Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3271/03.7TBOER.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO CONSTITUTIVO
ALTERAÇÃO POR UM DOS CONDÓMINOS
VISTORIA CAMARÁRIA
LUGAR DE GARAGEM
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 09/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL - DIREITOS REAIS / DIREITO DA PROPRIEDADE.
Doutrina:
- Abílio Neto, Manual da Propriedade Horizontal, 2006, pp. 29 e 30, 81.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7ª edição, p. 536.
- Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 1996, p. 335 e segs..
- Francisco Pardal, Da Propriedade Horizontal, p.94.
- Henrique Mesquita, A Propriedade Horizontal, em Rev. Dir. Est. Sociais, XXIII, 1976, p. 88, nota 26.
- Henrique Mesquita, RDES, XXIII-84.
- Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 3ª edição, pp. 462 e 464.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, vol. III, 2ª ed., p. 411.
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª ed., p. 402.
- Rui Vieira Miller, A Propriedade Horizontal no Código Civil, pp. 66, 83, 87, 88, 91.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 294.º, 334.º, 483.º, N,º1, 1414.º, 1415.º, 1416.º, 1418.º, 1419.º, 1421.º, N.º2.
CÓDIGO DO NOTARIADO (CNOT.): - ARTIGOS 132.°, N.° 2, AL. F), 133.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 20.º.
RGEU – DL. 33.3082, DE 7.8.1951.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
-DE 26.1.1993, JTRL00002367, IN WWW.DGSI.PT.

ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 10.12.1991, IN BMJ, 412-460;
-DE 21.05.1996, IN BMJ, 457, P. 356;
-DE 31.11.2004, 04A3538, IN WWW.DGSI.PT.
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ASSENTO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 10.5.1989 - DR, II SÉRIE, Nº141, DE 22.6.1989, P. 6126 E SS., DR, I SÉRIE, DE 15.9.1989.
Sumário :
1. A expressão “a falta de requisitos legalmente exigidos” que consta no art. 1416º, nº1, do Código Civil, abrange, não só os enumerados no art. 1415º, mas também os “concretizados pelas competentes autoridades camarárias, de acordo com as normas que regem as construções urbanas”, que são de interesse e ordem pública. A ofensa a preceitos regulamentares do interesse geral e ordem pública, portanto, imperativos, implica nulidade, nos termos do art. 294º do Código Civil.

2. O art. 1418º do Código Civil estabelece que o título constitutivo que molda a propriedade horizontal, deve conter menções obrigatórias, aquelas a que alude o nº1 e facultativas como decorre do nº2 – “Além das especificações constantes do número anterior, o título constitutivo pode ainda conter, designadamente.”

3. Tendo em conta a situação existente à data da aquisição da fracção pelo Autor, sabendo ele que a fracção ... que adquiriu a terceiro não dispunha de qualquer lugar na garagem, apesar do imóvel ter seis fracções autónomas e constar que dispõe aí de seis lugares, estando provado que o espaço comum (garagem) só comporta aparcamento para cinco veículos, essa circunstância não constitui qualquer afectação a destino diverso do que consta do título constitutivo.

 4. A rectificação unilateralmente promovida pelo Autor à escritura de constituição da propriedade horizontal, para nela constar que a sua fracção dispõe de lugar na garagem, foi feita com a discordância e desconhecimento dos demais condóminos, como resultou provado, o que leva a concluir que, a pretexto da requerida e efectuada correcção, foi alterado, sem consenso dos condóminos, o título constitutivo em clara violação do art. 1419º do Código Civil.

5. O que em bom rigor foi modificado foi o estatuto do condomínio e o conteúdo do direito de propriedade horizontal, afectando os demais condóminos.

6. Se o título constitutivo define a cave como espaço de estacionamento, é indiferente que, do projecto camarário, conste que o espaço de estacionamento é para as seis fracções. Relevante é que o espaço afecto a estacionamento (a cave) não venha a ser destinado a outro fim, pois, se assim não fosse seriam subvertidas condicionantes técnicas inerentes à construção. A cave que, no âmbito do processo de licenciamento do prédio em causa, constava como destinada a “estacionamento das seis fracções” mantém esse destino, não obstante não comportar espaço para estacionamento de outra viatura, não sendo nulo o título constitutivo.

7. Não fazendo parte da fracção do Recorrente um lugar de aparcamento na cave do prédio, não é ilegítima a conduta dos RR. que lhe não facultam aí o estacionamento de veículos, donde não havendo ilicitude, nem culpa, desde logo não há obrigação de indemnizar – art. 483º, nº1, no contexto do instituto da responsabilidade civil extracontratual.

8. O art. 334º do Código Civil, acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito. A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a actuação do abusante, objectivamente, contrarie aqueles valores.

9. O Autor, Advogado de profissão e litigante em causa própria, quando adquiriu a fracção “...”, em 6.12.2000, tinha pleno conhecimento, através dos vendedores, bem como de toda a documentação da fracção, da não existência de qualquer lugar de estacionamento na cave afecto à sua fracção.

10. O Averbamento n.º1 aposto na escritura de constituição da propriedade horizontal foi promovido apenas pelo Autor, com a discordância e o desconhecimento dos demais condóminos. O facto da cave não comportar seis lugares de aparcamento, nem da descrição predial da sua fracção constar a existência de um lugar de garagem, não o impediu de, desde há anos, persistir litigando contra os RR.

11. Se o recurso a juízo, exprime o exercício de um direito constitucionalmente assegurado – art. 20º da Lei Fundamental – já o modo como o Autor, sabendo ab initio do regime jurídico inerente à fracção que adquiriu, por informação prestada pelo vendedor, e sabendo-o desfavorável ao seu interesse, procurou reverter  essa situação através da rectificação da composição da fracção por via do promovido averbamento, viola a regra da boa fé e não é compaginável com o fim económico do direito,  fazendo com que os RR., desde há anos, sejam solicitados a acorrer aos Tribunais para sua defesa, o que evidencia censurável desconsideração pelos seus direitos.

12. Destarte, ainda que não fosse de acolher a fundamentação expendida, reveladora da improcedência do recurso, sempre a pretensão do Recorrente teria que ser paralisada por ser manifestamente abusiva do direito.

Decisão Texto Integral:

Proc.3271/03.7TBOER.L1.S1

R-427[1]

Revista

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

             AA instaurou, em 12.4.2003, no Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras – 4º Juízo Cível – acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra:

 BB e mulher CC

 DD

EE

FF e marido GG

HH e mulher II, e;

Administração do Condomínio do Prédio sito na Rua ..., n°s … e …, ....

 Pedindo que os Réus:

- Sejam condenados a reconhecer que a fracção autónoma identificada pela letra "…" a que corresponde o segundo andar (letra …) do prédio urbano sito na Rua … (ou Rua ...), n°s…. a …, ..., descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n° ... da freguesia de … (actual freguesia de ...) tem um estacionamento na cave;

- Sejam condenados a viabilizar o acesso ao requerente ao estacionamento do prédio supra descrito, mediante a entrega das chaves de acesso dos portões e comandos de abertura dos mesmos, abstendo-se de dificultar e obstaculizar tal acesso;

- Sejam solidariamente condenados a pagar ao Autor a quantia de € 70.000,00, acrescida de juros à taxa legal desde a data da sua citação.

Para tanto alegou, em resumo, que:

- O Autor é dono e legítimo proprietário de uma fracção autónoma designada pela letra “…” a que corresponde o segundo andar (letra …) do prédio urbano sito na Rua … (ou Rua ...), nºs. … a …, ..., freguesia de …, concelho de Oeiras, por o haver adquirido por escritura lavrada no Cartório Notarial de ...;

- O prédio encontra-se submetido ao regime da propriedade horizontal, sendo os requeridos proprietários, respectivamente:

- Os RR. BB e mulher da fracção “…”;

- O Réu DD da fracção “…”;

- O Réu EE da fracção “…”;

- Os RR. FF e marido da fracção “…”;

- Os RR. HH e mulher da fracção “…”;

- Para constituição da propriedade horizontal do prédio foi emitida pela Câmara Municipal de Oeiras certidão da qual consta que o prédio é composto de:

“Com entrada pelo número dois da Rua ...: no piso três (segundo andar) – dois fogos para habitação. No piso dois (primeiro andar) – três fogos para habitação, em duplex com piso um (rés-do-chão); Com entrada pelo número quatro da R. ...: no piso um (rés-do-chão) – um fogo para habitação, em duplex com piso dois (primeiro andar). As seis fracções têm estacionamento na cave”;

- Na cave do mesmo prédio existem, pelo menos, seis lugares de estacionamento;

- Na escritura de constituição de propriedade horizontal não ficou consignado, por lapso, que a fracção autónoma designada pela letra “…” tivesse um estacionamento na garagem, contrariamente ao que rezava o auto de vistoria camarário elaborado de acordo com o projecto camarário aprovado, situação que originaria a nulidade da mesma escritura;

- Constatada tal situação pela notária, veio a mesma a proceder ao averbamento n° 1, do qual consta que nos termos do disposto nos arts. 133° e 132°, n° 2, al. f) do Código do Notariado, aditou a esta escritura que a fracção … tem um estacionamento na cave, conforme documento arquivado aquando da sua outorga;

- O Autor, que havia adquirido a mesma fracção em 6 de Dezembro de 2000, começou a realizar obras de restauração e de reparação na mesma;

- E tendo interpelado a administração do condomínio no sentido de lhe serem facultados os elementos de acesso à garagem, foi informado, em uníssono pelos RR., que a sua fracção não tinha acesso ao lugar de garagem;

- O que se revelava incoerente e incongruente com as missivas que recebia, provenientes da Administração do Condomínio, através das quais era interpelado para proceder ao pagamento de uma quota dos custos da reparação do portão da garagem e do portão exterior de acesso aos estacionamentos;

- Em finais de Agosto de 2002, estando as obras de reparação e restauro da sua fracção em fase de conclusão, aprestando-se para passar a residir na mesma, o Autor constatou que, de facto, a escritura estava ferida de um lapso, escudando-se os RR. no mesmo para impedir o acesso ao estacionamento do prédio;

- De imediato, o Autor remeteu aos RR. carta, na qual os mesmos eram interpelados para facultarem ao Autor os elementos de acesso à garagem, como sejam chaves e comandos de abertura;

- Tendo-se, em consequência e no seguimento da mesma, deparado o Autor e a sua mulher com a recusa por parte do Administrador do Condomínio em facultar os elementos de acesso à garagem;

- Motivo pelo qual, o Autor remeteu aos RR. carta na qual reiterava a interpelação no sentido de lhe serem facultados os comandos e chaves de acesso ao estacionamento do prédio;

- Em face da mesma, foi remetida ao Autor pela administração do condomínio carta na qual, de forma velada, era uma vez mais assumida a recusa de entrega de tais chaves e comando;

- O Autor encontra-se inibido, porque impedido, de ter acesso ao lugar de estacionamento que efectivamente lhe pertence, em termos abusivos e ilegais, que lhe causam graves e decisivos prejuízos;

- O Autor preconizou, antes de habitar a fracção em apreço nos presentes autos, efectuar a aquisição de outro imóvel, em local próximo, num condomínio fechado, denominado “...”, por um excepcional preço – envolvendo uma redução do preço de mercado de € 50.000,00, em face da situação de necessidade de venda por parte da vendedora – tendo, então (nos meses de Junho a Setembro de 2002), colocado a fracção objecto dos presentes autos à venda;

- Tendo-se frustrado a venda exclusivamente por a mesma não ter inerente, em termos de acesso, um lugar de estacionamento;

- O que não apenas baixava o valor efectivo e real da fracção, em valor não inferior a € 25.000,00, mas principalmente desmotivava os potenciais compradores;

- Não tendo o Autor desistido da aquisição de outra fracção, apenas o poderá fazer, em termos económicos e financeiros, se conseguir efectivar a venda da fracção …;

- O prédio em que se insere a fracção autónoma … situa-se numa rua paralela à Avenida ..., de um só sentido, pejada de construções de prédios de habitação de um lado e do outro da rua;

- Vendo-se o Autor obrigado a estacionar o seu veículo automóvel na rua, o mesmo fica junto ao passeio, sujeito a ser danificado, quer por via de assalto, quer por via de elementos provenientes da obra, como sejam cimento, betume, pedras e tijolos que ali são descarregados para aplicação na obra;

- Existindo no extremo da rua o Restaurante ..., eram frequentes as festas que ali se realizam, ficando, quando tal ocorre, a rua completamente cheia, em termos de inviabilizar qualquer tentativa de parqueamento;

- Por não ter estacionamento com acesso interior directo à fracção, o Autor tem de efectuar um esforço acrescido para transportar bens para sua casa (desde as compras mais frequentes a móveis e processos da sua actividade profissional), parando na rua, por vezes não perto da porta da rua do prédio onde se insere a sua fracção, e tendo de transportar os mesmos;

- O Autor teve incómodos, sofreu intempéries, causadoras de mal-estar físico e emocional, susceptíveis de serem computados em montante nunca inferior a € 20.000,00;

- Os dois veículos automóveis do Autor ficaram permanentemente sujeitos aos elementos físicos, com maior corrosão.

 Pessoal e regularmente citados, os RR. contestaram, defendendo-se nos seguintes termos:

 Os RR. Administração do Condomínio do Prédio sito na Rua ..., n°s … e …, ..., DD e EE:

- Arguindo a excepção dilatória de ilegitimidade activa, com fundamento em que sendo o Autor casado com JJ e constituindo a fracção em causa nos autos a casa de morada de família do casal, o A. só por si é parte ilegítima na presente acção;

- Por impugnação, contrariando a versão fáctica apresentada pelo Autor e afirmando, no essencial, que:

- Uma vez que só é viável o parqueamento autónomo e independente de cinco viaturas, considerando o espaço de manobras e circulação que a cave permite, à data, proprietária do imóvel, KK - …, Lda., apenas consignou na escritura de constituição de propriedade horizontal cinco lugares de parqueamento, que decidiu atribuir às fracções autónomas designadas pelas letras “…”, “…”, “…”, “…” e “…”;

- O Autor sempre soube, desde que adquiriu a mencionada fracção em 6.12.2000, que a mesma não incluía parqueamento na cave;

- Por não possuir parqueamento, a permilagem da fracção do Autor é inferior à das demais fracções;

- O Autor comprou a respectiva fracção sem incluir o questionado parqueamento e, ciente dessa condição, terá negociado com os vendedores o respectivo preço;

- Deduzindo reconvenção, alegando para tanto, em síntese, que:

- A escritura de constituição da propriedade horizontal celebrada em 6.03.1995, sem o averbamento entretanto efectuado pelo Autor, não padece de qualquer lapso, razão pela qual permanece inteiramente válido todo o seu conteúdo, nomeadamente no que respeita à composição das diversas fracções do prédio;

- O “Averbamento n°1” aposto na escritura de constituição de propriedade horizontal, porque promovido pelo Autor, à revelia e com o desconhecimento dos demais condóminos, é manifestamente ilegal;

- Assacando litigância de má fé ao Autor, por visar alcançar o reconhecimento de um direito que sabe não lhe assistir, causando em concreto, prejuízos e incómodos a todos os RR.

Terminam pedindo:

- Pela procedência da excepção deduzida, com todas as legais consequências, ou quando assim não se entenda, pela improcedência da acção, absolvendo-se consequentemente os R.R. de todos os pedidos formulados;

- Pela procedência da reconvenção, e, consequentemente:

- Pela declaração da integral validade da escritura de constituição da propriedade horizontal lavrada em 6/03/1995 no 22° Cartório Notarial de Lisboa;

- Pela declaração da nulidade do averbamento n° 1 à escritura de constituição da propriedade horizontal, efectuado em 7/10/2002;

-pela declaração da nulidade da participação efectuada em 18/10/2002 junto da 2ª Repartição de Finanças de Oeiras, através da qual se requer a rectificação relativa à inscrição matricial no que respeita à fracção do A;

-pela declaração da nulidade da alteração ao registo predial relativo à propriedade horizontal;

- Pela declaração da nulidade da apresentação "19 de 2002/12/03 – Facto Averbado:

Rectificação" (relativa à fracção do A.);

- Pelo cancelamento dos registos identificados nas alíneas b) e c) do art. 125° do presente articulado.

  Pedem, por último, a condenação do Autor, como litigante de má fé, no pagamento de uma indemnização a favor dos RR., em valor não inferior a € 20.000,00.

 Os RR. BB e mulher CC contestaram, alegando, em resumo:

- Por excepção dilatória, arguindo a sua própria ilegitimidade, com fundamento em que não foram partes na escritura de constituição da propriedade horizontal;

- Impugnando a tese do Autor, dizendo, no essencial, que, quando, em Dezembro de 2000, o Autor adquiriu, por escritura pública, a fracção de que hoje é proprietário, com a descrição constante da mesma e a indicação da inscrição do registo da propriedade horizontal, bem sabia que a mesma fracção não dispunha de lugar de estacionamento, facto determinante para que o preço pago por uma fracção de luxo tenha atingido apenas o preço de 22.500.000$00;

- Assacando litigância de má fé ao Autor, por deduzir pretensão cuja falta de fundamento não pode alegar desconhecer e, ao promover com evidente dolo, a ilegal e nula alteração da escritura de constituição da propriedade horizontal, pretender alterar a verdade dos factos, perseguindo um objectivo ilegal.

Concluem pela procedência das excepções aduzidas pelos RR., com as legais consequências, ou, quando, assim se não entenda, pela improcedência da acção e dos abusivos pedidos do Autor.

Pedem, ainda, a condenação do Autor, como litigante de má fé, em multa e indemnização não inferior a € 5.000,00.

 Os RR. HH e mulher II, contestaram, por impugnação, alegando, em síntese, que:

- Na cave do prédio, nunca existiram, nem existem, seis lugares de estacionamento, mas apenas cinco, facto esse que foi tido em atenção pelo então proprietário do imóvel que, na escritura de constituição de propriedade horizontal outorgada em 6 de Março de 1995, declarou existirem apenas cinco lugares de estacionamento;

- O Autor, aquando da aquisição da respectiva fracção em 6 de Dezembro de 2000, sabia perfeitamente que adquiria um apartamento sem lugar de estacionamento e daí tê-lo comprado mais barato.

Terminam pedindo pela improcedência da acção, absolvendo-se os RR. de todos os pedidos formulados, tudo com as legais consequências.

 Os RR. FF e GG, contestaram, por impugnação, dizendo, no essencial, que:

- A fracção autónoma designada pela letra “…”, adquirida pelo Autor, em Dezembro de 2000, foi-lhe vendida sem qualquer lugar de estacionamento na cave do referido prédio urbano, já que não existe, nem nunca existiu um lugar de estacionamento na referida cave adstrito à fracção “…”;

- O Autor comprou a referida fracção por um preço inferior pelo facto de a mesma não ter lugar de estacionamento.

Assacam, ainda, litigância de má fé ao Autor por conscientemente alterar a verdade dos factos.

Terminam pedindo pela improcedência da acção, com as devidas consequências legais, mais pedindo que o Autor seja considerado litigante de má fé e condenado a pagar aos Recorridos a quantia de valor não inferior a € 3.000,00, a fixar nos termos do artigo 457° – als. a) e b) do Código de Processo Civil.

O Autor apresentou réplica, na qual pugna pela improcedência das excepções de ilegitimidade activa e passiva (invocadas pelos RR. Administração do Condomínio do Prédio, sito na Rua ..., n°s … e …, ..., DD, EE, e BB e mulher CC) e pela improcedência dos pedidos reconvencionais (formulados pelos RR. Administração do Condomínio do Prédio sito na Rua ..., n°s … e …, ..., DD e EE).

Assaca, ainda, litigância de má fé aos RR. Administração do Condomínio do Prédio sito na Rua ..., n°s … e …, ..., DD, EE, BB e mulher CC, e FF e GG.

Termina pedindo:

- Pela improcedência das excepções de ilegitimidade;

- Pela improcedência do pedidos reconvencionais formulados, absolvendo-se o Autor dos mesmos;

- Pela condenação dos RR., em relação aos quais foi formulado o respectivo pedido, como litigantes de má fé.

 Por requerimento de fls. 237, vieram os RR. Administração do Condomínio do Prédio sito na Rua ..., n°s … e …, ..., … e … requerer a produção de prova com vista à demonstração da genuinidade do doc. 3 junto com a respectiva contestação, incidente que foi liminarmente indeferido por despacho de fls. 240.

 Por despacho de fls. 241:

- foi determinado que a acção não teria seguimento até se comprovar a sua inscrição, nos termos do art. 3º, n° 2, do Código Registo Predial;

- foi concedido aos Reconvintes prazo para comprovarem o registo da reconvenção, sob pena de findo esse prazo serem absolvidos da instância.

Realizada a audiência preliminar, foi admitido o pedido reconvencional; proferido despacho saneador, no âmbito do qual foram julgadas improcedentes as excepções de ilegitimidade activa (deduzida pelos RR. Administração do Condomínio do Prédio sito na Rua ..., n°s … e …, ..., DD e EE) e de ilegitimidade passiva (invocada pelos R.R. BB e mulher CC), e, de seguida, foi seleccionada a matéria de facto tida por pertinente, mediante a fixação dos Factos Assentes e a organização da Base Instrutória, tendo esta última sido objecto de ampliação em sede de audiência final por despacho proferido a fls. 898.

Por despacho de fls. 469, foi determinada a realização de perícia colegial (tendo como objecto os quesitos 1º, 25°, 27° e 29° da Base Instrutória), cujo resultado se mostra junto a fls. 551-553.

Notificados do relatório pericial, Autor e Réu Administração do Condomínio do Prédio sito na Rua ..., nºs … e …, ..., vieram requerer que lhes fossem prestados esclarecimentos (cfr. fls. 587-588 e 597).

 Notificados, os Srs. Peritos juntaram o “Relatório de Esclarecimentos” de fls. 625-631.

 Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, perante Juiz singular – com gravação da prova –, sendo a matéria de facto controvertida decidida pela forma constante do despacho de fls. 1011-1018.

 O Autor e os RR. Administração do Condomínio do Prédio, sito na Rua ..., n°s … e …, ..., DD e EE produziram alegações de direito por escrito (cfr. fls. 1021-1051 e 1058-1064).

***

 Foi proferida sentença que julgou:

“ (i) improcedente a acção intentada por AA contra BB e mulher, DD, EE, FF e marido, HH e mulher e condomínio do prédio sito na Rua ..., n°s … e …, ... representado pelo Administrador DD, termos em que os absolveu:

- do pedido de condenação a reconhecerem que a fracção autónoma identificada pela letra "…" a que corresponde o 2º andar (letra …) do prédio urbano sito na Rua … ou Rua ..., nºs …a … ..., descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras, sob o n° ..., da Freguesia de … (Actual Freguesia de ...) tem um estacionamento na Cave;

- do pedido de condenação a viabilizarem o acesso ao requerente ao estacionamento do prédio em causa nos autos, mediante a entrega das chaves de acesso dos portões e comandos de abertura dos mesmos;

- do pedido de condenação destes a entregarem ao Autor a quantia de € 70.000,00;

- do pedido de condenação como litigantes de má fé;

(ii) procedente a reconvenção, formulada pelo Condomínio do Prédio sito na Rua ..., n°s … e …, termos em que:

- declarou válida a escritura de constituição da propriedade horizontal, lavrada em 6/03/95, no vigésimo segundo Cartório Notarial de Lisboa;

- declarou nulo o averbamento n° 1 da escritura referida, determinando, consequentemente a sua eliminação, devendo o mesmo ser comunicado ao 22° Cartório Notarial de Lisboa, acompanhado de cópia do documento de fls. 41 e ss. dos autos de procedimento cautelar para melhor esclarecimento;

- determinou, em conformidade, a rectificação relativa à inscrição matricial da fracção autónoma designada pela letra …) correspondente a uma habitação no segundo andar, tipo T três, do prédio afecto ao regime de propriedade horizontal, sito na Rua … números … a .. ..., da Freguesia de ..., Concelho de Oeiras, inscrito na respectiva matriz n° ..., da qual deverá ser suprimido o averbamento de um lugar de estacionamento na cave, devendo-se enviar cópia de fls. 109 dos autos para melhor esclarecimento;

- determinou o cancelamento do averbamento (ap. 19, 2002/12/13), correspondente ao estacionamento na cave efectuado junto da 1" Conservatória do registo predial de Oeiras relativamente à fracção Autónoma com a letra … do prédio descrito sob o n° .../…, Freguesia de ..., enviando-se para melhor esclarecimento cópia de fls. 370 dos autos de procedimento cautelar;

- declarou improcedentes todos os pedidos de condenação como litigante de má fé formulados contra o Autor que destes vai absolvido.”

***

Inconformados, o Autor e os RR. Administração do Condomínio do Prédio sito na Rua ..., n°s … e …, ..., DD, EE, FF e marido GG, interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por Acórdão de 7.2.2013 – fls. 1232 a 1275 –, negou provimento aos recursos, confirmando a sentença recorrida.

***

Inconformado, o Autor recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça, e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

            a) A escritura de constituição da propriedade horizontal, subjacente aos presentes autos, na medida em que contraria o licenciamento camarário que lhe está subjacente quando este determina que cada fracção, a do recorrente incluída, tem um lugar de estacionamento, é nula em face dos arts. 1414°, 1416°, n°1, 1418°, n°3, 1419°, nºs 1 e 2, e 294° todos do Código Civil, 50°, 59° e 60° do Código do Notariado, 15° do Decreto-Lei n° 445/91 e Decreto-Lei n°281/99, de 26.7, nulidade essa que se restringe à situação de desconformidade entre a mesma e o licenciamento camarário patenteado nos autos;

            b) Não sendo o alcance da determinação camarária delimitado ao uso ou utilização da fracção, mas sim à composição concreta de cada uma das fracções, decorrendo do licenciamento camarário a imposição de elementos de cariz urbanístico imperativos;

c) Situação directamente prevista no alcance efectivo do art. 1416° do Código Civil, o qual pretende obviar a desvios à moldura legalizadora previamente definida pela entidade camarária licenciadora, nos moldes definidos pelo Acórdão de fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 3.12.2009 supra invocado;

d) Ocorrendo uma recusa ilícita e ilegítima de conferir acesso ao recorrente ao estacionamento por parte dos recorridos, são estes responsáveis pelos danos causados, atento o disposto no art. 483° do Código Civil;

i) O Acórdão recorrido, salvo melhor opinião, violou os comandos legais invocados nas presentes conclusões de recurso.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o Acórdão recorrido.

Os recorridos não contra-alegaram.

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Colhidos os vistos legais cumpre decidir tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

1. Encontra-se inscrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n° .../…da freguesia de … o prédio urbano sito na Rua … (ou Rua ...), n°s. … a …, ..., freguesia de …, concelho de Oeiras e inscrito na matriz sob o art. … da freguesia de ..., conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 21 a 22 – (Alínea A) dos Factos Assentes).

2. Com a data de 8-6-94 e 10/03/1995 foram apresentados Modelo 129 para inscrição e alteração do prédio sito na Rua … …, … e … na Repartição de Finanças de Oeiras, fazendo-se constar, além do mais, que a fracção designada pela letra "…" não tem garagem e as demais fracções com uma garagem cada, e se descreve a cave com cinco estacionamentos, a casa das máquinas e casa da bomba, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que destes autos é fls. 99 a 104 – (Alínea B) dos Factos Assentes).

3. Foi pela Câmara Municipal de Oeiras, Divisão de Propriedade Horizontal, em 14-2-1995, elaborado auto de vistoria de obra do projecto …, em ..., na Rua … n° …, …, Oeiras como requerido em 6-2-95, pelo requerimento … e foi dado parecer que a referida construção (edifício multifamiliar) pode ser constituída por fracções autónomas e independentes seguintes, com acesso directo às partes comuns à via pública de acordo com o artigo 1415° do Código Civil: - com entrada pelo piso 1 da Rua ...: piso três (segundo andar) por dois fogos para habitação, no piso dois (primeiro andar) por três fogos para habitação, em duplex com piso um (rés-do-chão); - com entrada pelo n° … da Rua ...: no piso um (rés-do-chão) um fogo para habitação, em duplex com piso dois (primeiro andar). As seis fracções têm estacionamento na cave, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos é fls. 138 – (Alínea C) dos Factos Assentes).

4. Com data de 3/3/1995 o Departamento de Planeamento e Gestão Urbanística da Câmara Municipal de Oeiras emitiu a certidão n° …, (referindo o P° …) ali certificando que em face dos elementos existentes naquele departamento e da informação prestada pela Divisão de Edificações Urbanas no requerimento n° …, deferido em 21/2/1995, que o edifício multifamiliar sito em ..., na R. ..., n° …, construído de acordo com o processo n.° …, pode ser considerado como constituído pelas fracções autónomas e independentes seguintes, com acesso directo às partes comuns à via pública de acordo com o artigo 1415° do Código Civil, sendo composto, no piso três (segundo andar) por dois fogos para habitação, no piso dois (primeiro andar) por três fogos para habitação, em duplex com piso um (rés-do-chão), todos com entrada pelo n° … da Rua ..., no piso um (rés-do-chão) por um fogo para habitação, em duplex com piso dois (primeiro andar), com entrada pelo n° … da R. ..., e que as seis fracções têm estacionamento na cave, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 40 – (Alínea D) dos Factos Assentes).

5. Com data de 6/3/1995 foi outorgada no 22° Cartório Notarial de Lisboa escritura pública de constituição da propriedade horizontal respeitante ao prédio urbano composto de cave, rés-do-chão, primeiro e segundo andar, situado na R. ..., n° … a …, em ..., descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob a ficha n.° ..., ali sendo declarado pela sociedade comercial outorgante, na intitulada qualidade de proprietária do prédio, que reunindo o mesmo os requisitos legais para nele ser instituído o regime da propriedade horizontal, o institui com as seguintes fracções que são unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum e desta para a via pública: “A” – Apartamento tipo “T3” duplex, designado pela letra .., sito no rés-do-chão e primeiro andar, composto por dois halls, 4 divisões assoalhadas, cozinha, duas casas de banho, lavabo, varanda e um estacionamento na cave, destinado a habitação; “…” – Apartamento tipo “T2”, duplex, designado pela letra …, sito no rés-do-chão e primeiro andar, destinado a habitação, composto por dois halls, 3 divisões assoalhadas, cozinha, duas casas de banho, lavabo e um estacionamento na cave; “…” -Apartamento tipo “T2”, duplex, designado pela letra …, sito no rés-do-chão e primeiro andar, destinado a habitação, composto por 3 divisões assoalhadas, dois halls, cozinha, duas casas de banho, lavabo, varanda e um estacionamento na cave; “…” – apartamento tipo “T3”, designado pela letra …, sito no segundo andar, destinado a habitação, composto por dois halls, 4 divisões assoalhadas, cozinha, duas casas de banho e lavabo; "…" – Apartamento tipo “T3”, designado pela letra …, sito no segundo andar, destinado a habitação, composto por 4 divisões assoalhadas, um hall, cozinha, duas casas de banho, lavabo, uma varanda e um estacionamento na cave; e “…” – Apartamento tipo “T4” duplex, sito no rés-do-chão e primeiro andar, destinado a habitação, composto por 5 divisões assoalhadas, três halls, cozinha, duas casas de banho, lavabo e um espaço de estacionamento na cave, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 42 a 45 – (Alínea E) dos Factos Assentes).

6. Pela apresentação n°20, de 8/3/1995, mostra-se inscrita sobre o prédio urbano acima referido, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob a ficha n° ... da freguesia de ..., a constituição de propriedade horizontal do mesmo, com as fracções designadas pelas letras … a …, com as seguintes permilagens: 175%, 164%, 153%, 131%, 177% e 200%, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 22 – (Alínea F) dos Factos Assentes).

7. Na descrição predial da fracção designada pela letra "…" deste prédio (ficha n. ° ...-…) consta que esta é constituída por apartamento tipo "T3" duplex, sito no rés-do-chão e primeiro andar, que se destina a habitação e que tem um estacionamento na cave, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 23 – (Alínea G) dos Factos Assentes).

8. Na descrição predial da fracção designada pela letra "…" deste prédio (ficha n.° ...-…) consta que esta é constituída por apartamento tipo "T2" duplex, sito no rés-do-chão e primeiro andar, que se destina a habitação e que tem um estacionamento na cave, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 25 – (Alínea H) dos Factos Assentes).

9. Na descrição predial da fracção designada pela letra "…" deste prédio (ficha n.° ...-…) consta que esta é constituída por apartamento tipo "T2" duplex, sito no rés-do-chão e primeiro andar; que se destina a habitação e que tem um estacionamento na cave, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos é fls. 27 – (Alínea I) dos Factos Assentes).

10. Na descrição predial da fracção designada pela letra "…" deste prédio (ficha n.° ...-…) constava (até 13-2-2002) que esta é constituída por apartamento tipo "T3", sito no segundo andar e que se destina a habitação, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 29 – (Alínea J) dos Factos Assentes).

11. Na descrição predial da fracção designada pela letra "…" deste prédio (ficha n° ...-…) consta que esta é constituída por apartamento tipo "T3" duplex, sito no segundo andar, que se destina a habitação e que tem um espaço de estacionamento na cave, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 31 – (Alínea K) dos Factos Assentes).

12. Na descrição predial da fracção designada pela letra "…" deste prédio (ficha n. ° ...-…) consta que esta é constituída por apartamento tipo "T4" duplex, sito no rés-do-chão e primeiro andar, que se destina a habitação e que tem um espaço de estacionamento na cave, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 34 – (Alínea L) dos Factos Assentes).

13. Aquando da inscrição da fracção … junto da Repartição de Finanças de Oeiras, sob a matriz ...° esta fracção era descrita como "segundo andar" – … – composto por quatro assoalhadas, uma cozinha, três casas de banho e dois vestíbulos", conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 38 – (Alínea M) dos Factos Assentes).

14. Pela apresentação n°1, de 12/7/1995, mostra-se inscrita a favor dos Réus BB casado com CC no regime de comunhão de adquiridos, a aquisição, por compra, de fracção … do prédio acima identificado, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 23 – (Alínea N) dos Factos Assentes).

15. Pela apresentação n.°56, de 20/12/1995, mostra-se inscrita a favor dos Réus HH, casado com II no regime de comunhão de adquiridos a aquisição, por compra, da fracção … do prédio acima identificado, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 34 – (Alínea O) dos Factos Assentes).

16. Pela apresentação n° 17 de 14-4-1998 mostra-se inscrita a favor do Réu LL a aquisição, por compra, da fracção … do prédio acima identificado, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 26 – (Alínea P) dos Factos Assentes).

17. Pela apresentação n° 28, de 8/9/1999, mostra-se inscrita a favor da Ré FF casada com GG no regime de comunhão de adquiridos, a aquisição por compra da fracção E do prédio acima identificado, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 32 – (Alínea Q) dos Factos Assentes).

18. Por escritura pública outorgada em 6/12/2000 no Cartório Notarial de ..., ali foi declarado pelos vendedores que pelo preço de 22.500.000$00, já recebido, vendem ao Autor, que na qualidade de comprador o aceitou, a fracção autónoma designada pela letra …, correspondente a uma habitação no segundo andar, tipo T-três, do referido prédio, destinado a habitação permanente do requerente, conforme consta do documento conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 13 a 16 – (Alínea R) dos Factos Assentes).

19. Pela apresentação n.°54, de 15/3/2001, mostra-se inscrita a favor do Autor, casado no regime de separação de bens com JJ, a aquisição, por compra, da fracção … do prédio acima identificado, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 30 – (Alínea S) dos Factos Assentes).

20. Pela apresentação n.°22, de 23/7/2002, mostra-se inscrita a favor de EE, divorciado, a fracção … do prédio acima identificado, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 28 – (Alínea T) dos Factos Assentes).

21. Com data de 7/10/2002 foi efectuado pelo 1º Ajudante em exercício no respectivo Cartório, que o rubricou, o averbamento n.° 1 à escritura pública de constituição da propriedade horizontal de 6/3/1995 outorgada no 22° Cartório Notarial de Lisboa, constando do mesmo averbamento que "nos termos do disposto nos artigos 133° e 132°, n.°4, alínea f), do Código do Notariado, adito a esta escritura que a fracção "…" tem um estacionamento na cave, conforme documento arquivado aquando a sua outorga", conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 42 – (Alínea U) dos Factos Assentes).

22. Pelo averbamento referente à apresentação n° 19, de 3/12/2002, na descrição predial da fracção designada pela letra "…" deste prédio (ficha n° ...-…) passou a constar que esta é constituída por apartamento tipo "T3", sito no segundo andar, que se destina a habitação e que tem um estacionamento na cave, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 370 – (Alínea V) dos Factos Assentes).

23. O Autor participou em 18-10-2002 junto da 2ª repartição de finanças de Oeiras a rectificação da escritura da propriedade horizontal para alteração da inscrição na matriz da fracção …, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 51 – (Alínea W) dos Factos Assentes).

24. Na inscrição da fracção … junto da Repartição de Finanças de Oeiras, sob a matriz ...° – esta fracção é descrita como "primeiro andar – … – composto por três assoalhadas, uma cozinha, três casas de banho, dois vestíbulos e uma garagem", conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos é fls. 109 – (Alínea X) dos Factos Assentes).

25. Na inscrição da fracção … junto da Repartição de Finanças de Oeiras, sob a matriz ...° – … esta fracção é descrita como "primeiro andar – … – composto por três assoalhadas, uma cozinha, três casas de banho, dois vestíbulos, uma varanda e uma garagem", conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos é fls. 111 – (Alínea Y) dos Factos Assentes).

26. Com data de 29-1-03 o Departamento de Planeamento e Gestão Urbanística da Câmara Municipal de Oeiras emitiu a certidão n° …, sob o assunto “LICENÇA DE UTILIZAÇÃO” nº…P° …), com o seguinte teor “CERTIFICO, em cumprimento do despacho exarado em requerimento de MM, registado sob o número …/… e em face de elementos existentes no Departamento de Planeamento e Gestão Urbanística e da informação prestada pela Secção de Toponímia, que ao prédio sito em ..., Rua ... números … – …., … e …, construído de acordo com o processo número …, foi concedida a licença de utilização número …, em dezoito de Janeiro de mil novecentos e noventa e cinco. Esta licença é para um edifício com seis fogos e uma ocupação. MAIS CERTIFICO que o referido prédio foi anteriormente designado por número …, do mesmo armamento, em ..., actual freguesia de ..., antiga freguesia de ...”, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos de procedimento cautelar apenso é fls. 421 – (Alínea Z) dos Factos Assentes).

27. Com data de 1-4-03 o Departamento de Planeamento e Gestão Urbanística da Câmara Municipal de Oeiras emitiu a seguinte informação "Na sequência do requerimento n° …, de 20 de Fevereiro, julga-se de comunicar ao requerente que não existe qualquer discrepância entre o Auto de Vistoria de Propriedade Horizontal (Folha. 3 do Requerimento …) e a licença de Utilização … emitida a 18 de Janeiro (Folha 3 do requerimento …), ambos apensos ao 3º volume do processo em epígrafe. Por consulta ao processo confirmou-se a existência de seis fogos destinados a habitação e uma ocupação na cave destinada a estacionamento de seis lugares (vide - verso da folha de medições - Página 24 do requerimento … e Memória Descritiva e justificativa - Folha 4 do Processo n° …, respectivamente). No entanto, em deslocação ao local a 01 de Abril de 2003, verificou-se que, apesar da área útil poder eventualmente acomodar seis automóveis, a configuração do espaço e a existência de quatro pilares não permitem a utilização autónoma e independente (manobras e caminho de circulação) do estacionamento para mais do que cinco veículos automóveis ligeiros, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos é fls. 97 e 140 – (Alínea AA) dos Factos Assentes).

28. O Autor após a aquisição da fracção … em 6 de Dezembro de 2000, começou a realizar obras de restauração e de reparação na mesma – (resposta ao Quesito 3º da Base Instrutória).

29. O Autor intimou a administração do condomínio no sentido de lhe serem facultados os elementos de acesso à garagem – (resposta ao Quesito 4° da Base Instrutória).

30. Foi informado, em uníssono pelos Réus, que a sua fracção não tinha acesso ao lugar de garagem – (resposta ao Quesito 5º da Base Instrutória).

31. O Autor foi intimado pela administração do condomínio para pagar uma quota dos custos da reparação do portão da garagem e do portão exterior de acesso aos estacionamentos – (resposta ao Quesito 6º da Base Instrutória).

32. O Autor remeteu aos Réus a carta que dos autos de procedimento cautelar é cópia fls. 48, datada de 2-9-02, que aqui se dá por reproduzida, na qual além do mais se lê que "Como é do vosso conhecimento, adquiri a fracção autónoma a que corresponde a letra "…" (segundo andar letra …) do prédio urbano acima identificado...Verifiquei, porém, através de consulta ao título constitutivo da propriedade horizontal que a garagem na cave é parte comum do prédio, sendo que na certidão emitida pela Câmara Municipal de Oeiras que serviu de base à constituição da propriedade horizontal, é claramente afirmado que as seis fracções têm estacionamento na cave... Em face do sumariamente explanado, venho, por este meio, interpelar V. Exa. no sentido de no prazo máximo de dez dias me serem facultados os elementos de acesso à garagem, como sejam chaves e comandos de abertura" - (resposta ao Quesito 8º da Base Instrutória).

33. O Autor remeteu aos Réus a carta que dos autos de procedimento cautelar é cópia fls. 50, datada de 13-10-02, que aqui se dá por reproduzida, na qual reiterava a interpelação no sentido de lhe serem facultados os comandos e chaves de acesso ao estacionamento do prédio – (resposta ao Quesito 10° da Base Instrutória).

34. A administração do condomínio respondeu ao Autor pela carta que dos autos de procedimento cautelar é cópia fls. 52, datada de 14-10-02, com o seguinte teor “Venho por este meio informá-lo que, na minha opinião, as suas interpelações deverão ser resolvidas em Assembleia Geral...Assim, permito sugerir-lhe que contacte os outros condóminos no sentido de que seja tomada uma decisão sobre as suas pretensões. Uma cópia desta carta será entregue aos condóminos actualmente residentes no prédio…” – (resposta ao Quesito 11º da Base Instrutória).

35. O Autor preconizou, antes de habitar a fracção em apreço nos presentes autos, efectuar a aquisição de outro imóvel, em local próximo, num condomínio fechado, denominado "..." e colocou, para esse fim, nos meses de Junho a Setembro de 2002, a fracção … à venda – (resposta ao Quesito 12° da Base Instrutória).

36. Sem vender a fracção …, o Autor, em termos económicos e financeiros, não poderá proceder à aquisição de outra fracção – (resposta ao Quesito 15° da Base Instrutória).

37. O prédio em que se insere a fracção … situa-se numa rua paralela à Avenida ..., de um só sentido, existindo prédios de habitação em construção de um lado e do outro da rua – (resposta ao Quesito 16° da Base Instrutória).

38. O veículo automóvel do Autor estacionado na rua, junto ao passeio, está sujeito a ser danificado, por via de assalto e de elementos provenientes da obra, como sejam cimento, betume, pedras e tijolos que ali são descarregados – (resposta ao Quesito 17° da Base Instrutória).

39. Ocorrem festas no Restaurante ... no extremo da rua que a enchem com veículos e impedem o Autor de parquear o seu veículo – (resposta ao Quesito 18° da Base Instrutória).

40. Por não ter garagem, o Autor tem de efectuar um esforço acrescido para transportar bens para sua casa (desde as compras mais frequentes a móveis e processos da sua actividade profissional), por ter de estacionar na rua, por vezes não perto da porta da rua do prédio onde se insere a sua fracção – (resposta ao Quesito 19° da Base Instrutória).

41. Parqueando o seu veículo na rua, o Autor tem de suportar as intempéries, chuva e vento, para entrar em sua casa – (resposta ao Quesito 21° da Base Instrutória).

42. Os dois veículos automóveis do Autor ficaram permanentemente sujeitos aos elementos físicos, com maior corrosão – (resposta ao Quesito 22° da Base Instrutória).

43. O Autor comprou a fracção … por um preço inferior pelo facto de a mesma não ter lugar de estacionamento – (resposta ao Quesito 23° da Base Instrutória). O Acórdão recorrido, a fls. 1261, alterou a resposta para – “Não provado.”

44. Quando o Autor adquiriu a fracção, tinha pleno conhecimento, através dos vendedores bem como de toda a documentação da fracção, da não existência de qualquer lugar de estacionamento na cave afecto à sua fracção – (resposta ao Quesito 24° da Base Instrutória).

45. Na cave só existem 5 lugares de estacionamento, visto que os quatro pilares ali existentes impedem as manobras para estacionamento de seis veículos – (resposta ao Quesito 25° da Base Instrutória).

46. O “Averbamento n. °1” aposto na escritura de constituição da propriedade horizontal, foi promovido pelo Autor com a discordância e o desconhecimento dos demais condóminos – (resposta ao Quesito 28° da Base Instrutória).

47. O portão da garagem e o portão de acesso ao exterior constituem forma de segurança do prédio e acesso ao interior do prédio e respectivo jardim – (resposta ao Quesito 29° da Base Instrutória).

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- se o título de constituição da propriedade horizontal do prédio identificado é nulo, por desconforme à licença camarária, do ponto em que esta determina que cada uma das seis fracções do prédio tem um lugar de aparcamento na cave;

- se os recorridos, ao negarem ao Autor o estacionamento na cave, incorrem em responsabilidade civil por lhe terem causado danos.

Vejamos.

O Autor considera que na escritura de constituição de propriedade horizontal não ficou consignado, por lapso, que a fracção autónoma designada pela letra “…”, que lhe pertence por contrato de compra e venda de 6.12.2000, tivesse um estacionamento na garagem, contrariamente ao que constava do auto de vistoria camarário elaborado de acordo com o projecto camarário aprovado, situação que originaria a nulidade parcial da mesma escritura.

Verificada tal situação pela Notária, veio a mesma a proceder, por solicitação do Autor, ao “Averbamento n°1”, do qual consta que, nos termos do disposto nos arts. 133° e 132°, n° 2, al. f) do Código do Notariado, foi aditado à escritura que a fracção “…” tem um estacionamento na cave.

Com fundamento na rectificação operada, por via daquele averbamento n°1, à mesma escritura, veio o Autor reclamar, perante a recusa dos RR. em lhe facultarem os elementos de acesso ao estacionamento, que estes sejam condenados a reconhecer que a fracção do Autor tem um estacionamento na cave e a viabilizar o acesso ao mesmo estacionamento, e, ainda indemnizá-lo pelos danos causados.

Trata-se, pois, de uma questão que ancora no estatuto jurídico da propriedade horizontal.

Vejamos, resumidamente, alguns aspectos desse regime jurídico.

Na propriedade horizontal coexistem dois tipos de propriedade: a propriedade exclusiva da fracção de certo condómino e a compropriedade de todos relativamente às partes comuns.

“O que caracteriza a propriedade horizontal e constitui razão de ser do respectivo regime é o facto de as fracções independentes fazerem parte de um edifício de estrutura unitária.

 A propriedade horizontal pressupõe a divisão de um edifício através de planos ou secções horizontais, por forma que, entre dois planos se compreendam uma ou várias unidades independentes, ou ainda através de um ou mais planos verticais, que dividam igualmente o prédio em unidades autónomas.

Logo, em alguns casos, a chamada propriedade horizontal, pode ser propriedade vertical. A divisão através de um ou vários planos é a única possível quando se trate de edifícios de um só piso”. - Henrique Mesquita, RDES, XXIII-84.

A propriedade horizontal é o resultado da evolução histórica e da necessidade de responder a crescentes necessidades de habitação, com melhor aproveitamento dos solos, mormente, através da construção em altura.

Após o primeiro conflito mundial e consequente crise de habitação, procedeu-se em Portugal à revisão da legislação do inquilinato em 1948, reconhecendo-se a necessidade de regulamentar o que tinha ficado previsto na Lei 2030, de 22 de Junho de 1948.

 Obrigando-se o Governo a proceder à revisão do artigo 2335º do Código Civil de então, estabelecendo a propriedade de casas por andares.

Todavia, só em 14 de Outubro de 1955, foi publicado o Decreto-Lei 40 333 que veio definir e regular o regime da propriedade horizontal.

Assim, a Câmara Corporativa escreveu no Parecer sobre o Regulamento da propriedade horizontal:

 “A propriedade horizontal é, por conseguinte, a propriedade exclusiva duma habitação integrada num edifício comum. O direito de cada condómino em conjunto é o direito sobre um prédio, portanto, sobre uma coisa imobiliária, e como tal é tratado unitariamente pela lei; mas o objecto em que incide é misto – é constituído por uma habitação exclusiva, que é o principal, e por coisas comuns, que são o acessório”.

No direito português, a propriedade horizontal foi criada – pelo menos com a configuração que oferece actualmente pelo DL. 40.333, de 14 Outubro de 1955[2] – e depois introduzida no Código Civil.

Em 1994, o legislador introduziu alterações nesta matéria, tanto no Código Civil como também, por dois diplomas autónomos os Decretos-Lei 268/94 e 269/94, de 25 Outubro. Nestes dois diplomas foram introduzidas normas regulamentares.

Nos termos do vigente Código Civil[3] – art. 1415º.

Só podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública.”

Acompanhando Rui Vieira Miller, in “A Propriedade Horizontal no Código Civil”, pág. 83: “É da conjugação dos arts. 1414.° e 1415.° que resultam as características legais da propriedade horizontal.

Parece que bastaria afirmar, como se fez no art. 1414.°, que devem constituir unidades independentes as fracções autónomas em que o edifício se parcelou; mas, para vincar essas independência e autonomia o art. 1415.° exige que aquelas sejam distintas e isoladas entre si e com uma saída própria, seja esta para uma parte comum, seja directamente para a via pública – isto para não se tornar esta forma de propriedade “um factor de promiscuidade das pessoas” ou “numa fonte permanente de discórdias e de litígios entre os diversos proprietários (nº3, do preâmbulo do Decreto-Lei nº40333.)”.

Como se sabe, no regime da propriedade horizontal conflui um feixe de direitos de que é titular o proprietário de fracção autónoma, [sem que tal situação se confunda com a compropriedade]; a titularidade de um direito de propriedade, exclusivo relativamente à fracção autónoma, e compropriedade com os demais condóminos, relativamente às partes comuns.

            “A propriedade horizontal é a propriedade que incide sobre as várias fracções componentes de um edifício, fracções essas que têm de estar em condições de constituírem unidades independentes (art. 1414º do Código Civil).

Trata-se de um regime de propriedade não sobre um edifício na sua totalidade mas sim sobre uma fracção autónoma, embora seja comproprietário de partes comuns (arts. 1414°, 1415° e 1420.° do Código Civil), mas esta compropriedade é forçada, não pode sair da indivisão enquanto durar a propriedade horizontal: Mota Pinto, “Direitos Reais” e Revista.

 Estamos em face de um direito real novo, de uma forma particular de propriedade.

 É um direito real complexo que combina no âmbito dos direitos reais: a propriedade singular (sobre a fracção autónoma) e a compropriedade (sobre as partes comuns do edifício): artigo 1420° do Código Civil”. – Francisco Pardal, in “Da Propriedade Horizontal”, pág.94. 

Para Henrique Mesquita – “O núcleo da propriedade horizontal constituído por direitos privativos de domínio, direitos estes a que estão associados com função instrumental (mas de modo incindível), direitos de compropriedade sobre as partes do prédio não abrangidas por uma relação exclusiva… […].

O condomínio é, assim, a figura definidora da situação em que uma coisa materialmente indivisa ou com estrutura unitária pertence a vários contitulares, mas tendo cada um deles direitos privativos ou exclusivos de natureza dominial — daí a expressão condomínio — sobre fracções determinadas.”

 Carvalho Fernandes, in Lições de Direitos Reais, 1996, pág. 335 e segs. considerando “os aspectos substanciais do seu regime”, entende que tudo aponta “para a conveniência de autonomizar o condomínio da propriedade, seja singular, seja colectiva. Para bem se captar e traduzir a sua realidade jurídica, há que o encarar como um tipo específico de direito real de gozo”.

Menezes Cordeiro, atendendo a que “a afectação que a propriedade horizontal traduz pode, analiticamente, explicar-se por formas que, nos termos da lei e noutras circunstâncias, consistem em direitos reais independentes (propriedade e compropriedade)”, considera-a “um direito real complexo”.

Oliveira Ascensão, in “Direitos Reais”, 3ª edição, págs. 462 e 464, depois de uma alusão histórica[4] ao instituto, afirma acerca da natureza jurídica da propriedade horizontal:

 “Cremos porém que a qualificação correcta desta situação é a de propriedade especial. Embora se conjuguem propriedade e compropriedade a propriedade é o fundamental, sendo a compropriedade meramente instrumental. Escopo da propriedade horizontal não é criar uma situação de comunhão: é permitir propriedades separadas, embora em prédios colectivos (…). Sendo assim, há nuclearmente uma propriedade, mas esta é especializada pelo facto de recair sobre parte da coisa e de envolver acessoriamente uma comunhão sobre outras partes do prédio. Estas especialidades levam a que a lei tenha tido a necessidade de recortar um regime diferenciado. Isto é típico justamente das propriedades especiais, de que a propriedade horizontal nos oferece o melhor exemplo…”.

Atentemos nalguns dos normativos do Código Civil com especial relevância na apreciação do recurso.

  Artigo 1415º – “Só podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública”.

Artigo 1416º – Falta de requisitos legais

“1. A falta de requisitos legalmente exigidos importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal e a sujeição do prédio ao regime da compropriedade, pela atribuição a cada consorte da quota que lhe tiver sido fixada nos termos do artigo 1418º ou, na falta de fixação, da quota correspondente ao valor relativo da sua fracção.

2. Têm legitimidade para arguir a nulidade do título os condóminos, e também o Ministério Público sobre participação da entidade pública a quem caiba a aprovação ou fiscalização das construções”.

Artigo 1418º – Conteúdo do título constitutivo.

“1. No título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fracção, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio.

2. Além das especificações constantes do número anterior, o título constitutivo pode ainda conter, designadamente:

a) Menção do fim a que se destina cada fracção ou parte comum;

b) Regulamento do condomínio, disciplinando o uso, fruição e conservação, quer das partes comuns, quer das fracções autónomas;

c) Previsão do compromisso arbitral para a resolução dos litígios emergentes da relação de condomínio.

3. A falta da especificação exigida pelo nº 1 e a não coincidência entre o fim referido na alínea a) do nº 2 e o que foi fixado no projecto aprovado pela entidade pública competente determinam a nulidade do título constitutivo”. (Redacção introduzida pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº267/94, de 25 de Outubro).

A par dos normativos do Código Civil, importa ter em consideração o RGEU[5] – DL. 33.3082, de 7.8.1951, diploma que regula os requisitos da construção urbana tendo em conta interesses públicos ligados à higiene, segurança e salubridade das construções, com finalidades claramente disciplinadoras da actividade e licenciamento das construções, diploma que foi alvo de várias alterações e que impõe regras cuja violação pode acarretar ilegalidade.

O Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 10.5.1989 - DR, II série, nº141, de 22.6.1989, págs. 6126 e ss; DR, I série, de 15.9.1989, firmou a seguinte doutrina (hoje, com o valor dos acórdãos proferidos nos termos dos arts. 732. °-A e 732. °-B, ambos do Código de Processo Civil por força do art. 17. °-2 do DL nº329. °-A/95, de 12-12):

Nos termos do art. 294.º do Código Civil, o título constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal é parcialmente nulo ao atribuir à parte comum ou a fracção autónoma do edifício destino ou utilização diferentes dos constantes do respectivo projecto aprovado pela Câmara Municipal”.

O Assento versou sobre um caso em que houve violação do destino de fracção autónoma, em infracção a projecto aprovado por uma Câmara Municipal.

Como afirma Rui Vieira Miller – obra citada – págs. 87 e 88 – em anotação ao art. 1416º do Código Civil, em alusão ao direito anterior:

“Não existia nele preceito correspondente.

O não se enunciarem, na lei anterior, as consequências da falta dos requisitos legalmente exigidos para a constituição da propriedade horizontal, resultava talvez do facto de, conforme os §§ l.° e 2.° do art. 4.° do Decreto-Lei n.°40 333, a existência desses requisitos ter que ser previamente afirmada pela câmara municipal — mediante vistoria ou através de aprovação do projecto da obra — ou por vistoria judicial.

 O sistema era, porém, imperfeito porque apenas tinha consequências negativas — a proibição de constituir a propriedade horizontal — sem abrir qualquer solução para a situação decorrente de cada caso. …[…].

Com efeito — escreveu sobre esse problema Armando Guerra (…) — a única solução possível é a de “se ter de considerar o acto nulo quanto à disposição visando a instituir a propriedade horizontal, ficando os respectivos interessados em mero regime de compropriedade no imóvel, na proporção instituída, se tal tiver sido declarado, ou, em caso de omissão, a que se averigue que corresponda à intenção do testador, ficando em comum e partes iguais, desde que esse apuramento não seja possível fazer-se”.

O referido autor, comentando o Assento antes citado, e o regime de nulidade parcial que prevê, escreve na pág. 91:

 “Acresce que a verificação da nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal não tem ainda a consequência assinada, como regra, no art. 289.° — a restituição ao estado anterior — mas antes implica uma conversão legal do negócio jurídico viciado (neste sentido, Henrique Mesquita, ob., cit., pág. 276, e R.D.E.S., cit. pág. 88, nota 27; Ribeiro Mendes, loc. cit., pág. 52.) – situação que, por exemplo, também se verifica nos casos dos arts. 946.°, nº2, e 2251.°, n.º2 — independentemente das condições expressas no art. 293.°, uma vez que o prédio em relação ao qual se pretendeu instituir o regime da propriedade horizontal ficará necessariamente sujeito ao da compropriedade, correspondendo a cada condómino a quota equivalente à percentagem ou permilagem que o título invalidado lhe tivesse atribuído ou, na sua falta, ao valor da fracção que nele lhe tivesse sido destinada.

 É certo que este regime de compropriedade poderá ser afastado pelos interessados estabelecendo um outro que, nesse caso, porém, resultará não já da nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal, mas de outro negócio jurídico autónomo”.

Abordando a questão da nulidade parcial do título e suas consequências – Abílio Neto, in “Manual da Propriedade Horizontal”, 2006 – págs. 29 e 30 – escreve:

“Quando ocorra essa hipótese, a sanção deste art. 1416.° — subordinação ao regime de compropriedade — deve ser aplicada apenas às fracções constituídas com ofensa da lei, passando, assim, a vigorar entre os titulares dessas mesmas fracções o regime da compropriedade.

 Entre os restantes, nada impedirá, em princípio, que continue a vigorar o regime da propriedade horizontal, com as correcções e ajustamentos impostos por aquela conversão (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª ed., pág. 402, e Henrique Mesquita, A Propriedade Horizontal, em Rev. Dir. Est. Sociais, XXIII, 1976, pág. 88, nota 26; em sentido divergente, vid. Ac. RP, de 26.1.1993).

Assim, se se instituir como fracção autónoma cada local de estacionamento separado dos restantes apenas por um traço ou um risco de tinta, faltam os requisitos da distinção, independência e o isolamento de cada fracção em relação às outras, requisitos fundamentais nos termos do disposto nos arts. 1414.° e 1415.° do Código Civil.

 Portanto esta propriedade horizontal não vale enquanto tal, pelo que os compradores das fracções autónomas — apartamentos e lojas — não são donos dessas fracções, mas comproprietários de todo o espaço das garagens, na percentagem ou permilagem igual à da sua fracção, em relação a todo o prédio”.

A expressão “a falta de requisitos legalmente exigidos” que consta no art. 1416º, nº1, do Código Civil, abrange não só os enumerados no art. 1415º, mas também os “concretizados pelas competentes autoridades camarárias, de acordo com as normas que regem as construções urbanas”, que são de interesse e ordem pública.

 A ofensa a preceitos regulamentares do interesse geral e ordem pública, portanto, imperativos, implica nulidade, nos termos do art. 294º do Código Civil. - Ac. da Relação de Lisboa, de 26.1.1993, JTRL00002367, in www.dgsi.pt.

Importa então saber quais as consequências da discrepância invocada pelo Autor, no que respeita ao título constitutivo da propriedade horizontal, à vistoria camarária e à situação de facto existente à data em que adquiriu a fracção …, que, segundo o Autor, lhe confere um lugar de aparcamento na cave, lugar que é recusado pela administração do condomínio e condóminos (réus na acção), em função do facto provado de que por causa de obras na cave apenas existe espaço para cinco veículos.

Com efeito provou-se –  “Com data de 1.4.2003 o Departamento de Planeamento e Gestão Urbanística da Câmara Municipal de Oeiras emitiu a seguinte informação “Na sequência do requerimento n° …, de 20 de Fevereiro, julga-se de comunicar ao requerente que não existe qualquer discrepância entre o Auto de Vistoria de Propriedade Horizontal (Folha. 3 do Requerimento …) e a licença de Utilização … emitida a 18 de Janeiro (Folha 3 do requerimento …), ambos apensos ao 3º volume do processo em epígrafe.

 Por consulta ao processo confirmou-se a existência de seis fogos destinados a habitação e uma ocupação na cave destinada a estacionamento de seis lugares (vide - verso da folha de medições - Página 24 do requerimento … e Memória Descritiva e justificativa - Folha 4 do Processo n.° …, respectivamente). No entanto, em deslocação ao local a 01 de Abril de 2003, verificou-se que, apesar da área útil poder eventualmente acomodar seis automóveis, a configuração do espaço e a existência de quatro pilares não permitem a utilização autónoma e independente (manobras e caminho de circulação) do estacionamento para mais do que cinco veículos automóveis ligeiros”, conforme consta do documento que aqui se dá por reproduzido e que dos autos é fls. 97 e 140 – (destaque e sublinhados nossos).

No Acórdão recorrido afirmou-se:

“Conforme referido, nos termos do citado art. 1418° do Código Civil.

- no título constitutivo, devem ser especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções (n° 1);

- pode, ainda, tal título conter a menção do fim a que se destina cada fracção ou parte comum, como dispõe a al. a) do n° 2;

- sendo que a não coincidência entre o fim referido na al. a) do n°2 e o que foi fixado no projecto aprovado pela entidade pública competente determinam a nulidade do título constitutivo (cfr. n°3, introduzido pelo DL. n° 267/94, de 25 de Outubro, entrado em vigor em 01.01.1995, na linha da jurisprudência consagrada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 10.05.89).

A lei coloca, assim, o acento tónico na falta de conformidade entre o fim ou a utilização que, relativamente a determinado espaço, consta do projecto aprovado pela entidade pública e o fim ou a utilização que a esse espaço é dado no título constitutivo da propriedade horizontal.

Daí que, não sendo desrespeitado esse fim ou destino assinalado no projecto para determinado espaço, seja indiferente que o mesmo, no título constitutivo da propriedade horizontal, integre as partes comuns do edifício ou faça parte do elenco das fracções autónomas do mesmo (todas ou apenas algumas).

No caso em presença, não ocorrerá esse desrespeito, uma vez que o título define a cave com espaço de estacionamento, sendo indiferente que, do projecto camarário, conste que o espaço de estacionamento é para as seis fracções.

O que releva para o caso é, assim, que o espaço afecto a estacionamento (a cave) não venha a ser destinado a outro fim, pois são diversas as condicionantes técnicas, nomeadamente as de segurança, e porque só as que respeitam ao fim indicado no projecto são objecto da apreciação que precedeu a aprovação deste, bem se compreendendo a exigência estatuída no art. 6º do R.G.E.U. (ao impor que nos projectos de novas construções sejam sempre indicados o destino da edificação e a utilização prevista para os diferentes compartimentos) e a coincidência exigida pelo n° 3 do art. 1418º do Código Civil, bem como a sanção prevista para a falta dessa coincidência.

E atenta a razão de ser de tal exigência, poderá a especificação feita num projecto de construção no sentido de que todas as fracções têm estacionamento na cave condicionar a futura organização da propriedade horizontal?

Pensamos que não.

É que uma coisa é o destino ou uso a dar a um compartimento, que se funda em razões de natureza estritamente técnica ligadas à segurança do edifício, e outra, bem diferente, a definição jurídico-real do mesmo compartimento, matéria que compete exclusivamente ao título constitutivo da propriedade horizontal, nos termos daquele art. 1418° do Código Civil.

E daí o também ser lícito afastar a presunção do n° 2 do art. 1421° do Código Civil, afectando as partes aí referidas a uma ou outra fracção autónoma ou, inclusivamente, autonomizando-as, se as mesmas, para isso, reunirem os requisitos legais necessários – (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. III, 2ª ed., p. 411).

Concluindo:

- a cave que, no âmbito do processo de licenciamento do prédio em causa, constava como destinada a "estacionamento das seis fracções" mantém esse destino;

- tal circunstância não excluiu a possibilidade de o dono do prédio, no título constitutivo da propriedade horizontal, ter autonomizado os (5) lugares de estacionamento na cave, integrando os mesmos (apenas) nas fracções "…", "…", "…", "…" e "…", uma vez que o fim da cave continuou a ser de "estacionamento".

Como assim, improcedem também aqui as razões do Apelante quanto à invocada nulidade da escritura de constituição da propriedade horizontal (nada havendo, assim, a rectificar)”. (sublinhámos)

O art. 1418º do Código Civil estabelece que o título constitutivo deve conter menções obrigatórias, aquelas a que alude o nº1, e facultativas, como decorre do nº2 – “Além das especificações constantes do número anterior, o título constitutivo pode ainda conter, designadamente.”

Abílio Neto, in “Manual da Propriedade Horizontal”, 3ª edição, em anotação ao artigo citado a fls. 81 escreve:

“Obteve, desde modo, consagração expressa na lei a opinião já antes defendida por uma parte significativa quer da doutrina (v.g., Henrique Mesquita, “A Propriedade Horizontal no Código Civil Português”, em RDES, ano XXIII, 1976, pág. 93, nota 38; Borges de Araújo, “Propriedade Horizontal”, 1968, pág. 53; Carlos Chagas, “A Propriedade Horizontal e os Notários”, em Rev. Not., 1986, 3. °-334), quer da jurisprudência (vid., por todos, o Ac. Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 10.5.1999, em anotação ao art. 1416º) segundo o qual se deveria considerar como meramente facultativa a indicação, no título constitutivo da propriedade horizontal do destino de cada uma das fracções e/ou das partes comuns, uso ou destino esse que tanto poderia resultar da descrição do prédio e/ou das fracções, como das características internas do espaço da fracção ou até do conjunto urbanístico em que o edifício se insere ou da sua localização.

Tem agora redobrada pertinência o seguinte passo de Borges de Araújo, in A Propriedade Horizontal e o Notariado, 1990, pág. 36: “não considerou o nosso Código Civil relevante para efeito de constituição de propriedade horizontal a destinação do edifício a determinado fim, como também não exigiu que o destino constitua menção obrigatória no respectivo título constitutivo. Deste modo estaremos perante uma menção facultativa, embora de profundas repercussões na esfera dos direitos e obrigações dos condóminos. Na verdade se a escritura não especificar o fim a que o edifício é destinado, não carecerão os condóminos de autorização dos restantes para darem às suas fracções o uso que entenderem. Bastar-lhe-á obter as autorizações administrativas que eventualmente forem necessárias. Mas, se no título constitutivo for fixado o destino, já os condóminos terão não só de obter as mesmas autorizações administrativas, como ainda de solicitar o acordo dos outros condóminos para dar às suas fracções uso diverso do fim a que estiverem destinadas por disposição expressa do título constitutivo”.

Tanto a fixação inicial do fim a que se destinam as fracções, como ulterior alteração do seu uso contendem, em primeira linha, com interesses de natureza e ordem pública, e, em segunda linha, com interesses privados”.

Como consta provado – “ Com a data de 8.6.94 e 10.03.1995 foram apresentados Modelo 129 para inscrição e alteração do prédio sito na Rua … …, … e … na Repartição de Finanças de Oeiras, fazendo-se constar, além do mais, que a fracção designada pela letra “…” não tem garagem e as demais fracções com uma garagem cada, e se descreve a cave com cinco estacionamentos, a casa das máquinas e casa da bomba…”.

Na vistoria camarária de 14.2.1995 foi dado parecer no sentido da construção (edifício multifamiliar) por fracções autónomas e independentes, mencionando-se que as seis fracções têm estacionamento na cave.

Na escritura pública de constituição da propriedade horizontal de 6.3.1995, não consta na composição da fracção … do Autor a existência de cave, menção que existe em relação às demais cinco fracções que integram o condomínio.

Nas descrições prediais de todas as fracções, excepto a do Autor, consta que têm “um estacionamento na cave” – cfr. factos provados 7. a 13.

Quando o Autor adquiriu em 6.12.2000 a fracção … tinha pleno conhecimento, através dos vendedores bem como de toda a documentação da fracção, da não existência de qualquer lugar de estacionamento na cave afecto à sua fracção – (resposta ao Quesito 24° da Base Instrutória).

Mas, em 7.10.2002, a solicitação do Autor, foi feito um averbamento à escritura de constituição da propriedade horizontal de 6.3.1995, ficando aditado que a fracção … tem um estacionamento na cave.

O Autor participou em 18.10.2002 junto da 2ª repartição de Finanças de Oeiras a rectificação daquela escritura para alteração da inscrição na matriz da fracção ….

 Tendo em conta a situação existente à data da aquisição da fracção pelo Autor e sabendo ele que a fracção não abrangia qualquer lugar na garagem, sendo que pacificamente os condóminos não questionavam que a fracção de cada um dos cinco tinha esse lugar, o que não constitui qualquer afectação a destino diverso do que consta do título constitutivo, a rectificação promovida pelo Autor que conduziu ao averbamento nº1 aposto na escritura foi feita com a discordância e desconhecimento dos demais condóminos como resultou provado, o que leva a concluir que, a pretexto da requerida e efectuada correcção, foi alterado, sem consenso dos condóminos, o título constitutivo em clara violação do art. 1419º do Código Civil.

O que em bom rigor foi modificado foi o estatuto do condomínio e conteúdo do direito de propriedade horizontal, afectando os demais condóminos em função do parqueamento que assim ficaria a integrar a composição da fracção ….

 Ademais, suscitam-se dúvidas quanto à alteração a que o 1º adjunto notarial procedeu em 7.10.2002 – item 21) dos factos provados. A alteração deveria ter sido objecto de controlo uma vez que deveria ter sido requerida pelos condóminos ou pelo administrador do condomínio, devidamente mandatado.

Como se afirma na sentença recorrida – fls. 1086/1807 – citando Abílio Neto:

  “O que o n.°3 do art. 1418° veda, sob pena de nulidade, é que se estabeleça, no título constitutivo da propriedade horizontal, como fim a que se destina cada fracção ou parte comum, algo de diferente do que foi fixado no projecto aprovado pela entidade competente.”

Mas já não a definição do estatuto jurídico das diversas partes do edifício – correspondentes às diversas fracções, ou comuns – em divergência do constante do projecto aprovado. Tal definição, e para além do que resulta directamente da lei – cfr. art. 1421°, do Código Civil – é da estrita esfera do título constitutivo da propriedade horizontal, o qual, nas palavras de Henrique Mesquita, “é um acto modelador do estatuto da propriedade horizontal e as suas determinações têm natureza real e, portanto, eficácia erga omnes (op cit).”.

Assim sendo a circunstância de lugares de estacionamento numa cave, que no projecto aprovado se mostravam que as seis fracções têm estacionamento na cave e terem ficado a integrar, de acordo com o título constitutivo da propriedade horizontal, que apenas cinco fracções o têm, em nada contende com a definição do fim ou utilização de tais lugares, como estacionamento, no mesmo projecto…Assim sendo, repetimos que o facto de no projecto aprovado pela Câmara Municipal se referir que seis fracções têm estacionamento na cave e o título constitutivo só ter atribuído cinco lugares de estacionamento na cave não desrespeita o fim ou destino indicado no projecto (estacionamento de automóveis) … “como é jurisprudência pacífica e uniforme deste Supremo (Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 12-6-91, BMJ 408-552; Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 21.5.96, proferido na revista, n°55/96, da 1ª Secção; Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 23-11-99, proferido na revista n° 879/99, da 6ª Secção e Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 13-2-01, CJ/Supremo Tribunal de Justiça, IX, 1°, 113)”.

“Referindo a licença camarária (e respectivo projecto) que a cave se destina a estacionamento privativo, na transposição para o regime da propriedade horizontal a constituir não pode deixar de ter o destino “estacionamento” mas não tem este de ser privativo dos condóminos. Definida a natureza jurídica desse espaço como fracção autónoma e encontrando-se inscrita a favor do autor a constituição da propriedade horizontal do prédio de cujas fracções, à excepção da cave, são condóminos os réus, há que reconhecer àquele o direito de propriedade sobre ela” – Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Maio de 1996, in BMJ, 457, pág. 356.

Um caso de contornos semelhantes foi decidido por este Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 31.11.2004, 04A3538, Relatado pelo Ex.mo Conselheiro Azevedo Ramos – in www.dgsi.pt, assim sumariado:

I - O facto de, no projecto de construção aprovado pela Câmara Municipal, as caves do edifício se destinarem a estacionamento ou a estacionamento privativo dos condóminos, não impõe que, no título constitutivo da propriedade horizontal, tais caves fiquem integradas nas partes comuns, podendo o proprietário autonomizá-las, erigindo-as em 61 fracções autónomas.

II – Uma coisa é o destino ou uso a dar a um determinado espaço, que se funda em razões de natureza estritamente técnica, ligadas à segurança do edifício, e outra a definição jurídico-legal do regime do mesmo espaço, matéria que compete exclusivamente ao título constitutivo da propriedade horizontal.

III – O ponto fulcral reside na falta de conformidade entre o fim ou utilização que, relativamente a determinado espaço, consta do projecto aprovado, e o fim ou utilização que é conferido a esse espaço pelo título constitutivo da propriedade horizontal.

IV – Tendo sido respeitado o fim ou destino constante do projecto aprovado para determinado espaço, é indiferente que, no título constitutivo da propriedade horizontal, tal espaço integre as partes comuns ou se inclua no sector das fracções autónomas.

Não integrando a fracção “…” do Recorrente um lugar de aparcamento na cave do prédio, não é ilegítima a conduta dos RR. que lhe não facultam o estacionamento de veículos na cave, donde, não havendo ilicitude, nem culpa, desde logo não há obrigação de indemnizar – art. 483º, nº1, no contexto do instituto da responsabilidade civil extracontratual.

Finalmente, importa apreciar a conduta do Recorrente, podendo este Tribunal fazê-lo oficiosamente à luz de questionar se é abusiva do direito – art. 334º do Código Civil.

O abuso do direito é uma excepção peremptória de direito material de conhecimento oficioso.

Dispõe o art. 334º do Código Civil – “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

            O instituto do abuso do direito, bem como os princípios da boa-fé e da lealdade negocial são instrumentos  de que os tribunais devem lançar mão para obtemperar a situações em que alguém, a coberto da invocação duma norma tuteladora do seu direito, ou do exercício da acção, o faz de uma maneira que – objectivamente –  atenta a especificidade do caso, conduz a um resultado que viola o sentimento de Justiça prevalecente, que, por isso, repudia tal procedimento, que apenas formalmente respeita o Direito, mas que, em concreto, o atraiçoa.

            Como se sentenciou no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 10.12.91, in BMJ, 412-460: “Nos termos do artigo 334º do Código Civil há abuso de direito e é portanto ilegítimo o seu exercício quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
 Agir de boa fé tanto no contexto deste artigo como no do artigo 762º, nº2, é “agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar.”.
 Os bons costumes entendem-se por seu turno como um “conjunto de regras de convivência que num dado ambiente e em certo momento as pessoas honestas e correctas aceitam comummente contrários a laivos ou conotações, imoralidade ou indecoro social”.
Finalmente, o fim social ou económico do direito, no âmbito dos direitos de crédito – o conteúdo da obrigação desdobra-se no direito à prestação e no dever de prestar – consiste precisamente na satisfação do interesse do credor mediante a realização da prestação por banda do devedor (artigo 397º do Código Civil)”.

            O art. 334º do Código Civil, acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito. A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a actuação do abusante, objectivamente, contrarie aqueles valores.

            Como ensina o Professor Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 536:

 “Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.

 É preciso, como acentuava Manuel de Andrade, que o direito seja exercido, “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.

Com o devido respeito, o Autor, Advogado de profissão e litigante em causa própria, quando adquiriu a fracção “…”, em 6.12.2000, tinha pleno conhecimento, através dos vendedores, bem como de toda a documentação da fracção, da não existência de qualquer lugar de estacionamento na cave afecto à sua fracção.

 Na cave só existem cinco lugares de estacionamento, visto que os quatro pilares ali existentes impedem as manobras para estacionamento de seis veículos. O “Averbamento n.ºl” aposto na escritura de constituição da propriedade horizontal foi promovido pelo Autor com a discordância e o desconhecimento dos demais condóminos. O facto da cave não comportar seis lugares de aparcamento, nem da descrição predial da sua fracção constar a existência de um lugar de garagem, não o impediu de, desde há anos, persistir litigando contra os RR., no sentido de almejar êxito para a sua pretensão.

Se o recurso a juízo, em si mesmo, traduz o exercício de um direito constitucionalmente assegurado – art. 20º da Lei Fundamental – já o modo como o Autor, sabendo ab initio do regime jurídico inerente à fracção que adquiriu por informação prestada pelo vendedor que, sabendo desfavorável ao seu interesse, procurou reverter através da rectificação da composição da fracção por via do promovido averbamento, viola a regras da boa fé e não é compaginável com o fim económico do direito, fazendo com que os RR. desde há anos sejam solicitados a acudir aos Tribunais para sua defesa, o que evidencia censurável desconsideração pelos seus direitos.

Destarte, ainda que não fosse de acolher a fundamentação expendida reveladora da improcedência do recurso, sempre a pretensão do Recorrente teria que ser paralisada por manifestamente abusiva do direito.

Decisão.

Nega-se a revista.

Custas pelo Autor/recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 12 de Setembro de 2013

Fonseca Ramos (Relator)

Fernandes do Vale

Marques Pereira

__________________________


[1] RelatorFonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheiro Fernandes do Vale.
Conselheiro Marques Pereira.
[2] “Os caracteres fundamentais do regime jurídico da vulgarmente chamada propriedade horizontal”, escreveu-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.°40333, “são dados pela verificação cumulativa das seguintes circunstâncias: a) A existência de várias propriedades singulares sobre as diversas fracções em que o prédio se subdivide; A articulação de todas as fracções num todo ou unidade, que é o edifício; c) A existência de bens comuns aos diversos proprietários.” – Cfr. Rui Vieira Miller, in “A Propriedade Horizontal no Código Civil” , 3ª edição, 1998, pág. 66.
[3] No direito anterior – art. 4.° do Decreto-Lei n.°40333: “Só podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que constituam unidades aptas para os fins mencionados no artigo 1.° e que sejam suficientemente distintas e isoladas entre si. § 1.° Se o prédio for construído propositadamente para ser vendido em fracções, nos termos do artigo 2.° será este requisito considerado na aprovação do respectivo projecto; nos outros casos será verificado por vistoria da câmara municipal do concelho respectivo ou por vistoria judicial, conforme a propriedade horizontal for constituída, respectivamente, por negócio jurídico, ou por decisão judicial. § 2.° Se, porém, esta forma de domínio for titulada por testamento, a prova do mencionado requisito só será exigível para o registo definitivo da constituição”.
[4] “A propriedade horizontal, vagamente prevista no art. 2335° do Código de 1867, teve efectiva introdução na ordem jurídica portuguesa com o Dec.-Lei n.° 40 333, de 14 de Outubro de 1955 (veja-se também o notável Parecer da Câmara Corporativa, da autoria de M. Gomes da Silva), verificando-se desde logo uma expansão espectacular. O Código Civil limitou-se a consagrar, esclarecendo-os aqui e além, os preceitos básicos daquele decreto-lei”.

[5] O Decreto-Lei n.º 38 382 de 7 de Agosto de 1951 que aprovou o Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) foi sendo sucessivamente alvo de alterações ao longo do tempo, nomeadamente pelos Decreto-Lei n.º 38 888 de 29 de Agosto de 1952, Decreto-Lei n.º 44 258 de 31 de Março de 1962, Decreto-Lei n.º 45 027 de 13 de Maio de 1963, Decreto-Lei n.º 650/75 de 18 de Novembro, Decreto-Lei n.º 43/82 de 8 de Fevereiro, Decreto-Lei n.º 463/85 de 4 de Novembro, Decreto-Lei n.º 172–H/86 de 30 de Junho, Decreto-Lei n.º 64/90 de 21 de Fevereiro, Decreto-Lei n.º 61/93 de 3 de Março, Decreto-Lei n.º 409/98 de 23 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 410/98 de 23 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 414/98 de 31 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 555/99 de 16 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 177/2001 de 4 de Junho, Decreto-Lei n.º  290/2007 , de 17 de Agosto e Decreto-Lei n.º 50/2008, de 19 de Março.