Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1067/07.6TBBNV.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: DECISÃO LIMINAR DO OBJECTO DO RECURSO
REGULAMENTO (CE) 44/2001
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
ACÇÃO DE CONDENAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Data da Decisão Sumária: 10/28/2009
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: DECISÃO SUMÁRIA
Sumário :
I - Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer do litígio em que uma empresa portuguesa demanda companhia de seguros francesa, pelos danos emergentes de acidente de viação ocorrido em França com veículo segurado nesta última, conforme resulta do disposto nos arts. 9.º, n.º 1, al. b), e 11.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22-12-2000.
II - Os tribunais portugueses, ainda que não fossem competentes internacionalmente com base nas referidas disposições do Regulamento, sê-lo-iam sempre por via da extensão de competência que é concedida pelo art. 24.º do Regulamento, visto que a ré compareceu em juízo reconhecendo a competência internacional dos tribunais portugueses.
Decisão Texto Integral:

Recurso próprio, efeito devido, nada obstando ao seu conhecimento
Decisão liminar nos termos do artigo 705.º do C.P.C.
1. AA-Transportes Internacionais Lda. demandou no dia 9-7-2007
BB , S.A. pedindo a sua condenação no pagamento de 96.465,58€
acrescidos dos respectivos juros que à taxa legal se vencerem desde a
data da citação até integral pagamento.
2. Estão em causa danos resultantes de acidente de viação ocorrido em
França com um pesado de mercadorias cuja responsabilidade alegadamente cabe a outro veículo pesado, propriedade de “Transportes CC ,S.A.”,
responsabilidade garantida pela ré através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º .....
3. Os danos invocados são os seguintes:
- Diferença entre o valor comercial global do veículo sinistrado e o valor liquidado pela seguradora da autora no montante de 19.689,76€.
- Prejuízo de 67.356,20€ decorrente da imobilização do veículo desde a data do sinistro até à data em que a autora recebeu a indemnização da
sua seguradora.
- Perda de combustível do veículo no montante de 1.296,00€.
- Perda do frete que a autora, por causa do acidente, não chegou a
realizar no montante de 2.791,62€.
- Deslocação a França do gerente da autora por causa do acidente no
valor de 1.200€.
- Custo das despesas inerentes ao transporte do motoristas do conjunto
acidentado no valor de 1.000,00€.
- Custo do parqueamento da viatura sinistrada no montante de 3.312,00€.
4. Na contestação a ré sustentou, para além de outras questões, que a
acção deveria ser intentada apenas contra o Gabinete Português da Carta Verde referindo que “ de harmonia com a Convenção de Haia e com o Regulamento n.º 44/2001 do Conselho Europeu (artigo 9.º) o procedimento judicial para efectivação de responsabilidade civil derivado do acidente de viação pode ser intentada no Tribunal do domicílio do lesado mas, tendo como causa de pedir um acidente ocorrido no território de outro Estado, o direito aplicável é o desse outro Estado, neste caso, o Direito francês” (artigo 6.º da contestação).
5. O Tribunal de 1ª instância absolveu a ré da instância com
fundamento em ilegitimidade por ser o Gabinete da Carta Verde que tem competência para satisfazer aos lesados, ao abrigo do Acordo Multilateral de Garantia, as indemnizações devidas, nos termos legais e regulamentares do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, por acidentes causados por veículos matriculados noutros
Estados- Membros da Comunidade Europeia.
6. Foi interposto recurso de agravo para o Tribunal da Relação sustentando a autora que o Gabinete Português da Carta Verde apenas
tem legitimidade passiva para ser demandado, quer legal, quer estatutariamente, quando o sinistro se tenha verificado ou ocorrido em
território nacional, isto é, em Portugal; ora, no caso vertente, o acidente ocorreu em França e, por isso, o Tribunal devia ter ordenado o prosseguimento dos autos; ainda que assim não fosse, o Tribunal devia ter admitido o chamamento do Gabinete Português da Carta Verde e
não indeferi-lo, deferindo a excepção de ilegitimidade.
7. O Tribunal da Relação considerou que estas questões estavam
prejudicadas porque, em seu entender, os tribunais portugueses são
incompetentes em razão da nacionalidade, questão de conhecimento
oficioso.
Argumentou assim:
Ora, porque a questão não foi especificamente abordada na decisão
recorrida e a mesma é de conhecimento oficioso (artigo 494.º, alínea
a) e 495.º do C.P.C.) pode e deve esta Relação conhecer dessa matéria apesar de as partes não a terem invocado.
E porque assim é à luz do estatuído nos artigos 65.º e 65.º-A do
C.P.C., normas que os sucessivos diplomas que introduziram alterações
nos supra citados Decretos-lei nºs 525/85 e 122-A/86 não modificaram, e sendo indesmentível que a autora pode demandar a ré num Tribunal
francês, sendo que também é a lei desse Estado que regula as consequências do acidente (artigo 65.º,nº1, d) - por interpretação a contrario sensu - do C.P.C. e 45.º, n.º1 do Código Civil Português), os tribunais nacionais de Portugal não são internacionalmente competentes para a tramitação e o julgamento da causa.
8. Foi interposto pela autora recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça minutado, no essencial, com as seguintes conclusões:
- Que, nos termos do artigo 24.º do Regulamento (CE) 44/2001, de 22 de Dezembro que vigora em território nacional prevê-se uma prorrogação ou extensão tácita de competência jurisdicional para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do mesmo Regulamento.
- Que, nos termos daquele normativo, é competente o Tribunal do Estado-Membro perante o qual o requerido compareça e não argua a incompetência ou a existência de outro Tribunal com competência exclusiva por força do artigo 22.º do Regulamento.
- Que nestes casos não se justificava a declaração oficiosa de incompetência, reconhecendo a autonomia da vontade como um princípio fundamental em torno do qual está estruturado o regime instituído pelo Regulamento no que respeita à repartição da competência
internacional.
- Que, nos termos do citado regulamento, nunca poderia oficiosamente o Tribunal da Relação de Lisboa levantar uma questão nunca suscitada
pelas partes, pois o Regulamento impõe a autonomia das partes, como
princípio fundamental a respeitar, afastando mesmo regras de competência das quais pudesse resultar um tribunal diverso do
escolhido.
- Que o presente processo tem na sua origem um sinistro rodoviário
que envolve um veículo de matrícula portuguesa e propriedade da aqui
agravante a qual é uma empresa portuguesa e, sendo complexa a causa de pedir em matéria de sinistro rodoviário, tal complexidade abrange os
prejuízos sofridos, relevando, nos termos do artigo 65.º/1, alínea c)
do C.P.C, o critério da causalidade, o que leva a que a competência
dos tribunais portugueses se determina sempre que tenha sido praticado
em território nacional o facto ou alguns dos factos integradores da
causa de pedir, constatando-se que em França se deu o sinistro, mas é
em Portugal que os prejuízos ocorrem pois é em Portugal que a autora
tem a sua sede.
Assim sendo - conclui o recorrente - mesmo sem recurso ao disposto nos artigos 24.º e seguintes do Regulamento os Tribunais nacionais sempre seriam competentes , por aplicação dos artigos 9.º e seguintes do Regulamento e do artigo 65.º/1 do C.P.C .. mostrando-se, deste modo,
desrespeitadas as mencionadas disposições legais e ainda os artigos
5.º, 9.º e 11.º todos do Regulamento 44/2001 (CE) de 22-12-2000.
Apreciando:
9. A presente acção visa responsabilizar a ré seguradora pelos danos
emergentes de acidente de viação ocorrido no dia 24-7-2006 em
território francês entre um veículo que é propriedade da autora,
empresa portuguesa com sede em Samora Correia e um veículo de
matrícula francesa segurado na ré.
10. A acção foi proposta no Tribunal Judicial de Benavente, comarca
onde a autora tem a sua sede.
11. A acção foi intentada nos termos do artigo 29.º/1, alínea a) do
Decreto-lei n.º 552/85, de 31 de Dezembro que permite ao lesado
demandar a seguradora quando o pedido formulado se contiver dentro dos limites fixados para o seguro obrigatório a que corresponde o artigo 64.º/1,alínea a) do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto (novo
regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel) que
entrou em vigor 60 dias após a sua publicação.
12. Assim, à luz da legislação nacional, a seguradora pode ser demandada directamente pelo lesado nos casos em que o pedido formulado está contido dentro do capital mínimo obrigatório do seguro
obrigatório, o que sucede no caso vertente (cf. artigo 12.º/1 do DL
291/2007 e artigo 6.º do DL 522/85, de 31 de Dezembro).
13. Aplica-se na ordem jurídica portuguesa em matéria de competência o Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000,
aplicável a Portugal e à França enquanto Estados-Membros da União
Europeia.
14. Prescreve o artigo 11.º/2 do Regulamento que “ o disposto nos
artigos 8.º, 9.º e 10.º aplica-se no caso de acção intentada pelo
lesado directamente contra o segurador, sempre que tal acção directa
seja possível”; o artigo 9.º, alínea b) prescreve que o segurador domiciliado no território de um Estado-Membro pode ser demandado “
noutro Estado-Membro , em caso de acções intentadas pelo tomador de seguro, o segurado ou um beneficiário, perante o tribunal do lugar em
que o requerente tiver o seu domicílio”.
15. Por isso, face às referidas disposições, os tribunais portugueses
são competentes em razão da nacionalidade, devendo litígio resolver-se
à luz do que prescreve o Regulamento e não do que pode resultar das
regras constantes do artigo 65.º do C.P.C. visto que estas, conforme
consta do n.º1 deste preceito, valem “ sem prejuízo do que se ache
estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis
especiais”.
16. O âmbito de aplicação do artigo 11.º/2 do Regulamento (CE) n.º
44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, foi já objecto de
interpretação pelo Tribunal de Justiça por acórdão de 13-12-2007
(Processo C-436/06) na sequência de pedido de decisão prejudicial
apresentado no litígio que opunha J. O…, residente na Alemanha, vítima de um acidente de viação ocorrido nos Países Baixos, à companhia de seguros do responsável pelo acidente, a sociedade de responsabilidade limitada F…S…. NV (a seguir «F….»), estabelecida neste Estado-Membro.
17. Ora o Tribunal de Justiça considerou que a remissão do artigo
11.°, n.° 2, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de
Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, para o artigo
9.°, n.° 1, alínea b), deste diploma deve ser interpretada no sentido de que a pessoa lesada pode intentar uma acção directamente contra o segurador no tribunal do lugar em que tiver o seu domicílio num Estado-Membro, sempre que tal acção directa seja possível e o segurador esteja domiciliado no território de um Estado-Membro.
18. Trata-se de uma aplicação, ao nível interpretativo, como salienta o acórdão da exigência de protecção da parte economicamente mais fraca, princípio de interpretação enunciado no décimo -terceiro considerando do Regulamento e consagrado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.
19. Saliente-se ainda, assim se acompanhando o recorrente, que sempre os tribunais portugueses seriam competentes visto que , atento o disposto no artigo 24.º do Regulamento, o réu contestou a presente acção mas aceitou a competência dos tribunais portugueses como expressamente referiu na contestação. Por isso, sempre os tribunais portugueses deviam ser considerados competentes em razão da nacionalidade.
20. Não está aqui , como é bom de ver, afastado o princípio do
conhecimento oficioso da competência, pois os tribunais portugueses
podem e devem conhecer desta excepção a título oficioso (artigos 101.º e 102.º do C.P.C.); por outras palavras, se, em alguma instância, no
caso vertente, não fosse reconhecida a competência internacional dos
tribunais portugueses, impor-se-ia à luz das mencionadas regras
conhecer oficiosamente da referida excepção. O Regulamento não afasta, nem isso faria sentido, a regra processual da oficiosidade, pois o que está em causa naquele artigo 24.º é ainda uma regra de competência que se traduz na aplicação do princípio da subsidiariedade em face da
autonomia da vontade das partes.
21. No caso, o que aconteceu é que o Tribunal da Relação conheceu
oficiosamente da excepção - e disso advertiu as partes - considerando
os tribunais portugueses incompetentes; mas sem razão, dados os
motivos expostos.
22. O presente litígio é decidido liminarmente pois estamos face a uma
questão que já foi objecto de interpretação pelas instâncias comunitárias, não se suscitando, portanto, agora dúvida razoável e o
próprio Supremo Tribunal de Justiça, no que respeita ao alcance do
referido artigo 24.º do Regulamento, também já se pronunciou, no
agravo n.º 72/07- 2º secção de 10-5-2007(Gil Roque) nos seguintes
termos:

I - Na determinação da competência judiciária internacional
relativamente a acção, fundada no incumprimento de contrato celebrado entre uma sociedade fornecedora portuguesa (autora), contra uma sociedade espanhola (ré), que encomendara as mercadorias, cujo local de entrega final era a Espanha, são aplicáveis os arts. 2.º, n.º 1, e 5.º, n.º 1, al. b), do Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22-12, dos quais resulta serem os tribunais espanhóis os competentes.

II - Tendo a acção sido instaurada no tribunal português sem que a ré,
que apresentou contestação, tenha arguido nessa peça processual a excepção de incompetência absoluta, em razão da nacionalidade, ocorreu a prorrogação tácita de competência prevista no art. 24.º do referido Regulamento, pelo que os tribunais portugueses também são
internacionalmente competentes para conhecer do litígio.

Concluindo:

I- Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para
conhecer do litígio em que uma empresa portuguesa demanda companhia de seguros francesa pelos danos emergentes de acidente de viação ocorrido em França com veículo segurado nesta última conforme resulta do disposto nos artigos 9.º/1, alínea b) e 11.º do Regulamento (CE) n.º
44/2001, do Conselho de 22 de Dezembro de 2000.

II- Os tribunais portugueses, ainda que não fossem competentes internacionalmente com base nas referidas disposições do Regulamento,
sê-lo-iam sempre por via da extensão de competência que é concedida
pelo artigo 24.º do Regulamento visto que a ré compareceu em juízo
reconhecendo a competência internacional dos tribunais portugueses.

Decisão:

Concede-se provimento ao agravo e, revogando-se a decisão proferida,
julgam-se os tribunais portugueses internacionalmente competentes,
impondo-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação a fim de conhecer
das questões que houve por prejudicadas.

Sem custas

Lisboa, 28-10-2009

Salazar Casanova