Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
512/13.6TBMNC.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: ÁREA FLORESTAL
BALDIOS
AQUISIÇÃO DE BENS PELO ESTADO
DOMÍNIO PÚBLICO
DOMÍNIO PRIVADO
MATÉRIA DE DIREITO
MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais:
PARECER DA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA Nº 6/99, DE 24-06-1999, IN DR, II SÉRIE, DE 24-11-1999.
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / JULGAMENTO DO RECURSO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 615.º, N.º 1, ALÍNEA D), 635.º, N.º 4 E 684.º, N.º 2.
DECRETO DE 24-12-1901, IN DIÁRIO DO GOVERNO N.º 296, DE 31-12: - ARTIGOS 3.º, § 1.º E § 2 E 26.º.
DECRETO DE 24-12-1903, IN DIÁRIO DO GOVERNO N.º 294, DE 30-12.
DL N.º 39/76, DE 19-01: - ARTIGO 3.º.
LEI N.º 1971, DE 15-06-1938.
DECRETO DO GOVERNO, IN DIÁRIO DO GOVERNO N.º 240, II SÉRIE, DE 14-10-1944.
LEI N.º 1971, DE 15-06-1938.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 15-09-2011, PROCESSO N.º 243/08.9TBPTL.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

- DE 14-01-2008, PROCESSO N.º 2071/07-1.
Sumário :
I - A sujeição de uma parcela de terreno a um determinado regime jurídico especial constitui uma questão de direito e não uma questão de facto.
II - O regime florestal total e o regime florestal parcial distinguem-se na medida em que o primeiro respeita a terrenos originariamente pertencentes ao Estado, enquanto o segundo respeita a terrenos de entidades públicas não estatais ou de particulares – cfr. Decreto de 24-12-1901 (publicado no Diário do Governo n.º 296, de 31-12) e Decreto de 24-12-1903 (publicado no Diário do Governo n.º 294, de 30-12).
III - A primeira modalidade “tende a subordinar o modo de ser da floresta ao interesse geral, isto é, aos fins de utilidade nacional que constituem a causa primária da sua existência ou criação” (§ 1.º do art. 3.º do Decreto de 24-12-1901), ao passo que a segunda, “subordinando a existência da floresta a determinados fins de utilidade pública, permite contudo que na sua exploração sejam atendidos os interesses imediatos do seu possuidor (§ 2 do mesmo artigo).
IV - Acompanhando o Parecer da PGR n.º 6/99, de 24-06-99, e na esteira do acórdão do STJ de 15-09-2011, as parcelas de terreno dos baldios em que foram implantadas as casas de guarda florestais tornaram-se indissociavelmente partícipes da destinação pública a que estas foram afectadas, mercê da qual ficaram exceptuadas da devolução ao uso, fruição e administração dos baldios aos compartes, nos termos do art. 3.º do DL n.º 39/76, de 19-01.
V - Tendo a casa do guarda-florestal em causa nos autos sido implantada sobre terreno baldio, esta, assim como os anexos de apoio a tal casa e respectivo logradouro, têm de considerar-se pertencentes ao domínio público e afectos a fins de interesse público, exceptuando-se da devolução referida em IV.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1. O Ministério Público, em representação do Estado/Ministério das Finanças/DGP, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra o Conselho Directivo dos Baldios de ....., em representação da Assembleia de Compartes dos Baldios de .... e a Freguesia de ....., representada pela Junta de Freguesia de ....., pedindo que se declare que o prédio urbano destinado a Quartel da Brigada Fiscal (bem como o terreno envolvente onde está inserido), composto de rés-do-chão, construído de pedra, com cinco divisões, possuindo uma superfície coberta de 106 m2, superfície descoberta de 462 m2, anexos com 32 m2, sito no Lugar de ....., a confrontar de todos os lados com Monte Baldio, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ....., sob o artigo 1048º, é propriedade do Estado Português, pelo menos desde a década de cinquenta.
Pede ainda o A. que se declare que os RR. não dispõem de qualquer título que os habilite a ocupar tal imóvel, sendo essa ocupação nula, devendo deixá-lo completamente devoluto de pessoas e bens.
Alega resumidamente o A. que o Estado tentou registar a seu favor o prédio em causa, mediante processo de justificação administrativa. Contudo, o Conselho Directivo de Baldios de ....., acompanhado da Junta de Freguesia de ....., reclamou contra o direito que o Estado pretendia e pretende fazer valer.
Refere o Estado que exerceu sobre a parcela em causa actos sistemáticos de posse pública e pacífica, agindo como seu proprietário; sendo que até construiu na parcela, na década de cinquenta, a casa de função A-32 para habitação de guardas florestais, no exercício de funções de interesse público, à vista de todos e sem oposição de ninguém.
Uma vez que o Estado detém a posse do terreno onde foi construído o imóvel desde a década de cinquenta, aplicam-se ao caso as disposições do Código de Seabra no que concerne ao prazo para aquisição por usucapião, bem como quanto aos seus requisitos. À luz do dito código bastaria a posse pública e contínua da parcela pelo período de quinze anos para que o Estado pudesse adquirir por usucapião. Diz assim o A. que o Estado adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio em questão por usucapião e que os RR. se limitaram a impedir o mesmo de justificar o seu direito, sem apresentar qualquer elemento probatório de que a casa florestal não é de sua propriedade.
O Conselho Directivo dos Baldios de ..... e a Freguesia de ..... vieram apresentar contestação a fls. 37 ss. Começam os RR. por alegar que o prédio urbano reclamado pelo A. foi implantado sobre o baldio da freguesia de ....., num monte destinado essencialmente à produção de mata e apascentação de gado. Desde há mais de 30, 40, 50, 100 e mais anos, que excedem a memória dos vivos, que os moradores da Freguesia de ..... vêm aproveitando colectivamente os terrenos que compõem esse monte para apascentação de gados e corte de matos e lenhas.
Alegam ainda os RR. que os moradores da freguesia de ..... aproveitaram os terrenos que integram o citado monte pela forma supra referida, na convicção de que os terrenos estavam afectos a logradouro comum dos moradores da freguesia de ...... A esse monte sempre foi permitido o livre acesso de todos os compartes dos baldios, que, por ser entrecruzado por vários carreiros de passagem a pé e por caminhos que permitem o trânsito de carro, o utilizavam para acederem livremente aos mais diversos lugares da freguesia, inclusivamente com animais, e praticarem nele os mais variados actos de uso e fruição, tais como apascentação de gados, cortes de matos e apanha de lenhas. Actos esses praticados à vista de toda a gente e de forma ininterrupta e pacífica, e sempre sem oposição de quem quer que fosse.
A casa em causa nos autos foi implantada sem autorização dos compartes dos baldios e sem qualquer possibilidade de a comunidade local se opor à sua execução. Além disso, os moradores de ..... estavam convictos de que a casa lhes pertencia e era para o seu interesse. Dizem ainda os RR. que a casa se encontra devoluta desde 1985.
O prédio descrito no artigo 1º da petição inicial está implantado numa área de baldios que vem sendo detida, gerida e fruída pelos moradores da freguesia de ....., desde tempos imemoriais, sem qualquer interrupção temporal.
Acrescentam ainda os RR. que o local onde foi construída a dita casa florestal nunca esteve submetido ao regime florestal. Nem alguma vez foi arborizado ou, de outra forma, explorado ou vigiado, pelo Estado.
A limpeza e manutenção da casa e rossios é feita exclusivamente pela 1ª R., através dos meios que a 2ª R. disponibiliza, como pessoal e máquinas. Sendo ainda os compartes da freguesia de ..... que vigiam a referida casa, o que sucede há mais de 20 e 30 anos, à vista de toda a gente, de forma ininterrupta, pacífica, sempre sem oposição de quem quer que fosse e na convicção de exercerem um direito comum de vizinhos.
Dizem os RR. que o A. apenas alega que a casa em questão foi ocupada pelo guarda florestal em 11 de Abril de 1958. O que significa que, desde Abril de 1958 a 24 de Janeiro de 1976, data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 39/76, de 19 de Janeiro, transcorreram 17 anos. Em 1958 vigorava o Código de Seabra de 1867 que fixava o prazo de 30 anos para a prescrição aquisitiva. No entanto, em 1 de Junho de 1967, entrou em vigor o actual Código Civil, tendo decorrido 9 anos, insuficientes para, à luz do Código de Seabra, já ter decorrido a prescrição aquisitiva. Aplicando-se o prazo previsto no Código Civil actual que é de 20 anos, sendo este o prazo aplicável, por ser o mais curto, mas ele só se conta da entrada em vigor do novo Código Civil, dado que, segundo a lei antiga, faltava mais tempo para o prazo se completar. Mas, mesmo aceitando ter sido elidida a presunção de má fé consignada no art. 1260º, n.º 2 (parte final) do actual Código, teremos o prazo normal de 15 anos (art. 1296º), a contar da entrada em vigor deste Código (01-06-1967). Ora, à data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 39/76, não tinha ainda decorrido este prazo.
Assim, concluem que o A. não adquiriu por usucapião o direito de propriedade que se arroga e de que pediu fosse declarado titular.
Os RR. alegam factos que também levam à aquisição do imóvel de forma originária, por usucapião.
Os moradores da freguesia de ..... nunca reconheceram o A. como dono e possuidor do imóvel. Por isso, no âmbito do processo de justificação administrativa deduziram oposição a que o A. adquirisse o imóvel, seja por que forma fosse.
Requerem assim os RR., a título reconvencional, que se declare que o universo dos compartes dos baldios da Freguesia de ..... é proprietário comunitário do baldio da freguesia de ....., onde se situa a casa identificada no artigo 1º da p.i., incluindo a parcela onde está implantada a dita casa, condenando-se o A. a reconhecer esse direito e a restituir ao universo dos compartes dos baldios da Freguesia de ..... a parcela de terreno ocupada pela casa florestal identificada no artigo 1º da p.i.; declarando-se o universo dos compartes dos baldios da Freguesia de ..... proprietário do prédio urbano identificado no artigo 1º da p.i.; e condenando o A./reconvindo a reconhecer esse direito dos compartes.

A fls. 124 foi proferida sentença, que julgou a acção nos seguintes termos:
“Pelo exposto, decide-se julgar a ação totalmente provada e procedente e, consequentemente,
Declara-se que o prédio urbano destinado a Quartel da Brigada Fiscal (bem como o terreno envolvente), inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ....., sob o art. 1048º, é propriedade do Estado Português, pelo menos desde a década de cinquenta.
- Condenam-se os RR. a reconhecer tal direito.
- Julga-se improcedente o pedido reconvencional deduzido pelos RR.”

Inconformado, o Conselho Directivo dos Baldios de ..... interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, pedindo a reapreciação da decisão de direito.
Por acórdão de fls. 151 o recurso foi julgado improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

2. Veio o Conselho Directivo de Baldios de ..... e outro interpor recurso. Por via normal e por via excepcional, para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:
[excluem-se as conclusões relativas à admissibilidade do recurso]
“3. Do acervo dos factos provados não consta do Acórdão recorrido, que o baldio, onde foi implantado o prédio identificado, em l), foi submetido ao regime florestal, o que impede a aquisição do direito de propriedade, pelo Estado, da parcela onde foi implantada a casa florestal, através da L. nº 1971, de 15-06-1938, base VI;
4. Não tendo adquirido por usucapião o direito invocado, decisão esta transitada em julgado, por não ter sido impugnada, em sede de recurso, não pode adquirir o Estado, por força da L. nº 1971, por não ter alegado e provado que a parcela de terreno baldio, onde foi construída a casa florestal, foi submetida ao regime florestal, quando e por que acto legislativo;
5. Não sendo uma questão de direito, mas um facto essencial, para se saber de onde dimana ou assenta o direito peticionado pelo Estado, não pode ser conhecida oficiosamente pelo Tribunal, nem pode ser suprida a omissão de alegação de facto, pois, apesar de se saber, porque resulta da Lei, que o baldio de ..... foi submetido ao regime florestal parcial, ficou sem se saber se a parcela, onde foi implantada a casa florestal, foi submetida ao regime florestal, facto sem o qual não se pode chegar à conclusão a que chegaram as instâncias;
6. O Acórdão recorrido é nulo, por não se ter pronunciado, quanto à questão colocada, no recurso de Apelação, sobre a aquisição do direito de propriedade, por força da L. n.º 1971, base VI, da parcela de terreno baldio submetido ao regime florestal, onde foi implantada a casa, não tendo sido devolvida ao uso, fruição e administração dos compartes, mas não concedeu a aquisição, por efeito da usucapião, por ter sido devolvida a referida parcela, face ao disposto no DL n.º 39/76, de 19-01, ao uso, fruição e administração dos compartes;
7. O Acórdão recorrido está em oposição frontal com o Acórdão-fundamento que, aqui e agora, se junta cópia integral do mesmo, pronunciando-se sobre esta questão concreta, que é saber se o Estado pode adquirir a casa florestal e o terreno onde está implantada, por força da L. nº 1971, de 15-06-1938, base VI;
8. O Acórdão fundamento, transitado em julgado, colocado perante uma situação de facto idêntica, no âmbito das mesmas disposições legais e sobre a mesma questão fundamental de direito decidiu de forma diversa da decidida pelo Acórdão recorrido;
9. O Acórdão recorrido, por um lado concede a propriedade ao Estado, no âmbito da L. nº 1971, por a parcela não ter sido devolvida aos compartes, por não se aplicar o DL nº 39/76, mas, por outro lado, não concede a aquisição da propriedade da parcela, por usucapião, por ter sido devolvida aos compartes, por força do DL nº 39/76;
10. O Acórdão recorrido está em contradição com o Acórdão da Relação de Guimarães, de 14 de Janeiro de 2008, relatado pelo Ex.mo Senhor Desembargador Antero Veiga, disponível em www.dgsi.pt, transitado em julgado, proferido no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito;
[excluem-se as conclusões relativas à admissibilidade do recurso]
Termos em que, deve o Acórdão recorrido ser revogado e proferido Acórdão que considere a acção improcedente e a reconvenção procedente”

O Ministério Público contra-alegou, concluindo nos termos seguintes:
[excluem-se as conclusões relativas à admissibilidade do recurso]
“VII - Quando assim se não entenda, e uma vez que os recorrentes invocam erro de julgamento da matéria de direito face aos factos provados e nulidade do Acórdão recorrido, consideramos que nesta parte, carecem também os recorrentes de razão.
VIII - No entender dos recorrentes, os factos dados como provados não são suficientes para chegar à conclusão jurídica de que o baldio onde foi implantado o prédio foi submetido ao regime florestal e não consta qual o decreto, quando é que foi submetido e quando foi publicado.
IX - Não obstante, conforme se refere no Acórdão recorrido, tal questão é uma questão de direito "pois a sujeição ou não ao regime florestal resulta da lei e pode ser abordada pelo juiz mesmo que não tenha sido suscitada pelas Partes nos seus articulados, atento o disposto no art.° 5.° n.° 3 do C.P.Civil.
X - Acresce que consta dos autos documentação, mais precisamente o documento n.° 1, emitido pela Autoridade Tributária e Aduaneira que o prédio em causa, artigo urbano 1048 da freguesia de ..... foi inscrito nas Finanças, para contribuição predial, em 1996 e nela figura como titular do rendimento a Zona Florestal do Vale do Minho (cfr. Fls 110) e que tal como resulta do documento apresentado pelo recorrente em sede de audiência de julgamento, com o timbre da antiga junta de colonização interna refere a existência de baldios de ..... "submetidos a regime florestal" tendo a data de 30 de Maio de 1960.
XI - E como refere o Acórdão recorrido, o Decreto 14/10/1944, publicado no Diário do Governo n.° 240 II série submete os baldios de ..... a um efectivo regime florestal.
XII - Aliás foi construída a casa florestal em causa, afecta à Direcção Geral dos Serviços Florestais e Agrícolas da Administração Florestal de Monção a qual confronta de todos os lados com Monte Baldio e que foi implantado sobre o baldio da freguesia de ..... e foi construído na década de 50 pelo Estado para habitação de guardas-florestais que ininterruptamente ali prosseguiram a vigilância das florestas.
XIII - O cerne da questão nos presentes autos radica em sopesar os diplomas respeitantes ao Regime Florestal (Decreto Orgânico dos Serviços Agrícolas de 24 de Dezembro de 1901, o Regulamento para Execução do Regime Florestal em 24 de Dezembro de 1903, nomeadamente a questão da atribuição das casas florestais, a Lei n.° 1971 de 15 de Junho de 1938, o Decreto Lei 39/76, os fins prosseguidos pela Lei 75/2017 de 17/8, que define o que é o baldio) para se concluir se a dita casa e terreno adjacente está integrada na devolução ao uso, fruição, administração dos baldios aos compartes, a que alude o art.° 3° do Decreto Lei 39/76.
XIV - Resultou plenamente provado a que finalidade é que o dito prédio se destinava - fins de interesse e utilidade pública implicados no regime florestal (o Estado, na referida casa e terreno, situada num baldio não só exerceu ininterruptamente actos de posse com prosseguiu um fim de interesse público que é o da protecção das florestas).
XV - Por conseguinte, terá forçosamente de se concluir que o Estado não quis abandonar as áreas florestadas, quis manter as ditas casas florestais sob a vigilância desses guardas, manutenção essa que em nada interfere com a finalidade dos baldios.
XVI - Com efeito, a manutenção do referido prédio e fins que ali se prosseguem em nada belisca ou colide com a finalidade dos baldios. Na verdade, as vantagens que resultam para os compartes com a fruição dos baldios não podem ser [podem ser] retiradas da casa e parcela de terreno onde está implantada, como expende o Acórdão recorrido.
XVII - Afigura-se assim irrelevante saber, como pretendem os recorrentes se a parcela de terreno onde está implantada a casa estava submetida a regime florestal, uma vez que o diploma refere que este era parcial, já que está provado que a dita parcela de terreno, naquele baldio, tinha uma casa do Estado, justamente destinada a guardas florestais, cujo fim era justamente a vigilância das florestas e foi esta posse por parte do Estado e este fim prosseguido que foram determinantes para se chegar à conclusão a que chegou o acórdão recorrido.
XVIII - O Acórdão recorrido igualmente não padece da invocada nulidade, por omissão, no que respeita às questões suscitadas pelos recorrentes às quais - segundo os mesmos - não teria o Aresto dado resposta.
XIX - Na verdade resolver todas as questões que as partes tenham submetido à apreciação do juiz não significa considerar todos os argumentos que as partes tenham aduzido, não se verificando a suscitada contradição. O Acórdão recorrido, fazendo expressa referência à cronologia, sequência dos vários diplomas de Povoamento Florestal, alicerçado no Parecer da Procuradoria- Geral da República n.° 6/99 de 24/6/99 publicado no DRII Série, n.° 274 de 24/11/1999 e no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/9/11 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/5/2005 demonstrou o motivo por que a casa de guarda- florestal e terreno adjacente estavam afectas a fins de interesse e utilidade pública, implicadas na vigilância e preservação das florestas, mantendo-se na posse e propriedade do Estado, estando por conseguinte excluída da devolução aos compartes a que alude o art.° 3.° do Decreto - Lei 39/76. Deverá por conseguinte também nesta parte o recurso improceder.”
[excluem-se as demais conclusões relativas à admissibilidade da revista por via excepcional]

3. Por acórdão da Formação a que alude o nº 3 do art. 672º, do Código de Processo Civil, o recurso foi admitido.

Cumpre decidir.

4. Vem provado o seguinte (mantêm-se a redacção e identificação das instâncias):
1) O Estado tentou registar a seu favor em 2006, mediante processo de justificação administrativa, nos termos do art. 3º do DL nº 34565, de 2 de Maio de 1945, o prédio urbano destinado a Quartel de Brigada Florestal, composto de rés-do-chão, construído de pedra, com um número total de cinco divisões, possuindo a superfície coberta de 106 m2, a superfície descoberta de 462 m2, anexos com 32 m2, sito no lugar de ....., a confrontar de todos os lados com Monte Baldio, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ....., sob o artigo 1048, com o valor patrimonial de 7.563,37 €, tendo sido cumprida a tramitação legal, nomeadamente o anúncio da pretensão através da afixação de editais.
2) Os RR. arrogando-se proprietários do dito imóvel, em 6 de Maio de 2006, reclamaram contra o direito que o Estado pretendia fazer valer, deduzindo oposição no âmbito do processo de justificação administrativa.
3) Na década de cinquenta, foi construída pelo Estado a casa de função A-32 para habitação de guardas florestais, no exercício de funções de interesse público, à vista de todos e sem oposição de ninguém.
4) Dita casa florestal denominada A-32 encontra-se afecta à Direcção Geral dos Serviços Florestais e Agrícolas, da Administração Florestal de Monção.
5) Tal casa florestal foi em 11 de Abril de 1958, pela Administração Florestal de Monção, entregue a título precário ao guarda florestal de 3ª classe AA para nela habitar exercendo funções de interesse público do Estado, designadamente vigilância, segurança, limpeza das matas circundantes.
6) A este guarda sucedeu, a partir de 1990, mas sempre ininterruptamente, o guarda florestal BB que ali ainda reside, com iguais funções.
7) Durante todo o período em que todos os funcionários da A-32 habitaram no prédio em discussão ou exerceram as mais diversas funções inerentes aos respectivos cargos, nomeadamente através dos guardas florestais AA e BB, nunca alguém se opôs a que, por sua iniciativa, com o aval do Estado e/ou através dos apoio deste, ininterrupta e sucessivamente, no exercício das funções em causa desde a década de 50, na tal parcela de terreno de 462 m2 fosse feito e constasse, por ela espalhado uma cobertura, tipo garagem, para estacionamento dos veículos que eram utilizados pelos guardas florestais, quer de função, quer particulares.
8) Foram também construídos na parcela vários anexos: existe arrecadação para guarda de utensílios de trabalho inerentes às funções dos guardas e alfaias agrícolas, galinheiros, onde eram criados animais para sustento de quem lá vivia, assim como uma horta e uma pocilga construída em pedra.
9) Com o apoio do Estado, ali pastavam por todo o terreno ovelhas e cabras dos ocupantes da A-32, para cuja recolha foi construído um curral.
10) A lenha da parcela de terreno era recolhida como combustível para aquecimento e o mato era roçado por tais funcionários estatais.
11) O prédio reclamado pelo A. foi implantado sobre o baldio da freguesia de ......
12) O artigo urbano 1048 da freguesia de ..... teve origem na participação para inscrição efectuada em 23/01/96.

Foram considerados não provados os seguintes factos:
I. A casa em causa nos autos foi implantada sem autorização dos compartes dos baldios e sem qualquer possibilidade de a comunidade local se opor à sua execução.
II. A casa encontra-se devoluta desde 1985.
III. O prédio em causa está implantado numa área que vem sendo detida, gerida e fruída pelos moradores da freguesia de ....., desde tempos imemoriais e sem interrupção temporal.
IV. A limpeza e manutenção da casa e rossios é feita exclusivamente pela 1ª R., através de meios que a 2ª disponibiliza, como pessoal e máquinas.
V. Sendo os compartes da freguesia de ..... que vigiam a referida casa há mais de 20 e 30 anos.
VI. O local onde foi construída a casa florestal nunca esteve submetido ao regime florestal.

5. Tendo em conta o disposto no nº 4, do art. 635º, do Código de Processo Civil, o objecto dos recursos delimita-se pelas conclusões dos mesmos.
Assim, no presente recurso, estão em causa as seguintes questões (por ordem de precedência):
- Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto à questão suscitada na apelação dos RR. da nulidade da sentença por contradição da fundamentação ao ter esta considerado que o A. não adquiriu a propriedade da parcela de terreno por usucapião (dada a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 39/76, de 19 de Janeiro, que devolveu o uso e fruição dos baldios aos compartes) e, por outro lado, ter declarado que o A. adquiriu tal propriedade por força da Lei nº 1971, de 15 de Junho de 1938;
- Falta de prova de que a parcela de terreno baldio onde foi construída a casa florestal se encontre submetida a regime florestal parcial;
- Ainda que se considere como provado que a parcela de terreno onde se encontra implantada a casa florestal dos autos se encontra submetida a regime florestal parcial, seria de seguir a orientação do acórdão da Relação de 14/01/2008, proc. nº 2071/07-1, consultável em www.dgsi.pt (acórdão-fundamento quanto à admissão da revista por via excepcional) que entendeu que tal sujeição não permitia concluir ter o Estado adquirido o direito de propriedade sobre a mesma casa.

6. Quanto à questão da alegada nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto à questão da nulidade da sentença pela pretensa contradição da respectiva fundamentação (ao ter esta considerado que o A. não adquiriu a propriedade da parcela de terreno por usucapião [dada a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 39/76, de 19 de Janeiro que devolveu o uso e fruição dos baldios aos compartes] e, por outro lado, ter declarado que o A. adquiriu tal propriedade por força da Lei nº 1971, de 15 de Junho de 1938), verifica-se que, ainda que, efectivamente, o acórdão recorrido não se tenha pronunciado sobre tal questão, o seu conhecimento ficou prejudicado pela apreciação da questão substantiva pelo mesmo acórdão.
Com efeito, considerando que a parcela de terreno na qual está implantada a casa florestal dos autos se encontra sujeita a regime florestal parcial, entendeu a Relação que, tanto a casa como o seu logradouro, pertencem ao domínio público, excluindo-se, por isso, da devolução ao uso, fruição e administração dos baldios aos compartes, determinada pelo art. 3º do D.L. nº 38/76. Mostra-se, assim, irrelevante a ponderação do fundamento invocado pelo A. da aquisição do direito de propriedade sobre aquela parcela de terreno.
Conclui-se, por isso, pela não aplicação ao caso do regime do art. 684º, nº 2, do CPC (em conjugação com o art. 615º, nº 1, alínea d), primeira parte, do mesmo código).

7. Quanto à questão da falta de prova de que a parcela de terreno baldio onde foi construída a casa florestal se encontre submetida ao regime florestal parcial alegam os Recorrentes que:
- Saber se a parcela de terreno baldio onde foi construída a casa florestal se encontra submetida ao regime florestal parcial é uma questão de facto e não de direito, ao contrário do que entendeu o acórdão recorrido (sendo esta questão distinta daquela outra que consiste em saber se o baldio da freguesia de ..... foi submetido a regime florestal parcial, a qual, de modo pouco preciso, o Recorrente tanto qualifica ora como questão de direito, ora como sendo um facto de conhecimento oficioso);
- O que importa é que o facto essencial – que a parcela de terreno baldio na qual foi implantada a casa florestal dos autos se encontra submetida ao regime florestal – não foi alegado nem provado na presente acção pelo A. como lhe competia.

Vejamos.
Não oferece qualquer dúvida que a sujeição da parcela de terreno dos autos a um determinado regime jurídico especial (o regime jurídico florestal parcial) constitui uma questão de direito e não uma questão de facto. Assim, tal questão ficou resolvida ao ter-se apurado que o terreno baldio dos autos, situado na freguesia de ....., Concelho de Monção, foi submetido ao regime florestal parcial através de Decreto do Governo, publicado no Diário do Governo nº 240, II Série, de 14/10/1944, que o reconheceu como próprio para efeitos da execução da Lei nº 1971, de 15/06/1938.
Quanto à alegada falta de alegação e prova de que, sendo tal regime florestal parcial e não total, inclua a parcela de terreno na qual está implantada a casa do guarda florestal, não têm os Recorrentes razão.
Com efeito, a distinção entre regime florestal total e regime florestal parcial, tal como consta do Decreto de 24 de Dezembro de 1901 (publicado no Diário do Governo nº 296, de 31 de Dezembro) e do Decreto de 24 de Dezembro de 1903 (publicado no Diário do Governo n.º 294, de 30 de Dezembro) não tem o significado que os Recorrentes lhe pretendem atribuir, mas antes o seguinte: o regime florestal total respeita a terrenos originariamente pertencentes ao Estado, enquanto o regime florestal parcial respeita a terrenos de entidades públicas não estatais ou de particulares (art. 26º do Decreto de 24 de Dezembro de 1901); aquela primeira modalidade “tende a subordinar o modo de ser da floresta ao interesse geral, isto é, aos fins de utilidade nacional que constituem a causa primaria da sua existencia ou criação” (§ 1º, do art. 3º do Decreto de 24 de Dezembro de 1903), ao passo que a segunda modalidade, “subordinando a existencia da floresta a determinados fins de utilidade publica, permitte comtudo que na sua exploração sejam attendidos os interesses immediatos do seu possuidor” (§ 2º do mesmo artigo).
Por outras palavras, o regime florestal do terreno dos autos não é parcial porque abranja apenas parte do terreno do baldio em causa, mas sim porque, ainda que colocado prioritariamente ao serviço do interesse geral, admite que sejam atendidos, ainda assim, os interesses de quem possuía o terreno antes da sujeição ao regime florestal.
Conclui-se, assim, não subsistirem dúvidas de que a parcela de terreno baldio onde foi construída a casa florestal e seu logradouro se encontram submetidos a “regime florestal parcial” tal como legalmente definido.

8. Resolvidas as questões anteriores, importa passar a apreciar a questão substantiva suscitada pelos RR. Recorrentes: ainda que se considere como provado que a parcela de terreno onde se encontra implantada a casa florestal dos autos se encontra submetida a regime florestal parcial, seria de seguir a orientação do acórdão da Relação de 14/01/2008, proc. nº 2071/07-1, consultável em www.dgsi.pt, que entendeu que tal sujeição não permitia concluir ter o Estado adquirido o direito de propriedade sobre a casa.
A questão de saber:
(i) Se o Estado se tornou ou não titular de um direito real (de propriedade), sujeito à disciplina do direito público, sobre os baldios submetidos a regime florestal (com reflexos na base VI da Lei n.º 1971, de 15 de Junho de 1938, que dispunha que “Os terrenos baldios, depois de submetidos ao regime florestal, entram na posse dos serviços à medida que forem arborizados ou a contar da respectiva notificação”);
(ii) Com o efeito de que as parcelas de terreno dos mesmos baldios em que foram implantadas as casas de guardas florestais ficam abrangidas pela destinação pública a que as ditas casas foram afectadas e – em consequência – encontram-se exceptuadas da devolução ao uso, fruição e administração dos compartes, nos termos do artigo 3º do DL n.º 39/76, de 19 de Janeiro;
Foi objecto de controvérsia, a qual mereceu aprofundada análise no Parecer da Procuradoria-Geral da República nº 6/99, de 24/06/99, publicado no DR, II Série, de 24/11/1999, com as seguintes conclusões:
“1ª - O Estado tornou-se titular de um direito real, sujeito à disciplina do direito público, sobre os baldios submetidos a regime florestal, com afloração na base VI da Lei n.º 1971, de 15 de Junho de 1938, que lhe confere a posse de imóveis correspondentes a esse direito.
2ª – As casas de guardas florestais edificadas pelo Estado nesses baldios, e propriedade deste, ficaram afectadas aos fins de interesse e utilidade pública implicados no regime florestal.
3ª – As parcelas de terreno dos mesmos baldios em que foram implantadas as casas de guarda tornaram-se indissociavelmente partícipes da destinação pública a que estas foram afectadas, mercê da qual, e por força do direito real público acima aludido, ficaram exceptuadas da devolução ao uso, fruição e administração dos baldios aos compartes, nos termos do artigo 3º do DL n.º 39/76, de 19 de Janeiro.”

O acórdão da Relação de 14/01/2008, proc. nº 2071/07-1, junto pelos Recorrentes, distancia-se das conclusões do Parecer da PGR, ao considerar que o regime instituído pela Lei n.º 1971, de 15/06/1938, atribuiu ao Estado a posse sobre as parcelas de terreno onde foram implantadas as casas de guardas florestais, mas não a propriedade, pelo que, em consequência, tais parcelas se encontram abrangidas pela devolução ao uso, fruição e administração dos compartes, nos termos do art. 3º, do DL nº 36/76, de 19 de Janeiro.
O acórdão recorrido decidiu em sentido oposto, acolhendo as conclusões do referido Parecer da PGR e seguindo a orientação já adoptada por este Supremo Tribunal no acórdão de 15/09/2011 (proc. nº 243/08.9TBPTL.G1.S1), consultável em www.dgsi.pt, o qual – num caso idêntico, no que aqui releva, ao caso dos autos (excepto no facto de que, neste, não cabe reapreciar a questão da aquisição por usucapião do invocado direito, uma vez que a mesma já foi decidida em sentido negativo, com trânsito em julgado) – cujo teor aqui se reproduz:

“IV.
O douto acórdão recorrido considerou que a casa do guarda-florestal, a parcela onde a mesma se encontrava implantada e o respectivo logradouro eram propriedade do Estado, em essência, com dois fundamentos:

A - Tomou em consideração os fundamentos do Parecer 6/99 do Conselho Consultivo da Procuradoria da República, onde se formularam, entre outras, as seguintes conclusões:
1ª - O Estado tornou-se titular de um direito real, sujeito à disciplina do direito público, sobre os baldios submetidos a regime florestal, com afloração na base VI da Lei n.º 1971, de 15 de Junho de 1938, que lhe confere a posse de imóveis correspondentes a esse direito.
2ª – As casas de guardas florestais edificadas pelo Estado nesses baldios, e propriedade deste, ficaram afectadas aos fins de interesse e utilidade pública implicados no regime florestal.
3ª – As parcelas de terreno dos mesmos baldios em que foram implantadas as casas de guarda tornaram-se indissociavelmente partícipes da destinação pública a que estas foram afectadas, mercê da qual, e por força do direito real público acima aludido, ficaram exceptuadas da devolução ao uso, fruição e administração dos baldios aos compartes, nos termos do artigo 3º do DL n.º 39/76, de 19 de Janeiro.

B – Aquisição por usucapião.

Vejamos:

A – Se a casa de guarda, o terreno onde a mesma se encontra implantada e o respectivo logradouro ficaram ou não abrangidos na devolução ao uso, fruição e administração dos compartes do baldio da Facha, em conformidade com o artigo 3º do DL 39/76, de 19 de Janeiro.
Os baldios são terrenos não individualmente apropriados, que, desde tempos imemoriais, servem de logradouro comum dos vizinhos de uma povoação, ou de um grupo de povoações, com vista à satisfação de certas necessidades individuais, por exemplo, apascentação do gado, a monte ou pastoreado, recolha de matos e lenhas, apanha de estrume, fabrico de carvão de sobro, extracção de barro ou outras fruições de natureza agrícola, silvícola, silvo – pastoril, proveitos análogos [1 Entre outros, Acórdãos do STJ de 16/06/2009, Processo 47/2000.S1, de 10/12/2009, Processo 313/04.2TBMIR.C1.S1. e de 25/02/2010, Processo 782/2001.S1].
Ao longo dos tempos, o regime jurídico dos baldios sofreu consideráveis mudanças, sendo tais terrenos considerados como bens colectivos (propriedade comunal ou comunitária) desde a Idade Média, mas variando a sua consideração como sendo de domínio público ou privado, não obstante, sempre de direito colectivo [2 Vide Acórdão do STJ de 25/02/2010, atrás referido].
O Código de Seabra recolheu esta tradição, qualificando as coisas, relativamente à titularidade do respectivo direito de propriedade, como públicas, comuns ou particulares (artigo 379º), distinguindo, claramente, o domínio público, o domínio privado e o domínio comum, compreendendo este último, além de certas águas, os terrenos baldios (artigos 379º e 381º).
“Não obstante esta classificação tripartida, na vigência desse Código, muitos autores sustentaram que os baldios eram propriedade (pública ou privada) das autarquias locais, enquanto outros defenderam que constituíam propriedade comunal dos vizinhos de certa circunscrição ou parte dela [3 Parecer PGR, de 24/06/99, citado]”.
Entretanto o Código Administrativo veio consagrar expressamente, no parágrafo único do seu artigo 388º, a prescritibilidade dos baldios, com a consequente admissibilidade de aquisição do respectivo domínio por usucapião, em termos que configuram uma verdadeira interpretação autêntica do direito anterior, considerando-se, por isso, de aplicação retroactiva, nos termos do artigo 8º do Código Civil de Seabra [4 Ac. STJ de 16/06/2009, de 10/12/2009, citados].
Ainda antes disso, no domínio do Código de Seabra, cada vez, um maior número de vozes autorizadas, nomeadamente o insigne Dr. Cunha Gonçalves [5 Tratado de Direito Civil, Volume III, página 145], se inclinavam, no sentido de considerar que os baldios também podiam ser adquiridos, mediante a prescrição aquisitiva ou positiva que era regulada nos artigos 517º e seguintes desse diploma legal, «para favorecer o incremento da produção agrícola».
Neste quadro é publicada a Lei n.º 1971, de 15 de Junho de 1938 – Lei do povoamento florestal – que sujeitou especificamente determinados baldios ao regime florestal.
A Base VII dessa Lei alude às casas de guarda, ao estipular que dos projectos definitivos, além da «área a arborizar e a reservar para pastagens, viveiros e culturas», conste, entre outros aspectos, a «construção de caminhos, sedes de administração, casas de guarda, postos de vigia, montagem de rede telefónica», podendo as construções «que tenham de preceder os trabalhos de urbanização constar de projectos especiais.
Por sua vez, considerava a Base VI que os terrenos baldios, depois de submetidos ao regime florestal, entram na posse dos serviços à medida que forem arborizadas ou a contar da respectiva notificação.
Depois de uma exaustiva análise desta Lei n.º 1971, conclui o citado parecer da PGR que “o regime esboçado aponta, pois, no sentido de um direito real do Estado sobre os baldios sujeitos ao regime florestal funcionalmente dotado de grande estabilidade e de vincadas características de exclusividade e oponibilidade a terceiros, cujo conteúdo se aproxima, quando não se identifica, em certos dos seus vectores, com o complexo de poderes e de direitos próprios do titular da propriedade”.
“Determinadas coisas, inclusive, aí existentes, encontram-se inequivocamente no domínio (privado) do Estado; a floresta, plantada pelos serviços florestais; as construções de várias espécies aí edificadas e custeadas pelos serviços estaduais, com relevo para as casas de guarda”.
“Sucede, ademais, neste caso, que o direito real do Estado sobre o baldio, considerado estritamente como objectivado na parcela de terreno em que a casa está implantada, se revela particularmente intenso nos apontados caracteres da exclusividade e da oponibilidade, fruto da afectação ou destinação da casa aos fins de utilidade e interesse público implicados no regime florestal, de que a parcela se tornara, por sua natureza, indissociavelmente participe”.
No domínio do actual Código Civil, foi suprimida a categoria legal de coisas comuns, pelo que se passou a entender genericamente que os baldios devem ser concebidos como coisas particulares, pertencentes ao património das autarquias, pelo que tais bens eram susceptíveis de apropriação e de usucapião (antiga prescrição aquisitiva).
Isto até à entrada em vigor do DL n.º 39/76, que se propôs proceder à entrega dos terrenos baldios às comunidades que deles foram desapossadas, em cujo artigo 2º se declarou que os terrenos baldios se encontram fora do comércio jurídico [6 O Código Civil de 1966, referindo-se às coisas fora do comércio, caracteriza-as como aquelas que não podem ser objecto de direitos privados (artigo 202º)], não podendo, no todo, ou, em parte, ser objecto de apropriação privada, incluída a usucapião.
Salientava-se, porém, neste diploma que ficavam, no entanto, por resolver as numerosas questões decorrentes da apropriação de terrenos baldios por parte dos particulares.
Mas nada disse o citado DL 39/76 quanto às casas dos guardas florestais, postos de vigia e outras instalações, apesar dos guardas florestais continuarem no exercício das suas funções, usando a casa de função que o Estado mandara construir, muito para além da entrada em vigor desse diploma, como sucedeu com a casa aqui em causa que assim permaneceu até 1994.
Porém, competindo aos guardas florestais fazer o serviço de polícia das matas e vigiando, de dia e de noite, a área florestal a seu cargo, o Estado proporcionava-lhes as denominadas casas florestais, pelo que, como todas elas estavam adstritas ao fim público de vigilância e preservação das florestas, poder-se-á concluir que o legislador pretendeu que continuassem afectas a essas finalidades, mantendo-se na posse e propriedade do Estado.
Como se considerou no acórdão recorrido, a prossecução das finalidades intencionadas com a devolução dos baldios não exigia a entrega de tais casas ou instalações. Com efeito, a tão vastas áreas de terrenos baldios não adiantam, nem atrasam superfícies da ordem dos 300 m.2. Mais, não se vislumbra que uso iriam os compartes dar a essas instalações, designadamente aos postos de vigia.
Como se referiu, porque com o DL 39/76, ficavam por resolver as numerosas questões decorrentes da apropriação de terrenos baldios por parte dos particulares, assistiu-se, nesta intencionalidade, à publicação do DL n.º 40/76, mediante o qual se declararam “anuláveis a todo o tempo” os actos ou negócios jurídicos que tenham como objecto a apropriação de terrenos baldios ou parcelas de baldios por particulares, bem como as subsequentes transmissões que não forem nulas, nos termos de direito (artigo 1º, n.º 1), pelo que o regime por ele instituído não é aplicável às casas dos guardas florestais, respectivos assentos e logradouros.
Também a disposição transitória do artigo 39º da Lei 68/93, de 4 de Setembro, (Lei dos Baldios), com a redacção introduzida pela Lei 89/97, de 30 de Junho, teve em vista regularizar e legalizar construções e empreendimentos privados ilegais, em face dos DL n.os 39/76 e 40/76, sendo, portanto, igualmente inaplicável às casas de guardas florestais, às parcelas de terrenos em que foram edificadas e aos respectivos logradouros.
Pelo que se deixa exposto, o legislador, com a devolução dos baldios, visou permitir às populações darem o uso que ancestralmente davam aos terrenos comunais, ou seja, retirarem deles as vantagens destinadas à satisfação das necessidades diárias da comunidade, designadamente ali apascentarem animais, procederem ao corte de lenha, ao roço de mato e à recolha de caruma e folhas das árvores.
Para tanto, os compartes não carecem das casas florestais, nem dos seus logradouros, pois o uso e fruição dos baldios não passam pela utilização de tais casa e logradouro.
Acresce que, não tendo o Estado querido abandonar as áreas florestadas, não integradas nos baldios, pretendeu também manter as casas dos guardas florestais, dado que as áreas florestadas, sob vigilância desses guardas, não se confundiam com as áreas dos baldios.
Tal como se sustenta, no citado Parecer da Procuradoria da República n.º 6/99, de 24/06/1999, publicado no DR, II Série, n.º 274, de 24/11/1999, poder-se-á concluir:
O Estado tornou-se titular de um direito real, sujeito à disciplina do direito público, sobre os baldios submetidos ao regime florestal.
E as casas de guardas florestais edificadas pelo Estado, nesses baldios, são de sua propriedade, ficando afectas aos fins de interesse e utilidade pública implicados no regime florestal.
Por sua vez, as parcelas de terreno dos mesmos baldios em que foram implantadas tais casas ficaram indissociavelmente ligadas à destinação pública a que estas ficaram adstritas. E, por isso, devem considerar-se exceptuadas da devolução dos baldios ao uso, fruição e administração dos compartes, determinada pelo artigo 3º do DL nº 39/76, de 19 de Janeiro.
Reportando-nos ao caso sub judice, o prédio em causa foi construído pelo Estado Português, tendo a sua construção terminado em 1952.
Na altura, o terreno, onde foi construído, encontrava-se submetido ao Regime Florestal e integrado no Perímetro Florestal de Entre Lima e ...., por força de acto legislativo publicado no Diário do Governo, II Série, de 10 de Maio de 1945.
Esta casa foi construída, nomeadamente, para albergar os guardas florestais que ali prestavam serviço, bem como as respectivas famílias.
Assim, tendo esta casa sido construída pelo Estado a expensas suas, visando alojar os guardas florestais e a suas famílias, com o desiderato de manter uma permanente vigilância da respectiva área florestada, a mesma é propriedade do Estado, ficando a parcela em que a mesma foi implantada indissociavelmente ligada à destinação pública a que a casa ficou adstrita.
Por isso mesmo, encontrando-se o baldio da Facha, submetido ao regime florestal, não ficaram a aludida casa do guarda-florestal, a parcela em que se encontra implantada e respectivo logradouro abrangidos na devolução, ao uso, fruição e administração dos compartes do baldio da Facha.
Tanto basta para que se tenha de considerar a procedência do douto acórdão recorrido, ainda que o 2º [aquisição da parcela do terreno e do respectivo logradouro por usucapião] dos fundamentos em que se escudou o acórdão recorrido possa improceder.
(…)
Concluindo:
1 - Os baldios são terrenos não individualmente apropriados, que, desde tempos imemoriais, servem de logradouro comum dos vizinhos de uma povoação, ou de um grupo de povoações, com vista à satisfação de certas necessidades individuais, por exemplo, apascentação do gado, a monte ou pastoreado, recolha de matos e lenhas, apanha de estrume, fabrico de carvão de sobro, extracção de barro ou outras fruições de natureza agrícola, silvícola, silvo – pastoril ou proveitos análogos.
2 - O Estado tornou-se titular de um direito real, sujeito à disciplina do direito público, sobre os baldios submetidos a regime florestal, com afloração na base VI da Lei n.º 1971, de 15 de Junho de 1938, que lhe confere a posse de imóveis correspondentes a esse direito.
3 - As casas de guardas florestais edificadas pelo Estado nesses baldios, e propriedade deste, ficaram afectadas aos fins de interesse e utilidade pública implicados no regime florestal.
4 – As parcelas de terreno dos mesmos baldios em que foram implantadas as casas de guarda tornaram-se indissociavelmente partícipes da destinação pública a que estas foram afectadas, mercê da qual, e por força do direito real público acima aludido, ficaram exceptuadas da devolução ao uso, fruição e administração dos baldios aos compartes, nos termos do artigo 3º do DL n.º 39/76, de 19 de Janeiro.
6 - O legislador, com a devolução dos baldios, visou permitir às populações darem o uso que ancestralmente davam aos terrenos comunais, ou seja, retirarem deles as vantagens destinadas à satisfação das necessidades diárias da comunidade, designadamente ali apascentarem animais, procederem ao corte de lenha, ao roço de mato e à recolha de caruma e folhas das árvores., não carecendo, consequentemente, os compartes das casas florestais, nem dos seus logradouros, pois o uso e fruição dos baldios não passam pela utilização de tais casa e logradouro.
7 – Aliás, não tendo o Estado querido abandonar as áreas florestadas, não integradas nos baldios, pretendeu também manter, como manteve, as casas dos guardas florestais, dado que as áreas florestadas, sob vigilância desses guardas, não se confundem com as áreas dos baldios.
8 – Encontrando-se o baldio da Facha, submetido ao regime florestal, não ficaram a casa de guarda, o terreno onde a mesma se encontra implantada e o respectivo logradouro abrangidos na devolução ao uso, fruição e administração dos respectivos compartes, em conformidade com o artigo 3º do DL 39/76, de 19 de Janeiro.
(…)” [negritos nossos]

Afiguram-se de acolher as conclusões do citado acórdão deste Supremo Tribunal, que se mostram inteiramente válidas para a resolução do caso sub judice. Uma vez que o acórdão recorrido se orientou de acordo com tais conclusões, não merece o mesmo qualquer censura pelo que a casa do guarda-florestal em causa nos autos, que foi implantada sobre o terreno baldio de ....., assim como os anexos de apoio a tal casa e respectivo logradouro, têm de considerar-se pertencentes ao domínio público e afectos a fins de interesse público, exceptuando-se da devolução ao uso, fruição, e administração dos baldios aos compartes, determinada pelo art. 3º do DL nº 38/76 de 19 de Janeiro.

9. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido.


Custas pelo Recorrente.


Lisboa, 13 de Setembro de 2018


Maria da Graça Trigo (Relatora)


Maria Rosa Tching


Rosa Maria Ribeiro Coelho