Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2340/11.4PBVR-A.S1-A
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: TERESA FÉRIA
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
IDENTIDADE DE FACTOS
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 10/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Decisão Texto Integral:

Acordam em Conferência na 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça,

I

Ao abrigo do disposto no artigo 437º nº 2 do CPP, o Arguido AA vem interpor Recurso Extraordinário de Fixação de Jurisprudência, alegando que o Acórdão proferido por este Alto Tribunal a 08.04.2021 configura uma oposição expressa de soluções jurídicas quanto à mesma questão de direito relativamente à decisão proferida também por este Alto Tribunal a 17.06.2020.


II

Da respetiva Motivação retirou as seguintes Conclusões:

I. No âmbito dos presentes autos, o Arguido foi condenado por Acórdão proferido, em 23/04/2013, pelo Juízo de Média Instância Criminal ...... da Comarca  ......, como autor material de três crime de condução ilegal, previsto e punido pelo artigo 3.º n.º 2 do DL n.º 2/98 de 3 de Janeiro, na pena de 3 (três) anos de prisão.

II. Acontece que, já muito após o trânsito em julgado da sentença, o Arguido constatou, o que até então desconhecia, que da conjugação do artigo 62.º n.º 1 e 2 do DL n.º 138/2012, de 5 de Julho – Regulamento de Habilitação Legal para Conduzir – com o disposto no artigo 123.º n.º 4 do Código da Estrada,  considerando os factos praticados nos presentes autos, não teria incorrido na prática de crime de condução sem habilitação legal, mas antes incorreria na prática de uma contraordenação.

III. Isto porque, à data dos factos o Arguido era (e é) titular de licença para conduzir veículos da categoria AM, emitida pela Câmara Municipal ......, em 02-09-1997 e válida até 22-09-2031, razão pela qual o Arguido pelo seu próprio punho decidiu interpor o competente recurso de revisão invocando o fundamento da alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal.

IV. Aquando da ocorrência dos factos, o Arguido tinha perfeita consciência de não ser detentor de habilitação legal, que lhe conferisse autorização para conduzir o veículo que conduziu, tanto é que o Arguido tinha consciência, e assim declarou junto do respectivo Tribunal de Primeira Instância, sem que nunca cogitasse que a licença para conduzir veículos da categoria AM, que detinha, tivesse a virtualidade ou consequência jurídica de o excluir do âmbito de aplicação do delito criminal de que estava a ser julgado, e apenas se lhe impusesse, como consequência, a prática de uma mera contraordenação.

V. No seguimento do recurso interposto pelo Arguido, a 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça proferiu douto acórdão através do qual negou a revisão da douta Decisão proferida, considerando, que não inexistem novos factos capazes de suscitar graves dúvidas sobre a justiça da condenação do Arguido.

VI. Sucede, porém, que, e salvo o devido e sempre merecido respeito por entendimento contrário ao que ora se propugna, é incompreensível para o Arguido a decisão superior com a qual foi confrontado, atendendo ao facto de já existir uma decisão judicial transitada em julgado, proferida pela 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, datada de 17-06-2020, no Processo n.º 25/18.0GDAVR-A.S1, referente aos mesmos factos, no âmbito da mesma questão de direito, mas sobretudo por se tratar do mesmo sujeito – o próprio Recorrente – que decidiu num sentido totalmente oposto ao aqui doutamente decidido, razão pela qual o Arguido vem interpor o competente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, por considerar que se encontram preenchidos os requisitos de admissibilidade de recurso previstos no artigo 437.º e seguintes do Código de Processo Penal,

VII. Nos processos cujas decisões se encontram em contradição, o Arguido é exactamente o mesmo – AA – e foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal em penas de prisão, por Decisões já transitadas em julgado, sendo que em ambas as situações processuais a convicção do Tribunal baseou-se nas declarações do Arguido, porque de tanto estava convencido.

VIII. Nos processos em apreço, aquando da decisão, não foi tido em consideração pelos insignes Juízes de Direito, por não constar dos respectivos processos, que o Arguido era titular de uma licença de condução da categoria AM, que correspondia à antiga licença de condução com o n.º ......200, emitida pela Câmara Municipal ......, em 22-11-1999, que o habilitava a conduzir veículos ciclomotores e motociclos de cilindrada não superior a 50cm3, regulada pelos artigos 122.º e 124.º do Código da Estrada - na redacção dada pelo Decreto-lei n.º 114/94, de 3 de Maio e pelo Decreto-lei n.º2/98, de 3 de Janeiro – sendo que esta mesma licença já decorria da troca da licença camarária com o n.º...86, emitida em 02-09-1997.

IX. Caso o Tribunal de Primeira Instância tivesse tido conhecimento de tais factos aquando da fase de julgamento, o Arguido não teria incorrido na prática de crime de condução sem habilitação legal, mas apenas seria sancionado pela prática de uma contraordenação, nos termos conjugados no disposto no artigo 62.º n.º 1 e 2 do DL n.º 138/2012, de 5 de Julho – Regulamento de Habilitação Legal para Conduzir – e no artigo 123.º n.º 4 do Código da Estrada.

X. Em ambas as decisões proferidas, o Arguido desconhecia, face às alterações legislativas que haviam sido introduzidas pelo DL n.º 138/2012, de 05 de Julho, que possuía um documento que pela sua qualificação legal, o habilitava com um título formalmente válido, mas material e juridicamente não habilitante para a condução de veículo ligeiro de passageiros, tal como ocorreu quando foi fiscalizado.

XI. Sucede, porém, que, enquanto no recurso de revisão de sentença apresentado pelo Arguido no processo n.º 25/18.0GDAVR-A.S1, os Venerandos Senhores Juízes Conselheiros decidiram autorizar a revisão da sentença em crise, por considerarem que se encontravam preenchidos os requisitos da alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal, por se verificar, face aos novos factos apresentados em juízo, uma alteração da natureza da infracção praticada pelo Arguido, já nos presentes autos os Venerandos Senhores Juízes Conselheiros decidiram pela recusa da revisão do Acórdão ora proferido.

XII. No douto acórdão que serve de fundamento ao presente recurso, os insignes Juízes Conselheiros entenderam que o Arguido desconhecia que possuía documento que, pela sua qualificação legal como “carta de condução” o habilitasse com um título formalmente válido, mas material e juridicamente não habilitante para a condução do tipo de veículos que efectuava, quando foi fiscalizado e que tal facto não havia sido do conhecimento do Arguido nem do Tribunal de 1.ª Instância aquando do julgamento e no que concerne à existência de graves dúvidas sobre a justiça da condenação, os insignes Juízes Conselheiros consideraram que a existência de documento designado por carta de condução por parte do Arguido altera e modifica a natureza da infracção em que o Arguido terá incorrido, de natureza jurídico-penal para contraordenacional, bem como altera as consequências que a nova realidade impõe.

XIII. Ora, no presente caso, o Arguido pretende demonstrar que, tal como no processo do acórdão fundamento, a decisão condenatória foi tomada sem ter em conta o facto de à data o Arguido deter licença de condução que ele próprio julgava que não o habilitava para conduzir, pois desconhecia quer a validade daquela licença, quer as consequências da inovação normativa introduzida pelo DL n.º 138/2012, de 5 de Julho, e que tal licença teria por efeito não o condenar pelo crime de condução ilegal, o que significa que o caso concreto configura uma situação excepcional, a que o Arguido não pode deixar de ser alheio e daí que, no humilde entendimento do Arguido, seja de concluir que estamos perante facto novo para efeitos de admissão do recurso de revisão, nos termos da primeira parte da alínea d) do n.º 1 do Código de Processo Penal.

XIV.   Destarte, no caso em apreço, sendo válida a licença AM de condução e constituindo a mesma um documento habilitante suficiente para a condução, o Arguido não cometeu um crime, mas antes uma contraordenação, pelo que a justiça da condenação está gravemente posta em causa, razão pela qual os factos novos agora conhecidos, põem irremediavelmente em causa a credibilidade da justiça da decisão proferida, que não pode ter contra si dúvidas mais graves do que as que emergem da conclusão de que, afinal de contas, tal condenação assenta em «factos» falsos, contrariados inequivocamente pela realidade dos novos factos, sobretudo quando se trata da mesmíssima situação factual ocorrida com o mesmo Arguido.

XV. Pelo exposto, e sempre com a mais reverenciada vénia em sentido contrário ao que se propugna, o douto acórdão do Insigne Supremo Tribunal de Justiça ao decidir como decidiu negando a revisão do Acórdão contrariou a Decisão já transitada em julgado deste mesmo Supremo Tribunal de Justiça, sobre os mesmos factos e sobre a mesma questão de direito, pelo que urge fixar jurisprudência quanto à matéria em questão, pois considerando o mesmo sujeito processual e a mesma matéria de direito, as soluções são claramente opostas, devendo por isto ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser autorizada a revisão do Acórdão proferido nos presentes autos e, assim, absolver-se o Arguido da prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal.

XVI. Neste sentido, deve fixar-se jurisprudência nos termos seguintes: A titularidade pelo Arguido de licença de condução da categoria AM, anterior à entrada em vigor do DL n.º 138/2012, de 05 de Julho, que não haja sido considerada aquando da fase de julgamento, por o Arguido não estar ciente das virtualidades de “expansão habilitante” de tal licença, ocorridas com a alteração preconizada pelo referido Decreto-Lei, facto esse que não foi tido em conta pelo Tribunal, deve ser tida como facto novo capaz de suscitar graves dúvidas sobre a justiça da condenação, para efeitos de revisão da sentença condenatória, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal, por não preencher o tipo objectivo de ilícito do crime de condução sem habilitação legal, mas antes a prática de uma contraordenação, prevista no artigo 123.º n.º 4 do Código da Estrada, na redacção do Decreto Lei n.º 138/12, de 5 de Julho de 2012.

XVII. Por fim, o Arguido, ora Recorrente, requer a realização da audiência, ao amparo do estatuído no artigo 411.º n.º 5 ex vie do artigo 448.º ambos do Código de Processo Penal, no sentido de expor e esclarecer os vícios da douta decisão ora recorrida, nomeadamente, o preenchimento dos pressupostos de admissão do recurso de revisão no caso concreto, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal, nomeadamente a descoberta de facto novo – titularidade pelo Arguido de licença de condução AM – que não foi tida em conta pelo Tribunal que proferiu decisão condenatória e a existência de graves dúvidas sobre a justiça da condenação–absolvição do Arguido; e a oposição de julgados entre a decisão proferidas nos presentes autos e a douta decisão proferida pela 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, datada de 17-06-2020, referente ao Processo n.º 25/18.0GDAVR-A.S1, já transitado em julgado, o qual descreve uma situação referente aos mesmos factos, à mesma matéria de direito e sobretudo ao mesmo Arguido.

NESTES TERMOS, NOS DEMAIS E MELHORES DE DIREITO QUE VOSSAS EMINÊNCIAS NÃO DEIXARÃO DE SUPRIR, DOUTA E PROFICIENTEMENTE, DEVE:

A) O PRESENTE RECURSO SER ADMITIDO, POR SE ENCONTRAREM PREENCHIDOS OS REQUISITOS DE ADMISSÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA, NOS TERMOS DO ARTIGO 437.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.

MAIS SE REQUER,

B) A REALIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA, AO AMPARO DO ESTATUÍDO NO 411.º N.º 5 EX VI E DO ARTIGO 448.º AMBOS DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL PARA EXPOR E ESCLARECER OS VÍCIOS ELENCADOS DA DOUTA DECISÃO ORA RECORRIDA, NOS TERMOS APRESENTADOS.

E, CONSEQUENTEMENTE, SER

C) PROFERIDA DECISÃO  NO    SENTIDO  DE FIXAR JURISPRUDÊNCIA, DIRIMINDO A CONTRADIÇÃO ENTRE O ACÓRDÃO RECORRIDO E O ACÓRDÃO-FUNDAMENTO, E ASSIM SE AUTORIZAR A REVISÃO DA SENTENÇA EM CRISE. COM QUE SE FARÁ A TÃO ACOSTUMADA E ALMEJADA JUSTIÇA!


III

Na sua resposta o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto apresentou as seguintes Conclusões:

A - O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pelo arguido, preenche os seus pressupostos formais, mas já não o nuclear pressuposto substancial da verificação de oposição de julgados. Com efeito,

B - As situações de facto são dispares e por isso seu enquadramento jurídico não é o mesmo.

C - Inexiste, também, identidade da legislação a coberto da qual foram proferidas as decisões invocadas.

Na verdade,

D - Enquanto no acórdão recorrido foi dado como provado que, o arguido era titular da licença de condução ......200, emitida, a 22 de Novembro de 1999, pela Câmara Municipal ......, em virtude de ter realizado exame, a 2 de Setembro de 1997, e obtido a licença de condução n.º ...86, e por esse motivo e, uma vez que à data da prática dos factos não se lhe aplicava o artigo 123.º n.º 9, do Código da Estrada [na redacção dada pelo Decreto-Lei 265-A/2001, de 28/9 ] e o disposto no artigo 62.º do Regulamento da habilitação legal para conduzir (Decreto-lei n. 138/2012, alterado pelo DL. 37/2014, de 14/03), a conduta do arguido configurava a prática de um ilícito criminal.

E - Já no acórdão fundamento, foi dado como provado que o arguido é titular da carta de condução número A... — ................. e setenta e quatro para a(s) categoria(s) <=50 cm3, desde dois de Setembro de mil novecentos e noventa e sete e válida até vinte e dois de Setembro de dois mil e trinta e um, e por tal aquando da prática dos factos em causa nos autos, era titular de licença de condução válida, licença essa equiparada à carta de condução da categoria AM, e face a redacção do artigos 9.º e 62 .º do Decreto-lei n. 138/2012, alterado pelo DL. 37/2014, de 14/03 e ao disposto no 4.º do artigo 123.º do Código da Estrada, a conduta do arguido configurava a prática de uma contra-ordenação. Conclui-se, assim,

F - Que não se verificando, quer identidade fáctica quer da legislação em causa nos dois acórdãos, em apreço, as soluções a que chegaram, não integram o requisito previsto no artigo 437º, n º 1 do CPP de «oposição entre os julgados».

Termos em que o recurso, deve, com tal fundamento, ser rejeitado - ut CPP 441º, n º 1.

IV

Remetidos os Autos a este Supremo Tribunal, foi emitido o competente parecer pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, nos termos do disposto no artigo 440º nº 1 do CPP, dando como inteiramente reproduzido o expendido na Resposta anteriormente apresentada.


V

Realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir:

Com o presente Recurso Extraordinário de Fixação de Jurisprudência o recorrente pretende que seja dirimida a oposição de julgados que, em seu entender, existe entre o Acórdão proferido por este Tribunal a 08.04.2021, o Acórdão Recorrido, e o Acórdão proferido também por este Tribunal, a 17.06.2020, no processo nº 25/18.0GDAVR.A.S1, o Acórdão Fundamento.

Nas suas Conclusões o recorrente requer, ao abrigo do “artigo 411° n°5 CPP, aplicável ex-vi artigo 448º do CPP” que para apreciação da sua pretensão recursória seja realizada uma Audiência de Julgamento, a fim de “esclarecer os vícios da douta decisão ora recorrida, nomeadamente, o preenchimento dos pressupostos de admissão do recurso de revisão no caso concreto, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal, nomeadamente a descoberta de facto novo – titularidade pelo Arguido de licença de condução AM – que não foi tida em conta pelo Tribunal que proferiu decisão condenatória e a existência de graves dúvidas sobre a justiça da condenação–absolvição do Arguido; e a oposição de julgados entre a decisão proferidas nos presentes autos e a douta decisão proferida pela 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, datada de 17-06-2020, referente ao Processo n.º 25/18.0GDAVR-A.S1, já transitado em julgado, o qual descreve uma situação referente aos mesmos factos, à mesma matéria de direito e sobretudo ao mesmo Arguido.”

Como é sabido, o artigo 411º nº 5 do CPP, prevendo embora a possibilidade de o recurso ser decidido em Audiência de Julgamento, faz depender a realização da mesma da indicação especificada dos pontos da motivação do recurso que se pretendem ver debatidos.

Tal obrigação decorre em primeira linha da circunstância de a lei processual penal não conceber a instância de recurso como uma ocasião de uma nova, e outra, oportunidade de apreciar e decidir os factos e o Direito, mas tão somente como um remédio jurídico para corrigir algum erro de julgamento ou de procedimento que tenham sido oportuna e devidamente arguidos por quem tenha legitimidade para tal.

A disciplina atualmente vigente relativa à realização de uma Audiência de Julgamento em sede de recurso, tal como plasmada pela Lei nº 48/2007 de 29 de agosto, concebe-a apenas e tão somente com um meio complementar do previamente alegado por escrito com o fito exclusivo de debater, esclarecendo, as questões que possam ser mais controversas ou relevantes.

Tal resulta da circunstância de a lei processual estatuir que a realização da Audiência de Julgamento apenas se realizará desde que cumprido sejam os requisitos constantes do nº 5 do artigo 411º do CPP, a saber, o pedido expresso do/a recorrente e a especificação dos concretos pontos da Motivação que pretende que sejam debatidos.

Ora, como se assinala num recente Acórdão proferido por este Tribunal ([1]) : “O requisito da especificação dos pontos da audiência não pode cumprir-se com o seu antónimo.”

Ou seja, especificar os pontos que se pretendem debater significa necessariamente proceder à sua indicação individualizada por forma a permitir que a Audiência de Julgamento possa cumprir o fito para a qual foi desenhada, o de complementar a discussão das questões tidas como mais relevantes.

Outro entendimento implicaria retirar à norma processual em questão a eficácia e o propósito que presidiu à sua redação.

Sucede, porém, que da mera leitura do requerido pelo recorrente resulta ser manifesto que o seu pedido de realização de Audiência de Julgamento não respeita, nem tem em conta, o requisito imposto pela norma acima citada, em virtude de ser genérico e não indicar em concreto as questões que pretende ver discutidas oralmente antes remetendo para a mera indicação da apreciação de uma “oposição de julgados entre a decisão proferidas nos presentes autos e a douta decisão proferida pela 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, datada de 17-06-2020, referente ao Processo n.º 25/18.0GDAVR-A.S1, já transitado em julgado, o qual descreve uma situação referente aos mesmos factos, à mesma matéria de direito e sobretudo ao mesmo Arguido.”

Sendo certo que, certamente por mero lapso, indica ainda pretender “esclarecer os vícios da douta decisão ora recorrida”, invocando que o faz ao abrigo do disposto no artigo 449º nº 1 al. d) do CPP.

Ora, sem prejuízo de o recorrente parecer pretender “fundir”num mesmo articulado duas espécies de recurso extraordinário – o de revisão e o fixação de jurisprudência – e de tal não ser processualmente admissível, há que ter em atenção que a disposição invocada acima mencionada remete para a tramitação do recurso extraordinário de revisão de sentença, a qual, como é sabido, nos termos do disposto no artigo 455º nº 3 do CPP, não admite a realização de Audiência de Julgamento.

Nesta conformidade, julga-se não estarem reunidos os pressupostos legais para a realização da Audiência de Julgamento requerida.

Termos em se indefere a sua realização.

Consigna-se que este Tribunal entendeu dever decidir esta questão em sede de Conferência, e não por Despacho prévio da Relatora, a fim de evitar a realização de atos inúteis, o que ocorreria se o recorrente entendesse dever reclamar desse Despacho para a Conferência.

O recurso para fixação de jurisprudência apresentado será, assim, apreciado e decidido em Conferência.

Como é sabido, estes recursos consubstanciam um meio impugnatório excecional de uma decisão já transitada em julgado, e foram concebidos e desenhados com o fito de estabelecer uma interpretação uniforme da lei que realize adequadamente o seu desiderato de igual aplicação a iguais situações de facto.

A lei processual penal - artigos 437º e 438º do CPP - estipula que a admissibilidade destes recursos está dependente da concreta verificação simultânea, no momento da interposição do recurso, de um conjunto de requisitos formais e de requisitos substanciais.

Os primeiros reportam-se à verificação da legitimidade do/a recorrente, do cumprimento do prazo de interposição, à identificação e eventual publicação do Acórdão fundamento, bem como à constatação do trânsito em julgado das decisões em posição.

Já os requisitos substanciais respeitam à comprovação quer da oposição das soluções de Direito para uma mesma identidade de factos entre os Acórdãos invocados, quer da circunstância de ambos terem sido proferidos no domínio da mesma legislação sobre a matéria a que se referem.

Nos presentes Autos dúvidas não existem quanto à verificação dos requisitos formais acima indicados.

Todavia, já o mesmo não sucede no tocante aos requisitos substanciais já elencados.

Na verdade, como é Jurisprudência pacífica deste Alto Tribunal a verificação daquele requisito afere-se pela concreta constatação e demonstração de que: “(i) -as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para mesma questão fundamental de direito; (ii) - que as decisões em oposição sejam expressas; (iii) - que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticas. 2. A expressão «soluções opostas», pressupõe que nos dois acórdãos seja idêntica a situação de facto, em ambos havendo expressa resolução de direito e que a oposição respeita às decisões e não aos fundamentos, se nas decisões em confronto se consideraram idênticos factores, mas é diferente a situação de facto de cada caso, não se pode afirmar a existência de oposição de acórdãos para os efeitos do n.º 1 do art. 437.º do CPP.»([2])

Ora, no caso em apreço é manifesta e óbvia ser totalmente distinta a matéria fáctica a que se reportam os dois Acórdãos invocados pelo recorrente como estabelecendo soluções antagónicas para a mesma questão de Direito.

Na verdade, como se refere no Douto Parecer, emitido pelo Ex.mo Procurador Geral Adjunto: “(…) Enquanto no acórdão recorrido foi dado como provado que, o arguido era titular da licença de condução ......200, emitida, a 22 de Novembro de 1999, pela Câmara Municipal ......, em virtude de ter realizado exame, a 2 de Setembro de 1997, e obtido a licença de condução n.º ...86, e por esse motivo e, uma vez que à data da prática dos factos não se lhe aplicava o artigo 123.º n.º 9, do Código da Estrada [na redacção dada pelo Decreto-Lei 265-A/2001, de 28/9 ] e o disposto no artigo 62.º do Regulamento da habilitação legal para conduzir (Decreto-lei n. 138/2012, alterado pelo DL. 37/2014, de 14/03), a conduta do arguido configurava a prática de um ilícito criminal.

E- Já no acórdão fundamento, foi dado como provado que o arguido é titular da carta de condução número A... — ................. e setenta e quatro para a(s) categoria(s) <=50 cm3, desde dois de Setembro de mil novecentos e noventa e sete e válida até vinte e dois de Setembro de dois mil e trinta e um, e por tal aquando da prática dos factos em causa nos autos, era titular de licença de condução válida, licença essa equiparada à carta de condução da categoria AM, e face a redacção do artigos 9.º e 62 .º do Decreto-lei n. 138/2012, alterado pelo DL. 37/2014, de 14/03 e ao disposto no 4.º do artigo 123.º do Código da Estrada, a conduta do arguido configurava a prática de uma contra-ordenação.”

Pelo que em conformidade os Acórdãos em confronto decidiram diferentemente a mesma questão de Direito que era a de saber se, em cada um dos casos em apreciação,  era, ou  não, legalmente possível e admissível a revisão da Sentença.

Assim, em consonância com a metéria fáctica constante do Acórdão recorrido este “não autoriza a revisão requerida pelo arguido” em virtude de :”(…) não se aplicando ao recorrente, ao tempo dos factos e no momento da condenação, a norma que consentia considerar que a conduta delitiva comprovada traduzia, não os crimes de condução de veículos sem habilitação legal, mas tão-apenas as contra-ordenações decorrentes da condução de veículo motorizado sem licença habilitante, não pode considerar-se injusta a condenação quando o arguido só vem a obter a dita creditação habilitante três anos após a decisão condenatória.”

Já o Acórdão fundamento, autoriza a revisão de sentença tal como requerido pelo recorrente por ter sido produzida nessa sede um novo elemento de facto, desconhecido do então Tribunal “a quo” aquando da prolação da decisão condenatória – “O facto (elemento de prova) apresentado pelo arguido constitui-se, assim, em face da realidade factual que ditou a condenação como um elemento novo, tanto para o arguido como para o tribunal. Atestada a novidade do elemento de prova (novo) apresentado pelo arguido, concomitantemente, o desconhecimento da sua existência (factual) para o tribunal e para o arguido, haverá que perquirir se essa nova realidade factual é susceptível de afectar (de forma negativa e in- sustentável) a justiça da condenação sofrida e suportada pelo arguido.” –

Facto novo este que, nos termos legais, determinava “uma alteração substancial, no plano das consequências jurídicas, no sancionamento da conduta activa do infractor, o que, pela sua relevância e consequências jurídico-pragmáticas são susceptíveis de se percutir na esfera jurídica do agente e, naturalmente, na sua condição pessoal”, o que legalmente constitui fundamento para a revisão de sentença – artigo 449º al. d) CPP.

Assim, sendo diferente a matéria fáctica em apreciação pelos dois Acórdãos em confronto proferidos no âmbito de um recurso extraordinário de revisão de Sentença, outra conclusão se não pode retirar da apreciação da pretensão do recorrente que não seja a de que “in casu” não se verifica qualquer oposição de julgados uma vez que inexiste uma identidade das situações de facto subjacentes aos dois Acórdãos invocados, não sendo possível estabelecer uma comparação que permita concluir que relativamente à mesma questão de direito foram adotadas soluções juridicamente antagónicas.

Nestes termos, em virtude de ser distinta a situação de facto de que se ocupam os Acórdãos em confronto, o que naturalmente implica uma diferente solução jurídica para cada uma das referidas situações, se conclui pela improcedência do alegado e, consequentemente, pela rejeição do presente recurso, nos termos do disposto no artigo 441º nº1 do CPP.

V

Termos em que se acorda em rejeitar o presente recurso extraordinário de fixação de Jurisprudência por inexistir oposição de julgados.


Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 Ucs a taxa de justiça nos termos da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

Feito em Lisboa, aos 27 de outubro de 2021

Maria Teresa Féria de Almeida (Relatora)

Sénio dos Reis Alves (Adjunto)

________
[1] Ac. STJ de 01-07-2020, Proc. n.º 301/19.4T8LSB.L1.S1 - 3.ª Secção, Rel. Nuno Gonçalves https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:301.19.4T8LSB.L1.S1/
[2] Acórdão de 02-10-2008, Proc. nº 08P2484,  Rel. Simas Santos - www.dgsi.pt