Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1129/11.5TBCVL-C.C1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONSUMIDOR
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
DIREITO DE RETENÇÃO
HIPOTECA
Data do Acordão: 07/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR - VERIFICAÇÃO DOS CRÉDITOS / IMPUGNAÇÃO DA LISTA DE CREDORES RECONHECIDOS.
DIREITO DO CONSUMO - CONSUMIDOR.
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAS DAS OBRIGAÇÕES / DIREITO DE RETENÇÃO.
Doutrina:
- António Pinto Monteiro, “A contratação em massa e a protecção do consumidor numa economia globalizada”, R.L.J., Ano 139, Março-Abril 2009, 221/235.
- Calvão da Silva, Compra E Venda De Coisas Defeituosas, 2001, 112/113.
- Carlos Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, 2005, 84/87.
- Fernando Dias Simões, “O Conceito De Consumidor No Direito Português”, 11/12, in SSRN Eletronic Journal – September 2011.
- Jorge Morais Carvalho, Manual De Direito Do Consumo, 3.ª edição, 17/23.
- Menezes Cordeiro, “O anteprojecto de Código do Consumidor”, in O Direito, Ano 138.º, IV, 685/715.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 755.º, N.º 1, ALÍNEA F).
D.L. N.º 24/2014, DE 14 DE FEVEREIRO: - ARTIGO 2.º, N.º 1.
D.L. N.º 67/2003 DE 8 DE ABRIL.
D.L. N.º 84/2008 DE 21 DE MAIO.
Legislação Comunitária:
DIRECTIVA 1999/44/CE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 17 DE NOVEMBRO DE 2015;
-DE 16 DE FEVEREIRO DE 2016, IN WWW.DGSI.PT ; MAIS RECENTEMENTE O ACÓRDÃO DE 24 DE MAIO DE 2016, PROC. N.º 3374/07.9TBGMR-C.G2.S1, IN WWW.DGSI.PT .
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AUJ N.º 4/2014, DE 20 DE MARÇO DE 2014.
Jurisprudência Internacional:
JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-ACÓRDÃOS BERTRAND, SHEARSON LEHMAN HUTTON, BENINCASA E GABRIEL E FROUKJE FARBER, DE 4 DE JUNHO DE 2015, (CONSULTÁVEIS IN HTTP:/CURIA.EUROPA.EU ).
Sumário :
I. O AUJ n.º 4/2014, de 20 de Março de 2014, não uniformizou o conceito de consumidor, dali não decorrendo a dimensão normativa a atribuir, sendo certo que se vislumbra, pelo texto do Aresto que eventualmente se tivesse querido conferir um sentido estrito, isto é, afastando do seu âmbito apenas as situações em que a actuação vise fins que se incluam no âmbito da actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional do contratante.

II. A Lei n.º 24/96 define no seu artigo 2º, nº1, consumidor como “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.”.

III. Por seu turno o DL 24/2014, de 14 de Fevereiro ao transpor a Directiva 2011/83/EU do Parlamento e do Conselho, de 25.10.2011, que, no artigo 2.º, define, para efeitos dela mesma “Consumidor: qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue com fins que não se incluam no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional;», veio a fazer constar como consumidor “a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”.

IV. Constituindo o segmento normativo a que alude o artigo 755º, nº1, alínea f) do CCivil, uma disposição que em termos materiais visa a tutela do consumidor, há que ter em atenção, na análise do caso concreto se estamos ou não em presença dos elementos que nos permitam concluir se estamos ou não em presença de um contraente com as apontadas características.

V. No caso, apesar de se ter apurado que o promitente comprador cedeu o uso do imóvel a uns amigos que o utilizam para fins habitacionais, esta «cedência» configura a aplicação do objecto a um fim não profissional, consubstanciando um uso privado do sujeito, sendo pois, nesta asserção, consumidor.

APB

Decisão Texto Integral:

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I Por apenso aos autos de insolvência de W, LDA, veio o Sr. Administrador da Insolvência apresentar a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos.

 

A sociedade credora P, SA, veio, ao abrigo do preceituado no art. 130º do CIRE, impugnar a existência, quantificação e qualificação do crédito reconhecido a J, sustentando no essencial, que o mencionado credor não tem direito ao crédito por si reclamado, dado não ter provado a sua existência e limitando-se a fazer uma mera alegação de serviços de advocacia prestados à insolvente e que, a existir tal crédito, o que não concede, o mesmo não deve ser reconhecido como crédito privilegiado, pois não estamos perante uma situação de incumprimento definitivo do contrato promessa de dação em cumprimento, mas antes perante mora no cumprimento do contrato a que se aludiu. Por outro lado, o mencionado credor não tem direito de retenção sobre a fracção objecto do referido contrato promessa, devendo além do mais, o negócio causa datado de Outubro de 2010, ser resolvido, por consubstanciar um negócio feito com intuito de prejudicar a massa insolvente. Concluiu pedindo que o dito crédito reclamado, no montante que em concreto resultar da prova a produzir, seja qualificado como crédito sujeito a “condição suspensiva” e que, em caso de recusa do cumprimento do dito contrato pelo Exmo. Administrador de Insolvência, o crédito deverá ser reconhecido como comum.

O credor J apresentou resposta à impugnação, concluindo pela improcedência da mesma.

 

Os credores/reclamantes A e a sociedade comercial C, Lda apresentaram impugnação à referida lista sustentando, no essencial, que o BPN não liquidou, como devia, a garantia bancária a que se encontra adstrito, o que deve ser tido em consideração no rateio final. Acrescentam que o contrato promessa celebrado com a sociedade insolvente foi definitivamente incumprido, pelo que os créditos reconhecidos não podem ficar sujeitos a condição suspensiva, conforme vem referido na lista do Exmo. Administrador de Insolvência.

Na tentativa de conciliação, os credores P, S.A. e J fixaram, por acordo, o valor do crédito reclamado por este último no montante de € 75.000,00, posição subscrita pelo Sr. Administrador de Insolvência e sem oposição da Comissão de Credores; quanto ao demais, designadamente à natureza do crédito J, não foi possível a obtenção de acordo; o credor A informou já se encontrar pago por força do accionamento da competente garantia bancária, tal como a credora “C, Lda”, tendo a instituição bancária pago a totalidade dos valores em causa a ambos, tendo sido determinada a exclusão de tais créditos da lista definitiva de credores apresentada pelo Sr. Administrador de Insolvência.

Foi homologada a transacção a que se aludiu, na exacta medida do seu conteúdo, ou seja, na fixação do montante do dito crédito.

Proferido despacho saneador foram julgados reconhecidos, nos termos do artigo 136º, nº 4 do CIRE, os créditos incluídos na lista de credores apresentada pelo sr. Administrador de Insolvência e não impugnados, relegando-se para sentença a sua graduação, atento o disposto no nº 7 do mesmo normativo legal.

 

Proferida a sentença sobre a verificação e graduação de créditos, nela foi decidido a verificação dos créditos tidos como impugnados, com a subsequente graduação de todos os créditos reconhecidos.

Dessa sentença interpôs recurso a sociedade Parvalorem, SA, o qual veio a ser julgado improcedente, com a confirmação da sentença recorrida.

Inconformada com o Acórdão da Relação de Coimbra, recorreu a sociedade P, SA, agora de Revista excepcional, por oposição de julgados, a qual veio a ser admitida por decisão singular de fls 423.

Apresentou a seguinte síntese conclusiva:

- O presente recurso vem interposto do Acórdão que julgou improcedente o recurso interposto pela Credora P, SA e confirmou a Sentença recorrida, a qual reconheceu como privilegiado o crédito de € 75.000.00 reclamado por J por gozar de direito de retenção sobre o bem imóvel identificado na verba 11 do Auto de Apreensão.

- O Tribunal de 1ª instância julgou verificados os créditos identificados na lista de créditos elaborada pelo Sr. Administrador de Insolvência e reconheceu como privilegiado o crédito de € 75.000,00 reclamado por J, por gozar de direito de retenção sobre a verba nº11 do auto de apreensão de bens. Por dela não concordar, a Credora P veio interpor recurso de apelação pugnando pela falta de verificação da qualidade de consumidor do promitente comprador à luz do entendimento perfilhado no Acórdão Uniformizador nº 4/2014.

- 0 Tribunal a quo entendeu, no entanto, que o Credor J reveste a qualidade de consumidor nos termos previstos no nº1 do artigo 2º da Lei nº24/96, de 31 de Julho.

- Salvo o devido respeito e melhor entendimento, a Credora Reclamante não pode deixar de discordar com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, a qual vai ao desencontro com a decisão chegada por outros julgados, razão pela qual interpõe o presente recurso, uma vez que o crédito reclamado pelo Credor J não beneficia de direito de retenção nos termos previstos no artigo 755º, nº1, al F) do CCivil.

- O direito de retenção invocado pelo Credor J vem previsto no artigo 755º, nº1, ai. f) do CCivil segundo o qual são pressupostos do reconhecimento do direito de retenção: a existência de uma promessa de transmissão ou constituição de direito real; a entrega da coisa objecto do contrato-promessa; a titularidade, por parte do beneficiário, de um crédito sobre a outra parte decorrente do incumprimento definitivo do contrato promessa.

- Foi alvo de uma acesa discussão jurisprudencial a questão de saber se, no âmbito de um processo de insolvência, a recusa de cumprimento do contrato promessa de compra e venda com eficácia obrigacional pelo Administrador de Insolvência, no exercício do seu direito de opção, constituía ou não um ato ilícito, verificando-se a tradição da coisa, uma vez que esta hipótese não se mostra contemplada no Código de Insolvência.

- 0 Supremo Tribunal de Justiça proferiu Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº4/2014, de 20 de Março de 2014, o qual fixou a seguinte jurisprudência: «No âmbito da graduação de créditos em insolvência, o consumidor promitente-comprador, em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve cumprimento do negócio por parte do administrador de insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º, n.º1, ai. f) do CCivil».

- Para o Supremo Tribunal de Justiça, a omissão na lei relativamente ao tratamento jurídico do contrato promessa com eficácia meramente obrigacional e com tradição da coisa é ultrapassado com recurso à conjugação dos artigos 106º, nº2 e 104º, nº1 do CIRE, pelo que o promitente comprador poderá exigir o cumprimento do contrato, sob pena de o respectivo incumprimento originar o direito de retenção a que se reporta o artigo 755º, nº1, al. f) do CCivil.

- Contudo, e partindo da fundamentação sustentada no AUJ nº4/2014, no caso do contrato promessa com eficácia obrigacional e com tradição da coisa, o reconhecimento do direito de retenção em processo de insolvência ocorre, para além da verificação dos pressupostos previstos no artigo 755º, nº1, ai. f) do CCivil, exclusivamente quanto ao promitente-comprador que seja simultaneamente consumidor.

- O entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça assenta nas várias alterações legislativas que consagraram o direito de retenção previsto no artigo 755º, nº 1, al. f) CCivil «O DL nº 236/80 de 18 de Julho veio reforçar a posição jurídica do promitente-comprador nomeadamente no âmbito das transacções de imóveis para habitação, conferindo-lhe em caso de incumprimento da outra parte e em alternativa ao direito ao sinal em dobro, também o valor da coisa desde que a mesma lhe tivesse sido transmitida encontrando-se pois em seu poder. Tal desiderato surge corporizado na alteração então introduzida ao nº2 do artigo 442º do Código Civil. Por seu turno, o DL 379/86 de 11/11, além de haver modificado o normativo em análise veio ainda, coerentemente com tal alteração, elencar no âmbito dos titulares do “direito de retenção” a que se reporta o artigo 755º do Código Civil, o do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição do direito sobre a coisa a que se reporta o contrato prometido, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte de harmonia com o artigo 442º (então modificado). O Diploma de 1986 explica as razoes que estiveram na base da alteração introduzida. A opção legislativa no conflito entre credores hipotecários e os particulares consumidores, concedendo-lhes o “direito de retenção” teve e continua a ter uma razão fundamental: a protecção destes últimos no mercado da habitação; na verdade, constituem a parte mais débil que por via de regra investem no imóvel as suas poupanças e contraem uma divida por largos anos, estando muito menos protegidos do que o credor hipotecário (normalmente a banca) que dispõe regra geral de aconselhamento económico, jurídico e logístico que lhe permite prever com maior segurança os riscos que corre caso por caso e ponderar uma prudente selectividade na concessão de crédito. Justificou-se destarte que na linha de orientação que vinha já do DL 236/80, a que acima fizemos referência, o mais recente Diploma que alterou o regime do contrato-promessa. tenha vindo balizar o âmbito e o funcionamento do “direito de retenção” nestes casos».

- As razões subjacentes à decisão tomada pelo Supremo Tribunal de Justiça em proteger o promitente comprador consumidor, concedendo-lhe direito de retenção, assentam na necessidade de proteger o consumidor no mercado da habitação, sendo a parte mais débil no contrato promessa de compra e venda.

- A alteração ao Código Civil, com a inclusão do direito de retenção previsto no artigo 755º, nº1, al. f), visa a protecção do consumidor que adquire um bem para habitação, de forma a proteger um direito constitucionalmente previsto no artigo 65º da Constituição da República Portuguesa: o direito à habitação.

- Dos factos dados como provados nos presentes autos, o bem imóvel objecto do contrato promessa não se destinou à habitação do promitente comprador, o qual cedeu o bem imóvel a uns amigos que a utilizam para fins habitacionais, pelo que o promitente-comprador não habita o bem imóvel objecto do contrato promessa, razão pela qual a ratio da protecção da habitação conferida pela garantia prevista no artigo 755º, nº1, al. f) do CCivil deixa de se verificar no presente caso.

- 0 direito de retenção previsto no artigo 755º, nº1, al. f) do CCivil visa proteger o consumidor que adquire um bem imóvel para sua habitação própria de forma a satisfazer as suas necessidades e familiares. Como tal, a ratio da norma consagrada no Código Civil não permite conferir direito de retenção ao crédito reclamado pelo Credor J, uma vez que o referido crédito não foi despendido para adquirir a sua habitação, nem para satisfazer as suas necessidades e de seus familiares.

- Nos termos do disposto no artigo 2º, n.º1 do DL nº 24/96, de 31 de Julho consumidor é aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios. Sucede, porém, que o Tribunal a quo adopta o conceito amplo de consumidor previsto na norma supra referida para atribuir a garantia de direito de retenção ao crédito reclamado pelo Credor J.

- 0 conceito de consumidor, para efeitos de atribuição do direito de retenção previsto no artigo 755º, nº1, al. f) do CCivil, deve ser entendido no seu sentido estrito e não amplo, conforme entendimento perfilhado no Acórdão-fundamento do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Novembro de 2014.

- Ensina o Professor Calvão da Silva, em Venda de Bens de Consumo, 2010, que estamos perante uma “consagração da noção de consumidor em sentido estrito, a mais corrente e generalizada na doutrina e nas Directivas comunitárias: pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado - uso pessoal, familiar ou doméstico, na fórmula da al a) do artigo 2º da Convenção de Viena de 1980 sobre a compra e venda internacional de mercadorias, inspiradora da Directiva I999/44/CE, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares (...)”.

- 0 bem imóvel objecto do contrato promessa em causa não se destinou a uso próprio, familiar ou doméstico do promitente adquirente J, o qual aliás cedeu o imóvel a uns amigos. O Tribunal a quo não sabe, nem pode saber uma vez que não consta dos factos, que o bem imóvel objeto do contrato promessa não se destinou à sua revenda ou uso profissional, uma vez que o promitente comprador Jorge Gaspar nunca chegou sequer a habitar o imóvel.

- Sabe-se, porque provado, que o promitente comprador Jorge Gaspar fez obras no bem imóvel de modo a torna-la habitável tendo, posteriormente, cedido o mesmo a uns amigos que a utilizam para fins habitacionais. Mas não se sabe a que título o referido bem imóvel foi cedido!!!

- Compete ao Credor reclamante e promitente comprador, nos termos do disposto no artigo 342º, nº 1 do CC, alegar e provar a sua qualidade de consumidor, o que não sucedeu, uma vez que o Credor J não alegou na sua reclamação de créditos ser um consumidor, nem tão pouco provou essa qualidade, antes pelo contrário, foram provados factos que apontam para a ausência da qualidade de consumidor, nomeadamente quando o Credor efectuou obras no imóvel para o tornar habitável e o cedeu a terceiros para uso.

- Ao contrário do entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, estamos em crer que não se encontra alegado nem demonstrado que o promitente-comprador seja consumidor para efeitos de aplicação do direito de retenção previsto no artigo 755º, nº1, al. f) do CCivil.

- 0 direito de retenção previsto no artigo 755º, nº1, al. f) do CCivil foi consagrado para proteger a parte mais débil que investiu no imóvel prometido as suas poupanças, estando os mesmos mais desprotegidos que o credor hipotecário.

- No caso sub judice, o promitente-comprador não preenche o requisito de consumidor no sentido em que o bem imóvel prometido não se destinou à sua habitação, pelo que o mesmo não pode usufrui de uma garantia que tem em vista a protecção da habitação. Este é o verdadeiro sentido do AUJ nº4/2014, ou seja, atribuir o direito de retenção no âmbito do mercado de habitação.

- Com efeito, o recorrido credor reclamante e promitente comprador não alegou ou provou aquela qualidade de consumidor ~ antes até alegando factos que apontam para a ausência dessa qualidade, nomeadamente quando no seu requerimento de impugnação da lista de credores, na posse da mencionada fracção, o reclamante contratou e fez serviços de limpeza geral e passou a anunciar a revenda da mesma, mostrando-a a potencias compradores. (...) Este facto aponta para a não verificação da qualidade de consumidor do referido contrato promessa em causa.'" -Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Outubro de 2014.

- No caso subjudice, para além de o Credor Jorge Batista não alegar, nem provar a sua qualidade de consumidor, resultando dos autos factos provados que afastam essa qualidade, nomeadamente, o facto de o bem imóvel prometido estar a ser habitado por terceiros, que não o credor reclamante.

- Pelo exposto, é forçoso concluir que o bem imóvel prometido não se destinou à habitação própria do Credor Reclamante J e, como tal, não se mostram preenchidos os requisitos necessários para atribuição do direito de retenção previsto no artigo 755º, nº1, ai. f) do CCivil.

- Como tal, o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo deverá ser revogado, uma vez que não se mostra preenchido o requisito necessário para a atribuição do direito de retenção previsto no artigo 755º, nº1, al. f) do CC ao Credor J, devendo ser concedido provimento ao presente recurso, e o crédito do Credor J no montante de € 75.000,00 ser qualificado como crédito comum.

Não foram apresentadas contra alegações.

II Põe-se como questão solvenda no âmbito da presente Revista, a de saber se o conceito de consumidor, para os efeitos de atribuição do direito de retenção a que alude o normativo inserto no artigo 755º, nº1, alínea f) do CCivil, corresponde à pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado, de modo a satisfazer as suas necessidades pessoais e familiares, não abrangendo quem os obtém para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa, competindo ao promitente comprador o ónus da alegação e prova daquela qualidade, Acórdãos fundamento do STJ de 25 de Novembro de 2014 e de 14 de Outubro de 2014, em contradição com o proferido nos autos, como decidido foi pelo despacho de fls 423.

As instâncias declaram assente a seguinte factualidade:

1. Por sentença datada de 01 de Setembro de 2011 foi declarada a insolvência de “W. Lda”.

2. A sociedade insolvente “W, Lda” tinha como objecto social a exploração e gestão de imóveis próprios ou alheios, promoção de projectos imobiliários, administração de condomínios, a compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, bem como a prestação de serviços relacionados com os mesmos, designadamente com a aquisição, venda, exploração, gestão financeira ou administrativa.

3. Por documento escrito denominado “contrato promessa”, datado de 30 de Novembro de 2010, a sociedade insolvente confessou-se devedora, nessa data, ao credor reclamante J, da quantia de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros), referente a honorários por serviços de advocacia que este até então lhe prestara.

4. Pelo mesmo documento a sociedade insolvente obrigou-se a pagar ao credor reclamante acima aludido a quantia mensal de €3.000,00 (três mil euros), acrescida do respectivo IVA, pelos serviços que este lhe viesse a prestar no patrocínio das acções judiciais elencadas nas várias alíneas da cláusula primeira do acordo junto nos autos a fls. 194 a 198, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

5. No mencionado acordo a sociedade insolvente e o credor reclamante J acordaram que: “Atentas as dificuldades financeiras que a sociedade insolvente se debate e a falta de disponibilidade para fazer face ao pagamento de honorários devidos ao credor reclamante J, quer dos correspondentes aos serviços já prestados e ainda não pagos, quer os respeitantes aos serviços que ulteriormente este lhe prestar (…), caso aquela não consiga liquidar, até ao final de Janeiro de 2011, os valores que até a essa dará forem devidos ao credor reclamante, a sociedade insolvente dá e promete dar-lhe, em cumprimento de tal obrigação pecuniária, (…) a fracção autónoma designada pela letra “L” destinada a habitação, correspondente ao segundo andar esquerdo frente, identificado por T3B, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na …, descrito na Conservatória do Registo Predial da … sob o nº …. Da fracção autónoma atrás identificada faz ainda parte um lugar de estacionamento na cave, designado por estacionamento “B”, cfr. cláusula 4ª a).

6. Mais acordaram que a sociedade insolvente dá e promete dar-lhe, em cumprimento de tal obrigação pecuniária, (…) “todo o mobiliário (mobílias dos quartos, sala e cozinha) objectos de decoração, electrodomésticos e equipamento de ar condicionado existentes na fracção autónoma anteriormente aludida ”, cfr. cláusula 4ª b).

7. Mais acordaram atribuir o valor de €125.000,00 (cento e vinte e cinco mil euros) à fracção autónoma e €6.000,00 (seis mil euros) aos bens móveis, estabelecendo ainda que, caso a condição a que o contrato ficou sujeito se verificasse (o não pagamento, em dinheiro, dos honorários pelos serviços prestados até Janeiro de 2011), o mesmo (contrato) tornar-se-ia, imediata e plenamente, eficaz como contrato definitivo no que concerne aos bens móveis e como promessa de dação em cumprimento no que tange à fracção autónoma.

8. A sociedade insolvente não pagou ao credor J até ao final de Janeiro de 2011, ou ulteriormente até à presente data, o montante que se confessou devedora ou sequer parte do mesmo.

9. No âmbito do acordo supra aludido a sociedade insolvente e o credor reclamante J acordaram ainda que, verificando-se a condição (o não pagamento da aludida quantia pecuniária) este entraria, a partir do termo do prazo previsto para o pagamento da quantia a que se aludiu, na posse plena e exclusiva da fracção autónoma supra identificada, podendo por si ou através de terceiros, começar a usá-la como verdadeiro proprietário, para os fins a que a mesma se destina, podendo cedê-la, arrendá-la ou utilizá-la directamente, requerer contadores de água, electricidade e gás, fazer obras, adquirir e instalar mobiliário, electrodomésticos e outros equipamentos e, dum modo geral, praticar todos os actos que reputar necessários ao seu uso e fruição.

10. Mais acordaram que, no caso de se verificar a condição, a sociedade insolvente obriga-se a celebrar a escritura de dação em pagamento da fracção autónoma supra identificada, impreterivelmente até ao final do mês de Maio de 2011, devendo para o efeito proceder à sua marcação e avisar este da respectiva data, hora e local com uma antecedência mínima de 10 dias.

11. A sociedade insolvente não procedeu à marcação da aludida escritura no prazo para o efeito fixado no referido acordo, nem ulteriormente.

12. Em data não concretamente determinada mas antes da declaração de insolvência o legal representante desta entregou ao credor J as chaves de acesso à fracção autónoma objecto do acordo a que se aludiu.

13. A partir de então o credor reclamante, J, já efectuou diversas obras no interior da referida fracção autónoma de modo a torná-la habitável tendo, nomeadamente, procedido à ligação dos radiadores do aquecimento central, das torneiras das casas de banho e da cozinha e ligação da caldeira para aquecimento das águas.

14. O credor reclamante J cedeu a mencionada fracção autónoma a uns amigos que a utilizam para fins habitacionais.

15. O Administrador de Insolvência optou pelo não cumprimento do contrato promessa acima aludido.

O Acórdão recorrido sustentou a sua posição no seguinte raciocínio:

«(…) Contrariamente e em oposição a tal decisão, a Recorrente defende que o crédito reclamado pelo credor J não beneficia de direito de retenção, nos termos do artº 755º, nº 1, al. f) do CC.

É, pois, este o cerne do presente recurso e que cumpre apreciar (qualificação do crédito do referido credor). 

Como bem resulta quer da sentença recorrida quer das alegações de recurso apresentadas, o que opõe as duas teses em confronto é a interpretação ou o entendimernto que aí se faz do teor do Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2014, de 20 de Março de 2014, publicado no DR, 1ª série, nº 95, de 19 de Maio de 2014.

No nosso modesto entendimento afigura-se que no referido Acórdão, onde foi concedida revista com revogação do acórdão da Relação então recorrido e decidindo que em seu lugar ficasse, na parte impugnada, a vigorar o decidido em 1ª instância (nos seguintes termos: com o produto da venda das frações ... sejam pagos os créditos graduados segundo a seguinte ordem: 1º - as dívidas da massa insolvente...; 2º - do remanescente dar-se-á pagamento ao crédito do credor que goza do reconhecido direito de retenção; 3º - do remanescente dar-se-á pagamento ao credor que goza de hipoteca sobre tais imóveis; ...), é muito claro no sentido de que ‘no âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção, nos termos do estatuído no artº 755º, nº 1, al. f) do C.Civil’.

Este consumidor, como resulta do artº 2º, nº 1 da Lei nº 24/96, de 31/07, alterada e republicada pela Lei nº 47/2014, de 28/07, é ‘todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios’.

Ora, no presente caso, face aos factos provados 3, 4, 5, 6, 7, 12 e 13 parece que não podem existir dúvidas da qualificação de J, promitente adquirente de uma dada fracção imobiliária (por dação em pagamento), como consumidor – ver a este respeito a nota 10 do Ac. Unif. 4/2014, onde se cita Miguel Pestana de Vasconcelos, e onde se escreve: ‘não sofre dúvida que o promitente-comprador é in casu um consumidor no sentido de ser um utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda’..

Sendo assim, nos termos do artº 755º, nº 1, al. f) do C. Civil, o beneficiário da promessa de transmissão ... que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido sobre a coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte nos termos do artº 442º, goza do direito de retenção sobre essa coisa. O que se escreve a este respeito no citado aresto uniformizador é que ‘o DL nº 236/80, de 18/07, veio reforçar a posição jurídica do promitente-comprador nomeadamente no âmbito das transacções de imóveis para habitação, conferindo-lhe em caso de incumprimento da outra parte e em alternativa ao direito ao sinal em dobro, também o valor da coisa desde que a mesma lhe tivesse sido transmitida encontrando-se pois em seu poder. Tal desiderato surge corporizado na alteração então introduzida ao nº 2 do artº 442º do C. Civil. Por seu turno, o Dl 379/86, de 11/11, além de haver modificado o normativo em análise veio ainda, ..., elencar no âmbito no âmbito dos titulares do direito de retenção a que se reporta o artigo 755º do C. Civil, o do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição do direito sobre a coisa a que se reporta o contrato prometido, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte de harmonia com o artigo 442º’

...

... corporizada a posse, existe, na prática, do lado do adquirente um verdadeiro animus de agir como possuidor, não já nomime alieno mas antes em nome próprio; a partir do momento em que o insolvente entregou as chaves dos prédios ao promitente-comprador, materializou-se a intenção de transferir para este os poderes sobre a coisa, faltando apenas legalizar uma situação de facto consolidada. Parificada tal situação com as hipóteses do efeito real dos contratos em termos de impedir a resolução respectiva, poderá assentar-se em que o incumprimento dá assim origem ao despoletar do direito de retenção a que se reporta o artº 755º, nº 1, al. f) do C. Civil viabilizado pela interpretação ... no tocante ao artº 106º do CIRE, pelo que assim sendo subsiste a preferência a que aludimos’.

...

Em suma concluímos que não sendo afectado o contrato-promessa, mantêm-se os efeitos do incumprimento a que se reporta o artº 442º, nº 2 do C. Civil. Destarte o crédito pedido pelo reclamante, ..., mantém a prevalência que lhe é conferida pelo direito de retenção, tendo sido e bem graduado acima da hipoteca....

Ora, o que daqui resulta é que o promitente-comprador, ainda que com eficácia meramente obrigacional, com traditio, com é o presente caso, sendo, além do mais, também um consumidor (que não destina o bem imóvel a revenda ou a uso profissional), que não obteve o cumprimento do objecto da promessa existente por parte do administrador da insolvência, fica a gozar do chamado direito de retenção sobre o imóvel prometido, nos termos do artº 755º, nº 1, al. f) do C.Civil, como foi decidido quer na sentença recorrida quer no caso do Acórdão Uniformizador nº 4/2014.

Razões pelas quais não podemos estar de acordo com a tese da Recorrente, segundo a qual “...a sentença (recorrida) não segue o entendimento do ac. uniformizador nº 4/2014’, pois que nos parece que tal é incorrecto, já que é precisamente o entendimento seguido na sentença recorrida, como bem resulta da dita, onde até se escreve, além domais, o seguinte: ‘Por força do artº 755º, nº1, al.f) do CC apenas o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de um direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido goza de direito de retenção pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artº 442º do Civil’.

Ao contrário do que a Recorrente defende, ficou provado que:                          

13. A partir de então o credor reclamante, J, já efectuou diversas obras no interior da referida fracção autónoma de modo a torná-la habitável tendo, nomeadamente, procedido à ligação dos radiadores do aquecimento central, das torneiras das casas de banho e da cozinha e ligação da caldeira para aquecimento das águas.

14. O credor reclamante J cedeu a mencionada fracção autónoma a uns amigos que a utilizam para fins habitacionais. Ora, destes factos resulta o destino da casa ou fracção à habitação, embora não à sua habitação (do promitente adquirente), mas também não à sua revenda ou uso profissional, o que permite qualificar esse promitente-adquirente como consumidor, para os fins tidos em vista, pelo que nos parece não ter razão a Recorrente quando defende o contrário, como ponto ou argumento essencial da sua tese.

Tenha até em conta que na relação de créditos elaborada pelo sr. Administrador da insolvência vem referido o crédito deste reclamante e como beneficiando do direito de retenção sobre a fração L, condicionado à recusa do cumprimento do contrato promessa de dação em pagamento.  (…)» .

No Acórdão fundamento de 25 de Novembro de 2014, onde a aqui Relatora interveio como primeira Adjunta e o aqui primeiro Adjunto interveio como segundo Adjunto, entendeu-se que:

«(…) No caso em apreço, constata-se que a promitente-compradora e, ora, recorrente é uma sociedade por quotas, não podendo, pois e como sustentado no mesmo Ac. de 14.06.11, ser havida como detendo a qualidade de consumidora.

Na realidade, nos termos do nº1 do art. 2º da LDC (Lei de Defesa do Consumidor – Lei nº 24/96, de 31.07, com as alterações decorrentes dos DD. LL. nº/s 67/2003, de 08.04, e 84/2008, de 08.05), “Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”.(Itálico de nossa autoria)

Na lição do Prof. Calvão da Silva[5], “É a consagração da noção de consumidor em sentido estrito, a mais corrente e generalizada na doutrina e nas Directivas comunitárias: pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado – uso pessoal, familiar ou doméstico, na fórmula da al. a) do art. 2º da Convenção de Viena de 1980 sobre a compra e venda internacional de mercadorias, inspiradora da Directiva 1999/44/CE e do § 9-109 do …  -, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, mas não já aquele que obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa”. Continuando: “Razão pela qual todo aquele que adquira bens ou serviços destinados a uso não profissional será uma pessoa humana ou pessoa singular, com exclusão das pessoas jurídicas ou pessoas colectivas, as quais adquirem bens ou serviços no âmbito da sua actividade, segundo o princípio da especialidade do escopo, para a prossecução dos seus fins, actividades ou objectivos profissionais (art. 160º do CC e art. 6º do CSCom”. Rematando, finalmente, que «A noção estrita de consumidor – pessoa singular que adquire a fornecedor profissional bens ou serviços para uso não profissional –, que defendemos em geral e temos por consagrada no nº1 do art. 2º da LDC… impõe-se pertinente e inquestionavelmente in casu à luz do princípio da interpretação conforme à Directiva, em que se define consumidor como “qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente Directiva, actue com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional” (al. a) do nº 2 do art. 1º)».

Não detendo, pois, a recorrente e promitente-compradora a qualidade de consumidora, não pode a mesma, nos termos expostos, beneficiar, no âmbito do processo de insolvência em que nos situamos, do direito de retenção previsto no art. 755º, nº1, al. f) do CC, para satisfação do seu reconhecido crédito de € 140 000,00, o qual tem, pois, a natureza de crédito comum, como bem decidiu a 1ª instância. (…)».

Por seu turno, no Acórdão igualmente indicado como fundamento, acerca do ónus da prova da qualidade de consumidor, argumentou-se da seguinte forma:

«(…) A qualidade de consumidor está definida no nº 1 do art. 2º da Lei nº 24/96 de 31/07.

Nos termos deste dispositivo, é consumidor a pessoa singular  a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados exclusivamente a uso não profissional, por pessoa ( singular ou colectiva ) que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.

É assim a finalidade do acto de consumo que determina, essencialmente, a qualificação do consumidor como sujeito do regime de benefício que aquele diploma instituiu – e ainda os que lhe seguiram na senda da mesma protecção do consumidor, como os decretos-leis nºs 67/2003 de 8/04 e 84/2008 de 21/05, operando a transposição de Directivas da União Europeia.

Por outro lado, e apesar da falta de qualquer referência literal no art. 755º, nº 1, al. f) mencionado a este requisito, há muito que se vem defendendo que o referido direito de retenção apenas se pode atribuir ao promitente comprador que seja consumidor no contrato de que resulta o crédito garantido pelo direito de retenção.

Tal deriva de uma interpretação restritiva daquele dispositivo, por ter sido a protecção dos promitentes compradores que sejam consumidores que motivou o legislador ao introduzir aquele direito, tal como se pode ver do relatório do Decreto-Lei nº 379/86 de 11/11, nomeadamente do seu ponto 4 onde consta “ Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir a prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor.”

Apesar deste entendimento não ser pacífico, este Supremo Tribunal de Justiça proferiu em 20-03-2014, acórdão de uniformização de jurisprudência  – publicado no Diário da República , nº 95, I série -A, de 19-05-2014 – em que se fixou jurisprudência no sentido de que, em caso de incumprimento do contrato promessa por parte do administrador de insolvência do promitente vendedor, o promitente comprador tem direito de retenção se revestir a qualidade de consumidor nesse contrato.

Pese embora não tenha sido este o entendimento do presente Relator, no acórdão uniformizador, há que acatar aqui e agora o sentido da  uniformização de jurisprudência e acolhendo esta interpretação, tem este fundamento do recurso de proceder.

Com efeito, o recorrido credor reclamante e promitente comprador não alegou ou provou aquela qualidade de consumidor - antes até alegando factos que apontam para a ausência dessa qualidade, nomeadamente quando no seu requerimento de impugnação da lista de credores, constante de fls. 48 e segs. o recorrido refere: “de facto, na posse da mencionada fracção, o reclamante contratou e fez serviços de limpeza geral e passou a anunciar a revenda da mesma, mostrando-a a potenciais compradores.”

E destes factos resultou provado que “em finais de 2011, o reclamante BB, mostrou o apartamento a pessoas que poderiam estar interessadas em adquiri-lo”.

Este facto aponta para a não verificação da qualidade de consumidor do referido requerido no contrato promessa em causa.

De qualquer modo, nos termos do art. 342º, nº 1 do Cód. Civil, incumbia-lhe a prova daquele requisito de que depende o direito de retenção aqui accionado, na opinião da uniformização mencionada.(…)»

O AUJ 4/2014 que uniformizou a jurisprudência no âmbito da reclamação de créditos em sede de processo insolvencial do seguinte modo:

«No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil.», apesar de chamar á colação o conceito de «consumidor», não uniformizou o mesmo, isto é, não decorre daquele a dimensão normativa a atribuir, sendo certo que se vislumbra, pelo texto do Aresto que eventualmente se tivesse querido conferir ao mesmo um sentido estrito, isto é, afastando do mesmo apenas as situações em que a actuação vise fins que se incluam no âmbito da actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional do contratante, aliás como resulta do texto do AUJ o mesmo respaldou-se na argumentação que a propósito desta temática – direito de retenção no caso particular do promitente comprador que obteve a tradição do imóvel por parte do promitente vendedor insolvente – foi ensaiada por L. Miguel pestana de Vasconcelos, Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência, Cadernos de Direito Privado, nº33 Janeiro/Março 2011, 3/29 (veja-se a nota 10 daquele AUJ).

A Lei n.º 24/96 define no seu artigo 2º, nº1, consumidor como “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.”.

Por seu turno o DL 24/2014, de 14 de Fevereiro ao transpor a Directiva 2011/83/EU do Parlamento e do Conselho, de 25.10.2011, que, no artigo 2.º, define, para efeitos dela mesma “Consumidor: qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue com fins que não se incluam no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional;», veio a fazer constar como consumidor “a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”.

Constituindo o segmento normativo a que alude o artigo 755º, nº1, alínea f) do CCivil, uma disposição que em termos materiais visa a tutela do consumidor, há que ter em atenção, na análise do caso concreto se estamos ou não em presença dos elementos que nos permitam concluir se estamos ou não em presença de um contraente com as apontadas características.

O Acórdão recorrido, retirou da materialidade apurada, nomeadamente dos factos dados como provados nos items 12, 13 e 14 – isto é que «12. Em data não concretamente determinada mas antes da declaração de insolvência o legal representante desta entregou ao credor J as chaves de acesso à fracção autónoma objecto do acordo a que se aludiu.; 13. A partir de então o credor reclamante, Jorge Gaspar, já efectuou diversas obras no interior da referida fracção autónoma de modo a torná-la habitável tendo, nomeadamente, procedido à ligação dos radiadores do aquecimento central, das torneiras das casas de banho e da cozinha e ligação da caldeira para aquecimento das águas.; 14. O credor reclamante J cedeu a mencionada fracção autónoma a uns amigos que a utilizam para fins habitacionais. – que dos mesmos resulta o destino da casa ou fracção à habitação, embora não à sua habitação (do promitente adquirente), mas também não à sua revenda ou uso profissional, o que permite qualificar esse promitente-adquirente como consumidor.

Daqui deflui com mediana clareza que o segundo grau entendeu que a matéria alegada e provada pelo Reclamante, aqui Recorrido, quadrava aquele conceito, na abrangência estrita do mesmo, porquanto a aquisição da fracção se destinou a uso próprio, pessoal, e não para uso profissional com o fito de obter benefícios.

Os aludidos normativos, ao diferenciarem o uso pessoal, com a satisfação de necessidades pessoais, do uso profissional e/ou para exercício de uma actividade económica dela retirando proventos, não quer afastar daquele uso eminentemente privado uma eventual obtenção de réditos por via de arrendamentos de vilegiatura e/ou outros, como forma de obter um rendimento adicional. Veja-se a este propósito que as constantes crises económicas e a baixa da taxa de juros, que hoje em dia atinge montantes quase negativos, leva que se procure outras formas de aplicação das poupanças, maxime, através da compra de imóveis para rendimento, por parte de particulares que têm as suas actividades profissionais e apenas pretendem com as aludidas aplicações a satisfação de necessidades pessoais, aumentando assim o seu pecúlio, e não fazer de tais aplicações uma eventual outra actividade profissional.

Estas situações nada têm a ver com o exercício de uma actividade profissional de carácter essencialmente económico, perfeitamente contidas, portanto, naquela noção estrita de consumidor, assumida pelo Tribunal recorrido: o Recorrido é uma pessoa jurídica, consumidor final, porque não adquirente do bem para o exercício de uma actividade profissional, o Tribunal de Justiça tem considerado a este propósito, designadamente, nos acórdãos Bertrand, Shearson Lehman Hutton, Benincasa e Gabriel, que o conceito de «consumidor» na acepção dos artigos 13.°, primeiro parágrafo, e 14.°, primeiro parágrafo, da Convenção de Bruxelas deve ser interpretado de forma restritiva, atendendo‑se à posição dessa pessoa num contrato determinado, em conjugação com a natureza e finalidade deste, e não à situação subjectiva dessa mesma pessoa, pois uma mesma pessoa pode ser considerada consumidor no âmbito de determinadas operações e operador económico no âmbito de outras. O Tribunal deduziu daí que só os contratos celebrados fora e independentemente de qualquer actividade ou finalidade de ordem profissional, unicamente com o objectivo de satisfazer as próprias necessidades de consumo privado de um indivíduo, ficam sob a alçada do regime especial previsto pela referida Convenção para protecção do consumidor enquanto parte considerada economicamente mais débil, ao passo que essa protecção não se justifica em casos de contratos cujo objectivo é uma actividade profissional; por outro lado este mesmo Tribunal tem por assente que o órgão jurisdicional chamado a pronunciar-se sobre um litigio relativo a um contrato relativa á venda de bens de consumo, está obrigado sempre que disponha de elementos a verificar se o comprador pode ser qualificado como consumidor na acepção da Directiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, cfr Ac Froukje farber, de 4 de Junho de 2015, (Acórdãos consultáveis in http:/Curia.Europa.EU).

Não ignoramos que a vexata quaestio que se põe no direito do consumo é a própria noção de consumidor, a qual segundo os entendidos, não se reduz a um único conceito, nos termos do Direito europeu, contudo pensamos que no essencial a tónica põe-se na qualidade em que a parte intervém no contrato: será consumidor aquele que adquire o bem ou serviço sem fins empresariais ou profissionais livres, cfr a noção que nos é dada pelo § 13 do BGB alemão «Consumidor é toda a pessoa singular que conclua um negócio jurídico com finalidade que não lhe possa ser imputada a título empresarial ou de profissional livre.», apud Menezes Cordeiro, O anteprojecto de Código do Consumidor, in O Direito, Ano 138º, IV, 685/715; António Pinto Monteiro, A contratação em massa e a protecção do consumidor numa economia globalizada, RLJ, Ano 139, Março-Abril 2009, 221/235; Calvão da Silva, Compra E Venda De Coisas Defeituosas, 2001, 112/113; Carlos Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, 2005, 84/87; Jorge Morais Carvalho, Manual De Direito Do Consumo, 3ª edição, 17/23.

No caso dos autos, não se apurou que o Reclamante/Recorrido tivesse adquirido o imóvel para fins empresariais, não se podendo extrair da circunstância material de o ter cedido a terceiros, sem mais, que tal cedência tivesse sido feita a titulo de obtenção de lucro, maxime, eventual revenda, como vem alvitrado pela Recorrente.

Veja-se que em ambos os Acórdãos fundamentos se apurou que a promessa de aquisição havia sido feita, por uma sociedade comercial, num dos casos, e no outro, por uma pessoa singular mas com destino a revenda, o que por si só fez afastar a qualidade de consumidor a que alude o normativo inserto no artigo 2º, nº1 da Lei nº 24/96 de 31 de Julho e nos DL 67/2003 de 8 de Abril e 84/2008 de 21 de Maio, que operaram a transposição de Directivas da União Europeia.

In casu, apesar de se ter apurado que o Recorrido cedeu o uso do imóvel a uns amigos que o utilizam para fins habitacionais, esta «cedência» configura a aplicação do objecto a um fim não profissional, consubstanciando um uso privado do sujeito, cfr neste sentido Fernando Dias Simões, O Conceito De Consumidor No Direito Português, 11/12 «(…) Do Direito do Consumidor ficam excluídos, em conformidade, três tipos de situações. Em primeiro lugar, estão excluídos do Direito do Consumidor as relações jurídicas entre consumidores, que serão tratadas como meros contratos civis. (…) Também extravasam do campo de aplicação deste ramo jurídico as relações jurídicas entre profissionais ou empresas (normalmente contratos mercantis, de acordo com o artigo 2º do Código Comercial). (…) Por fim são reguladas pelo Direito do Consumidor as situações de auto-consumo – aqueles casos em que na mesma pessoa se reúnem as qualidades de produtor e de consumidor. Nas palavras de Calvão da Silva, “a antiga dicotomia «comerciantes e não comerciantes» é seguida destoutra «profissionais e consumidores», para destacar os contratos de consumo no seio dos contratos civis. E assim a «summa divisio» contratos civis/contratos mercantis cede lugar à triologia contratos civis/contratos de consumo/contratos mercantis, com um campo de aplicação mais restrito para os primeiros – os contratos civis – na medida em que deles se autonomizaram há muito as relações entre comerciantes e se vão destacando mais recentemente as relações entre profissionais (geralmente comerciantes ou industriais) e consumidores.(…)», in SSRN Eletronic Journal – September 2011; neste sentido, igualmente, os Ac STJ de 17 de Novembro de 2015 (Relator Fonseca Ramos, onde a aqui Relatora interveio como segunda Adjunta), no qual se considerou, além do mais que «O conceito de consumidor que o referido AUJ acolheu foi o conceito restrito, funcional, segundo o qual consumidor é a pessoa singular, destinatário final do bem transaccionado, ou do serviço adquirido, sendo-lhe alheio qualquer propósito de revenda lucrativa»; de 16 de Fevereiro de 2016 (Relatora Clara Sottomayor) in www.dgsi.pt; mais recentemente o Ac STJ de 24 de Maio de 2016 (Relator Nuno Cameira) proc 3374/07.9TBGMR-C.G2.S1, num caso paralelo, in www.dgsi.pt.

 

E, nesta leitura, do uso privado do bem objecto da promessa cuja traditio ocorreu, temos de reconhecer como privilegiado o crédito de € 75.000.00 reclamado por J por gozar de direito de retenção sobre o bem imóvel identificado na verba 11 do Auto de Apreensão, como decidido foi pelas instâncias, soçobrando, desta feita, as conclusões de recurso.

III Destarte, nega-se a Revista, confirmando-se a decisão ínsita no Acórdão impugnado.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 5 de Julho de 2016

 

Ana Paula Boularot - Relatora

Pinto de Almeida

Júlio Gomes