, sendo que aí, aproveitando - se da situação de descuido e confiança em que se encontrava a C, atacou - a de forma surpreendente, sorrateira e traiçoeira, com duas facas de cozinha que manejou de modo violento, tendo a C ficado numa situação de impossibilidade de se defender daquela ataque e de obter auxílio.
São estes factos reveladores, também, de uma especial intensidade da culpa do arguido.
Finalmente, é preciso não esquecer que o arguido sabia que no exterior da residência onde golpeava a C M estavam os filhos do casal, facto que deveria ter servido para que o mesmo se abstivesse de qualquer tipo de comportamento violento em relação à C M.
O certo é que o arguido ignorou tal circunstância, passou a golpear a C, em termos tais que os filhos do casal se aperceberam dos gritos de dor e sofrimento da sua mãe resultantes do facto de esta estar a ser golpeada pelo arguido.
Tudo conjugado, concluiu o tribunal no sentido de que o arguido agiu em termos de preencher, com a sua conduta, o tipo de culpa do art. 132º/1 CP.»

Neste ponto, já não pode deixar de acompanhar-se o entendimento perfilhado pelo tribunal recorrido.
Com efeito, afastados do caso os possíveis exemplos-padrão de agravamento ou qualificação, cabe perguntar se, no fim de contas, haverá motivo para censura para além do tipo de homicídio simples.
E, neste ponto, tal-qualmente aconteceu com o decidido naquele Acórdão já citado do STJ, de 28/2/02, uma observação preliminar se nos oferece: não estamos, claramente, perante um caso normal ou vulgar de homicídio, se é que alguma vez se pode ter um homicídio como normal ou vulgar.
Em primeiro lugar, porque a vítima, afinal, uma boa mãe e esposa, não era uma pessoa qualquer. Era a esposa já de alguns anos do agressor, mãe dos seus filhos, que lhe merecia, no mínimo, respeito e cooperação - art.º 1672.º do Código Civil.
Em segundo lugar, porque não é vulgar o modo traiçoeiro e inesperado como o crime foi consumado, com a vítima impossibilitada de resistir a um agressor armado, e com provada superioridade sobre aquela, surpreendida e indefesa.
Em terceiro lugar, porque, não obstante o que ficou dito quanto ao necessário conhecimento que a vítima haveria de ter sobre as características de violência associadas ao comportamento do arguido, as circunstâncias que rodearam o caso levavam, em todo o caso, a que por parte dela, tivesse surgido um compreensível baixar da guarda, mas aqui com o contributo activo do próprio arguido: a insistência manifestada naquele dia para que o visitasse; a preocupação concretizada em ir pessoalmente buscá-la a casa dos pais; a encenação de normalidade de que fez parte, inclusivamente, a presença do amigo RS e dos indicados dois filhos do casal, enfim, tudo conduzia na direcção de um certo relaxamento da vítima, naturalmente confiada em que, perante um quadro de tamanha aparente normalidade, nada de mal estaria para lhe acontecer.
Pois bem.
Se é certo termos presente que o recurso à figura do homicídio qualificado atípico há-de ser levado a cabo com alguma parcimónia, pois, no fim de contas, "é de facto uma ousadia criar homicídios qualificados...sobretudo na base da pirâmide normativa, onde actua o juiz, confrontado com o caso concreto e sem a legitimação (...) parlamentar em última instância, que tem o legislador penal" (24)-(25), não é menos verdade que "a exigência de um grau especialmente elevado de ilicitude ou de culpa, para se poder afirmar um homicídio qualificado atípico, constitui um importante critério quanto à decisão a tomar relativamente a casos cuja pena concreta se venha a situar no âmbito de justaposição das molduras penais do tipo simples e do tipo qualificado" e, que, "com tais exigências, parece posta de parte qualquer possibilidade de multiplicação de casos de homicídio qualificado atípico" (26).
Se é certo ainda que será pensamento da lei, "o de pretender imputar à "especial censurabilidade" aquelas condutas que em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à "especial perversidade" aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas (27)", então não será de todo descabido o caminho seguido pelo tribunal recorrido, ao considerar, nas apontadas circunstâncias, de ilicitude extrema, o homicídio agravado, tendo em conta, no caso, uma realização do facto como ficou descrito, de forma especialmente desvaliosa, numa palavra, aqui especialmente censurável.
Homicídio agravado atípico, portanto, previsto e punido no artigo 131.º e no n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal.

Resta então para discutir a medida da pena.

O tribunal recorrido impôs ao arguido as penas parcelares respectivas de 3 anos e 22 anos de prisão respectivamente, e, em cúmulo jurídico, a pena única conjunta de 23 anos e 6 meses de prisão. (28)
A intervenção do Supremo Tribunal em sede de concretização da medida da pena tem de ser necessariamente parcimoniosa.
Tem sido aqui reiteradamente entendido (29), com efeito, que "no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a sua desproporção da quantificação efectuada" (30).
Ou, dizendo por outras palavras, "como remédios jurídicos, os recursos (salvo o caso do recurso de revisão que tem autonomia própria) não podem ser utilizados com o único objectivo de uma "melhor justiça". (...) A pretensa injustiça imputada a um vício de julgamento só releva quando resulta de violação do direito material". (31)
No caso sub judice não se põe em causa, pelas razões invocadas no acórdão recorrido, apoiado em doutrina que cita, a não automaticidade da atenuação especial da pena, mesmo em casos de imputabilidade diminuída.
Mas já se tem como valorada com alguma insuficiência essa imputabilidade diminuída no contexto da fixação concreta da pena aplicado ao crime de homicídio.
É certo que, como ensina o Prof. Figueiredo Dias, citado no acórdão recorrido, «não diz a lei se a imputabilidade diminuída deve por necessidade conduzir a uma pena atenuada. Não o dizendo, parece, porém, não querer obstar à doutrina - também entre nós defendida por Eduardo Correia e a que eu próprio me tenho ligado - de que pode haver casos em que a diminuição da imputabilidade conduza à não atenuação ou até mesmo à agravação da pena. Isso sucederá, do meu ponto de vista, quando as qualidades pessoais do agente que fundamentam o facto se revelem, apesar da diminuição da imputabilidade, particularmente desvaliosas e censuráveis, v.g., em casos como os da brutalidade e da crueldade que acompanham muitos factos dos psicopatas insensíveis, os da inconstância dos lábeis ou da pertinácia dos fanáticos».
Mas, no caso, se não se justifica o benefício da atenuação especial, também não é caso de agravação, antes de alguma contida atenuação da pena.
Com efeito, para além de que se trata de um primodelinquente, não pode esquecer-se que parte das suas perturbações de personalidade se fica a dever a circunstâncias que de todo lhe são alheias, nomeadamente a perda precoce do pai, as limitações e dificuldades sentidas pela mãe, e, mais tarde a ausência da mãe, tal como resulta dos factos 94º, 95.º e 96.º
E se bem que esses distúrbios de personalidade, tal como resulta da matéria de facto, não possam ter-se como significativos em termos de capacidade de valoração ética dos seus actos, eles não podem, pelo que fica dito, mormente por não ser total a responsabilidade do arguido no seu desencadeamento, deixar de ter um reflexo mais visível no doseamento concreto das penas do que aquele que ressalta do juízo do tribunal recorrido, nos termos exigidos, nomeadamente, pelo artigo 71.º, n.º 2, b) e f), do Código Penal.
Independentemente de não se impor a atenuação especial por via da pretensa inimputabilidade, não é caso também, de o recorrente obter essa atenuação especial por via das normais circunstâncias do caso.
Como ensina o mesmo Professor de Coimbra, quando o legislador dispõe de uma moldura penal para um certo tipo de crime, tem de prever as mais diversas formas e graus de realização do facto, desde os de menor até aos de maior gravidade pensáveis: em função daqueles fixará o limite mínimo; em função destes o limite máximo da moldura penal respectiva; de modo a que, em todos os casos, a aplicação da pena concretamente determinada possa corresponder ao limite da culpa e às exigências de prevenção.
Desde há muito, porém, se põe em relevo a limitação da capacidade de previsão do legislador para abarcar não só todas as situações contemporâneas da feitura da lei, como acompanhar o constante fluir de novas situações que a vida faz emergir a cada momento.
Daí que, em nome de valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade, tenha surgido a necessidade de dotar do sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses especiais, quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena. (32)
Hipóteses que, em muitos casos, o próprio legislador prevê (33)-(34), mas que a apontada incapacidade de previsão leva ainda a suprir com uma cláusula geral de atenuação especial. (35)
O funcionamento de uma tal válvula de segurança obedece a dois pressupostos essenciais, a saber: - Diminuição acentuada da ilicitude e da culpa, da necessidade da pena e, em geral, das exigências de prevenção (36); - A diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá considerar-se relevante para tal efeito, isto é, só poderá ter-se como acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação das circunstâncias atenuantes se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.
O que, por outras palavras, significa que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar. Para a generalidade dos casos, para os casos "normais", "vulgares" ou "comuns", "lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios" (37).
Não deve esquecer-se todavia, que esta solução de consagrar legislativamente a referida "cláusula geral de atenuação especial" como válvula de segurança, dificilmente se pode ter como apropriada para um Código como o nosso, "moderno e impregnado pelo princípio da humanização e dotado de molduras penais suficientemente amplas".
Ou seja, é uma solução antiquada.
Daí o bem fundado da nossa jurisprudência, quando pressupõe que tal sistema só se torna político-criminalmente suportável se a atenuação especial, decorrente da cláusula geral apontada, entrar em consideração apenas em casos relativamente extraordinários ou mesmo excepcionais. (38)- (39)-(40)
Ora, não se vê que a previsão típica das normas incriminatórias - na grande amplitude das respectivas molduras abstractas - não contenha a virtualidade de contemplar, com excelência, todos os elementos atendíveis para fixar com justiça a medida da pena que o caso concreto reclama.
Portanto, também por esta via se tem por afastada a possibilidade de atenuação especial, reclamada pelo recorrente.
Esta ponderação leva a que o Supremo Tribunal de Justiça também tenha por adequada ao caso, a pena de 3 anos de prisão para o crime do artigo 152.º, n.º 2, do Código Penal - maus tratos a cônjuge - afinal situada num ponto médio, ou seja, a metade da diferença entre o limite mínimo e máximo aplicáveis. Mas, já quanto ao crime de homicídio qualificado, usando do mesmo critério de doseamento, importa, tendo em consideração o reflexo da imputabilidade diminuída do arguido, alterar a decisão recorrida, fixando a pena em 18 anos e 6 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico de ambas as penas, fixar em 19 anos e 6 meses de prisão, a pena única conjunta que o arguido terá de cumprir.
Nesta exacta medida procede em parte o recurso do arguido.
3. Termos em que, no provimento parcial do recurso, revogam em parte o acórdão recorrido e fixam as penas concretas - parcelares e única - nos sobreditos termos.
No, mais, porém, confirmam a decisão recorrida.
O arguido pagará, pelo decaimento, taxa de justiça que se fixa em 10 unidades de conta.
Honorários de tabela ao Ex.mo defensor oficioso aqui nomeado.
Supremo Tribunal de Justiça, 30 de Outubro 2003
Pereira Madeira (relator)
Simas Santos
Costa Mortágua
Rodrigues da Costa
_________________
(1) Que só não levou este Supremo Tribunal a optar pela formulação de «convite» ao recorrente para superação da sua deficiente - por desnecessariamente prolixa - peça forense, por se entender, por um lado, que não cumprirá, em regra, ao tribunal, suprir deficiências alheias, cada um devendo assumir, na medida da sua participação, as consequências possíveis do seu desempenho; por outro, porque, levando em conta o princípio do aproveitamento dos actos processuais, não obstante, lá se conseguiram vislumbrar, ao que se supõe, entre tanta conclusão, os objectivos essenciais do recorrente - os tais que, singelamente, se deduzem aos dois pontos suMdos; finalmente - the last but not the least - o respeito devido a todo e qualquer arguido preso, que implica que o recurso deva ser apreciado no mais curto espaço de tempo possível.
(2) As notas de rodapé associadas à transcrição do texto do acórdão recorrido que se seguirem são também elas da autoria do juiz relator do acórdão do tribunal de júri.
(3) TAIPA DE CARVALHO, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, pág. 332.
(4) TAIPA DE CARVALHO, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, pág. 332.
(5) TAIPA DE CARVALHO, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, pág. 334, MAIA GONÇALVES, Código Penal Anotado, 14ª edição, pág. 518.
(6) LEAL HENRIQUES/SIMAS SANTOS, CP Anotado, 2º volume, 3ª, pág. 301, STJ, acórdão de 8/1/97, processo n.º 934/96.
(7) TAIPA DE CARVALHO, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, pág. 334.
(8) HELENO FRAGOSO, Lições de Direito Penal, Parte Especial, 11ª, pág. 42.
(9) F. DIAS, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, pág. 31.
(10) MAIA GONÇALVES, Código Penal Anotado, 14ª edição, pág. 447.
(11) F. DIAS, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, pág. 31.
(12) Neste sentido, F. DIAS, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, pág. 37.
(13) Sobre o conceito de meio particularmente perigoso pode consulta-se, na doutrina, F. DIAS, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, pág. 37, LEAL HENRIQUES / SIMAS SANTOS, Código Penal Anotado, II, 3ª edição, pág. 69, e, na jurisprudência, em sentidos não inteiramente coincidentes, STJ, CJ do STJ, 00, T. 3, págs. 179 e 241.
(14) Cfr. F. DIAS, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, pág. 37, § 25.
(15) Neste sentido, ANTÓNIO CASTANHEIRA/EUCLIDES DÂMASO, Legislação Anotada sobre Armas, pág. 29 ss., STJ, CJ do STJ, 1996, T. 1, pág. 227, 2001, T. 3, pág. 205, BMJ 457, pág. 154, RELAÇÃO DO PORTO, BMJ 457, pág. 439, RELAÇÃO DE COIMBRA, CJ 00, T. 4, pág. 56.
(16) STJ, acórdão de 30/9/99, processo 36/99, 3ª secção, SASTJ, n.º 33, pág. 94, BMJ 358º, pág. 260, BMJ 476º, pág. 238, CJ 1990, T. 3, pág. 19, RELAÇÃO DE COIMBRA, CJ 1983, T. 4, pág. 68, RELAÇÃO DE ÉVORA, BMJ 352º, pág. 450.
(17) TERESA SERRA, Homicídios em série, pág. 154.
(18) FERNANDA PALMA, Direito Penal Especial, Crimes Contra As Pessoas, 1983, pág. 65, F. DIAS, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, pág. 38.
(19) Neste exacto sentido, STJ, CJ do STJ, 1995, T. 3, págs. 255 ss., BMJ 368º, pág. 312; cfr., também em sentido idêntico, LEAL HENRIQUES / SIMAS SANTOS, Código Penal Anotado, II, 3ª edição, pág. 72.
20 Cfr., entre outros, o Acórdão de 28/2/02, proferido no recurso n.º 226/02-5, com o mesmo relator.
21 Assentando, assim, na formulação de Figueiredo Dias, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, págs. 38-39.
22 Eventualmente, também de terceiros.
23 Ignorância que só pode aqui ser invocada em benefício do arguido em nome do princípio in dubio pro reo.
24 Cfr. M Margarida Silva Pereira, Direito Penal II, os homicídios AAFDL, págs. 67
25 Com reticências obre as vantagens desta técnica de ampliação do homicídio qualificado, se manifesta o Prof. Figueiredo Dias Direito Penal II, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, págs. 204-205.
26 Teresa Serra, Homicídio Qualificado Tipo d e Culpa e Medida da Pena, Almedina, págs. 75
27 Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial Tomo I, págs. 29 § 7
28 «As molduras previstas para os crimes cometidos pelo arguido são de prisão de 1 a 5 anos, no caso do crime de maus tratos, e de prisão de 12 a 25 anos, no caso do homicídio.
Resulta dos factos provados, porém, que o arguido padecia, no momento da prática dos factos, de uma redução da sua capacidade de avaliar a licitude ou ilicitude do seu comportamento e de se determinar de acordo com essa avaliação.
Estamos, assim, perante uma situação de imputabilidade diminuída.
Refira-se, a este propósito, não estar aqui em causa, para nós, uma situação que justifique a declaração de inimputabilidade do arguido, nos termos e para os efeitos do art. 20º/2 do CP.
Em primeiro lugar, porque não resulta dos factos provados, assim como não resulta do relatório psiquiátrico de fls. 953 a 959, nem dos esclarecimentos complementares prestados em audiência pela sua autora, que esteja aqui em causa uma situação de significativa redução daquela capacidade de avaliação e de actuação que justifique a equiparação do arguido a um inimputável.
De resto, essa equiparação foi negada em audiência pela autora daquele relatório psiquiátrico e que nestes autos exerceu funções de perita médica.
Por outro lado, desses mesmos factos e elementos de prova não resulta que o arguido não devesse ser censurado pelo facto de não dominar a doença do foro psiquiátrico que determinava a redução daquelas capacidades de avaliação e de actuação.
Essa censura deveria, até, ser - lhe feita.
Com efeito, o arguido foi conduzido a um hospital psiquiátrico, na sequência de diligências que nesse sentido foram feitas por sua irmã, pela sua mãe e por uma sua cunhada, atendendo a que existiam indícios clínicos e sociais de que o mesmo padecia de perturbações do foro psiquiátrico, sendo que em vez de se conformar com tal situação e aceitar manter - se internado naquele hospital, sujeitando - se ao tratamento adequado para a sua situação, o arguido exigiu a sua alta de internamento, tendo sido sua irmã quem, por sua exigência, aceitou assinar o termo de responsabilidade que consta de fls. 118 - cfr. pontos 89º e 90º dos factos provados.
Por outro lado, resulta dos factos provados que apesar de estar sujeito, no dia 23/6/01, a medicação própria para tratamento de doenças do foro psiquiátrico, o certo é que o arguido ingeriu bebidas alcoólicas nesse dia, com as conhecidas consequências que esse comportamento tem relativamente à eficácia daquela medicação - cfr. pontos 29º, 107º a 115º dos factos provados.
Tudo para concluir no sentido de que não é caso de aplicação, na situação em apreço, do art. 20º/2 do CP.
Resta dizer, a este propósito, que a referida imputabilidade diminuída do arguido não é fundamento obrigatório de atenuação especial das mencionadas medidas abstractas das penas, devendo ser considerada ao nível da concretização das mesmas ().
Cabe agora determinar a medida concreta da pena.
A medida concreta da pena é fixada em número de dias, de acordo com os critérios gerais de determinação concreta da (medida da) pena do art. 71º/1 do CP, com base em três vectores essenciais:
a) o princípio da culpa (como limite máximo da pena);
b) as exigências de prevenção geral positiva ou de integração (como limite mínimo da pena);
c) as exigências de prevenção especial de ressocialização (que, dentro dos limites máximo e mínimo referidos, actuam, determinando, em último termo, a medida da pena).
Assim, partindo da moldura penal abstracta da pena, elabora-se uma moldura de prevenção cujo limite máximo é constituído pela culpa e cujo limite mínimo resulta do quantum de pena imprescindível, no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas da comunidade na manutenção ou reforço da norma jurídica infringida, segundo considerações de prevenção geral positiva ou prevenção de integração.
É esta medida mínima da moldura de prevenção que merece o nome de defesa do ordenamento jurídico.
Dentro dos limites mínimos consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração e dos limites máximos estabelecidos pela culpa podem e devem actuar os pontos de vista de prevenção especial de socialização, determinando estes, em último termo, a medida da pena.
Esta deve tentar evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade, só deste modo se alcançando uma eficácia na protecção dos bens jurídicos.
A medida das necessidades de socialização do agente é, pois, em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial para efeitos da medida da pena.
Dispõe o art. 71º n.º 1 e 2 do CP que na determinação da medida concreta da pena ter-se-á em conta, para além da culpa do agente e das exigências de prevenção de futuros crimes, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente: o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, intensidade do dolo ou negligência, a conduta anterior e posterior ao facto, a situação económica e condições pessoais do agente.
Ora, no caso concreto verifica-se que:
- a intensidade do dolo foi elevada, na medida em que o arguido agiu, relativamente a ambos os crimes, com dolo directo;
- a ilicitude dos factos é significativa, tendo em conta os bens jurídicos violados, a forma de actuação do arguido relativamente a ambos os crimes, os instrumentos de agressão empregues para consumar o homicídio e a violência com que esses instrumentos foram empregues, o tempo durante o qual se mantiveram os maus tratos que o arguido dispensou a sua esposa;
- as exigências de prevenção geral positiva são elevadas, tendo em conta a relativa frequência com que são cometidos crimes do tipo daqueles que estão aqui em consideração e o alarme social causado pela comissão desses crimes;
- as exigências de prevenção especial são elevadas, pois que apesar do arguido ser primário, o certo é que o mesmo tem uma personalidade caracterizada por traços de impulsividade, pela instabilidade afectiva, pela irritabilidade e ansiedade, por raiva intensa e inapropriada ou dificuldades de a controlar, por uma ideação paranóide transitória reactiva ao stress, tendo já atentado contra a vida da mãe de seus filhos, revelando, assim, desrespeito pelo mais elevado bem jurídico a preservar por todos quantos pretendam viver numa sociedade livre e justa, para lá de que esse tipo de personalidade gera sérios riscos, na falta de adequado tratamento, do arguido vir a cometer novos comportamentos violentos.
Também devem tomar - se em consideração:
a idade do arguido;
a ausência de antecedentes criminais;
o desenraizamento familiar e sócio - profissional que o arguido revelava à data da prática dos factos;
a imputabilidade diminuída do arguido.
Ponderando todas essas circunstâncias, bem assim como as demais previstas no art. 71º/2 do CP, o júri teve por ajustadas as penas de três anos de prisão, no que toca ao crime de maus tratos, e de vinte e dois anos de prisão, no que toca ao homicídio.
Impõe-se, agora, determinar a pena única do concurso a aplicar ao arguido.
A moldura abstracta do concurso terá como limite máximo a soma das penas (parcelares) concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar, em qualquer caso, os 25 anos de prisão, e como limite mínimo a mais elevada das penas (parcelares) concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77º n.º 2 CP); a medida concreta, a alcançar dentro da dita moldura abstracta, será determinada com base nos critérios gerais referidos no artigo 71º n.º 1 do CP (culpa e prevenção) e no critério especial (consideração conjunta dos factos e personalidade do arguido) a que se refere o artigo 77º n.º 1, 2ª parte do mesmo código.
Com base em tais critérios, julgou o júri necessária e suficiente uma pena única fixada em vinte e três anos e seis meses de prisão.
19 Cfr. por todos, Ac. STJ de 9/11/2000, in Sumários STJ disponível em http://www.cidadevirtual.pt/stj/jurisp/bo14crime.html
30 A redacção do suMdo acórdão aproxima-se do sentido da formulação que, para o problema, aponta Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 197, § 255
31 Cfr. Cunha Rodrigues, Recursos, in Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 387.
32 Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do Crime §444
33 "O tribunal atenua especialmente a pena, para além do casos expressamente previstos na lei...
34 Artigo 72.º, n.º 1, do Código Penal.
35 "...Quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente, ou a necessidade da pena".
36 Figueiredo Dias, ob. cit., §451
37 Autor e ob. cit., §454
38 Ibidem § 465
39 O sistema , segundo o mesmo Mestre de Coimbra, compreende-se, isso sim, por razões ligadas a uma Parte Especial velha e desactualizada, «em função de molduras penais escusada e injustamente severas características de um tempo em que o princípio político-criminal da humanização do direito penal se não fazia ainda sentir, ou se não fazia sentir, em todo o caso, carregado com as exigências que hoje postula; em função, por outro lado, de molduras penais demasiado exíguas, com limites máximo e mínimo relativamente próximos, consequência ainda do dogma das penas fixas e da desconfiança perante a autonomia da função judicial».
40 Em bold pelo relator.