Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3277/12.5TBLLE-F.E2.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO
Descritores: RECURSO DE APELAÇÃO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
ANULAÇÃO DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 05/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA; ANULADO O ACÓRDÃO DA RELAÇÃO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A regra essencial de que a competência do STJ restringe-se exclusivamente ao conhecimento da matéria de direito comporta em si excepções, competindo à última instância, em sede de recurso de revista: o conhecimento da insuficiência ou deficiência dos factos apurados nas instâncias inferiores para a cabal e adequada decisão de direito (vide art. 682.º, n.º 3, do CPC); a sindicância da incorrecta relevância atribuída a certos meios de prova, que impliquem a violação da lei quanto à respectiva força probatória ou constituam infracção às regras relacionadas com a sua inadmissibilidade em determinado tipo de acções, consubstanciando ofensas ao denominado direito probatório material - cfr. arts. 341.º a 396.º do CC); o controlo da inobservância da lei processual que regula o regime de reapreciação da prova e o escrupuloso uso dos poderes que são conferidos ao tribunal da Relação nos termos do art. 662.º do CPC, permitindo garantir, substantivamente e em termos efectivos, o duplo grau de jurisdição em matéria de facto.
II - Tal como a elaboração do recurso por parte do impugnante requer especial cuidado na especificação dos pontos de facto cuja alteração pretende, com base nos meios de prova que concretamente a reclamam, pronunciando-se ainda sobre as respostas alternativas pelas quais propugna, também a decisão do tribunal da Relação, para garantir a efectivação de um verdadeiro controlo em 2.ª instância, deverá traduzir-se num exame sério, exaustivo e rigoroso, que se debruce ponto por ponto (ou por agrupamento de tópicos pertinentes) sobre a matéria de facto controvertida e abrangida pela impugnação (que a delimita).
III - Tendo-se limitado o tribunal da Relação a remeter para a fundamentação da convicção do juiz de 1.ª instância (que considerou modelar), na qual inteiramente se louvou e à qual aderiu totalmente, dispensando-se de proceder a qualquer exame crítico próprio, específico e individualizado, não deixando expresso no respectivo texto qualquer juízo autónomo sobre a prova em discussão (fosse em que sentido fosse), ou que permitisse vislumbrar as razões essenciais por si perfilhadas para o não atendimento das alterações na matéria de facto que a impugnante exigia, incumpriu os deveres que o art. 662.º do CPC lhe impunha neste particular.
IV - A fórmula totalmente genérica, difusa e abstracta, que foi utilizada na elaboração do acórdão, em termos puramente remissivos e eivada de considerações de índole geral, poderia facilmente transpor-se para qualquer outra hipotética situação, sem se conseguir descortinar sobre que exactos e concretos meios de prova foi exercido o dever de reapreciação que competia à 2.ª instância, o que implica a anulação do acórdão recorrido para que o tribunal de 2.ª instância proceda ao conhecimento da impugnação de facto que foi apresentada, proporcionando um verdadeiro duplo grau de jurisdição em matéria de facto.
Decisão Texto Integral:



Revista nº 3277/12.5TBLLE.E2.S1.


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).


I - RELATÓRIO.
AA instaurou a presente acção de impugnação da resolução dos contratos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 125° do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, por apenso aos autos principais em que foi declarada insolvente a Sociedade Multiconstrói - Sociedade de Construções, Lda contra MASSA INSOLVENTE de Multiconstrói - Sociedade de Construções, Lda., representada pelo Administrador da Insolvência.
A Massa insolvente, devidamente citada, apresentou contestação pugnando pela improcedência da acção e requerendo seja decretada a resolução dos acordos em benefício da massa, assim como a apreensão a favor da massa insolvente dos imóveis objeto dos acordos denominados "Dação em cumprimento".
Realizada a audiência final, o tribunal de 1ª instância julgou a a acção totalmente improcedente, decretando a resolução em benefício da massa dos acordos denominados "Dação em cumprimento" celebrados, respetivamente, a 12 de Março de 2012 e 6 de Março de 2012, e determinou a entrega pela Autora do valor equivalente relativo aos seguintes imóveis:
- Prédio urbano sito no ………, freguesia ………, concelho ............, descrito na Conservatória do Registo Predial ............ sob o número .........13 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ……67 da mesma freguesia.
- Prédio urbano sito no………, freguesia………, concelho ............, descrito na Conservatória do Registo Predial ........... sob o número ...........13 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ……68 da mesma freguesia.
- Fracção autónoma designada pela letra "A" do prédio urbano sito na Urbanização………, ……, freguesia ………, concelho ............, descrito na Conservatória do Registo Predial ............ sob o número ………27-A e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …….36-A da mesma freguesia.
- Fracção autónoma designada pela letra "B" do prédio urbano sito na Urbanização…………, freguesia da Quarteira, concelho ............, descrito na Conservatória do Registo Predial ............ sob o número ………27-B e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …….36-B da mesma freguesia, que computou no montante global de € 300.000,00 euros, deduzido do valor de € 22.000,00, num total de € 278.000,00.
Desta decisão recorreu a A. para o Tribunal da Relação de Évora, o qual, através do acórdão proferido em 11 de Fevereiro de 2021, julgou a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida
Apresentou a A. recurso de revista.
Concluiu nos seguintes termos:
a) A Recorrente vem interpor recurso do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, que negou provimento ao recurso de apelação, confirmando integralmente a decisão recorrida.
b) A decisão recorrida proferida em sede de primeira instância julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, decreta a resolução em benefício da massa dos acordos denominados “Dação em cumprimento” celebrados, respetivamente, a 12.03.2012 e 06.03.2012 e determina a entrega pela Autora do valor equivalente relativo aos imóveis melhor identificados nos autos.
c) A Recorrente entende que a prova produzida devia ter levado à total procedência da acção que interpôs, mas a acção foi julgada totalmente improcedente, ao contrário do que a Recorrente considera que deveria ter sido a correcta ponderação da prova produzida.
d) A Recorrente entendeu que houve uma incorrecta valoração da prova gravada, tendo interposto recurso de apelação com reapreciação de prova junto do Tribunal da Relação de Évora.
e) A douta decisão do Tribunal a quo transcreve a douta decisão do Tribunal de primeira instância, os factos dados como provados e conhece brevemente do mérito do recurso, essencialmente concentrando-se na exposição que a decisão do Tribunal de primeira instância está fundamentada e que vigora o princípio da livre apreciação da prova ou da prova livre, expendendo também considerações sobre prova impositiva.
f) O recurso foi julgado improcedente e a Recorrente entende que a mesma está ferida de duas nulidades.
g) O acórdão não está assinado pelo Sr. Juiz Relator, Dr. Jaime de Castro Pestana, contendo o acórdão a menção “Voto de conformidade. Não assina, por não se encontrar presente”.
h) Estatui o artigo 615.º n.º 1 a) do CPC que é nula a sentença quando não contenha a assinatura do juiz, nulidade que expressamente se argui e que deverá ter as legais consequências.
i) A douta decisão do Tribunal a quo transcreve a douta decisão do Tribunal de primeira instância, os factos dados como provados e conhece brevemente do mérito do recurso, essencialmente concentrando-se na exposição que a decisão do Tribunal de primeira instância está fundamentada e que vigora o princípio da livre apreciação da prova ou da prova livre, expendendo também considerações sobre prova impositiva.
j) Diz o douto acórdão que a única questão suscitada é a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e transcreve os factos indicados pela Recorrente como incorrectamente julgados.
k) Indica que a fundamentação exige do Tribunal explicação das razões que objectiva e concretamente determinaram julgar provado ou não provado determinado facto.
l) Prossegue mencionando a exposição dos concretos meios probatórios e do processo lógico dedutivo e demonstrativo, dizendo que a fundamentação contém precisa e explícita a justificação da decisão de julgar provados e não provados os pontos de facto impugnados.
m) É referido o princípio de livre apreciação de prova e como as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, prossegue referindo doutrina e a quem incumbe o ónus da prova.
n) Expende de seguida considerações sobre prova determinativa e impositiva, que entende que a Recorrente não evidencia meios probatórios deste valor e conclui que a apelante pretende claramente, sem qualquer apoio na prova produzida, uma decisão diversa sobre os factos provados e não provados.
o) O que o douto acórdão não faz é reanalisar a prova produzida que a Recorrente requereu, limitando-se a decisão a remeter para a douta sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância.
p) Não se analisa nem refere as declarações do perito, nem os depoimentos das testemunhas, nem se expendem quaisquer considerações sobre a bondade das mesmas, apenas se remete para a sentença originária, com alusão a que se partilha inteiramente a convicção do Tribunal a quo, sem mais precisões.
q) É indiscutível que cabia ao Tribunal da Relação a reapreciação dos elementos de prova, sob pena de, não o fazendo, esvaziar de sentido o recurso com reapreciação de prova gravada.
r) A mera menção de concordância com a posição do Tribunal a quo não é consentânea com a reapreciação de prova requerida.
s) Neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido pela 4ª secção no dia 18 de Maio de 2017 no âmbito do processo nº 4305/15.8SNT.L1.S1.
t) Nos termos do artigo 615º n.º 1 alínea b) do CPC, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, nulidade que expressamente se argui.
u) O douto acórdão está ferido de duas nulidades e deverá ser ordenada a descida do processo ao Tribunal da Relação de Évora para sanação das nulidades, pugnando-se pela efectiva reapreciação da prova gravada requerida pela Recorrente, sendo, nessa sequência, proferido novo acórdão, que se espera, defira a pretensão da Recorrente.
Não houve resposta.


II – FACTOS PROVADOS.
Foi considerado provado:
1- Por sentença datada de 14 de Fevereiro de 2013, foi declarada a insolvência da sociedade Multiconstrói - Sociedade de Construções, Lda., transitada em julgado.
2.O processo de insolvência foi instaurado a 22 de Novembro de 2012.
3. Na data em que foi declarada a insolvência da sociedade Multiconstrói - Sociedade de Construções, Lda., o seu gerente era BB, tendo sido fixada na sentença que decretou a insolvência a sua morada.
4.CC e DD são filhos da Autora.
5.BB é sócio dos filhos da Autora, CC e DD, na sociedade Multiconstrói 2, Lda.
6.No dia 12 de Março de 2012 entre a Autora e a sociedade Multiconstrói - Sociedade de Construções, Lda. foi celebrado um acordo denominado "Dação em cumprimento" que teve por objeto os seguintes imóveis:
A - Prédio urbano sito no…………, freguesia……, concelho ............, descrito na Conservatória do Registo Predial ............ sob o número ..............13 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ……67 da mesma freguesia.
B - Prédio urbano sito no………, freguesia de Alte, concelho ............, descrito na Conservatória do Registo Predial ............ sob o número ..............13 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ……68 da mesma freguesia.
7.No dia 6 de Março de 2012 entre a Autora e a sociedade Multiconstrói - Sociedade de Construções, Lda. foi celebrado um acordo denominado "Dação em cumprimento" que teve por objeto os seguintes imóveis:
A - Fracção autónoma designada pela letra "A" do prédio urbano sito na ............., freguesia da Quarteira, concelho ............, descrito na Conservatória do Registo Predial ............ sob o número ………27-A e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ………36-A da mesma freguesia.
B - Fracção autónoma designada pela letra "B" do prédio urbano sito na ............., freguesia da Quarteira, concelho ............, descrito na Conservatória do Registo Predial ............ sob o número …………27-B e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ………36-B da mesma freguesia.
8.Os acordos referidos em 6 e 7, tiveram subjacente a alegada celebração de um acordo denominado "Contrato de mútuo" entre Autora (intitulada como Mutuante) e a Multiconstrói - Sociedade de Construções, Lda. (intitulada como Mutuária), em 10 de Maio de 2011, mediante o qual a Autora terá entregue à sociedade Multiconstrói Sociedade de Construções, Lda. o valor de € 57.000,00.
9.Na cláusula primeira do acordo denominado "Contrato de mútuo" refere-se "A Mutuante concede á Mutuária um empréstimo no valor de € 57.000,00 (...), quantia que esta já recebeu e dá por esta forma, plena quitação"
10. Na contabilidade da sociedade Multiconstrói - Sociedade de Construções, Lda. falta o registo contabilístico do valor referido em 8, figurando somente em conta corrente na conta de financiamentos obtidos e com movimentos a crédito o valor de € 3.000,00, com data de 1 de Junho de 2011, € 50.000,00 com data de 2 de Junho de 2011 e € 4.000,00 com data de 3 de Agosto de 2011, tendo sido o saldo da conta corrente aumentado em € 20.000,00 com data de 8 de Fevereiro de 2012.
11. Encontra-se junto aos autos cheque titulado pela Autora, com o número ………..59, da Caixa Geral de Depósitos, assinado e à ordem da Multiconstroi, com data de 10 de Maio de 2011, preenchido pelo valor de € 22.000,00 e, com data de validade até 31 de Março de 2012, tendo sido o cheque depositado na conta n° …………..30, titulada pela sociedade Multiconstroi - Sociedade de Construções, Lda.
12.Foi elaborado relatório pericial de avaliação dos imóveis referidos em 6 - A, 6 - B, 7 A e 7 - B, a 12.12.2019 e junto aos presentes autos.
13.Face ao relatório de avaliação referido em 12, o imóvel referido em 6 - A atualmente tem o valor de € 55.400,00 e em 2011 tinha o valor de € 52.100,00.
14.Face ao relatório de avaliação referido em 12, o imóvel referido em 6 - B atualmente tem o valor de € 79.200,00 e em 2011 tinha o valor de € 74.500,00.
15.Face ao relatório de avaliação referido em 12, o imóvel referido em 7 - A atualmente tem o valor de € 163.500,00 e em 2011 tinha o valor de € 153.700,00.
16.Face ao relatório de avaliação referido em 12, o imóvel referido em 7 - B atualmente tem o valor de € 156.400,00 e em 2011 tinha o valor de € 147.000,00.
17.Face ao relatório de avaliação referido em 12, os imóveis referidos em 6 - A, 6 - B, 7 - A e 7 - B, atualmente têm o valor global de € 427.300,00 e na época dos negócios referidos em 6 e 7 tinham pelo menos o valor global de € 300.000,00.
18.0 valor global patrimonial, actualizado, dos imóveis referidos emó-A, 6-B, 7-Ae7-B ascende a € 160.040,00.
19.Na data em que foram celebrados os acordos referidos em 6 e 7 a insolvente já se encontrava em situação de insolvência.
20. A Autora tinha conhecimento direto da situação de insolvência da Multiconstrói Sociedade de Construções, Lda. na data em que celebrou os acordos referidos em 6 e 7.
21.Com a celebração dos acordos referidos em 6 e 7 pretendeu o legal representante da sociedade Multiconstrói - Sociedade de Construções, Lda. diminuir o património da sociedade insolvente e que constituía a garantia do pagamento aos credores.
22.Por notificação judicial avulsa com o n° de processo 1957/13………. do Tribunal Judicial ............, que entrou no tribunal a 22.07.2013, o Administrador da Insolvência comunicou à Autora a resolução dos acordos denominados "Dação em cumprimento" referidos em 6 e7.
23.Na notificação judicial avulsa dirigida à Autora refere-se "1° MULTICONSTRÓI SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES, LDA., foi declarada insolvente por sentença emitida pelo Tribunal Judicial ............ em 14/02/2013, no âmbito do processo de insolvência com o n° 3277/12……, que corre termos no Tribunal Judicial ............, tendo sido nomeado Administrador de Insolvência o Dr. EE. ( ... ) 2° Logo após a notificação de nomeação, O Administrador de Insolvência, procedeu a buscas para obter a identificação dos bens da insolvente, para que os mesmos integrassem a massa insolvente. 3o Foram encontrados quatro imóveis, cujo direito de propriedade se encontrava titulada a favor de insolvente, os quais foram dados em "dação em cumprimento" à requerida AA, através de dois contratos de "Dação em Cumprimento" celebrados no Cartório Notarial ............ da Notária Dra. FF, com datas de 6 e 12 de março de 2012. (...) (...) 5° Nos termos do artº 120° do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (...), podem ser resolvidos a favor da massa insolvente os atos prejudiciais à massa praticados ou omitidos, dentro de 2 anos anteriores à data do início do processo de insolvência. 6o E, nos presentes autos, o 2o ano completa-se em 6 de março de 2014. 7o Consideram-se prejudiciais, os atos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência. 8o No caso, a insolvente procedeu à "Dação em Cumprimento" de quatro prédios (...). 9o A referida "Dação em cumprimento" tem por base um contrato de Mútuo datado de maio de 2011, não registado e sem que tenha sido liquidado o imposto de selo respetivo, sendo por sua vez omisso quanto à forma de entrada do dinheiro na sociedade, figurando somente em conta corrente (...) em conta de financiamentos obtidos e com movimentos a crédito o valor de 3.000,00 euros, com data de 01.06.2011, 50.000,00 euros com data de 02.06.2011 e 4.000,00 euros com data de 03.08.2011, num total de 57.000 euros. (...) 10° O saldo da conta corrente foi incrementado em 20.000,00 euros com data de 08-02-2012 a título de indemnização, perfazendo o valor de 77.000,00 euros. (...) 11° A gerência da sociedade MULTICONSTRÓI -SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES, LDA. bem conhecia a situação de insolvência da mesma. 12° Era do conhecimento público que todas as empresas do designado "grupo Multiconstrói" ou "grupo Maquimoura", a que estava associada a sociedade insolvente, não só pela correlação de sócios, como pelas efetivas declarações judiciais de insolvência em várias empresas do mesmo "grupo" estavam insolvente. 13° A beneficiária da "Dação em Cumprimento" AA, não só conhecia a situação de insolvência iminente como também tem laços familiares próximos com sócios de empresas do referido grupo de empresas. 14° A celebração de contratos de "Dação em cumprimento" de quatro prédios foi um ato de má fé, nomeadamente por à data do contrato de mútuo e escrituras de dação em cumprimento conhecer a situação de insolvência da sociedade MULTICONSTRÓI - SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES, LDA., ou pelo menos, a iminência dessa insolvência, bem como estar consciente do seu carater prejudicial e por o valor de 77.000 euros que esteve na base da "Dação em Cumprimento" ser manifestamente um valor muito aquém do valor real dos quatro imóveis transmitidos, atento até pelo valor matricial dos quatro prédios que, no conjunto, soma 160.040,00 euros. Ao decidir dar em cumprimento os quatro prédios identificados no ponto 8°, a gerência da sociedade insolvente e a senhora AA quiseram lesar e lesaram, as legítimas expetativas dos credores da MULTICONSTRÓI - SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES, LDA., pois diminuíram intencionalmente o seu património, que constitui a garantia do pagamento dos seus compromissos financeiros. 16° As Dações em Cumprimento assim efetuadas são nulas. 17° E, por outro lado, o Administrador de insolvência da massa insolvente, nos termos dos nºs 1, 2, 4 e 5 do artigo 120° e n° 1 do artigo 123° do CIRE, pode efetuar a resolução da referida dação em cumprimento, referente aos prédios identificados (...), a favor da massa insolvente. 18° Veríficando-se o carater prejudicial dos atos referenciados, nomeadamente no que toca aos direitos dos credores, justifica-se a necessidade da presente notificação judicial avulsa. 19° Nestes termos requer a V. Exa. Se digne notificar a requerida, PARA: Em dez dias a contar da sua notificação, reconhecer a resolução dos referidos contratos de "Dação em Cumprimento" e, consequentemente, restituir à massa insolvente os quatro prédios seguintes:
24.A presente ação foi instaurada a 13 de Dezembro de 2013.
25.Encontra-se registada pela AP. 2977 de 2013/01/07 a transmissão do imóvel referido em 6 - A a favor de GG.
26.Encontra-se registada pela AP. 2977 de 2013/ 01/07 a transmissão do imóvel referido em 6 - B a favor de GG.
27.Encontra-se registada pela AP. 300 de 2012/12/14 a transmissão do imóvel referido em 7 - A a favor de HH.
28.Encontra-se registada pela AP. 300 de 2012/12/14 a transmissão do imóvel referido em 7 - B a favor de HH.


III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
1- Nulidade consistente na falta de assinatura do acórdão recorrido (artigo 615º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil).
2 – Invocação de nulidade por falta de fundamentação, prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil. Incumprimento do dever de reapreciação da prova em 2ª instância, em conformidade com as exigências fixadas no artigo 662º do Código de Processo Civil.
Passemos à sua análise:
1 – Nulidade consistente na falta de assinatura do acórdão recorrido (artigo 615º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil).
Veio a recorrente invocar a nulidade do acórdão recorrido com fundamento na falta de assinatura do juiz desembargador que o relatou, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil.
Apreciando:
Esta arguição de nulidade não tem o menor cabimento ou sentido.
Nos termos do artigo 153º, nº 1, do Código de Processo Civil:
“As decisões judiciais são datadas e assinadas pelo juiz ou relator, que devem rubricar ainda as folhas não manuscritas e proceder às ressalvas consideradas necessárias; os acórdãos são também assinados pelos outros juízes que hajam intervindo, salvo se não estiverem presentes, do que se faz menção”.
A última parte do mencionado preceito prevê precisamente a figura do denominado voto de conformidade, que teve lugar na situação sub judice, havendo a Sr.ª Juíza Desembargadora relatora, depois de assinar o acórdão, feito consignar em relação ao Sr. Juiz Desembargador Dr. Jaime de Castro Pestana a menção “Voto de conformidade. Não assina, por não se encontrar presente”.
Ressalva-se ainda que o ilustre desembargador que não esteve presente – o Sr. Dr. Jaime de Castro Pestana – não foi o relator do acórdão em causa, mas sim o respectivo 2º adjunto.
A relatora do acórdão foi a Sr.ª Juíza Desembargadora Dr.ª Eduarda Branquinho que o assinou.
Acresce que o voto de conformidade poderia igualmente ter sido lavrado nos termos do artigo 15º A, aditado ao Decreto-lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, pelo Decreto-lei nº 20/2020, de 14 de Março, pelo não ocorreria, em qualquer uma das circunstâncias, nulidade do acórdão por falta de assinatura.
Indefere-se, portanto, sem necessidade de outras considerações ou desenvolvimentos, a pretensa nulidade – que, a existir, sempre seria facilmente suprível nos termos do artigo 615º, nº 2, do Código de Processo Civil.
2 – Invocação de nulidade por falta de fundamentação, prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil. Incumprimento do dever de reapreciação da prova em 2ª instância, em conformidade com as exigências fixadas no artigo 662º do Código de Processo Civil.
Invoca a recorrente:
O acórdão recorrido não reanalisou a prova produzida que a Recorrente requereu, limitando-se a decisão a remeter para a douta sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância.
Não se analisa nem se refere as declarações do perito, nem os depoimentos das testemunhas, nem se expendem quaisquer considerações sobre a bondade das mesmas, apenas se remete para a sentença originária, com alusão a que se partilha inteiramente a convicção do Tribunal a quo, sem mais precisões.
É indiscutível que cabia ao Tribunal da Relação a reapreciação dos elementos de prova, sob pena de, não o fazendo, esvaziar de sentido o recurso com reapreciação de prova gravada.
A mera menção de concordância com a posição do Tribunal a quo não é consentânea com a reapreciação de prova requerida.
Verifica-se a nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.
Apreciando:
Pronunciou-se o Tribunal da Relação de Évora de 11 de Fevereiro de 2021, em sede de apreciação da impugnação da matéria de facto fixada em 1ª instância, nos seguintes termos:
“(...) a recorrente considera que os seguintes factos, foram incorrectamente considerados como provados, quando, na realidade, não foi feita prova cabal dos mesmos, que se passam a indicar:
"13. Face ao relatório de avaliação referido em 12, o imóvel referido em 6 - A atualmente tem o valor de 55.400 euros e em 2011 tinha o valor de 52.100 euros.
14. Face ao relatório de avaliação referido em 12, o imóvel referido em 6 - 8 atualmente tem o valor de 79.200 euros e em 2011 tinha o valor de 74.500 euros.
15. Face ao relatório de avaliação referido em 12, o imóvel referido em 7 - A atualmente tem o valor de 163.500 euros e em 2011 tinha o valor de 153.700 euros.
16. Face ao relatório de avaliação referido em 12, o imóvel referido em 7 - 8 atualmente tem o valor de 156.400 euros e em 2011 tinha o valor de 147.000 euros.
17. Face ao relatório de avaliação referido em 12, os imóveis referidos em 6 - A, 6 - 8, 7 - A e 7 - 8, atualmente têm o valor global de 427.300 euros e na época dos negócios referidos em 6 e 7 tinham pelo menos o valor global de 300.000 euros.
18. O valor global patrimonial, atualizado, dos imóveis referidos em 6 - A, 6 -8, 7 - A e 7 - 8 ascende a 160.040,00 euros.
19. Na data em que foram celebrados os acordos referidos em 6 e 7 a insolvente já se encontrava em situação de insolvência.
20. A Autora tinha conhecimento direto da situação de insolvência da Multiconstrói -Sociedade de Construções, Lda. na data em que celebrou os acordos referidos em 6 e 7."
Do mesmo modo, considerou-se como não provado o facto 2: "Que foi entregue o valor de 57,000 euros por conta do acordo denominado "Contrato Mútuo", quando a Recorrente entende que foi produzida prova de tal facto, quanto ao valor de 22 mil euros por prova documental e o remanescente em numerário por prova testemunhal.
Apreciando.
Resulta do artigo 607°, n° 4, do CPC, que a sentença contém a decisão da matéria de facto mediante declaração de quais os factos julgados provados e não provados e a respectiva fundamentação mediante análise crítica das provas, indicação das ilações tiradas de factos instrumentais e especificação de demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.
Assim a fundamentação é a justificação de como se julgam e porque se julgam factos como provados ou como não provados.
Quer dizer, a fundamentação exige do Tribunal explicação das razões que objectiva e concretamente determinaram julgar provado ou não provado determinado facto e assim por modo a conhecer a formação dessa convicção, a conhecer o raciocínio lógico, dedutivo e demonstrativo, e os elementos probatórios produzidos em que se baseia, determinante desse julgamento de provado ou não provado sobre certo facto e assim deste modo impedindo e evidenciando que a decisão sobre a matéria de facto não releva do domínio emocional, mas sim do patamar legal da convicção do Tribunal1.
Trata-se afinal, da exposição dos concretos meios probatórios e do processo lógico dedutivo e demonstrativo que, com base neles, impôs a decisão provado ou não provado sobre cada um dos pontos da matéria de facto.
Nesta perspectiva a fundamentação da decisão da matéria de facto, que se mostra exarada em 6 páginas, contém precisa e explícita a justificação da decisão de julgar provados e não provados os pontos de facto impugnados.
Além disso, importa ainda relembrar que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre (artigo 607.°, n° 5, primeira parte, do Código de Processo Civil).
É certo que o princípio da prova livre só quer dizer que o Tribunal livremente aprecia as provas (mas as provas), sem subordinação a regras ou critérios formais pré-estabelecidos. Não há qualquer convicção íntima do juiz que não se alicerce nas provas produzidas. Está afastado qualquer julgamento com base em meras opiniões ou conjecturas do julgador.
E o Tribunal nos termos do citado dispositivo legal, deve compatibilizar toda a matéria de facto adquirida e extrair dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
É pois permitido ao Julgador extrair ilações de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (art. 349° C.Civil). As instâncias podem tirar, através das chamadas presunções judiciais, ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, completando-a e esclarecendo-a.
Os factos comprovados podem ser trabalhados com base em regras racionais e de conhecimentos decorrentes da experiência comum de modo a revelarem outras vivências desconhecidas. Tais deduções hão-de ser o desenvolvimento lógico e racional dos factos assentes, ou seja, de uma realidade processualmente adquirida.
Assim, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, nem preocupação do legislador, quanto à natureza de qualquer delas, ressalvando-se, apenas, os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos (autênticos e certos documentos particulares), quer por acordo ou confissão das partes ou ainda presunções legais.
Concluindo dir-se-á que as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.
Posto isto, e no que se reporta à impugnação da decisão sobre a matéria de facto importa relembrar o ónus que incumbe à parte para o seu conhecimento.
Conforme prevê o artigo 640.° do Código de Processo Civil, querendo impugnar a decisão da matéria de facto o recorrente tem de especificar, obrigatoriamente e sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, os seguintes aspectos: os concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados os concretos meios probatórios que na óptica do recorrente imponham decisão diversa e o sentido da decisão que deve ser proferida, sendo que no tocante aos depoimentos gravados carece de indicar as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.
Para cumprir a exigência do artigo 640°, n.° 1, alínea b), do CPC, de especificação de prova determinativa, impositiva da decisão pretendida, a recorrente fundamentalmente apela aos depoimentos de DD e CC concatenados com o depoimento do perito.
Simplesmente tais meios probatórios aliás, analisados pelo Tribunal, não são constitutivos de prova impositiva da decisão pretendida, nem infirmam as respostas que mereceram os factos impugnados.
Ou seja, o Tribunal a quo fez a sua valoração da prova produzida, tendo apresentado a respectiva motivação de facto, na qual explicitou minuciosa e exaustivamente, não apenas os vários meios de prova que concorreram para a formação da sua convicção, como os critérios racionais que conduziram a que a sua convicção acerca dos diferentes factos controvertidos se tivesse formado em determinado sentido e não noutro.
Por outro lado, auditados, ponderados e apreciados os meios de prova relevados pela apelante indubitavelmente não configuram prova idónea, escorada e muito menos prova impositiva de que a convicção expressa no julgamento de facto não tenha fundamentação e, não constituem incontestavelmente prova determinativa, impositiva das decisões pretendidas, para cumprir a exigência do artigo 640°, n.° 1, ai. b), do CPC, o que consequência inevitavelmente o soçobrar da sua pretensão.
In casu, toda a prova produzida foi analisada, no seu conjunto, de modo crítico e livremente, tenha ou não emanado da parte que devia produzi-la (artigo 413.°, do Código de Processo Civil) tendo como critério fundamental a liberdade da sua apreciação, com grande rigor, ponderação e isenção, por parte do julgador.
Destarte, a recorrente não evidencia quaisquer meios probatórios constitutivos de prova impositiva das decisões pretendidas, o que implica necessariamente a improcedência da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
O que a apelante pretende, claramente sem qualquer apoio na prova produzida, é uma decisão diversa sobre os factos provados e não provados, para assim pugnar pelo vencimento da sua pretensão, o que obviamente não pode lograr alcançar com tal impugnação.
Não há, pois, que alterar a decisão recorrida, quanto à matéria de facto, que tão só nos cumpre sufragar, partilhando inteiramente da convicção do tribunal a quo, improcedendo, por isso, o recurso quanto à impugnação da matéria de facto, mantendo-se estabilizada a fixada pela 1ª instância”.
Vejamos:
A questão suscitada não se prende com a pretensa nulidade prevista no artigo 615º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Civil, que constitui, em si, um vício estritamente formal da sentença, verificando-se apenas quando na decisão proferida não é consignada a base factual ou jurídica que permita compreender o veredicto proferido.
Ora, o acórdão recorrido contém o conjunto de factos e a motivação de direito que explicam e justificam, do ponto de vista estritamente formal, o decidido (a improcedência da apelação com fundamento na manutenção dos factos considerados provados em 1ª instância e a breve referência ao enquadramento jurídica exposta na decisão recorrida).
Ao invés, a questão jurídica suscitada pela recorrente tem directamente a ver com o exercício, pelo tribunal de 2ª instância, dos poderes de reapreciação da prova, na sequência da impugnação de facto, com alegada violação das exigências estabelecidas no artigo 662º do Código de Processo Civil.
Analisando:
Resulta dos artigos 674º, nº 3, e 682º, nº 2, do Código de Processo Civil, bem como do disposto no artigo 46º da Lei da Organização Judiciária, que o Supremo Tribunal de Justiça, constituindo um tribunal de revista, apenas conhece de matéria de direito e não de matéria de facto.
Encontra-se assim absolutamente excluída da sua competência a análise e decisão quanto ao acerto ou desacerto na prolação da decisão de facto, bem como a inerente discussão sobre a concreta valoração das provas em que a mesma assentou.
Tal matéria, relevante no plano da controvérsia sobre a prova produzida e sindicância do juízo emitido pela 1ª instância, é da exclusiva competência dos Tribunais da Relação, que funcionam neste particular como única e definitiva instância de recurso.
Nenhuma dúvida se suscita sobre este ponto.
Contudo, a regra essencial de que a competência do Supremo Tribunal de Justiça restringe-se exclusivamente ao conhecimento da matéria de direito comporta em si excepções, competindo à última instância, em sede de recurso de revista:
-o conhecimento da insuficiência ou deficiência dos factos apurados nas instâncias inferiores para a cabal e adequada decisão de direito (vide artigo 682º, nº 3, do Código de Processo Civil);
-a sindicância da incorrecta relevância atribuída a certos meios de prova, que impliquem a violação da lei quanto à respectiva força probatória ou constituam infracção às regras relacionadas com a sua inadmissibilidade em determinado tipo de acções, consubstanciando ofensas ao denominado direito probatório material – cfr. artigos 341º a 396º do Código Civil.
-o controlo da inobservância da lei processual que regula o regime de reapreciação da prova e o escrupuloso uso dos poderes que são conferidos ao Tribunal da Relação nos termos do artigo 662º do Código de Processo Civil, permitindo garantir, substantivamente e em termos efectivos, o duplo grau de jurisdição em matéria de facto.
É precisamente este último ponto que se discute na presente revista.
Cumpre frisar que não está, neste contexto, em causa o correcto ou incorrecto entendimento acerca do sentido das provas produzidas; saber se foi ou não acertada a apreciação da decisão de facto; ou se se justificava, ou não, a fixação de outro quadro factual diferente daquele que os autos revelam.
O objecto da presente revista consiste apenas em aquilatar se o Tribunal da Relação, confrontado com a concreta impugnação da matéria de facto que foi elaborada em conformidade com as exigências estabelecidas no artigo 640º do Código de Processo Civil, exerceu sobre ela, criticamente, efectivos poderes de reapreciação e controlo, conforme a lei especialmente lhe impõe no artigo 662º do Código de Processo Civil.
A este propósito, cumpre realçar que constitui jurisprudência firmada no Supremo Tribunal de Justiça que a reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação deverá corresponder a um efectivo e novo juízo autónomo a levar a cabo, com rigor e o desenvolvimento exigíveis, pelos juízes desembargadores em causa, fundando-se materialmente (e não apenas formalmente) na análise da prova, tendo em atenção as razões da convicção do julgador de 1ª instância expressas na parte da sentença em que se deixou consignada a motivação da sua convicção.
Não se trata apenas de corrigir pontuais ou manifestos erros de valoração competidos pelo juiz a quo, ostensivamente desconformes em relação ao sentido dos meios de prova reunidos, antes importando extrair da actividade de reanálise dos meios de prova em causa um novo juízo decisório que se sobrepõe ao emitido pelo juiz a quo, embora condicionado e balizado pelas conclusões das alegações do recurso e pela eventual ampliação do objecto do recurso requerida pelo vencedor/apelado (artigo 636º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Ou seja, a amplitude da reapreciação de facto deverá ser idêntica ao do julgamento de primeira instância, sem o que não estará assegurado o princípio fundamental do duplo grau de jurisdição.
(Sobre este ponto, vide Miguel Teixeira de Sousa in “Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistomologia”, em anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Setembro de 2013, publicado in “Cadernos de Direito Privado”, Ano 44, Outubro/Dezembro de 2013; Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2017, 4ª edição, a página 274; Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume II, Almedina 2018, a páginas 326 a 327).
Tal como a elaboração do recurso por parte do impugnante requer especial cuidado na especificação dos pontos de facto cuja alteração pretende, com base nos meios de prova que concretamente a reclamam, pronunciando-se ainda sobre as respostas alternativas pelas quais propugna, também a decisão do Tribunal da Relação, para garantir a efectivação de um verdadeiro controlo em 2ª instância, deverá traduzir-se num exame sério, exaustivo e rigoroso, que se debruce ponto por ponto (ou por agrupamento de tópicos pertinentes) sobre a matéria de facto controvertida e abrangida pela impugnação (que a delimita).
Só desse modo estará a 2ª instância em condições para se pronunciar, com conhecimento de causa, quanto às respostas (confirmativas ou modificativas) que entenda conferir, estabelecendo-se assim, o quadro factual final e definitivo sobre o qual irá incidir o inerente enquadramento jurídico.
(sobre esta matéria da competência do Supremo Tribunal de Justiça para sindicar o uso dado aos poderes consignados no artigo 662º do Código de Processo Civil, por parte dos Tribunais da Relação, vide, entre outros, o acórdão do Supremo de Tribunal de Justiça de 23 de Fevereiro de 2021 (relatora Fátima Gomes), proferido no processo nº 5503/17.5T8GMR.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo de Tribunal de Justiça de 11 de Fevereiro de 2020 (relator José Manso Rainho), proferido no processo nº 1863/16.3T8PNF.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo de Tribunal de Justiça de 14 de Junho de 2020 (relator Tomé Gomes), proferido no processo nº 206/08.4TBMFR.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo de Tribunal de Justiça de 10 de Setembro de 2020 (relator Ilídio Sacarrão Martins), proferido no processo nº 4794/16.3T8GMR.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo de Tribunal de Justiça de 16 de Dezembro de 2020 (relator Bernardo Domingos), proferido no processo nº 877/15.5T8CSC.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo de Tribunal de Justiça de 16 de Dezembro de 2020 (relator Rijo Ferreira), proferido no processo nº 277/12.9TBALJ.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo de Tribunal de Justiça de 16 de Dezembro de 2020 (relator Tomé Gomes), proferido no processo nº 4016/13.9TBVNG.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão 18 de Maio de 2017 (relatora Ana Luísa Geraldes), proferido no processo nº 4305/15.8SNT.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão 29 de Novembro de 2016 (relatora Ana Paula Boularot), proferido no processo nº 2170/05.2TVLSB-A.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt).
Na situação sub judice, o Tribunal da Relação de Évora, no seu acórdão de 11 de Fevereiro de 2021, ao desenvolver a tarefa processual de apreciação da impugnação de facto deduzida, limitou-se praticamente a remeter para a fundamentação da convicção do juiz de 1ª instância (que considerou modelar), na qual inteiramente se louvou e à qual aderiu totalmente, dispensando-se de proceder a qualquer exame crítico próprio, específico e individualizado.
Os juízes desembargadores que subscreveram o acórdão recorrido acabaram por não deixar expresso no respectivo texto qualquer juízo decisório autónomo sobre a prova em discussão (fosse em que sentido fosse), ou que permitisse vislumbrar as razões essenciais por si perfilhadas para o não atendimento das alterações na matéria de facto que a impugnante reclamava.
Não há uma única referência concreta aos meios de prova referenciados pelo impugnante – depoimentos testemunhais e prestação de declarações por perito -, não se encontrando reflectido no texto do aresto o menor esboço de análise de reapreciação, concreta e efectiva, da prova produzida nos autos.
A fórmula totalmente genérica, difusa e abstracta, que foi utilizada na elaboração do acórdão, em termos puramente remissivos e eivada de considerações de índole geral, poderia facilmente transpor-se para qualquer outra hipotética situação, sem se conseguir descortinar sobre que exactos e concretos meios de prova foi exercido o dever de reapreciação que competia à 2ª instância.
Referir que “auditados, ponderados e apreciados os meios de prova relevados pela apelante indubitavelmente não configuram prova idónea, escorada e muito menos prova impositiva de que a convicção expressa no julgamento de facto não tenha fundamentação e não constituem incontestavelmente prova determinativa, impositiva das decisões pretendidas” redunda numa generalização vaga e conclusiva à qual falta a correspondente exposição da motivação concreta que lhes pudesse servir de suporte, e que teria de radicar necessariamente na reanálise dos meios de prova indicados, a que o Tribunal da Relação de Évora ostensivamente não procedeu.
Não havendo sido o recurso em matéria de facto rejeitado por incumprimento das exigências previstas no artigo 640º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil, competia à 2ª instância analisar de forma directa, particularizada e autêntica, a argumentação trazida na impugnação de facto (aceitando-a ou rejeitando-a), através do efectivo reexame da valoração da prova, fundamentando de forma clara e objectiva o seu juízo crítico autónomo.
O Tribunal da Relação de Évora, estando legalmente obrigado a fazê-lo, não o fez.
O que importará a inevitável anulação do acórdão recorrido para que o tribunal de 2ª instância proceda ao conhecimento da impugnação de facto que foi apresentada, proporcionando um verdadeiro duplo grau de jurisdição em matéria de facto (que a leitura do acórdão recorrido não permite vislumbrar).
Em cumprimento deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça competirá ao Tribunal da Relação de Évora analisar especificamente os meios probatórios que lhe foram indicados na impugnação de facto, aquilatar do seu fundamento, pronunciando-se pela respectiva procedência/improcedência, para depois proceder ao pertinente enquadramento jurídico.
Procederá nesta medida a revista.


V – DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em conceder provimento à presente revista, anulando o acórdão recorrido e remetendo os autos ao Tribunal da Relação de Évora para que proceda à reapreciação da prova requerida em sede de impugnação de facto, em conformidade com o exposto supra.
Sem custas, na medida em que a procedência da presente revista não se deve a facto imputável a qualquer das partes, não havendo a recorrida apresentado contra-alegações.

Lisboa, 26 de Maio de 2021.

Luís Espírito Santo (Relator).

Ana Paula Boularot.

Pinto de Almeida.

(Tem o voto de conformidade dos Exmºs Adjuntos Conselheiros Ana Paula Boularot e Fernando Pinto de Almeida, que compõem este colectivo, nos termos do artigo 15º A, aditado ao Decreto-lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, pelo Decreto-lei nº 20/2020, de 14 de Março).

V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.