Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2618/05.06TBOVR.P1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEICULO
DANO
DIREITO DE PROPRIEDADE
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Data do Acordão: 05/03/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES - DIREITOS REAIS
Doutrina: -Abrantes Geraldes, Indemnização do Dano da Privação do Uso, pág. 32.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 4.º, A), 563.º, 566.º, N.º3, 1305.º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 9/12/08, PROCESSO N.º 3401/08;
-DE 16/3/011, PROCESSO N.º 3922/07.4TBVCT.G1.S1.
Sumário :

I - A privação do uso de uma coisa pode constituir um ilícito gerador da obrigação de indemnizar, uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar, fruir e dispor do bem, nos termos genericamente consentidos pelo art. 1305.º do CC.
II - Não é suficiente, todavia, a simples privação em si mesma: torna-se necessário que o lesado alegue e prove que a detenção ilícita da coisa por outrem frustrou um propósito real – concreto e efectivo – de proceder à sua utilização.
III - A privação do uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano correspondente a essa realidade de facto.
IV - Tendo o autor demonstrado que usava o veículo sinistrado no apoio à actividade de construção civil a que se dedica, bem como nas suas deslocações diárias e de lazer, tal mostra-se suficiente para justificar a atribuição duma indemnização a título de privação do uso.
V - O que na essência define o dano da privação do uso, independentemente de outros prejuízos concretos que possam alegar-se e provar-se associados a essa ocorrência (danos emergentes e lucros cessantes), é a impossibilidade de usar a coisa por virtude da conduta ilícita do lesante, e enquanto essa impossibilidade subsistir.
VI - A avaliação do dano em causa, se outro critério não puder ser adoptado, será determinada pela equidade, dentro dos limites do que for provado, nos termos estabelecidos no art. 566.º, n.º 3, do CC.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Síntese dos termos essenciais da causa e do recurso
AA propôs uma acção ordinária contra ... - Companhia de Seguros, SA, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 27.562,50 €, acrescida de 12,50 € por cada dia de paralisação do seu veículo, desde a data da instauração da acção (10/11/05) até à do pagamento, com juros legais de mora a contar da citação.
Posteriormente, ampliou o pedido relativamente ao reembolso das despesas de aparcamento do salvado que venha a pagar, até ao máximo de 4,00 € diários.
Em resumo, alegou que nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na petição sofreu um acidente de viação ocorrido por culpa exclusiva do condutor do veículo seguro na ré do qual resultaram danos na viatura que conduzia e o impediram de a utilizar, facto que lhe causou prejuízos.
A ré contestou, afirmando que aceita a responsabilidade do condutor do veículo segurado, mas que impugna os danos invocados pelo autor, e alegando, a este propósito, que pelo menos a partir de 15/07/04 (ou seja, menos de 2 meses decorridos sobre a data do aci­dente), ele teve à sua plena disposição a indemnização que lhe compete; por esse motivo não aceita a respon­sa­bilidade pelo pagamento de quais­quer outras quantias, nomeada­mente, a título de privação do uso do veículo, desde a data do acidente até à propositura da presente acção, tanto mais que o autor não tinha o veículo registado em seu nome e quando lhe foi solicitado esse registo, que era condição necessária para o recebimento da indemnização, não o apresentou.
Na réplica, o autor afirmou que sempre rejeitou a hipótese de ficar com o salvado, o que não lhe é exigível, e que a ré só lhe pediu que registasse o veículo em seu nome quando, finalmente, aceitou ficar ela com o mesmo.
Realizado o julgamento e estabelecidos os factos foi proferida sentença que julgou a acção par­cialmente procedente, condenando a ré a pagar ao autor a quantia de 21.000,00 € pela perda do veículo, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde 17/05/04 até efectivo e integral pagamento.
Inconformado, o autor apelou, pedindo a revogação da sentença na parte em que absolveu a ré da indemnização pela privação do uso do veículo.
Por acórdão de 27/9/10 a Relação do Porto concedeu provimento ao recurso, con­de­nando a ré a pagar ao autor a título de indemnização pela privação do uso de veí­culo a quantia de 6.562,50 € acrescida de 12,50 € diários desde a data da petição ini­cial até paga­mento da indemnização fixada pela perda do veículo, com juros legais de mora a contar da citação.
Agora é a ré que, inconformada, interpôs recurso de revista para este STJ, pedindo a revogação do acórdão recorrido com base nas seguintes - e resumidas - conclusões:
1ª) - No caso dos autos não há lugar à atribuição de indemnização a título de privação do uso porque se verificou uma situação de perda total do veículo, que origina uma reparação por equiva­lente (não natural);
2ª) - Os factos apurados não provam que o recorrido tenha sofrido qualquer prejuízo específico que cons­tituam a recorrente na obrigação de indemnizar a título de dano emergente, privação do uso ou de ganho;
3ª) Tendo-se provado, apenas, que “o custo diário de um veículo idêntico ao do autor era de valor não concre­tamente apurado”, a Relação não poderia considerar o valor diário peticionado pelo autor - 12,50 € - para determinar o montante indemnizatório, ainda que com recurso à equidade e ao prudente uso das regras da experiência comum;
4ª) Mesmo que se entenda que a indemnização pela privação do uso não exige a prova de danos efectivos e concre­tos, a escassez dos factos apurados autoriza, no máximo, que no caso presente se atribua uma reparação a título de danos não patrimoniais, a qual não deverá então ser superior a 1.000,00 €, e vencer juros só a contar da sentença, sob pena de abuso do direito;
5ª) Ainda sem prescindir, a indemnização pela privação do uso, independentemente da sua quali­ficação no quadro dos danos materiais ou, antes, dos danos morais, deverá sofrer uma redução não inferior a 50%, tendo em conta o concurso do lesado para o seu agravamento - artº 570º do CC.
O autor não apresentou contra alegações.
Tudo visto, cumpre decidir.

II. Fundamentação
a) Matéria de Facto:
1) No dia 17/5/04, pelas 14,00 horas, ocorreu um acidente de trânsito na E.N. n°109, entron­camento da Cavan, em Ovar.
2) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1) circulava pela referida EN-109 o veículo de matrícula ...-NF, no sentido Norte-Sul.
3) No sentido Poente-Nascente, pela Avenida D. Manuel I, circulava o veículo de matrí­cula ...-LZ.
4) A via em que circulava o LZ entronca na EN 109, por onde circulava o NF.
5) Na via em que circulava o LZ existia um sinal de “Stop”, que obrigava a parar todos os veí­cu­los que pretendessem passar a circular na EN 109.
6) A condutora do LZ sem parar e abrandar a marcha entrou na EN 109 e atra­vessou-se na via, cortando a linha de trânsito que era seguida pelo NF.
7) O NF não conseguiu evitar a colisão entre os dois veículos.
8) O veículo de matrícula ...-NF pertencia o autor, que o adquiriu em 14 de Janeiro de 2002.
9) O veículo de matrícula ...-LZ era pertença de BB e por esta conduzido.
10) A responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo veículo de matrícula ...-LZ estava transferida para a ré através da apólice nº AU21218917.
11) O veículo do autor em consequência do acidente referido em 1) sofreu avarias e amolgadelas.
12) A ré vistoriou o veículo e concluiu pela inviabilidade da reparação dos danos, atento o facto de o valor orçamentado ser superior ao valor venal da viatura à data do acidente.
13) A ré enviou ao autor uma carta datada de 15/07/04 comunicando que o valor do veí­culo era de 21.000 € e o valor do salvado de 6.000 € e onde menciona que: “Assim, tendo em consideração os valores acima indicados do veículo e do salvado, colocamos à sua disposição o valor de 15000 €, ficando o res­pec­tivo salvado de sua posse. Para podermos dar seguimento à regularização do presente sinistro, muito agrade­cemos que nos habilite com cópias do Livrete e Título de Registo de Pro­priedade do veículo, a fim de podermos remeter-lhe o respectivo recibo de quitação. Mais informamos que, os danos decorrentes da demora da resolução deste assunto no que diz respeito à recolha que a oficina venha a reclamar, não poderão ser imputados a esta Segu­radora” (documento de folhas 21).
14) O autor respondeu que não aceitava ficar com o salvado, mas aceitava receber os 21.000 Euros, acrescidos dos custos de imobilização do veículo.
15) A ré aceitou pagar os 21.000 €, mas não os custos da paralisação pretendidos pelo autor.
16) Face a este desacordo, o autor solicita à ré, por várias vezes e, nomeadamente, por carta de 25/7/05, que lhe seja paga a quantia já acordada de 21.000 € (carta junta a folhas 7 e cujo con­teúdo se dá aqui por reproduzido).
17) O veículo do autor é um ‘’Jeep” Grand Cherokee (WJ), a gasóleo, de 23/04/99.
18) O autor na altura referida em 1) tinha o veículo ...-NF registado a favor do anterior proprietário.
19) Desde a altura referida em 1) até à presente data que o autor não pode utilizar o veí­culo nem lhe foi entregue o valor monetário atribuído ao mesmo pela ré.
20) A ré não forneceu ao autor veículo de substituição.
21) O veículo do autor era usado por este e pela família no apoio à actividade de construção civil, a que se dedica, bem como nas suas deslocações diárias e de lazer.
22) O custo diário de um veículo idêntico ao do autor era de valor não concre­tamente apurado.
23) O autor só fez o referido em 14) em data não concretamente apurada mas segu­ra­mente ante­rior a 24/3/05.
24) A ré solicitou ao autor que providenciasse pelo registo do veículo em seu nome por ser uma condição necessária para que se pudesse providenciar pelo pagamento de qualquer indemnização.
25) Devido a ser uma situação de perda total do veículo que importava se pro­cedesse ao respec­tivo ”abate” junto das entidades oficiais competentes.
26) O autor só providenciou pelo registo do veículo a seu favor em 24/3/05.
27) A ré só fez o referido em 22) quando aceitou ficar com o veículo.
28) O “salvado” foi removido e aparcado nas oficinas de CC.
29) Aí se encontra desde a data do acidente.
30) O perito da ré acordou com CC a quantia de 4,00 €, por cada dia de aparca­mento.
31) O dono da oficina veio exigir o pagamento ao autor.
b) Matéria de Direito
Como decorre do que antecede, já transitou em julgado a decisão da primeira instância no sentido de atribuir ao autor uma indemnização de 21.000 € pela perda do veículo acidentado, acrescida de juros legais de mora desde a data do acidente. Subsiste apenas, deste modo, a questão da indem­nização pela privação do uso, que, concedida pela Relação, a recorrente sustenta, a exemplo do que a 1ª instância decidiu, não ser devida, ou dever, no mínimo, ser objecto duma redução equitativa.
Segundo a sentença, “...quando ocorre perda total não há lugar à reparação natural mas antes à reparação por equivalente, em dinheiro. Significa isto que a obrigação em espécie transmuta-se em obrigação pecuniária (artº 566º do CC). Neste quadro, não faz sentido falar-se em privação do uso porquanto a obrigação já não é de reparação da viatura ou entrega de outra com as mesmas características, mas antes a entrega de uma quantia em dinheiro equivalente ao valor que aquela tinha antes do acto ilícito causador dos danos” (fls 173).
A Relação, pelo contrário, entendeu que “... se o lesado sofrer uma perda total do veículo, como sucede no caso presente, em que ficou provado que por causa das avarias e amolgadelas era inviável econo­micamente a repara­ção dos danos, já que o valor venal era inferior ao valor da reparação (supra pontos 11 e 12 da matéria de facto provada), tem direito a ser indemnizado pelo dano patrimonial correspondente ao valor da viatura. Este valor corresponde ao prejuízo que advém para o património do lesado por se ver privado daquele bem. E a sentença recor­rida condenou a ré no pagamento do valor correspondente à perda do veículo (€ 21.000,00), condenação que não é colocada em causa neste recurso. Mas, para além desse prejuízo concreto, subsiste a privação do uso e de todas as utilidades proporcionadas pelo veículo, já que o lesado fica impossibilitado, durante o tempo em que não pôde dispor do veículo ou do valor correspondente, dos poderes de fruição que sobre o mesmo podia exercer. Trata-se de um dano concomitante àquele outro que consiste na perda do veículo ou mera danificação e que justifica a sua reparação, conforme os casos. Esta privação comporta um prejuízo efectivo na esfera jurídica do lesado, quer cor­responde a uma perda temporária (tempo que o veículo está a ser reparado), como quando há uma perda definitiva (no caso do veículo não poder ser reparado ou não ser economicamente viável a sua reparação). Não vemos que haja qualquer argumento jurídico que sustente a tese contrária, a defendida na sentença recorrida, e que conceda a indemnização pela privação do uso quando o dano implique apenas a reparação do veículo e a exclua quando há perda total do veículo. Na verdade, o prejuízo efectivo que advém numa e noutra situação para o lesado, é exactamente o mesmo, porque em ambos os casos fica privado de poder usar, fruir, em suma, dispor do veículo. Num caso, até o veículo estar reparado, no noutro, até receber o valor correspondente à perda do veículo. E em ambas as situações o dano tem carácter patrimonial, reflectindo-se na esfera patrimonial do lesado, já que a perda da possibilidade de utilização do veículo quando e nas circunstâncias que lhe aprouver tem valor económico, susceptível de ser reconduzido a uma expressão pecuniária” (fls 217/218).
A jurisprudência a respeito deste problema não tem sido totalmente uniforme.
Assim, enquanto uns entendem que a indemnização pela privação do uso de certo bem, designadamente um veículo automóvel, depende da prova de um dano concreto, ou seja, da demonstração de prejuízos decorrentes directamente da não utilização do bem, outros sustentam que a simples privação do uso, por si só, constitui um dano indemnizável, independentemente da utilização que se faça, ou não, do bem em causa durante o período da privação. Ora, a nosso ver não sofre dúvida que a privação do uso de uma coisa pode constituir um ilícito gerador da obri­gação de indemnizar, uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar, fruir e dispor do bem nos termos genericamente consentidos pelo artº 1305º do CC. Não é suficiente, todavia, a simples privação em si mesma: torna-se necessário que o lesado alegue e prove que a detenção ilícita da coisa por outrem frustrou um propósito real - concreto e efectivo - de proceder à sua utilização. Em termos rigorosos, portanto, dir-se-á que a privação do uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano corres­pondente a essa realidade de facto. Isto porque, como bem se observa no acórdão do STJ de 16/3/011 (Procº 3922/07.4TBVCT.G1.S1) (1) , “Podem ...configurar-se situações da vida real em que o titular da coisa não tenha interesse algum em usá-la, não pretenda dela retirar as utilidades que aquele bem normalmente lhe podia proporcionar (o que até constitui uma faculdade inerente ao direito de propriedade), ou pura e sim­plesmente não usa a coisa. Em situações como estas, se o titular se não aproveita das vantagens que o uso normal da coisa lhe proporcionaria, também não poderá falar-se de prejuízo ou dano decorrente da privação do uso, visto que, na circunstância, não existe uso, e, não havendo dano, não há, evidentemente, obrigação de indemnizar. Por isso, competindo ao lesado provar o dano ou prejuízo que quer ver ressarcido, não chega alegar e provar a privação da coisa, pura e simplesmente, mostrando-se ainda necessário, que o A. alegue e demonstre que pretendia usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou algumas delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante. E tal exigência não se nos afigura exorbitante. Apresenta-se, tão só, na sequência lógica da realidade das coisas, como pressuposto mínimo da existência do dano e como índice seguro para que o tribunal possa arbitrar a indemnização pretendida com base na utilidade ou utilidades que o titular queria usufruir e não pôde, por estar privado da coisa por acto culposo de outrem.
.....
A título de exemplo, quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente (o que na gene­ralidade das situações concretas constituirá facto notório ou poderá resultar de presunções naturais a retirar da factualidade provada) para que possa exigir-se do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos efectivos, como, por exemplo, que deixou de fazer esta ou aquela viagem de negócios ou de lazer, que teve de utilizar outros meios de transporte (táxi, transportes públicos, automóvel alugado, etc) com o custo cor­respondente. Portanto, se puder ter-se por provado que o proprietário lesado utilizava na sua vida corrente e normal o veículo sinistrado, ficando privado desse uso ordinário em consequência dos danos sofridos pela viatura no aci­dente, provado está o prejuízo indemnizável durante o período de privação, ou, tratando-se de inutilização total, enquanto não for indemnizado da sua perda nos termos gerais. É neste contexto que dizemos que a privação do uso, constitui, por si, um prejuízo indemnizável”.
Infere-se do exposto que na situação julgada no presente processo há que reconhecer o direito do autor a uma indemnização pela privação do uso, como a Relação decidiu. E isto por duas razões fundamentais. Em primeiro lugar porque ficou provado que a recorrente não lhe facultou um veículo de substituição na sequência do acidente verificado, nem até à data lhe entregou a impor­tância de 21 mil euros que, segundo o acordo por ambos firmado, seria suficiente para o lesado adquirir uma viatura equivalente à dada por irrecuperável após o sinistro. Na ausência de qualquer justificação razoável para semelhante comportamento da ré ao longo dos quase sete anos decorridos sobre a data do acidente, tanto mais que o autor logo em finais de Maio de 2005, obtido o acordo, lhe solicitou a entrega daquela quantia (facto 16), torna-se incontestável a existência do necessário nexo causal entre o facto lesivo (o acidente) e o dano (a privação do uso), tal como se encontra definido no artº 563º do CC, segundo o qual “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”. Em segundo lugar porque o autor demonstrou - factos 21 e 22 - que usava o veículo sinistrado no apoio à actividade de construção civil a que se dedica, bem como nas suas deslocações diárias e de lazer. E à luz das considerações que se expuseram isto é o suficiente para justificar a atribuição duma indemnização a título de privação do uso, apesar de nada se ter provado (porque nada, também, foi alegado a tal propósito) no que concerne a outros prejuízos por ela ocasionados. Na verdade, o que na essência define o dano da privação do uso, independentemente de outros prejuízos concretos que possam alegar-se e provar-se asso­ciados a essa ocorrência (danos emergentes e lucros cessantes), é a impossibilidade de usar a coisa por virtude da conduta ilícita do lesante, e enquanto essa impossibilidade subsistir.
Quando, porém, a prova se resuma a factos como os acima indicados, tem-se entendido que o critério a seguir no cômputo da indemnização deve ser o estabelecido no artº 566º, nº 3, do CC, de harmonia com o qual “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equita­tivamente dentro dos limites que tiver por provados”. E foi esta a orientação que a Relação - e bem - seguiu, já que, segundo o entendimento expresso no acórdão recorrido, a avaliação do dano aqui em causa, se outro critério não puder ser adoptado, será determinada pela equidade, dentro dos limites do que for provado, temperado pelas regras da razoabilidade e experiência. O resultado a que chegou, todavia, merece-nos reparo, sendo este o único ponto em que não podemos acompanhar o acórdão recorrido. Efectivamente, julgou-se que a indemnização era devida a partir da data do acidente, sem embargo de o recorrido não ter nessa data o veículo registado em seu nome na Conservatória. A recorrente insurge-se contra isto, mas sem razão, porque o único factor que poderia justificar a recusa em conceder a compensação a partir daquele dia seria qualquer conduta do autor lesiva da boa fé, ou seja, um seu comportamento abusivo que, expresso na apresentação de exigências irrazoáveis, como anota Abrantes Geraldes (2), desviasse as normas de tutela do seu objectivo principal, consistente no ressarcimento de danos efectivos e não no agravamento da posição do responsável. Nada disto, porém, aconteceu. Com efeito, não se provou nenhum facto que tivesse impedido a recorrente de atempadamente facultar ao recorrido um veículo de substituição, ou de lhe entregar a quantia acordada para indemnizar a perda da viatura; alem disso, o autor não contribuiu, por acção ou por omissão, para o ilegítimo agrava­mento da posição do responsável, designadamente arrastando no tempo o litígio que o opôs à companhia seguradora por forma a desse modo obter uma indemnização mais avultada. Simplesmente - e é aqui que se situa a nossa pontual discordância relativamente ao decidido no acórdão recorrido - o tribunal não deu como provado que fosse de 12,50 € o custo diário do aluguer de um veículo idêntico ao do autor, tal como este alegara na petição inicial (cfr. resposta restritiva ao quesito 5º, que deu origem ao facto nº 20), o que desautoriza a concessão da indemnização por privação do uso tomando por base um prejuízo diário dessa ordem de grandeza. Por outro lado, não parece justo que se proceda ao cômputo da indemnização partindo do princípio de que em todos os dias, sem qualquer excepção, decorridos após a data do acidente o autor se tem visto lesado pela impossibilidade de utilizar o veículo sinistrado. Com efeito, e desde logo, está documentalmente provado nos autos que ao longo do tempo decorrido a contar do acidente tem disposto de outros veículos registados em seu nome, veículos esses que, deve presumir-se, também utiliza, ou pode utilizar, para finalidades idênticas. Depois, a mera demonstração de que usava a viatura danificada no apoio à actividade de construção civil a que se dedica e nas suas deslocações diárias e de lazer é suficientemente vaga e genérica para nos levar a concluir que tal utilização não era levada a cabo, antes do acidente, todos os dias da semana, ao longo todo o ano, sem nenhum hiato. Não é razoável nem realista semelhante suposição. E assim, traduzindo-se o julgamento segundo a equidade na solução do litígio mediante a ponderação em concreto das circunstâncias específicas do caso, libertando o tribunal das amarras constituídas pelo comando geral e abstracto da norma - artº 4º, a), do CC - cremos que será mais ajustado valorar o dano em causa à razão de 150 € por cada mês decorrido desde a data do acidente, o que até à propositura da causa, ocorrida em 10/11/05, perfaz, por arredondamento, a importância de 2650,00 €. Só nesta medida se mostra procedente o recurso da ré - e por fundamentos que não coincidem com os enunciados nas conclusões da minuta.

III. Decisão
Acorda-se, pelo exposto, em conceder parcialmente a revista.
Assim, altera-se o acórdão recorrido, condenando-se a ré a pagar ao autor, a título de indemnização pela privação do uso de veículo, a quantia de 150 € por cada mês decorrido desde 17/5/04 até ao efectivo reembolso, com juros de mora à taxa legal desde a citação.
Custas por ambas as partes, na proporção de vencido.

Supremo Tribunal de Justiça, 3 de Maio de 2011

Nuno Cameira (Relator)
Sousa Leite
Salreta Pereira

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(1) No mesmo sentido, cfr. o Ac. de 9/12/08 (Pº 3401/08), relatado, como o citado no texto, pelo Consº Moreira Alves.
(2) Indemnização do Dano da Privação do Uso, pág. 32.