Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
09A073
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
SEGURADORA
ABUSO DO DIREITO
ACIDENTE DE TRABALHO
ASSISTÊNCIA MÉDICA
CESSAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: SJ2009021200736
Data do Acordão: 02/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. Tendo sido participado pelo segurado um sinistro, como acidente de trabalho, com graves consequências físicas, que durante cerca de seis meses a seguradora não recusou como tal, tendo organizado um inquérito interno, e proporcionado ao segurado assistência médica em sentido lato e procedido aos pagamentos como se o acidente fosse de natureza infortunística.
II. Não se afigura conforme ao princípio da boa-fé interromper tais tratamentos, criando risco para a saúde do assistido. Tal interrupção, ainda quando a seguradora chegue à conclusão (certa ou errada, não importa) de que o sinistro não constitui acidente de trabalho, não pode ocorrer durante o processo de tratamento em curso, enquanto não estiver garantido que o doente já não irá sofrer riscos determinados pela interrupção.
III. Tal como a seguradora deve procurar proporcionar ao sinistrado, imediatamente, as melhores condições de tratamento, no âmbito dos serviços de saúde com os quais colabora, de igual modo não deve interromper, abruptamente, tratamentos iniciados, sabendo-se que, com essa interrupção, à dificuldade que sempre constitui a transferência de um doente, acresce a sabida perda de qualidade assistencial.
IV. A nossa lei não estabelece, tipicamente, sanção para os comportamentos abusivos de direito, que não são casos de falta de direito, mas antes devem ser configurados como violação do dever jurídico de não actuar em abuso do direito de que se é titular.
V. A omissão desse dever, no quadro da previsão normativa do art. 334º do Código Civil, exprime, além de ilicitude, culpa, constituindo o abusante na obrigação de indemnizar os danos causados.
VI. Age com abuso do direito – por trair a confiança incutida – a seguradora que, durante cerca de seis meses, trata um sinistro como se fosse acidente de trabalho e, abruptamente, em fase crucial do estado de saúde do acidentado faz cessar a sua prestação, recusando-lhe assistência médica, por considerar que, afinal, o evento não tinha aquela natureza, sem sequer o ter prevenido de que assim poderia considerar em função do inquérito a que procedera, agravando com tal omissão o estado de saúde do lesado.
VII. Em termos de causalidade adequada, não se tendo provado que o lesado negligenciou tratamentos, apesar da sua precariedade económica, e sendo patente que as consequências para si drásticas – amputação de uma perna em consequência do acidente – não se deveram a factores imprevisíveis, nem são de excluir em função do tipo de lesão sofrida, importa concluir que as sequelas físicas que o afectam, foram provocadas pelo acidente, por que a Ré se deveria ter responsabilizado proporcionando-lhe idónea e continuada assistência médica, estamos, ainda aí, no âmbito de uma causalidade indirecta que o art. 563º do Código Civil não exclui.
VII. No quadro factual descrito a seguradora deve indemnizar os danos sofridos, pelo Autor, no contexto de responsabilidade civil com fundamento na sua conduta abusiva do direito.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA, instaurou, em 14.10.2005, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Portimão – com distribuição ao 3º Juízo Cível – acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra:

BB-Companhia de Seguros S. A., e;

CC-Companhia Portuguesa de Seguros de Saúde, S. A.

Peticionando:

a) a condenação da primeira Ré a pagar-lhe a quantia de € 21.709,18 (vinte e um mil, setecentos e nove euros e dezoito cêntimos), a título de danos patrimoniais e a quantia que se vier a apurar em liquidação de sentença referente a indemnizações por ITT´S, desde a data do acidente até à data da fixação definitiva da incapacidade;

b) a condenação de ambas as Rés, solidariamente, nas seguintes quantias:

- € 40.542,84 (quarenta mil, quinhentos e quarenta e dois euros e oitenta e quatro cêntimos) a título de danos patrimoniais decorrentes da IPP de 60% que lhe foi fixada;

- a quantia que se vier a apurar em liquidação de sentença referente ao pagamento das despesas com próteses, temporárias e definitivas;

- € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais sofridos.

Alegou, em resumo:

- ser gerente comercial num restaurante/cervejaria, de sua propriedade, no qual exerce tais funções e ter transferido para a ré Seguradora a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho por conta própria;

- ter sofrido um acidente provocado por uma arma de fogo, quando se encontrava a trabalhar naquele restaurante, acidente esse que participou como acidente de trabalho à ré Seguradora;

- que, em consequência de tal acidente, sofreu esfacelo grave da articulação tíbio-társica esquerda tendo sido internado no Hospital do Barlavento Algarvio, onde foi assistido, e do qual foi transferido por ordem da ré Seguradora para o Hospital da CUF em Lisboa, onde foi operado por diversas vezes e onde se manteve internado durante quase 4 meses, findos os quais teve alta hospitalar, mas continuou a fazer tratamentos no referido Hospital, nos serviços clínicos centrais da CC, sempre por conta e ordem da ré Seguradora que lhe pagou todas as despesas de deslocação e até indemnizações por incapacidade temporária;

- que a determinada altura a ré Seguradora determinou o cancelamento abrupto dos tratamentos clínicos que lhe estavam a ser prestados, deixando-o numa situação de impossibilidade de continuação de tratamentos médicos no sistema público de saúde, o que fez com que visse o seu estado de saúde agravar-se, tendo como consequência última a amputação da perna esquerda;

- que, por sua vez a ré CC, enquanto sistema integrado de cuidados de saúde garantido pelas apólices da ré BB, entre outras, recusou-se a continuar a prestar os cuidados médicos que o autor necessitava, sem ter tido o cuidado de lhe assegurar esse tratamento num outro local, tendo actuado em violação de dever obrigacional a que estava vinculada na prestação desses serviços médicos.

Citadas, as rés vieram contestar, tendo a BB excepcionado a incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, a nulidade de todo o processo, por erro na forma de processo, a inexistência de acidente de trabalho e a caducidade da acção, concluindo por pedir a sua absolvição da instância e impugnando parcialmente os factos; para o caso da improcedência das excepções, concluiu pela sua absolvição do pedido.

Por sua vez, a Ré CC, em contestação, subscrevendo a defesa por excepção apresentada pela Ré BB, impugnou parcialmente os factos, peticionando, a final, a sua absolvição da instância ou, se assim não for entendido, a sua absolvição do pedido.

No despacho saneador foram as arguidas excepções julgadas improcedentes, tendo o processo corrido a adequada tramitação processual.

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Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, condenou a Ré BB-Companhia de Seguros, S.A., a pagar ao Autor a quantia global de € 61.445.75 (sessenta e um mil quatrocentos e quarenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos), absolvendo-a do mais que contra ela é peticionado.

A Ré “CC-Companhia Portuguesa de Seguros de Saúde, S.A., foi absolvida do pedido.

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Inconformada, a Ré Seguradora interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora que, por Acórdão de 26.7.2008 – fls. 637 a 654 – concedeu provimento ao recurso, revogando a sentença apelada.
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Inconformado, o Autor interpôs recurso para este Supremo Tribunal e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

1. Em consequência do acidente sofrido pelo Autor, em 28.04.2002, o mesmo iniciou o seu tratamento e acompanhamento médico no âmbito do Serviço Nacional de Saúde.

2. Na sequência da participação do acidente feita pelo Autor à Ré BB, esta retirou o Autor do âmbito do Serviço Nacional de Saúde, fez transferi-lo para Hospital privado da sua escolha, responsabilizou-se pelo seu tratamento e acompanhamento médicos e foi assumindo o pagamento de todas as despesas daí decorrentes.

3. A participação do acidente conteve as circunstâncias de tempo, lugar e modo do acidente, fazendo menção expressa de que o mesmo se deveu a disparo acidental de arma de fogo.

4. Durante cerca de seis meses, a Ré BB foi acompanhando e responsabilizando-se pelos tratamentos e acompanhamento médico do Autor, efectuados em Hospital da sua escolha e por si determinado, suportando o pagamento das despesas que este lhe ia apresentando e suportando, inclusive, o pagamento de salários e ITA’s.

5. Não obstante ter recebido o relatório pericial datado de 28.06.2002 e onde já se colocava em dúvida a caracterização do acidente como de trabalho (o que não foi de conhecimento do Autor, à data), ainda assim a Ré continuou a assegurar os tratamentos e exames médicos ao Autor, no Serviço de Saúde por si escolhido, e a suportar todas as despesas por mais, cerca, de 4 meses.

6. A Ré, de forma abrupta, imediata e definitiva, sabendo que os tratamentos médicos ao Autor ainda não se encontravam concluídos, antes pelo contrário, apresentava um fixador externo no pé, destinado a ser removido por intervenção cirúrgica, sabendo que o Autor não tinha qualquer apoio médico do Serviço Nacional de Saúde que pudesse assegurar a continuação dos tratamentos e acompanhamento ao Autor de forma regular e imediata, fez cessar acompanhamento médico ao Autor.

7. Recusando-se a retomá-lo e sem assegurar a transição do Autor para o Serviço Nacional de Saúde.

8. O Autor teve muitas dificuldades em retomar o acompanhamento médico no SNS, tendo visto a sua situação a agravar-se, o que culminou com a amputação da perna esquerda do Autor.

9. Durante 6 (seis) meses, a Ré foi criando legítimas expectativas ao Autor de que tudo estaria regularizado no âmbito do contrato de seguro por acidentes de trabalho entre ambos celebrado, procedendo ao acompanhamento e tratamento médicos ao Autor, pagando-lhe, todas as despesas médicas inclusive, os salários e de ITA’s.

10. A conduta da Ré, ora Apelante, foi no sentido de criar no Autor uma legítima expectativa e segura de que esta Ré aceitara que se tratara de um acidente de trabalho e, por conseguinte, iria assegurar os tratamentos médicos de que o Autor necessitava, assim como assumiria todas as despesas necessárias ao seu tratamento, até que este ficasse curado, no âmbito do contrato de seguro válido que com ela havia sido celebrado e cuja responsabilidade a Ré, até àquela altura, não questionara.

11. Levando a que o Autor se convencesse da desnecessidade de assegurar o seu acompanhamento médico pelo Serviço Nacional de Saúde.

12. Contrariamente ao alegado no douto acórdão recorrido não existe qualquer imposição legal que obrigasse a seguradora a, de imediato após a participação do sinistro, remover o sinistrado, aqui Autor, do Serviço Público de Saúde onde se encontrava a ser tratado, para os seus serviços médicos.

13. A actuação da Ré Império-Bonança, ao interromper os tratamentos médicos que vinha prestando ao Autor, ainda que se possa equacionar que pudesse ser legítimo o exercício desse direito, consubstancia um verdadeiro abuso de direito nos termos do art. 334º do Código Civil e, como tal, uma actuação ilícita e culposa, posto que passível de um juízo de censura, sendo-lhe exigível, no caso concreto, outra actuação, o que, nos termos do art. 483° do Código Civil, a constitui na obrigação de indemnizar o autor pelos danos decorrentes dessa sua actuação.

14. Após a conduta mantida pela Ré durante seis meses, a sua conduta posterior foi violadora dos princípios da boa fé e da confiança em que o Autor fizera assentar as suas expectativas relativamente ao comportamento da Ré, traduzindo-se essa sua conduta num venire contra factum proprium que, tal como resulta do demais factualismo assente ofendeu de forma intolerável os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, acabando por se traduzir numa clamorosa injustiça.

15. Na data da cessação dos tratamentos médicos ao Autor ainda não havia cura clínica do Autor, tendo unicamente alta hospitalar.

16. Nessa data não havia ainda sequer sido apresentada a participação do acidente no Tribunal de Trabalho de Portimão, o que a Ré Seguradora nunca fez, como estava, aliás, obrigada.

17. Pelo que, a conduta da Ré consubstancia um verdadeiro abuso de direito nos termos do disposto no art. 334° do Código Civil e, como tal, uma actuação ilícita e culposa (passível de um juízo de censura), sendo exigível à Ré, no caso concreto, uma outra actuação, o que, nos termos do art. 483° do Código Civil a constitui na obrigação e indemnizar o Autor pelos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes dessa sua actuação.

18. A Ré deixou o Autor com o tratamento a meio e a necessitar de uma intervenção cirúrgica, o que — como bem e doutamente entende o Julgador da 1ª Instância – “é manifestamente ofensivo dos bons costumes e clamorosamente ofensivo do sentimento jurídico socialmente dominante, criando uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito da ré e as consequências que o Autor teve de suportar.”

19. Bem havia andado o Julgador da 1ª instância ao ter considerado a conduta da seguradora como uma situação de abuso de direito caracterizada num venire contra factum proprium, em que se evidencia ofensa “de forma intolerável os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito”, considerou a acção parcialmente procedente por parcialmente provada e condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia global de € 61.445,75, atendendo à matéria que, neste aspecto resultou provada e conforme bem justificado na douta sentença proferida.

20. A actuação da Ré é ilícita até à luz dos princípios do direito natural, excedendo os limites da boa fé, princípio basilar do nosso ordenamento jurídico.

21. Bem andou também a Meritíssima Juiz da 1ª Instância ao fixar, de acordo com recurso às regras da equidade previstas no art. 566°, n°3, do Código Civil e do prudente arbítrio, uma indemnização a pagar pela Ré a título de “lucros cessantes”, no valor de € 20.000,00, já que, não resultando factualidade que permita quantificar a medida em que a Ré, com a sua conduta abusiva contribuiu para a amputação da perna do Autor, indirectamente a Ré contribuiu para esses danos já que, se não fosse essa sua actuação a sua evolução clínica teria sido outra.

22. Os danos não patrimoniais estão perfeitamente determinados, sendo que parte deles resultam directamente da conduta ilícita da Ré (fortes dores durante o período que se prolongou até à remoção do fixador, a profunda debilidade psicológica motivada tanto pelas dores como pela constatação de que o seu estado de saúde se agravava de dia para dia sem vislumbrar a possibilidade de tratamento médico, a própria privação de um membro), devendo a Apelante ser condenada ao pagamento de quantum indemnizatório, como o foi.

23. O douto acórdão recorrido faz uma deficiente interpretação do art. 334° do Código Civil (que terá que ser obrigatoriamente conjugado com os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social do direito), ao considerar que, a Ré Seguradora, com a sua conduta (de cessação abrupta e sem qualquer aviso prévio dos tratamentos ao Autor, deixando-o numa situação clara de impossibilidade de, em tempo útil, como se veio a verificar, retomar tais tratamentos médicos no Serviço Público de Saúde — isto após ter ido retirá-lo desse mesmo Serviço Público de Saúde), não incorreu em abuso de direito, tal como esta figura jurídica é definida e caracterizada por aquele dispositivo legal.

24. O douto acórdão recorrido violou ainda o disposto nos artigos 15°, 16° e 17° da Norma 14/99-R do ISP-Apólice Uniforme, e os artigos 23°, 25°, 26°, 28° e 29° do Decreto-Lei n°143/99, de 30 de Abril, por erro de interpretação e de aplicação.

25. Mais violou o douto acórdão recorrido o disposto no art. 483° do Código Civil ao não considerar ter cometido a seguradora qualquer facto ilícito gerador de responsabilidade civil.

Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o acórdão recorrido e, em consequência, manter-se nos seus exactos termos a douta sentença recorrida (proferida na 1ª Instância), com a condenação da Ré BB-Companhia de Seguros, SA, a pagar ao Autor a quantia global de € 61.445,75 (sessenta e um mil, quatrocentos e quarenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos).

A Ré contra-alegou, pugnando pela confirmação do Acórdão.
***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que as instâncias consideraram provados os seguintes factos:

1. O Autor era gerente comercial, exercendo funções na Cervejaria-Restaurante “O P...”, sita em Salicos, Lagoa, de sua propriedade – al. A) dos factos assentes.

2. Na sua qualidade de gerente, cabia ao Autor, entre outras funções, gerir o restaurante, fazer compras, servir às mesas, cozinhar, proceder a arrumações, gerir o pessoal, controlar receitas e despesas, etc. – resp. ao art. 1º da B.I.

3. O Autor transferiu para a Ré BB a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho, trabalhador por conta própria, nos termos da apólice Ac. Trabalho C/Própria-20000000 – al. B) dos factos assentes.

4. No dia 28 de Abril de 2002, o autor encontrava-se numa divisória da casa que fica contígua ao estabelecimento “O P.....” que era por ele utilizada para depositar mercadorias do estabelecimento e preparava-se para levar guardanapos para a sala de jantar do restaurante – resp. ao art. 2º da B.I.

5. Ao retirar uma caixa de guardanapos que se encontrava em cima de uma prateleira embateu, fortuitamente, numa arma do Autor que este ali tinha – resp. ao art. 3º da B. I.

6. Por via do embate, a referida arma caiu da prateleira tendo, por via da queda, dado lugar a um disparo, sendo que a bala foi atingir o pé/perna esquerda do Autor – resp. ao art. 5º da B.I.

7. Como consequência sofreu o autor esfacelo grave da articulação tíbio-társica esquerda, com destruição do pilião tibial esquerdo, com evolução arrastada, que acabou mais tarde por culminar com a amputação da perna esquerda – resp. ao art. 6 da B.I.

8. O Autor foi, no dia 28 de Abril de 2002, transportado na ambulância dos Bombeiros Voluntários de Lagoa, para o Hospital do Barlavento Algarvio, tendo sido evacuado para o Hospital de S. José, em Lisboa, onde deu entrada no dia 29 de Abril de 2002 – resp. ao art. 7º da B.I.

9. No dia 2 de Maio de 2002, foi transferido para o Hospital do Barlavento Algarvio – resp. ao art. 8º da B.I.

10. Em 3 de Maio de 2002 o Autor procedeu à participação do acidente à Ré BB, nos termos de fls. 15, e esta, imediatamente após a participação e antes de se efectuar qualquer diligência instrutória, iniciou as diligências para tratar da saúde do autor – al. C) dos factos assentes e resp. ao art. 40º da B.I.

11. No dia 7 de Maio de 2002, foi o Autor removido do Hospital do Barlavento Algarvio, em Portimão, para o Hospital da CUF, por intervenção da Ré BB que lhe referiu que, já que eram eles a suportar os custos, teria que ir para o Hospital da CUF que era o hospital com quem a Seguradora trabalhava – resp. ao art. 9º da B.I.

12. O Autor foi operado por várias vezes e manteve-se internado no hospital da CUF, até ao final do mês de Agosto de 2002, por determinação e por conta da ré BB – al. D) dos factos assentes.

13. Após o que lhe foi dada alta hospitalar e foi mandado para casa, em tratamento ambulatório, e com fisioterapia e medicação, sendo acompanhado e indo regularmente a consultas, exames médicos e tratamentos nos Serviços Clínicos Centrais da CC, em Lisboa, por conta e determinação da Ré BB – al. E) dos factos assentes.

14. À data da alta hospitalar, o Autor apresentava no pé um fixador externo, destinado a ser removido, posteriormente, através de nova intervenção cirúrgica – al. F) dos factos assentes.

15. Após consulta e exame médico efectuado em 11 de Outubro de 2002, foi marcada nova consulta ao participante/sinistrado, para 6 de Novembro de 2002, pelas 15,45 horas – al. G) dos factos assentes.

16. A Ré BB procedeu ao pagamento das despesas que o autor foi apresentando e suportou pagamentos de salários e de ITA’s – resp. aos arts. 33º e 34º da B.I.

17. A Ré BB iniciou diligências instrutórias e aí apurou que o acidente não era de trabalho, o que a levou a declinar a responsabilidade e, consequentemente, a recusar a continuação dos tratamentos do autor – resp. ao art. 41º da B.I.

18. Em data situada, entre o dia 28 de Outubro de 2002 e o dia 5 de Novembro de 2002, o Autor recebeu uma carta, datada de 22 de Outubro de 2002, enviada pela Ré BB, na qual se referia, quanto ao acidente, que “após análise às circunstâncias em que o mesmo ocorreu, concluímos pela inexistência de acidente de trabalho, uma vez que não ocorreu no local e em tempo de trabalho e não tem qualquer nexo com a actividade garantida pelo contrato de seguro.”al. H) dos factos assentes e resp. ao art. 10º da B.I.

19. Pelo que devolviam uma factura que lhes havia sido enviada para efeitos de reembolso de despesa efectuada com transportes do Autor – al. I) dos factos assentes.

20. O Autor entendeu, face a tal carta, que a Ré BB se recusava a reembolsá-lo das despesas – resp. ao art. 11º da B.I.

21. No dia 6 de Novembro de 2002, porque o seu acompanhamento e tratamento médicos se estavam a fazer através da CC, o Autor compareceu à consulta que se encontrava marcada – al. J) dos factos assentes.

22. Ao comparecer a tal consulta, nos Serviços Clínicos Centrais da CC, em Lisboa, foi o Autor informado que não poderia ter lugar quer a consulta, quer a continuação do acompanhamento médico, pois haviam recebido uma comunicação de que a Ré BB não aceitava continuar a suportar os tratamentos do Autor e, após, o médico da CC que acompanhava o Autor ter-lhe-á sugerido que o mesmo contactasse um médico em Portimão, no Hospital do Barlavento Algarvio, o Dr. ...– al. L) dos factos assentes e resp. ao art. 12º da B.I.

23. O Autor tentou junto do mediador que lhe havia feito o seguro que a Companhia continuasse a pagar os tratamentos mas esta não o fez – resp. ao art. 17º da B.I.

24. O Autor chegou a ir ao Hospital Particular do Alvor para aí ser tratado mas foi-lhe apresentado um valor muito caro que ele não tinha possibilidades económicas para pagar – resp. ao art. 15º da B.I.

25. O Autor, que continuava com o fixador externo à espera de ser removido, sentia dores fortes incapacitantes – resp. ao art. 18º da B.I.

26. O Autor foi sendo acompanhado pelo seu médico de família que o ia medicando com analgésicos até que o mesmo foi atendido no Hospital do Barlavento em consulta de especialidade – resp. ao art. 19º da B.I.

27. O Autor ao ver a sua situação agravar-se e com as dores fortes que sentia, ficou psicologicamente afectado – resp. ao art. 20º da B.I.

28. Clinicamente acabou por verificar-se a consolidação viciosa da fractura, a infecção de várias feridas a nível dos retalhos cutâneos efectuados e osteíte da tíbia que acabou por culminar na amputação da perna esquerda do Autor – resp. ao art. 21º da B.I.

29. O que aconteceu no dia 25 de Junho de 2003, no Hospital do Barlavento Algarvio – resp. ao art. 22º da B.I.

30. Ao Autor foi fixada uma incapacidade total até ao dia 28 de Outubro de 2003 e uma incapacidade permanente global definitiva de 60% a partir dessa data – resp. ao art. 23º da B.I.

31. O Autor continuou em tratamentos médicos, tendo continuado a submeter-se a tratamentos de fisioterapia – resp. ao art. 24º da B.I.

32. As despesas com assistência médica e cirúrgica que estão a ser reclamadas pelos estabelecimentos hospitalares ascendem a:

• Hospital de S. José € 1.124,28 e € 2.185,60.

• Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio € 14.445,88 – resp. ao art. 25º da B.I.

33. Teve despesas com assistência médica no valor de € 241,09 – resp. ao art. 26º da B.I.

34. E despesas com medicamentos no valor de € 371,21 – resp. ao art. 27º da B.I.

35. O Autor gastou em transportes a quantia de € 3.077,69 – resp. ao art. 28º da B.I.

36. O Autor necessita de próteses, temporária e definitiva – resp. ao art.º 30º da B.I.

37. O Autor sofreu fortes dores ao longo desse período – resp. ao art. 31º da B.I.

38. Entrou em profunda debilidade psicológica motivada tanto pelas dores como por se ver confrontado com a sua saúde a piorar de dia para dia e sem vislumbrar a possibilidade de tratamento médico que lhe colocasse um fim ao sofrimento – resp. ao art. 32º da B.I.

39. A Ré CC-Companhia Portuguesa de Seguros de Saúde S.A, identifica o sistema integrado de cuidados de saúde garantido pelas apólices da, entre outras, seguradora BB, S.A., representando-a – resp. ao art. 35º da B.I.

40. A Ré BB entregou o seu sistema de saúde garantido pela apólice do autor à ré CC – resp. ao art. 36º da B.I.

41. O Autor encontrava-se a ser tratado e acompanhado medicamente por médico ao serviço da CC (Dr. Ávila) e com o apoio dos serviços médicos, integrado nesse sistema de saúde – resp. ao art. 37º da B.I.

42. O médico exercia a sua actividade no caso ao serviço da Ré CC, por conta e no interesse da mesma, actuando segundo ordens que recebeu por parte desta Ré – resp. ao art. 39º da B.I.

43. O Autor nasceu em 08.08.1949 – al. M) dos factos assentes.

44. O Autor já havia sido objecto de assaltos, por mais de uma vez, no estabelecimento – resp. ao art. 4º da B.I.

45. A arma com a qual se deu o acidente estava carregada e sem qualquer travamento – resp. ao art. 44º da B.I.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se a actuação da Ré, em relação ao Autor, exprime conduta abusiva do direito e se existe nexo de causalidade, entre as consequências do acidente e as lesões sofridas pelo Autor/ recorrente.

No Tribunal de 1ª Instância, a Ré foi condenada a indemnizar o Autor, por danos sofridos por causa do acidente, que, como trabalhador independente – segurado na Ré – foi vítima, pelo facto de durante seis meses ter patrocinado e pago assistência médica e medicamentosa, mas, porque, entretanto, ter considerado que não se tratava de acidente de trabalho por que devesse ser responsabilizada, decidiu, abruptamente, que não havia lugar às prestações que vinha prestando, não estando sequer obrigada nos termos da apólice.

Por sua vez, a Relação considerando, essencialmente, que a Seguradora podia a todo o tempo cessar aquelas prestações, por considerar que inexistia acidente de trabalho, considerou legítima e não abusiva do direito tal actuação, revogando a sentença condenatória.

Vejamos:

É certo que, ante a participação feita pelo Autor, como segurado da Ré e trabalhador independente (1), de que fora vítima de um acidente de trabalho, a seguradora não podia negar-lhe a prestação imediata de cuidados médicos, socorros urgentes, e que a comunicação do acidente de trabalho nunca significaria o reconhecimento pela seguradora da sua responsabilidade, e que o pagamento de indemnizações ou outras despesas não impede a seguradora de, posteriormente, vir a recusar a responsabilidade relativa ao acidente, quando circunstâncias supervenientemente reconhecidas o justificarem, assistindo-lhe, neste caso, o direito a reaver tudo o que houver pago – art. 17º, nºs 1 e 2 da Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores Independentes – Condições Gerais da Apólice – Norma nº14/1999 de 16.12 do Instituto de Seguros de Portugal – nem por isso a conduta da Ré excluirá a possibilidade de considerar que existe abuso do direito – art. 334º do Código Civil.

Importa é saber se a actuação da Ré que, sob o ponto de vista formal, aparece como lícita, nas concretas circunstâncias do caso, viola as regras da boa-fé, enquanto exigência moral e jurídica de conduta leal que tem em conta as legítimas expectativas e a confiança da contraparte.

Na figura do abuso do direito, existe um direito, que nas concretas circunstâncias em que é exercido pelo seu titular, merece reprovação no plano ético-jurídico se violar não só os princípios da boa-fé, que é exigida socialmente, mas também quando o concreto proceder colide com o fim económico e social do direito.

Dispõe o art. 334º do Código Civil:

“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

O instituto do abuso do direito visa obtemperar a situações em que a invocação ou exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça dominante.

O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excede os limites impostos pela boa fé.” – Ac. do STJ, de 28.11.96, in CJSTJ, 1996, III, 117.

A parte que abusa do direito, actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.

Uma das vertentes em que se exprime tal actuação, manifesta-se, quando tal conduta viola o princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou – “venire contra factum proprium”.

“Há abuso do direito, segundo a concepção objectiva aceite no artigo 334º sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social desse direito.
Não é necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem com o exercício do direito os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; basta que, objectivamente, se excedam tais limites”. – “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 536, Antunes Varela.

Para que se possa considerar abusivo o exercício do direito que afectou o Autor, importa demonstrar factos, através dos quais se possa considerar que a Ré ao exercê-lo, excedeu, manifestamente, clamorosamente, o seu fim social ou económico, ou que com a sua actuação, violou sérias expectativas incutidas no Autor, assim traindo o investimento na confiança, o que exprime violação da regra da boa-fé.

O art. 334º do Código Civil, acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito.

A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a actuação do abusante, objectivamente, contrarie aqueles valores.

Como ensina o Professor Antunes Varela, obra citada, pág. 536:

“Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.
É preciso, como acentuava M. de Andrade, que o direito seja exercido, “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.

Cfr. neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ, de 7.1.93, in BMJ, 423-539 e de 21.9.93, in CJSTJ, 1993, III, 19.


No âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória – “venire contra factum proprium” – que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.

O abuso do direito – “como válvula de escape” – só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do Direito.

Como escreve o Prof. Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil” – Colecção Teses, pág.745:

“ O venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo.
O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.”

A conduta do Autor, para ser integradora do “venire” terá, objectivamente, de trair o “investimento de confiança” feito, in casu, pelo Autor, importando que os factos demonstrem que o resultado de tal conduta constituiu, in concreto, uma clara injustiça.

Como, lapidarmente, ensina Meneses Cordeiro, in “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, Julho 1998, pág. 964, são quatro os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”:

“ (...) 1°- Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);

2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;

3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do, factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;

4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.”

Ora, como antes referimos, ante a participação do acidente pelo Autor, a Ré estava obrigada a providenciar pelo tratamento do lesado, sem que isso representasse o reconhecimento da natureza infortunística do sinistro, que causou lesões de severa gravidade, logo assinaladas na participação do acidente e que essencial foram provadas em juízo.

Ante a descrição factual do acidente, a Ré poderia logo, não obstante o dever de assistência referido, questionar a natureza do acidente, eventualmente excluído do âmbito da apólice – conclusão a que chegou o Ministério Público – no seu despacho a fls. 95 a 104 de 26.11.2004 – onde se ordenou o arquivamento dos autos não obstante se reconhecer que o evento participado acontecera no local de trabalho.

No falado despacho pode ler-se – “Duma forma mais simplista, diremos que o risco da posse de uma arma, ainda que tal risco, se concretize no local e tempo de trabalho, não pode por si só ser considerado acidente de trabalho, este há-de ter necessariamente uma correlação com o trabalho desempenhado pela vítima”.

Esta perspectiva, é, com o devido respeito, discutível, porquanto, se implicita que a arma estava no estabelecimento por uma razão ainda atinente ao trabalho do Autor, já que como se veio a provar na acção, o seu estabelecimento já tinha sido, por mais de uma vez alvo de assaltos.

Assim, considerar que nenhuma atinência teve o acidente com a existência da arma no local de trabalho, justificada que estava a sua guarda ali, não deveria ser elemento decisivo para se considerar que o acidente não foi acidente de trabalho.

Mas esta não é, aqui e agora, a questão pertinente decidenda.

Como antes dissemos, a Ré providenciou pelo tratamento do Autor, como lhe competia, podendo a partir da data da participação proceder a inquérito se dúvidas tinha sobre se o acidente era de trabalho ou não.

Sabemos que iniciou esse inquérito, que a prudência e o sensato ponderar dos interesse em jogo – grave lesão da saúde do Autor e previsíveis demoras e despesas na sua recuperação – imporiam uma rápida conclusão, ou no sentido da assunção, ou da recusa da responsabilidade emergente do contrato de seguro.

Ora, neste aspecto, a conduta da Ré é passível de censura por revelar, a todas as luzes, desconsideração dos interesses em causa.

A Ré, que, como organização profissional tem de ter ao seu dispor meios rápidos e expeditos de organizar e concluir um inquérito interno [que não obedece a regras senão aquelas que para si dita], levou cerca de seis meses a concluir que o acidente, afinal, não era da sua responsabilidade.

O acidente, ocorrido em 28.4.2002, foi participado à Ré em 3.5.20002 – provocou esfacelo grave da articulação tíbio-társica esquerda, com destruição do pilião tibial esquerdo, com evolução arrastada, que culminou com a amputação da perna esquerda.

A Ré concluiu o seu Relatório em 28.6.2002 – fls. 109 a 115.

Decorre, até, desse relatório que o local do acidente foi por si visitado, pela primeira vez, em 13.5.desse ano…

O Relatório apresenta conclusões que deixam entrever que o averiguador se inclina para não considerar o acidente como tendo ocorrido nas circunstâncias participadas pelo Autor, não existindo clara afirmação ou sugestão acerca da sua natureza infortunística, rematando – “Ficamos ao dispor da Gestão para qualquer esclarecimento adicional que se entenda por conveniente” – cfr. fls. 115.

É já de posse deste Relatório que a Ré prossegue dando assistência ao Autor, sem sequer o alertar para a eventualidade de fazer cessar os tratamentos.

Assim é, que até ao final de Agosto de 2002, o Autor foi operado, por várias vezes e manteve-se internado no Hospital da CUF, por determinação e por conta da Ré. – al. D) dos factos assentes.

A Ré, quando dispunha já de razoáveis, senão seguros elementos para duvidar da sua responsabilidade, continuou a custear despesas inerentes ao tratamento do Autor, a pagar-lhe salários e indemnizações pelos períodos de incapacidade temporária – cfr. itens 12), 13), 15) e 16) dos factos provados.

O silêncio da Ré manteve-se até 22.10.2002 – quatro meses antes já dispunha do Relatório a que procedeu para averiguar da natureza do acidente – e naquela data comunicou ao Autor – “Após análise às circunstâncias em que o mesmo ocorreu, concluímos pela inexistência de acidente de trabalho, uma vez que não ocorreu no local e em tempo de trabalho e não tem qualquer nexo com a actividade garantida pelo contrato de seguro.” – al. H) dos factos assentes e resp. ao art. 10° da B.I.

Em consequência, logo em 6.11.2002, foi recusado ao Autor tratamento, por ordem da Ré.

O Autor a partir daí, teve que providenciar pelo seu tratamento, sem dúvida em condições muito menos favoráveis para uma rápida convalescença e cura, desde logo, por não dispor de meios económicos sequer comparáveis aos que lhes eram proporcionados – cfr. item 24) dos factos provados.

Eis-nos chegados ao ponto fulcral da controvérsia; este comportamento da Ré coaduna-se com o agir de uma pessoa de bem, representa uma actuação recta, conscienciosa, esperada em função da sua actuação anterior?

Em termos de razoabilidade, e porque não de sensibilidade perante o sofrimento de uma pessoa doente, é censurável ou não, que a Ré tivesse cessado, em 22.10.2002, a prestação de assistência ao Autor, nos termos em que o fez?

Da resposta dependerá ajuizar se há, ou não, abuso do direito.

A Relação considerou não existir abuso do direito, assente numa perspectiva, quiçá formalista, já que considerou ser um direito exercido sem abuso, o de a recorrida findar o apoio médico requerido pela doença do Autor, pelo facto da lei lho facultar, disporia, assim, de um direito que exerceu sem censura.

Com o devido respeito discordamos.

Não é razoável, nem sensato, que uma Seguradora, mesmo depois de ter elaborado um inquérito interno, segundo as suas regras, demore o tempo que demorou para concluir que não se tratava de acidente de trabalho – só o fez em 22.100.2002 – num quadro factual em que o Autor carecia de tratamento diário, sem sequer o prevenir que da averiguação que mantinha poderia chegar à conclusão a que tardiamente chegou.

A Ré, uma qualquer seguradora, em matéria de acidentes de trabalho, estando em causa um direito fundamental – o direito à saúde do seu segurado – não pode criar expectativa erradas; deve, prontamente – atentas as circunstâncias – afirmar de maneira indúbia qual a sua decisão, sob pena de violar as regras da boa-fé e a confiança que, paulatinamente, com a sua actuação vai incutindo naquele que confia num comportamento.

Durante quase seis meses, a Ré prestou assistência médica e cumpriu as obrigações inerentes ao contrato de seguro, mormente, custeando despesas de monta e tratamentos exigentes e, em momento crucial do estado de saúde do Autor, surpreendeu-o com a decisão de recusar a prestação que vinha actuando, considerando não existir acidente de trabalho.

Como o Autor tinha objectivamente – em função do tempo decorrido – [que no caso é elemento de crucial importância e que a Ré negligenciou em desconsideração censurável do seu interesse] – uma fundada expectativa na continuação da assistência, a abrupta recusa da Ré constitui razão para considerar que actuou em manifesto abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium (conduta contraditória).

No quadro circunstancial a que aludimos, ofende o sentido de justiça, comummente aceite por pessoas de bem, a recusa da Ré em continuar a prestar assistência médica e medicamentosa e em cumprir as demais prestações inerentes ao contrato de seguro de acidentes de trabalho; a sua actuação exprime ilicitude e causou danos ao Autor, como bem refere a sentença da 1ª Instância, assente nos factos provados.

Não se afigura lícito interromper, abruptamente, tratamentos, criando risco para a saúde do assistido.
Essa interrupção, ainda quando a seguradora chegue à conclusão (certa ou errada, não importa) de que o sinistro não constitui acidente de trabalho, não pode ocorrer durante o processo de tratamento em curso, enquanto não estiver garantido que o doente já não irá sofrer riscos determinados pela interrupção.

Tal como a seguradora deve procurar proporcionar ao sinistrado imediatamente as melhores condições de tratamento no âmbito dos serviços de saúde com os quais colabora, o que sucedeu no caso com a transferência para os “seus” serviços de saúde, de igual modo não deve interromper, abruptamente, tratamentos iniciados, sabendo-se que, com essa interrupção, à dificuldade que sempre constitui a transferência de um doente, acresce a sabida perda de qualidade assistencial.

A nossa lei não estabelece sanção para os comportamentos abusivos de direito, que não são casos de falta de direito, mas antes devem ser configurados como violação do dever jurídico de não actuar em abuso do direito de que se é titular.

A omissão desse dever, no quadro da previsão normativa do art. 334º do Código Civil, exprime, além de ilicitude, culpa, muito embora seja consensual que o abuso do direito prescinde da intenção de prejudicar.

Adelaide Menezes Leitão, in “Normas de Protecção e Danos Puramente Patrimoniais” – Colecção Teses – Almedina – Janeiro 2009 – escreve, págs. 611-612:

“Nem toda a doutrina portuguesa admite a possibilidade do abuso do direito poder gerar a obrigação de indemnizar.
Há uma linha doutrinária que nega ao abuso do direito a natureza de fonte de responsabilidade civil (Hörster – “A Parte Geral”, p. 288) e, outra, que a admite (Vaz Serra - Abuso do direito (em matéria de responsabilidade civil)”, BMJ 85, (1958), p. 265).
O abuso do direito, tal como está configurado no direito português, não exige dolo.
No entanto, Sinde Monteiro defende que é essencial uma reflexão sobre os interesses envolvidos em cada situação, com vista à determinação dos casos que só devem ser indemnizados face a uma conduta dolosa (M. Azevedo de Almeida, A Responsabilidade civil, pp. 68-69.
Pode-se, assim, caracterizar a doutrina nacional sobre o abuso do direito como oscilando entre uma concepção estrita do abuso que se encontra em Orlando Carvalho e Hörster e uma concepção ampla, protagonizada por Vaz Serra, Menezes Cordeiro e Sinde Monteiro (Responsabilidade delitual. Da ilicitude”, p. 460), sendo a posição de Carneiro da Frada uma via intermédia entre estas duas concepções que o restringe e não aplica a liberdades genéricas (Nuno Manuel Pinto de Oliveira, “Sobre o conceito de ilicitude do art. 483. ° do Código Civil”, p. 527, (nº14)”.

Nas suas lacónicas contra-alegações, a recorrida sustenta que não se verificam os requisitos do dever de indemnizar questionando sobretudo que haja nexo de causalidade entre a sua conduta e o dano mormente o dano físico da amputação da perna esquerda do Autor.

Como ensina Fernando Cunha e Sá, in “Abuso do Direito “ – pág. 640:

“O abuso prescinde quer da causação de danos (pode haver um acto abusivo não danoso) quer, quando os haja, qualquer elemento subjectivo, na forma de dolo ou de mera culpa; ora sendo assim, a exigência de culpa requisito da responsabilidade civil por actos abusivos, depende da possibilidade de emitir um juízo de reprovação sobre a conduta do agente, pois nisso mesmo é que consiste a culpa.
Dito por outras palavras, depende da existência de um dever que impenda sobre o titular do direito subjectivo ou da diversa prerrogativa jurídica e que este tenha violado voluntariamente.”.

Temos, para nós, que sendo ilícita e culposa a actuação da Ré que, manifestamente causou danos directos e indirectos e de natureza não patrimonial, indemnizáveis no contexto de responsabilidade civil – art. 483º, nº1, do Código Civil – sobre ela impenderá, no quadro de actuação abusiva do direito, a obrigação de indemnizar.

Importa saber se existe, provado, nexo de causalidade entre a actuação da Ré e os resultados danosos sofridos pelo Autor.

Dispõe o art. 563.° do Código Civil – “ A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.

Este normativo consagra a teoria da causalidade adequada na formulação negativa de Ennnecerus Nipperdey.

Como ensina Antunes Varela, in “Direito das Obrigações em Geral”, I Volume, 7ª edição, pág.885;

“Há que restringir a causa àquela ou àquelas condições que se encontrem para com o resultado numa relação mais estreita, isto é, numa relação tal que seja razoável impor ao agente responsabilidade por esse mesmo resultado, isto é, o agente só responde pelos danos para cuja produção a sua conduta era adequada.
Se o agente produziu a causa donde resultou o dano, sem dúvida que a sua conduta é adequada ao resultado, mesmo que, concomitantemente com a sua conduta, haja a conduta de terceiros a concorrer para esse resultado ou, pelo menos, a não o evitar. Com efeito “desde que o devedor ou lesante praticou um facto ilícito, e este actuou como condição de certo dano”, justifica-se perfeitamente que o prejuízo (embora devido a caso fortuito ou, em certos termos, à conduta de terceiro) recaia, em princípio, não sobre o titular do interesse atingido, mas sobre quem, agindo ilicitamente, criou a condição do dano”.

Como sentenciou este Supremo Tribunal – Acórdão de 20.6.2006, in CJSTJ, 2006, II, 119:

“I – Tal como decorre da redacção do artigo 563º do Código Civil o nosso sistema jurídico acolheu a doutrina da causalidade adequada, a qual, todavia, não pressupõe a exclusividade de uma causa ou condição.
II – Muito embora tal conceito legal comporte qualquer das formulações da referida teoria – na formulação positiva ou negativa –, vem-se, porém, entendendo que, provindo a lesão de um facto ilícito (contratual ou extracontratual), seja de acolher e seguir a formulação negativa, segundo a qual o facto que actuou como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada do mesmo se, dada a sua natureza geral e em face das regras da experiência comum, se mostrar indiferente para a verificação do dano.
III – Causalidade adequada essa que se refere – e não apenas ao facto ou dano isoladamente considerados – a todo o processo factual que, em concreto, conduziu ao dano.
IV – Muito embora sejam as circunstâncias a definir a adequação da causa, contudo, não se deve perder de vista, por um lado, que para a produção do dano pode haver a colaboração de outros factos, contemporâneos ou não, e, por outro, que a causalidade não tem necessariamente de ser directa e imediata, bastando que a acção condicionante desencadeie outra condição que, directamente, suscita o dano (causalidade indirecta).
V – Sempre que ocorra um concurso de causas adequadas, qualquer dos seus autores é responsável pela reparação de todo o dano.
VI – No nosso ordenamento jurídico o nexo de causalidade apresenta-se com uma dupla função: como pressuposto da responsabilidade e como medida da obrigação de indemnizar.” (sublinhámos).

Os factos demonstram que, em consequência do acidente – “Clinicamente acabou por verificar-se a consolidação viciosa da fractura, a infecção de várias feridas a nível dos retalhos cutâneos efectuados e osteite da tíbia que acabou por culminar na amputação da perna esquerda do autor” – resp. ao art. 21° da B.I.

O tratamento das lesões físicas provocadas pelo acidente foi, desde o início até 22.10.2002, da responsabilidade da Ré.

É certo que o Autor, mesmo após a recusa da Ré, não deixou de ser tratado, mas a partir dessa data, notoriamente, sem poder recorrer aos Hospitais onde fora assistido, notoriamente, com melhores cuidados.

A Ré não podia ignorar que à data em que recusou a continuação da prestação de assistência ao Autor, este estava numa fase de elevado risco da sua lesão, porquanto seria necessário remover o fixador do pé esquerdo, através de nova intervenção jurídica.

A amputação da perna esquerda ocorreu no dia 25.6.2003 – item 29) dos factos provados.

Em termos de causalidade adequada, não se tendo provado que o Autor negligenciou tratamentos apesar da sua precariedade económica – cfr. item 25) dos factos provados – mas sendo patente que as consequências para si drásticas, não se deveram a factores imprevisíveis, nem de excluir em função do tipo das lesões sofridas, importa concluir que as sequelas das lesões foram consequência do acidente, por que a Ré se deveria ter responsabilizado em termos de prestação de idónea e continuada assistência médica, estamos, ainda aí, no domínio de uma causalidade indirecta que o art. 563º do Código Civil não exclui.

Verificam-se, destarte, os requisitos do dever de indemnizar a cargo da recorrida.

Neste entendimento o Acórdão recorrido não pode manter-se.

Decisão:

Nestes termos, concede-se a revista, revogando-se o Acórdão recorrido para ficar a valer a sentença da 1ª Instância.

Custas na Relação e neste Tribunal pela recorrida.


Supremo Tribunal de Justiça, 12 de Fevereiro de 2009



Fonseca Ramos (relator)
Cardoso de Albuquerque
Salazar Casanova

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(1) O Seguro de Acidentes de Trabalho do Trabalhador Independente é um seguro obrigatório por lei (Lei 100/97, de 13/9 e Decreto-Lei 159/99, de 11 de Maio) que visa proporcionar todo o tipo de assistência clínica e o pagamento de indemnizações e pensões na sequência de acidente de trabalho que origine situações de incapacidade ou morte.