Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1658/14.9TBVLG.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONTRATO DE SEGURO
TAXA DE ALCOOLEMIA DO CONDUTOR
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
CAUSALIDADE
CONCORRÊNCIA DE CULPA DO LESADO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DOS SEGUROS - CONTRATO DE SEGURO / SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / CONCORRÊNCIA DE CULPAS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 350.º, N.ºS 1 E 2, 570.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 623.º.
D.L. N.º 291/07, DE 21-08: - ARTIGO 27.º, N.º 1, AL. C).
Sumário :
1. A alteração legislativa corporizada na art. 27º, nº1, alínea c) do DL 291/2007 (apagando a expressão agido sob influência do álcool e substituindo-a pelo – muito mais objectivado- segmento normativo conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida) teve como consequência dispensar a seguradora do ónus de demonstração de um concreto nexo causal entre o erro ou falta, cometido pelo condutor alcoolizado no exercício da condução, - e que despoletou o acidente - e a situação de alcoolemia, envolvendo a normal e provável diminuição dos reflexos e capacidade reactiva do condutor alcoolizado.

2. Assim, o sentido a atribuir ao regime normativo introduzido pelo DL 291/07 é o de ter estabelecido uma presunção legal, assente nas regras ou máximas de experiência, na normalidade das situações da vida, segundo a qual o concreto erro ou falta cometido pelo condutor alcoolizado – e que consubstancia a responsabilidade subjectiva por facto ilícito que lhe é imputada - se deveu causalmente à taxa de alcoolemia verificada objectivamente por meios técnicos adequados – deixando naturalmente a parte beneficiada pelo estabelecimento desta presunção legal de estar onerada com a prova efectiva do facto a que conduz a presunção, nos termos do art. 350º, nº1, do CC.

3. O direito de regresso invocado pela seguradora apenas se verificará, porém, na medida em que o acidente e o evento danoso sejam de imputar a um facto culposo do condutor, não abrangendo a parcela correspondente à medida em que o agravamento dos danos é antes de imputar à concorrência de um facto culposo do próprio lesado, justificando a aplicação do regime contido no art. 570º do CC.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



1. AA – Sucursal de Portugal intentou acção de condenação contra BB, alegando que, no exercício da sua actividade seguradora, celebrou contrato de seguro com CC, relativamente ao veículo ...-...-IF. Em 22 de agosto de 2009, este veículo era conduzido pelo réu, tendo o mesmo perdido o seu controlo, despistando-se, saindo da via e embatendo contra um muro; daí resultou a morte de passageiro que viajava naquele veículo; o acidente ficou a dever-se ao facto do réu não ter observado a prudência e a diligência necessárias à condução, acusando ainda uma taxa de álcool no sangue de 0,72 g/l e a presença de substância psicotrópica.

Por força do contrato de seguro e para regularização do sinistro, a autora despendeu € 74.670,65 – valor que reclama do réu, tendo em conta o disposto no artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.

Conclui pedindo que, com a procedência da acção, o réu seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 74.670,65 relativa às despesas com o sinistro descrito, acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde a citação e até efectivo e integral pagamento.

O réu contestou, impugnando parcialmente os factos, imputando as causas e culpas na produção das lesões a conduta imprevidente e temerária da vítima e afirmando não haver nexo causal entre a TAS ou a substância psicotrópica detectada e o acidente , recaindo sobre a seguradora o respectivo  ónus da prova.

Concluída a audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida sentença que decidiu julgar a acção totalmente improcedente por não provada, por entender que incumbia à A. a prova do nexo causal entre a condução do R., com a referida taxa de alcoolemia, e o acidente mortal - e, em consequência, absolveu o réu do pedido.


2. Inconformada, apelou a A., tendo a Relação concedido provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e, em consequência, julgando procedente a ação instaurada pela autora/recorrente contra o réu, condena-se este a pagar à autora a quantia de € 74.670,65 (setenta e quatro mil seiscentos e setenta euros e sessenta e cinco cêntimos), relativa às despesas com o sinistro descrito, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.


O acórdão recorrido começou por enunciar a matéria de facto apurada, fazendo-o nos seguintes termos:

1) Por escritura pública datada de vinte e dois de Dezembro de 2009, foi a DD COMPANHIA DE SEGUROS S.A., incorporada, por fusão – com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2010 – na sociedade AA, ora A..

2) Por força da escritura de fusão celebrada, a ora A. assumiu a universalidade dos ativos e passivos da DD COMPANHIA DE SEGUROS, S.A, sociedade incorporada.

3)     A Autora dedica-se à atividade seguradora.

4)     Por contrato de seguro, celebrado entre a DD COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. e CC, a 4.10.2008, titulado pela apólice n.º 0047…, referente ao veículo automóvel de marca Opel, modelo Astra, com a matrícula ...-...-IF (doravante designado IF), este transferiu a responsabilidade civil pela circulação do veículo para a aqui Autora.

5)    No dia 22.08.2009, pelas 04h30m, o veículo seguro IF transitava na Estrada Nacional 15 (EN 15), na localidade de C…, concelho de Valongo.

6)    O veículo IF seguia no sentido de marcha Gandra / Valongo e era conduzido por BB, aqui Réu.

7)    A EN15 dispõe de duas vias de trânsito, cada uma para sentidos opostos.

8)     Sensivelmente ao KM 10,665, o Réu perdeu o controlo do veículo IF.

9)     No veículo IF seguia pelo menos, juntamente com o R., EE, na parte de trás do lado direito do IF.

10)    EE seguia pelo menos com a cabeça fora do veículo através da janela.

11)    A cabeça de EE embateu contra o referido muro.

12)    Em virtude da pancada sofrida, EE sofreu lesões traumáticas crâneo-meningo-encefálicas.

13)     As referidas lesões foram causa direta e necessária da sua morte.

14)     EE teve morte no local.

15)    O aqui Réu foi submetido ao teste de alcoolemia, tendo acusado uma T.A.S. de 0,72 g/l,

16)    O aqui Réu foi também sujeito ao teste para deteção de substâncias psicotrópicas, tendo acusado a presença de 40,18 microgramas de tetraidrocanabinol por mililitro de sangue.

17)    Do sinistro resultou a morte de EE, passageiro do veículo IF.

18)    No âmbito do processo comum perante tribunal singular que correu seus termos perante o 2.º Juízo do TJ de Valongo, o aqui. R. veio por sentença transitada em 24/09/2013 a ser absolvido “da prática de um crime de condução sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto e punido pelos artigos 292.º n.ºs 1 e 2 e 69.º n.º al. a) todos do CP” e condenado pela “prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º n.ºs 1 e 2 do CP na pena de 180 dias de multa à taxa diária de € 6” pela prática dos factos ali dados como provados que aqui se dão por reproduzidos (cfr. doc. de fls. 53 a 84, cujo teor aqui se dá por reproduzido) e dos quais se destacam:

“7 - No automóvel conduzido pelo arguido, seguiram mais três pessoas, incluindo EE que ocupou o banco traseiro da viatura, do lado direito.

8 - Nas descritas circunstâncias, o arguido iniciou a marcha do “IF” conduzindo o mesmo na Estrada Nacional n.º 5, na direção Gandra-Valongo.

(…)

10 - Logo após o início da marcha, EE colocou a cabeça, braços e parte do tronco da parte de fora do automóvel, através da janela do lugar do passageiro direito traseiro, fazendo gestos de brincadeira para o automóvel que os seguia.

11 - O arguido apercebeu-se da posição em que EE seguia, tendo-o alertado para se introduzir completamente no veículo automóvel.

12 - EE não se introduziu completamente no veículo, permanecendo na mesma posição durante o caminho.

13 - O arguido apercebeu-se que EE não acatou as palavras que lhe foram dirigidas, tendo continuado a marcha do veículo.

14 - Entre 5 e 10 minutos após o início da marcha, ao km. 10,665 da via, o arguido deixou de olhar para a estrada e de prestar atenção à condução para selecionar uma determinada canção gravada numa pen USB que estava introduzida no auto-rádio do veículo.

15 - Na sequência do descrito em 14, o arguido perdeu o controlo da viatura que conduzia e permitiu que a mesma passasse a circular na valeta que ladeia a via no sentido de marcha que seguia.

16 - O veículo circulando com as rodas direitas na valeta, raspou com a lateral direita ao longo da casa que ladeia a via e embateu com a roda frontal direita num passadiço em betão que se situa sobre a valeta e faz ponte entre a casa e a entrada.

(…)

23 - Em consequência da brusca aproximação do veículo “IF” à casa que ladeia a via, EE embateu, frontalmente com a cabeça contra a habitação.

(…)



25 - Por força do impacto EE sofreu lesões traumáticas crâneomeningo-encefálicas que lhe provocaram a morte.

(…)”.

19)     No âmbito do processo referido em 17), a Autora foi demandada no pedido de indemnização civil deduzido pelos pais do falecido EE.

20)    Nos referidos autos foram celebrados acordos de transação, em cumprimento dos quais a aqui A. pagou por força do contrato de seguro em 01.08.2013 a FF a quantia de € 35.000,00 e em 26.06.2013 a GG a quantia de € 35.000,00 (conforme docs. 7 a 10 e 15 a 16 juntos aos autos a fls. 85 a 95 e 100 a 102 (cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

21)    Em 12.07.2013, a Autora pagou a HH a quantia de € 734,40 (setecentos e trinta e quatro euros e quarenta cêntimos) a título de encargos judiciais, conforme doc. 11 de fls. 96 dos autos (cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

22)    Em 16.07.2013, a Autora pagou a HH a quantia de € 1.641,37 (mil, seiscentos e quarenta e um euros e trinta e sete cêntimos) a título de honorários, conforme doc. 12 de fls. 97 (cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

23)    Em 16.07.2013, a Autora pagou a HH a quantia de € 1.310,13 (mil, trezentos e dez euros e treze cêntimos) a título de honorários, conforme doc. 13 de fls. 98 (cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

24)    Em 16.07.2013, a Autora pagou a HH a quantia de € 81,60 (oitenta e um euros e sessenta cêntimos) a título de encargos judiciais, conforme doc. 14 de fls. 99 (cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

25)    Em 11.05.2012, a Autora pagou a HH a quantia de € 734,40 (setecentos e trinta e quatro euros e quarenta cêntimos) a título de encargos judiciais, conforme doc. 17 de fls. 103 (cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

26)    Em 27.07.2011, a Autora pagou a II DE PORTUGAL a quantia de € 12,75 (doze euros e setenta e cinco cêntimos) a título de emissão de certidão, conforme doc. 18 de fls. 104 e doc. 19 de fls. 105 (cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

27)     Em 03.06.2011, a Autora pagou a HH a quantia de € 734,40 (setecentos e trinta e quatro euros e quarenta cêntimos) a título de encargos judiciais, conforme doc. 20 de fls. 106 (cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

28)    Em 24.11.2009, a Autora pagou a II DE PORTUGAL a quantia de € 156,00 (cento e cinquenta e seis euros) a título de honorários, conforme doc. 21 de fls. 107 (cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

29)    Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 5) a 7) o R. deixou momentaneamente de olhar para a estrada e de prestar atenção à condução, para procurar uma música numa “Pen”.

30)    Como consequência do referido em 29) o R. perdeu o controlo do IF nos termos referidos em 8) e despistou-se.

31)     Resvalando para a valeta do lado direito da via, atento o sentido de marcha em que seguia, saindo assim parcialmente da via de trânsito em que seguia e raspando no muro da casa que ali ladeava a via.

32)    EE seguia na altura do embate referido em 31) pelo menos com a cabeça, braços e parte do tronco do corpo de fora da janela (traseira do lado direito do IF) motivo porque a sua cabeça embateu nos termos referidos em 11) no muro.

33)    Atrás do veículo conduzido pelo réu, vinham, num segundo veículo, mais 3 pessoas do mesmo grupo de amigos.

34)    O EE colocou a cabeça, braços e parte do tronco da parte de fora do automóvel, através da janela do lugar do passageiro direito traseiro, fazendo gestos de brincadeira para a passageira que seguia no segundo veículo que os seguia.

35)     Gestos que foram sendo correspondidos por esta.

36)     Mais nenhum passageiro do veículo conduzido pelo réu teve o mais pequeno ferimento.

37)     O R. advertiu o falecido EE no sentido de se sentar, o que este não observou.

FACTOS NÃO PROVADOS.

[relativo à pessoa do R. e nexo causal do acidente com as circunstâncias referidas em 15) e 16)].

I - A taxa de alcoolémia referida em 15) e a presença da substância referida em 16) perturbaram os reflexos e a coordenação motora do aqui Réu, causando uma lentidão na sua capacidade de reação e perceção que levaram à ocorrência dos factos referidos em 8), 11) e 29) a 31) dos factos provados.

Ii - A taxa de alcoolémia referida em 15) e a presença da substância referida em 16) não foram causais da perda de controlo do IF e ocorrência dos demais factos referidos em 8), 11) e 29) a 31) dos factos provados.

Iii - o demais alegado em 22.º e 23.º da contestação.»


3. Passando a apreciar a questão que integrava o objecto do recurso, considerou a Relação no acórdão recorrido:

Apurando a responsabilidade na produção do acidente a que se reportam os autos, conclui-se na sentença recorrida que a mesma recai sobre o réu, exclusivamente.

Tendo especialmente em consideração os factos provados sob os números 5) a 18) e 29) a 37), afirma-se na referida sentença:

«Da análise desta factualidade em conjugação com o disposto nos artigos 3.º n.º 2, 11.º n.º 2, 13.º n.º 1, 17.º n.º 1, 54.º n.º 4 e 82.º do C.E. todos (na redação em vigor à data do acidente), resulta que o aqui R. não atuou de forma a abster-se da prática de atos que comprometeram o exercício da condução com segurança e a própria segurança quer dos utilizadores da via pública quer dos próprios passageiros que seguiam na sua viatura, porquanto não só se permitiu deixar de olhar momentaneamente para a estrada e prestar atenção à condução para procurar uma música, como permitiu que um dos passageiros do seu veículo circulasse fora dos assentos e logo sem dispositivo de segurança colocado.

Certo sendo que lhe era exigível outro comportamento, conforme às normas legais.

Esta conduta violadora das normas estradais acima mencionadas só por si permite a conclusão de que o acidente em causa se deu de forma exclusiva pela conduta contraordenacional do condutor do IF, nos termos supra expostos.

Note-se que a conduta do falecido Dario, censurável sem dúvida, em nada contribuiu para a produção do acidente em si.

Diversa é a relevância desta conduta quando analisada na perspetiva do nexo causal para a gravidade dos danos produzidos – precisamente pelo facto da vítima Dario seguir fora dos assentos da viatura.

Mas tal é questão que releva em sede de aferição do quantum indemnizatório e não em sede de apuramento da responsabilidade na produção do acidente – isto é, o despiste e embate subsequente ocorrido.

Para este efeito apenas ao R., condutor do IF, é de imputar a responsabilidade na produção do acidente – a tal não obstando o apurado em 37) dos factos provados, porquanto era ao R. que incumbia fazer cumprir a observância das normas legais relativas à segurança dos seus passageiros, nada tendo ficado demonstrado no sentido da impossibilidade de tal cumprimento.»

Apesar disso, aí se julgou improcedente a ação perante o entendimento de que, com referência ao artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, se impõe algo mais à seguradora, para fazer operar o direito de regresso: a demonstração de que a causa do acidente, imputável ao condutor, emergiu do estado de etilização e/ou consumo de estupefacientes do mesmo; no caso dos autos, tal não se demonstrou, daí resultando a improcedência da ação.

(…)

O artigo 19.º, alínea c), do Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de dezembro, relativo ao seguro obrigatório, determinava que, “satisfeita a indemnização, a ré seguradora apenas tem direito de regresso contra o condutor se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado”.


Resulta desta norma que a seguradora podia então exercer o direito de regresso quando, entre outros pressupostos, o condutor tivesse agido sob a influência do álcool e que este estado tivesse causado o acidente.

Na vigência deste diploma debateu-se na doutrina e na jurisprudência a questão de saber se devia ocorrer nexo de causalidade entre o acidente em discussão e a condução sob a influência do álcool e sobre quem recaía o respetivo ónus da prova. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/02, de 28 de maio de 2002, publicado no Diário da República n.º 164, série I-A, de 18 de julho de 2002, uniformizou jurisprudência nos seguintes termos: «A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do anexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente».

O Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, veio entretanto aprovar o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, com a transposição parcial para a ordem jurídica interna de diferentes Diretivas do Parlamento Europeu e do Conselho, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, revogando o anterior diploma, o Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de dezembro.

O artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do novo diploma, aplicável ao caso vertente, sob a epígrafe “direito de regresso da empresa de seguros”, estabelece que, satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso contra o condutor quando, além de outras situações aí previstas, este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.

No confronto entre o artigo 19.º, alínea c), do Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de dezembro, e o artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, verifica-se a diferente redação das normas. Apesar disso, mantém-se a interpretação divergente da norma atualmente em vigor, saber se se exige para o exercício do direito de regresso acionado pela seguradora a verificação de nexo causal entre o facto de o condutor agir com uma taxa de alcoolémia superior àquela que é legalmente permitida e a ocorrência do acidente em que interveio e de que resultaram os danos que determinaram a indemnização pela seguradora, ou se, pelo contrário, apenas se exige a demonstração da culpa do segurado na produção do acidente e de que o mesmo conduzia com uma taxa de álcool no sangue superior à permitida por lei, sem que se imponha a demonstração de nexo causal entre o excesso de álcool e o acidente em discussão.

Esta divergência tem expressão, a título meramente indicativo, nos seguintes acórdãos deste Tribunal da Relação do Porto, ambos disponíveis na base jurídico-documental do IGFEJ (www.dgsi.pt): acórdão de 15 de janeiro de 2013, proferido no processo 995/10.6TVPRT.P, onde se considera que, «para que o direito de regresso da seguradora que satisfez a indemnização seja reconhecido tem a mesma, para além de provar a culpa do condutor na produção do evento danoso, alegar e provar, ainda, factos de onde resulte o nexo de causalidade entre a condução com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida e o evento dele resultante»; acórdão de 16 de dezembro de 2015, proferido no processo 4678/13.7TBVFR.P1, onde se considera que, «com o artigo 27.º do DL n.º 291/2007, à seguradora basta alegar e demonstrar a taxa de alcoolemia do condutor na altura do acidente, sendo irrelevante a relação de causa e efeito entre essa alcoolemia e o acidente, ou seja, os factos em que se materializava a influência do álcool na condução e que (…) eram relevantes na vigência do DL n.º 522/85 na interpretação do AUJ n.º 6/2002».

O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão proferido em 9 outubro de 2014, no processo 582/11.1TBSTB.E1.S1, disponível na base jurídico-documental do IGFEJ (www.dgsi.pt), expressa o entendimento de que não é exigível o nexo de causalidade entre a alcoolemia e os danos: à seguradora basta alegar e demonstrar a taxa de alcoolemia do condutor na altura do acidente, sendo irrelevante a relação de causa e efeito entre essa alcoolemia e o acidente, ou seja, os factos em que se materializa a influência do álcool na condução e que eram relevantes na vigência do Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de dezembro, na interpretação do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 6/2002.

Este entendimento – que integralmente se acompanha – é sustentado nos seguintes termos:

«O direito de regresso basta-se agora – para além da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil subjetiva e do cumprimento da respetiva obrigação de indemnizar – com uma TAS superior à legalmente permitida.

Deixou de relevar para o direito de regresso a questão de saber se in concreto a impregnação de álcool no sangue do condutor medida pela TAS influenciou ou não a condução em termos de constituir a causa remota da atuação culposa do condutor que fez eclodir o acidente: basta que o condutor acuse, no momento do acidente, uma TAS superior à legalmente admitida, para que, se tiver atuado com culpa – e obviamente se se verificarem os demais requisitos da responsabilidade civil subjetiva – possa ser demandado em ação de regresso pela seguradora que satisfez a indemnização ao lesado.

Escreveu-se a propósito deste preceito no Ac deste STJ de 28-11-2013 (Proc. n.º 995/10.6TVPRT.P1.S1) de que foi Relator o Exº Cons. Silva Gonçalves:

“O elemento filológico de exegese tirado do teor das locuções que integram o texto do preceituado no artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 – apenas tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de superior à legalmente admitida (…) – cinge o intérprete a discorrer que, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil, o direito de regresso conferido à seguradora ser-lhe-á irrestritamente concedido sempre que o condutor, julgado culpado pela eclosão do acidente, conduza a viatura com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”.

Porque, como se referia no Ac deste STJ de 09-01-1997 – no qual, além do mais e no âmbito da controvérsia sobre a questão do nexo de causalidade na vigência do DL nº 522/85, se entendeu que a procedência do direito de regresso da seguradora previsto no art. 19º-c) desse diploma implicava a prova do nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente a efetuar pela Seguradora – “se realmente a lei quisesse dispensar o nexo de causalidade, mais clara ela seria se dissesse algo como: «contra o condutor, se este conduzir com álcool» (cfr. BMJ 463, p. 211).

E o certo é que com a revogação do DL n.º 522/85 citado pelo DL n.º 291/2997, a nova regulamentação do direito de regresso da seguradora no contrato de seguro automóvel obrigatório designadamente em matéria de alcoolemia sofreu, como vimos, uma alteração substantiva cujo alcance não pode ser menosprezado e revela que o legislador quis dispensar o nexo de causalidade; parafraseando o acórdão supra-citado, com a alteração legislativa operada pelo DL n.º 291/2007, o legislador quis mesmo dispensar o nexo de causalidade quando exigiu para a procedência do direito de regresso, que o condutor conduzisse com álcool, referenciando este a um dado científico – a TAS – objetivamente determinável e controlável.

Com efeito, ele não podia ignorar a controvérsia gerada na vigência do DL n.º 522/85 e o ponto final que lhe foi posto pelo AUJ n.º 6/2002.

E então de duas, uma: se era seu propósito manter essa solução, di-lo-ia expressamente, mantendo a redação do texto legal e esclarecendo mesmo o seu sentido de acordo com a interpretação que lhe foi dada pelo AUJ; algo como, por ex, se tiver agido sob a influência do álcool e por isso tiver dado causa ao acidente.

Não o fez.

Antes, curou de alterar o texto legal, expurgando-o da expressão “agir ou conduzir sob a influência do álcool” e substituindo-a por outra, mais objetiva “conduzir com TAS igual ou superior à legalmente admitida”.

É que, a exigência típica de conduzir sob a influência deve interpretar-se no sentido de que a ingestão de álcool (ou drogas) influa efetivamente na condução, afetando a capacidade do sujeito para conduzir com segurança, tornando a condução perigosa ex ante, potencialmente lesiva para a vida ou integridade dos demais participantes do tráfego; só assim se concretizaria a influência do álcool na condução, competindo o respetivo ónus de alegação e de prova à seguradora.

(…) A “desconsideração” do nexo de causalidade no art 27.º do DL n.º 291/2007 deve ser compreendida, perspetivando o direito de regresso da seguradora como de natureza contratual e não extra-contratual; quer dizer, a previsão legal do direito de regresso integra o chamado estatuto legal imperativo do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

O risco assumido pela seguradora em tal contrato não cobre nem poderia cobrir os perigos acrescidos que a condução sob a influência do álcool envolve.

E dizemos nem poderia cobrir porque, sendo proibida a condução com TAS igual ou superior a certo limite e sendo mesmo sancionada penalmente tal conduta quando atingir um limite superior (art. 81.º n.º1 e 2 do Cód Estrada e 292.º do Cód Penal), tal assunção de risco pela seguradora seria nulo, por contrariar normas legais imperativas (art. 280.º n.º 1 CCivil).

Compreende-se assim que, nesse caso, o contrato de seguro não funcione quando o condutor conduza com uma TAS proibida ou, de outro modo dito, que a condução com TAS superior à legalmente permitida exclua a cobertura do seguro.

E, sem prejuízo da garantia que o contrato de seguro representa para o lesado, satisfeita a indemnização devida a este pela seguradora, o direito de regresso visa, afinal, restabelecer o equilíbrio interno do contrato de seguro, comprometido quando se impôs à seguradora uma obrigação de indemnização por danos verificados quando a responsabilidade civil do condutor não estava (nem podia estar) garantida e coberta pelo contrato de seguro.

A concentração de álcool no sangue para além de certo limite implica um agravamento do risco de acidentes que, por romper o equilíbrio contratual convencionado na proporção entre o risco (normal) assumido e o prémio estipulado e pago não pode deixar de ser juridicamente relevante, em termos de, sem comprometer a indemnização dos lesados, fazê-la repercutir sobre o condutor que deu causa ao acidente.

O direito de regresso emerge, assim, do contrato de seguro e não de responsabilidade extracontratual.»

A previsão especial que é afirmada no artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, afastando a aplicação do regime geral do artigo 144.º, n.º 2, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, fez caducar pelas razões antes enunciadas a doutrina do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 6/2002, reportado ao regime anteriormente vigente.

Nos termos acima transcritos, concluiu-se na sentença recorrida que apenas ao réu, condutor do IF, é de imputar a responsabilidade na produção do acidente que se discute nos autos; este entendimento não foi questionado em sede de recurso nem há fundamento para isso.

Pelas razões enunciadas, no âmbito do artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, para que seja reconhecido à seguradora que satisfez a indemnização o direito de regresso basta que a mesma alegue e prove que foi o segurado que deu causa ao acidente e que na altura conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, não precisando de alegar e provar a existência de nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia e a produção do acidente.

Perante esta conclusão e a incontroversa responsabilidade do réu na produção do acidente, nos termos descritos na sentença recorrida, comprovado que a autora, em consequência de tal acidente, despendeu os valores enunciados nos factos provados totalizando a quantia de € 74.670,65 e demonstrado ainda, além da culpa do réu na produção do acidente, que o mesmo na altura era de facto portador de uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, estão demonstrados os pressupostos necessários ao direito de regresso.


4. Inconformado com este conteúdo decisório, interpôs o R. a presente revista, que encerra com as seguintes conclusões:

A. O tribunal da relação revogou a sentença da 1.ª instância substituindo-a por outra que condenou o aqui recorrente que havia sido totalmente absolvido do pedido.

B. Baseou-se a relação na letra fria e insensível da lei: basta conduzir com uma taxa de alcoolémia superior à legal para que o direito de regresso opere.

C. No entender do recorrente a morte do infeliz EE não resulta do acidente de "per si" mas da sua conduta temerária ao viajar com a cabeça e parte do corpo fora da janela, apesar de avisado para não o fazer. Vd factos provados.

D. Mais ainda no entender da sentença da primeira instância, para a existência do direito de regresso seria necessária uma relação causal entre a taxa de alcoolémia e o acidente.

E. Facto que não se provou.

F. A jurisprudência divide-se, tal como na anterior redação da lei.

G. A necessidade de prova do nexo causal entre o acidente e a condução sob o efeito do álcool ou substâncias psicotrópicas é questão que tem sido largamente debatida, inclusive no âmbito do anterior do DL 522/85 — artigo 19º - em relação ao qual foi lavrado Ac. Uniformizador de Jurisprudência n.º 6/2002, publicado no DRIS de 18.7.2002, com o seguinte teor: "A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob a influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente."

H. Então como agora perfilam-se duas posições

I. No que ao presente concerne, a primeira defende não ser necessária tal prova pela seguradora, na medida em que da redação da al. c) do artigo 27º se infere que o legislador apenas exige a prova de que o condutor deu causa ao acidente independentemente de tal estar ou não relacionado com o seu estado de etilização ou de consumo de estupefacientes — vide Ac. STJ de 09/10/2014, Relator Fernando Bento in http://www. dgsi. pt/jstj (tal como já o fizera anteriormente o Ac. STJ de 28/11/2013, Relator Silva Gonçalves publicado no mesmo sítio; ou mais recentemente Ac. TRC de 18/02/2014 Relatora Catarina Gonçalves, in http://www. dgsi.ptljtrc).

J. A segunda defende o oposto, isto é que a redação desta al c) do artigo 27º quando se reporta à "causa" tem como pressuposto que a causa do acidente imputável ao condutor emergiu do estado de etilização e/ou consumo de estupefacientes do mesmo — vide Ac. STJ de 06/07/2011, Relator João Bernardo in http://www. dgsi.pt/isti e Ac. RP de 08/04/2014, Relatora Maria Amália Santos in http://www. dgsi. pt/itrpl.

K. Ainda a favor da 2' posição se pronunciou o Ac. STJ de 06/07/2011 acima citado. Neste e a propósito da interpretação desta al. c) e reportando-se ao já defendido no âmbito do anterior DL 522/85 diz-se "estando firmado o entendimento de que tinha que haver uma relação de causalidade entre a etilização e o evento, se se pretendesse romper com ela, a redação havia de ser muito mais categórica. A referência "quando tenha dado causa" não encerra um alargar da previsão a todos os casos em que o condutor tenha dado causa ao acidente, mas antes o consagrar, em texto legal, do que faltara ao texto anterior e já vinha sendo entendimento constante.". Ou seja de que a causa necessária abrange a causalidade entre o acidente e a condução com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida ou que tenha acusado o consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.

L. Independentemente do que venha a decidir-se o recorrente entende que tal discussão pode nem sequer ter aqui lugar. É que no ver do recorrente a causa da morte não é o acidente em si mas a conduta infantil e desastrosa da infeliz vítima.

M. Se viesse sentado no seu lugar nem um arranhão teria.

TERMOS EM QUE

Deve ser concedida a revista e por via disso deve o acórdão da relação revogado, mantendo-se a decisão da primeira instância.


5. Como dá nota a decisão recorrida, tem suscitado – e continua a suscitar- dúvidas a questão da exacta definição dos pressupostos do direito de regresso legalmente atribuído à seguradora que satisfez a indemnização ao lesado, nomeadamente no caso de taxa de alcoolemia do condutor, superior à permitida no exercício da condução – sendo controvertido o preciso sentido da alteração legislativa introduzida pelo DL 291/07 ( art. 27º, nº1, al. c), por confronto com o regime que resultava do art. 19º, al. c) do DL 522/85, interpretado nos termos do acórdão uniformizador 6/2002.

Quanto a este ponto, não temos dúvida que a dita alteração legislativa (apagando a expressão agido sob influência do álcool e substituindo-a pelo – muito mais objectivado- segmento normativo conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida) teve como consequência dispensar efectivamente a seguradora do ónus de demonstração de um concreto nexo causal entre o erro ou falta cometido pelo condutor alcoolizado no exercício da condução - e que despoletou o acidente - e a dita situação de alcoolemia, envolvendo a normal e provável diminuição dos reflexos e capacidade reactiva do condutor alcoolizado.

O sentido a atribuir ao regime normativo introduzido pelo DL 291/07 será o de ter vindo estabelecer, afinal, uma presunção legal, assente nas regras ou máximas de experiência, na normalidade das situações da vida, segundo a qual o concreto erro ou falta cometido pelo condutor alcoolizado – e que consubstancia a responsabilidade subjectiva por facto ilícito que lhe é imputada - se deveu causalmente à taxa de alcoolemia verificada objectivamente por meios técnicos adequados e inteiramente fiáveis – deixando naturalmente a parte beneficiada pelo estabelecimento desta presunção legal de estar onerada com a prova efectiva do facto a que conduz a presunção, nos termos do art. 350º, nº 1, do CC.

É certo que poderá discutir-se se, no regime actualmente vigente, passou a ser absoluta e totalmente irrelevante a existência de um concreto e efectivo nexo causal entre o estado de alcoolização do condutor, culpado na produção do acidente, e o erro ou falta censurável na condução que integra a respectiva culpa.


Na verdade, afigura-se que a dita presunção legal carece de ser interpretada e aplicada em consonância com os princípios fundamentais da culpa e da proporcionalidade, em termos de não criar uma responsabilização puramente objectivada, cega e absolutamente irremediável do condutor/segurado pelas indemnizações satisfeitas ao lesado, precludindo-se a garantia emergente do contrato de seguro sempre e apenas em função da verificação totalmente objectivada de uma situação de alcoolemia: representando esta preclusão da garantia do seguro a imposição ao condutor/segurado de um ónus gravoso, implicando uma responsabilidade patrimonial pessoal particularmente onerosa, é naturalmente indispensável que esta imposição de uma responsabilização definitiva pelas quantias satisfeitas pela seguradora aos lesados se possa conformar com os referidos princípios fundamentais , não traduzindo a imposição ao condutor de um ónus manifestamente excessivo e desproporcionado.

E, assim sendo, por força dos referidos princípios estruturantes da ordem jurídica, não excluímos, que o condutor/demandado possa alegar e demonstrar na acção de regresso, com vista a ilidir a referida presunção legal:

- como exigência do princípio da culpa - que a situação de alcoolemia, impeditiva do legítimo exercício da condução, lhe não é imputável, por não ter na sua base , por exemplo, um comportamento censurável de ingestão de bebidas alcoólicas na altura da condução do veículo ( demonstrando, por exemplo, que tal taxa de alcoolemia está ligada a factor acidental e incontrolável, como reacção imprevisível a determinado medicamento);

- como decorrência do princípio da proporcionalidade - que, apesar da taxa de alcoolemia objectivamente verificada, não ocorreu, no caso, qualquer nexo causal efectivo entre tal situação e o acidente – ilidindo, por esta via a presunção legal segundo a qual qualquer situação de alcoolemia objectivamente proibida funciona como causa efectiva do erro ou falta cometida no exercício da condução: não é, pois, a seguradora que tem de provar, como pressuposto do direito de regresso, a existência de um concreto nexo causal entre a taxa de alcoolemia verificada e o erro de condução que desencadeou o acidente e o evento danoso, como sucedia no regime anteriormente em vigor, mas o próprio condutor que, se quiser afastar a sua responsabilidade em via de regresso, terá de ilidir tal presunção legal, perspectivada como presunção juris tantum, nos termos do nº2 do art. 350º do CC.

Saliente-se, todavia, que – face à configuração da matéria litigiosa subjacente ao caso dos autos – não se revela necessário aprofundar ou desenvolver este tema, tomando posição definitiva sobre ele, já que, por um lado, nada foi alegado no sentido da existência de uma causa acidental ou fortuita na base da situação de alcoolemia objectivamente verificada quanto ao R.; e, por outro lado, embora este tenha curado de alegar factos que afastariam a concreta causalidade entre a alcoolemia e o facto culposo cometido na condução do veículo,tal matéria foi tida por não provada, ao decidirem as instâncias não se ter apurado que a taxa de alcoolemia referida em 15 e a presença da substância referida em 16 não foram causais da perda de controlo do IF e ocorrência dos demais factos.

Funciona, deste modo, inquestionavelmente, neste circunstancialismo, a presunção legal que temos por consagrada no art. 27º, nº1 al. c) – dispensando consequentemente a seguradora do ónus probatório do facto a que conduz a presunção (e sendo, nesta óptica, irrelevante que haja resultado identicamente não provada a perturbação dos reflexos e da coordenação motora do R e da sua capacidade de reacção e percepção, por via da dita taxa de alcoolemia) - não estando, no caso, tal presunção juris tantum ilidida, por insucesso probatório do R.


6. No entanto, para que ocorra direito de regresso da seguradora contra o condutor alcoolizado é ainda indispensável que se verifique outro pressuposto ou requisito, traduzido, consoante resulta da previsão contida na norma constante do art. 27º, nº1, al. c), em que o condutor demandado tenha dado causa ao acidente.

Significa esta previsão normativa, em primeiro lugar, que devem verificar-se relativamente ao condutor, demandado em via de regresso, os vários pressupostos da responsabilidade subjectiva por facto ilícito que está na base da pretensão da seguradora – ou seja, deve ser-lhe imputável, a título de culpa, o acidente que gerou as lesões corporais da vítima, tendo de ocorrer um nexo causal entre tal comportamento culposo e os danos ressarcidos, em primeira linha, pela seguradora.

Saliente-se que, no caso dos autos, é inquestionável a verificação dos pressupostos da responsabilidade, subjectivamente imputada ao condutor alcoolizado – já que o mesmo foi condenado, no foro penal, como autor de um crime de homicídio negligente, com base precisamente na versão factual do acidente que subjaz à pretensão deduzida pela seguradora, valendo tal condenação, nos termos do art. 623º do CPC, como presunção da existência dos factos que integram os pressupostos da punição contida no referido tipo penal; ora, esta presunção legal não pode manifestamente ter-se por afastada perante a factualidade apurada nos presentes autos, no que respeita à censurabilidade do comportamento do condutor que desencadeou o acidente, ao perder o controlo do veículo, passando a permitir que o mesmo circulasse na valeta que ladeia a via, raspando com a lateral direita ao longo da casa que ladeia a estrada, levando que, por via dessa aproximação incontrolada e súbita a esse obstáculo, o lesado embatesse frontalmente com a cabeça contra a referida habitação, provocando-lhe as lesões determinantes do óbito.

Não merece, pois, qualquer censura a decisão das instâncias que considerou imputável, a título de negligência, ao R. o erro ou deficiência de condução, traduzido na perda de controlo do veículo, que provocou o sinistro, não apagando obviamente a culpa – a culpa efectiva do R.

-  o eventual comportamento temerário da vítima , que seguia pelo menos com a cabeça fora do veículo, através da janela.

Importa, porém, determinar qual o significado ou relevância a atribuir a esse comportamento censurável do próprio lesado, violador de um dever de diligência e das próprias disposições de direito estradal, segundo as quais os passageiros devem viajar nos respectivos lugares, sujeitos pelo cinto de segurança  e sem assumirem posturas que impliquem que parte ou partes dos respectivos corpos se projectem no exterior da viatura em que são transportados: na verdade, tal conduta culposa da vítima, não apagando ou precludindo obviamente a censurabilidade do erro ou falta cometido pelo condutor, não se pode perspectivar como dado ou elemento absolutamente neutro ou  irrelevante para a dinâmica do acidente e para a gravidade das suas consequências – cabendo naturalmente valorá-la, em sede de cômputo da indemnização, nos termos e por força do disposto no art. 570º do CC.

Note-se que era esta a via metodológica enunciada na sentença, ao referir, a fls.271:note-se que a conduta do falecido Dario, censurável sem dúvida, em nada contribui para a produção do acidente em si. Diversa é a relevância desta conduta quando analisada na perspectiva do nexo causal para a gravidade dos danos produzidos – precisamente pelo facto da vítima seguir fora dos assentos da viatura. Mas tal é questão que releva em sede de aferição do quantum indemnizatório e não em sede de apuramento da responsabilidade na produção do acidente – isto é, o despiste e embate subsequente ocorrido.

Simplesmente, a sentença, de seguida, abandonou a abordagem desta questão, considerando-a prejudicada pela circunstância de ter entendido que, no caso, incidia sobre a seguradora, como pressuposto essencial do direito de regresso, o ónus de provar a existência de um concreto e efectivo nexo causal entre a situação de alcoolemia do condutor e o erro ou falta cometido no exercício da condução: ora, afastada tal interpretação, pelas razões atrás expostas, cumpre avaliar que consequências se devem atribuir, em sede de cômputo da indemnização, ao facto censurável do próprio lesado e, como corolário disso, qual a sua projecção no âmbito do direito de regresso invocado pela seguradora.

Na verdade, considera-se que o direito de regresso, previsto no referido art. 27º, só pode existir na medida em que o acidente e os consequentes danos sejam imputáveis à falta cometida, no exercício da condução, pelo condutor afectado pela taxa de alcoolemia verificadanão radicando decisivamente em facto culposo da própria vítima ou de terceiro, em termos subsumíveis ao art. 570º do CC.

Ou seja: quando a referida norma prevê como pressuposto do direito de regresso que o condutor tenha dado causa ao acidente está, por um lado, a condicionar tal repercussão, em via de regresso, dos montantes indemnizatórios satisfeitos à vítima à integral verificação, quanto ao condutor demandado,  dos pressupostos da responsabilidade civil subjectiva; e, por outro lado, a delimitar o âmbito ou montante da indemnização naquele repercutida em via de regresso à estrita medida em que lhe sejam imputáveis as consequências danosas do acidente, cessando tal direito de regresso na medida em que para os danos haja contribuído facto cometido pela própria vítima ou por terceiro, em termos enquadráveis no art. 570º do CC.

Ora, no caso dos autos, considera-se que – perante a especificidade da matéria litigiosa - se deverão graduar em partes iguais, no que concerne à produção do evento danoso, a conduta censurável do condutor, ao perder o domínio da marcha do veículo, permitindo que este passasse a circular pela berma e raspando em prédio que ladeava a estrada, e o comportamento do próprio lesado, ao agravar sensivelmente os riscos e as consequências do embate, por seguir injustificada e temerariamente com, pelo menos, a cabeça fora da janela do veículo.

O direito de regresso invocado pela seguradora apenas se verificará, deste modo, na medida em que o acidente e o evento danoso sejam de imputar a um facto culposo do condutor, não abrangendo a parcela correspondente à medida em que os danos agravados são antes de imputar à concorrência de um facto culposo do lesado – ou seja, reportam-se a 50% do valor peticionado em via de regresso pela seguradora.

Saliente-se que, no caso dos autos, o valor indemnizatório satisfeito pela seguradora radicou na celebração de transacção com os titulares da indemnização, não resultando minimamente dos elementos constantes dos autos se, porventura, foi, nesse negócio processual, tida em conta a percentagem de culpa do lesado na produção do sinistro: ou seja, não resultando dos documentos incorporados nos autos, nem se mostrando alegado pela seguradora, que o valor satisfeito - de €74.670,65- já teria sido particularmente reduzido, em relação à indemnização total, por aplicação da norma do art. 570º do CC, tem de operar, relativamente ao invocado direito de regresso, a redução decorrente da percentagem de culpa na eclosão do acidente atribuído a comportamento censurável da própria vítima, o que dita a redução a metade da quantia peticionada pela seguradora.


6. Nestes termos e pelos fundamentos apontados concede-se parcial provimento à revista, revogando, em parte, o acórdão recorrido e, em consequência, julgando parcialmente procedente a acção, condena-se o R. a pagar à autora a quantia de € 37.335,33 ( trinta e sete mil, trezentos e trinta e cinco  euro e trinta e três cêntimos), relativa às despesas com o sinistro descrito, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a citação e até efectivo e integral pagamento.

Custas por recorrente e recorrida, em partes iguais, na proporção do decaimento, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.


Lisboa, 06 de Abril de 2017


Lopes do Rego (Relator)

Távora de Victor

Silva Gonçalves (interpreto o acórdão no sentido do que consignámos no acórdão do S. T. J. de 28/11/2013, citado pela Relação e do qual fui relator).