Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
168/18.0T8FVN.C2.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CONTRATO DE SEGURO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
APÓLICE DE SEGURO
PRINCÍPIO INDEMNIZATÓRIO
SOBRESSEGURO
MEDIADOR
BOA -FÉ
DEVER ACESSÓRIO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEICULO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
IGUALDADE DAS PARTES
Data do Acordão: 07/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I – Não tendo ficado provado «Que aquando da celebração do contrato de seguro, foi o autor que indicou ao mediador de seguros da ré que o veículo era o Modelo Elegance, para originar um incremento do capital seguro», devia a ré, de acordo com a boa fé, numa situação de sobresseguro não imputável ao assegurado, reduzir o montante da indemnização em proporção ao valor real do veículo à data da celebração do contrato.

II –Tendo a seguradora recusado definitivamente o pagamento de qualquer indemnização, violou deveres acessórios de boa fé na execução do contrato, respondendo, por isso, pelo dano da privação do uso.  

III – A exigência à seguradora deste comportamento é postulada pelo princípio da boa fé, enquanto dever objetivo de conduta (artigo 762.º, n.º 2 do Código Civil) e pelos deveres acessórios consagrados no artigo 153.º, n.º 1, da Lei n.º 147/2015, de 9 de setembro, que onera as empresas de seguros com o dever de atuarem de forma diligente, equitativa e transparente no seu relacionamento com os tomadores de seguros, segurados, beneficiários e terceiros lesados.

IV - A regra da conduta de boa fé tem um conteúdo diverso e aberto, que pode ser difícil de concretizar, mas entende a doutrina (cfr. Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 2004, p. 455), que impõe uma ideia de proporcionalidade no exercício de posições relativas, e remete para exigências de consideração para com interesses alheios, «incorporando uma pluralidade muito rica de valores susceptíveis de se articular com variável intensidade entre si, o que faz dela uma realidade de conteúdo multipolar.

V - Uma das circunstâncias relevantes para aferir o conteúdo da boa fé da seguradora será a desigualdade entre as partes e a assimetria informativa típica dos contratos de seguro.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

1. AA, intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra Seguradoras Unidas, SA ambos já identificados nos autos, peticionando a condenação da ré, no seguinte:

- na quantia de 34.000,00 €, relativa ao valor do veículo sinistrado, deduzida a franquia de 250, 00 €;

- a pagar a quantia a liquidar em execução de sentença, referente à privação de uso do veículo sinistrado, com base no custo de aluguer diário do veículo equiparado ao do autor, que as empresas de rent-a-car fixam em 200,00 €, por dia, desde o 21.º dia após a ocorrência do acidente e;

- a quantia que a S... vier a debitar ao autor, a título de parqueamento do veículo, desde o dia do acidente e até ao pagamento integral do valor da viatura.

Alegou, para tanto e em síntese, que é dono de um veículo automóvel, de matrícula ..-SE-.., marca Mercedes Benz, modelo ... E ..., versão E ..0 CDI Elegance BE auto, tendo, nessa qualidade, celebrado, com a então Tranquilidade, um contrato de seguro, opção “Valor Mais”, por forma a transferir para esta a responsabilidade civil emergente da circulação de tal veículo, com início em 07/12/2016, com a duração de um ano e seguintes. No âmbito do que contratualizou a cobertura de danos próprios do identificado veículo, designadamente, choque, colisão ou capotamento, tendo, aquando da respetiva celebração, sido indicado como valor seguro, o montante de 34.000,00 €.

Mais alega que, no dia 16 de novembro de 2017, pelas 19 h e 30 m, quando circulava na EM ...63, conhecida por Estrada ..., que liga as localidades de ... a ..., freguesia ..., ..., em consequência de ter sido surpreendido, ao que supõe, por javalis, perdeu o controle do seu veículo, em consequência do que veio a sair da estrada, acabando por embater numa oliveira, que se encontrava implantada a cerca de 1,25 m do limite da faixa de rodagem, vindo a viatura, após tal embate, a capotar e a ficar imobilizada. Acrescenta que face à violência do embate, a viatura foi considerada como irreparável, por a respetiva reparação ser superior ao seu valor venal.

A ré apenas lhe facultou veículo de substituição pelo período de 20 dias e não dos 30 contratualizados, não lhe facultando essa possibilidade desde 8/12/2017, nem lhe disponibilizou qualquer quantia para que pudesse adquirir outra viatura, por declinar a responsabilidade pelo pagamento da reclamada indemnização.

O autor, como não dispunha de quantia para tal, não adquiriu outra viatura, reclamando a tal título uma indemnização, tomando como referência o aluguer de uma viatura idêntica.

Para além do que, a viatura se encontra parqueada nas instalações da S..., que o notificou para pagar a quantia de 5,00 €, por dia.

Contestando, a ré, impugnou a versão dada pelo autor acerca do modo como ocorreu o acidente, alegando que se tratou de um “suposto acidente”, “em que o veículo é colocado na posição final de embate”.

Impugnou, ainda, o indicado valor do veículo, bem como a existência e amplitude dos invocados danos, designadamente, que tratando-se como se trata, de um seguro de danos próprios, só pode responder de acordo com o contratado e não foram previstos nem os danos de privação de veículo, para além do prazo contratado, nem os decorrentes do parqueamento do veículo, acrescentando, quanto a este, que o autor sabe que se trata de veículo com perda total e que a ré declinou a responsabilidade pelos invocados pagamentos, pelo que não se justifica que o veículo permaneça parqueado, nas condições referidas pelo autor.

Com dispensa de audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar e fixou-se o objeto do litígio e os temas da prova.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova nela produzida, finda a qual foi proferida a sentença de fl.s 212 a 219, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respetiva fundamentação e, a final, se decidiu o seguinte:

“Nos termos e fundamentos expostos,

1. Julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência,

2. Condeno a Ré SEGURADORAS UNIDAS, S.A., a pagar ao Autor AA a quantia de €17,133,00 (dezassete mil, cento e trinta e três euros), acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até efectivo pagamento.

3. Condeno a Ré a pagar ao Autor a quantia que se vier a apurar em liquidação de sentença pelo parqueamento do seu veículo durante o período de tempo em que o mesmo aí se encontre até ao trânsito em julgado da sentença.

4. Absolvo a Ré do restante pedido.

5. Absolvo o Autor do pedido de condenação como litigante da má-fé. 6. As custas são a cargo de Autor e Ré, na proporção do decaimento.”.

Irresignados com a mesma, dela interpuseram recurso ambas as partes, tendo os recursos sido admitidos, na sequência do que foi proferido o Acórdão que antecede, de fls 266 a 276, no qual se anulou a sentença proferida, a fim de ser ampliada a matéria de facto a considerar, como do mesmo melhor consta.

Após a baixa dos autos à 1.ª instância, reaberta a audiência, procedeu-se à inquirição de uma testemunha, finda a qual foi proferida a sentença de fl.s 326 a 333 v.º, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respetiva fundamentação e, a final, se decidiu o seguinte:

“Nos termos e fundamentos expostos,

1. Julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência,

2. Condeno a Ré SEGURADORAS UNIDAS, S.A., a pagar ao Autor AA a quantia de €17,133,00 (dezassete mil, cento e trinta e três euros), acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até efectivo pagamento.

3. Condeno a Ré a pagar ao Autor a quantia que se vier a apurar em liquidação de sentença pelo parqueamento do seu veículo durante o período de tempo em que o mesmo aí se encontre até ao trânsito em julgado da sentença.

4. Absolvo a Ré do restante pedido.

5. Absolvo o Autor do pedido de condenação como litigante da má-fé. 6. As custas são a cargo de Autor e Ré, na proporção do decaimento.”.

2. De novo, inconformados com a mesma, interpuseram recurso a ré Seguradoras Unidas e o autor AA, recursos, esses, admitidos como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo – (cf. despacho de fls 371), tendo o Tribunal da Relação decidido o seguinte:

«Julgar procedente o presente recurso de apelação interposto pela ré e improcedente a apelação interposta pelo autor, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, na parte em que condenou a ré a pagar ao autor a quantia de 8.655,00 € (oito mil seiscentos e cinquenta e cinco euros), pela privação de uso e ainda na quantia relativa ao parqueamento do veículo;

Absolvendo a ré de tais pedidos;

Mantendo-a, quanto ao mais nela decidido.

Custas a suportar por autor e ré, na proporção dos respectivos decaimentos, em ambas as instâncias».

3. Inconformado, o autor interpõe recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:

«1 – A inexistência no contrato de seguro celebrado entre o A. e Ré, da cobertura do risco de privação do uso do veículo, não desobrigou a Ré a proceder ao pagamento da indemnização devida, a título de privação do uso, porquanto, ocorreu por parte da Ré a violação dos seus deveres contratuais, e que dimanam das normas do RJCS, conjugadas com o disposto no artigo 762.º/2 do Cod. Civil, mercê de não ter colocado à disposição do A. qualquer quantia;

2 - A Ré ao não liquidar qualquer quantia, ao A. de forma atempada a título de indemnização, não atuou de forma séria, honesta e leal, pelo que, não procedeu de harmonia com o princípio da boa-fé;

3 - A indemnização a atribuir ao A. não pode limitar-se ao dano resultante da mora, como foi o entendimento do Tribunal de que se recorre, devendo também contemplar o dano da privação do uso.

4 – O dano de privação do uso, peticionado pelo A. decorre da violação por parte da Ré, dos deveres acessórios de conduta e, por conseguinte, constitui um dano autónomo do dano proveniente da mora e, ambos além de não se sobreporem, são ambos devidos ao A. conforme pelo mesmo alegado foi.

5 – O facto de se verificar a existência de sobresseguro, a mesma não é, imputável ao A., como foi provado, pelo que não retira à Ré a obrigação de cumprir a sua prestação no prazo contratual fixado pelo RJCS, tanto mais que declinou qualquer responsabilidade na liquidação do mesmo, mas nunca por este facto.

6 – Apesar de o veículo do A. haver ficado em situação de perda total, assistia à Ré a obrigação de cumprir com celeridade, por forma a que com a entrega do capital, fosse ele total ou parcial, houvesse permitido ao A., como beneficiário do seguro, a compra de um outro veículo em substituição.

7 – Igualmente nesta situação de perda total, o A. tem direito a ser indemnizado pela privação do uso do veículo, por ter ficado impossibilitado de o usar em seu próprio benefício.

8 – No que diz respeito ao valor do veículo jamais poderá ser o fixado na sentença proferida em 1.ª instância, como resultante da avaliação eurotax, porquanto, no valor atribuído não foi tido em conta o equipamento extra que possuía para exercer as funções de táxi e identificado no VIN do veículo junto pela Ré na sua contestação, o qual, necessariamente aumenta o seu valor.

9 – Atenta a omissão deste equipamento e fazendo uso do princípio da equidade, e, uma vez que a atribuição do valor apenas poder ser imputado à Ré, através do seu mediador, e não ao A. o valor a atribuir ao veículo, não sendo o correspondente à desvalorização, pelo menos deverá ser o indicado como preço de aquisição por parte do A. (Facto 31).

10 – O A. atendendo a que a Ré não lhe disponibilizou qualquer quantia a título de indemnização, e, sabendo que o veículo se encontrava aparcado nas instalações da marca para poder efetuar qualquer peritagem, atentas as irregularidades invocadas para declinar a sua responsabilidade pela liquidação, tem direito a ser indemnizado do valor do parqueamento do veículo, a liquidar em execução de sentença.

11 – A situação de sobresseguro invocada pela Ré apenas poderá ser imputada a si própria, e não ao A. e a mesma não foi fundamento para declinar a responsabilidade pela liquidação, conforme consta da comunicação constante do doc. n.º 4 junto pela Ré com a contestação.

12 – Deverão portanto VV. Ex.ªs revogar o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, substituindo, de acordo com a jurisprudência deste Tribunal, por um outro que contemple os danos peticionados pelo A. e referidos nestas alegações de recurso, nomeadamente o dano de privação do uso e o da mora, mercê da violação dos seus deveres e do princípio da boa fé, do valor do veículo e do valor do parqueamento.

13 – Com o Acórdão proferido pelo TRC, fora violado o disposto nos artigos 334.º e 762.º n.º 2 do C.C., art.º 153 da Lei 147/2015, art.º 102 /1 e 104.º do RJCS».

4. A ré veio apresentar contra-alegações, em que formulou as seguintes conclusões:

«1. No que se refere à indemnização pela privação de uso, conforme resulta da decisão do Tribunal da Relação, que conforme já se disse o Recorrente não refuta, resultou provada a situação de sobresseguro, factos esses que não permitem assacar qualquer responsabilidade à ora Ré.

2. Refira-se ainda que a condenação da Recorrente numa indemnização por privação de uso no valor de € 70/dia, conforme requerido pelo Recorrente, seria manifestamente violadora dos princípios da equidade e da proporcionalidade

3. Com efeito, atente-se que caso a Ré venha a ser condenada no valor de € 70/dia, pela privação de uso, a indemnização a este título será superior ao valor do bem, não sendo razoável que o valor do usufruto de um bem seja superior ao seu valor intrínseco.

4. Quanto ao valor atribuído ao veículo constatou-se que o valor do capital seguro (€ 34.000,00) não correspondia ao valor de mercado do veículo, e tal conclusão mantém-se como verdadeira quer atendamos ao valor que o A. alegou ter despendido na aquisição do veículo (€ 25.000,00), quer atendamos, como bem fez o Tribunal recorrido, à avaliação Eurotax (€ 13.800,00), pelo que, fosse qual fosse o valor atendível, sempre estaríamos perante uma situação de sobrevalorização do capital seguro, em que o bem se encontra seguro por um valor superior ao seu valor de mercado, questão de direito a resolver pelo Tribunal.

5. Não é verdade que o equipamento de táxi valorizaria o veículo ao ponto de anular o erro decorrente da versão real e da versão declarada na apólice (erro esse que o Recorrente nem sequer quantifica, deixando a sua conclusão sem sustentação objectiva).

6. De uma simples comparação entre a avaliação Eurotax e a informação que a Mercedes veio prestar aos autos, facilmente se conclui que o equipamento é essencialmente o mesmo, ainda que a pesquisa Eurotax corresponda à versão Elegante -superior em termos de equipamento e, como tal, valorizadora do bem, - o que deita por terra o argumento de que tal documento traduz um valor do bem inferior ao real.

7. Mais: o facto de o veículo ter desempenhado as funções de táxi no país de origem, tendo para isso saído equipado de fábrica, não acrescenta qualquer valor comercial ao veículo; pelo contrário: a utilização de um veículo como táxi é algo que o desvaloriza, e muito, o que facilmente se percebe atendendo ao elevado número de quilómetros, ao menor cuidado na sua utilização e ao uso exacerbado, fruto da utilização diária por inúmeros passageiros.

8. Uma vez que o Recorrente não perdeu tempo a contrapor os fundamentos apresentados pela Relação, a Recorrida entende que não se encontram preenchidos os pressupostos para a apreciação deste tema no recurso, mas caso assim não se entenda, o Recorrente também não alegou nem demonstrou factos que permitam ao Tribunal ad quem decidir em sentido contrário ao que foi decidido pela Relação.

Termos em que deve ser integralmente mantida a douta decisão recorrida, assim se fazendo a costumada

JUSTIÇA!»

5. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, o objeto do recurso se delimita pelas conclusões, as questões suscitadas foram as seguintes:

I – Indemnização pela perda total do veículo;

II – Indemnização pelo dano da privação do uso;

III – Indemnização, a calcular em execução de sentença, pelo parqueamento do veículo.

6. A recorrida suscitou a questão da admissibilidade do recurso em relação à questão do valor do veículo na conclusão n.º 8 das contra-alegações.

7. A Relatora notificou o recorrente para se pronunciar, ao abrigo do artigo 655.º Código de Processo Civil (CPC), sobre a questão prévia de admissibilidade do recurso quanto ao segmento decisório da indemnização pelo valor do veículo, por se afigurar que se verifica, em relação a este segmento da decisão, uma situação de dupla conformidade, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC.

O recorrente nada veio dizer.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A – Os Factos

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1. No dia 16 de novembro de 2017, cerca das 19:30h, o A. circulava pela Estrada ..., ... e conhecida por Estrada ..., que liga as localidades de ... a ..., freguesia ..., área do concelho ..., e neste sentido, e em local onde se situa o ..., nomeadamente na margem esquerda atento o indicado sentido seguido pelo aqui Autor.

2. Circulava no sentido de ... – ....

3. A estrada no local configura uma recta com ligeira inclinação descendente, seguido de uma ligeira curva à esquerda.

4. A largura da faixa de rodagem é de 3,85m, comporta dois sentidos de trânsito não existindo demarcações no pavimento.

5. As bermas são intransitáveis e ladeadas por pedras, árvores e outros arbustos.

6. O piso é em betuminoso e encontra-se em razoável estado de conservação.

7. A visibilidade era boa, estava bom tempo, era de noite, sem iluminação.

8. A certo momento, o A. deparou-se com vultos na faixa de rodagem que julgou tratar-se de animais, desviou-se, entrou em despiste, embateu em oliveira implantada a 1,25m do limite da faixa de rodagem e capotou.

9. Após o embate e capotamento o veículo veio a imobilizar-se na via e ficou impossibilitado de circular pelos seus próprios meios.

10. A GNR ... alertada para a ocorrência do acidente de imediato compareceu no local e tomou conta da ocorrência, tendo elaborado auto de participação, o qual veio a sofrer um aditamento em 14/02/2018 realizado pelo Autor após a Ré ter declinado a sua responsabilidade.

11. Os Bombeiros Voluntários ... transportaram o Autor para o Hospital ..., onde realizou vários exames e veio a ter alta.

12. Foi contactado o serviço de assistência em viagem e o veículo foi transportado para as instalações da “S..., Ld.ª” (Mercedes Benz), sitas em Rua ..., ... – ....

13. O veículo seguro apresentava danos avultados na frente e lateral direita, consequentes do embate na oliveira, e no capot e no tejadilho, decorrentes do capotamento.

14. A Ré elaborou orçamento de reparação que ascendeu ao valor de €35.026,56.

15. O veículo foi considerado numa situação de perda total, atento o elevado valor da reparação e o respectivo valor venal antes do sinistro, tendo sido emitido o Boletim de Perda Total.

16. O salvado foi avaliado em €4.360,00.

17. A Ré declinou a responsabilidade pelo pagamento da indemnização devida.

18. O A. contratou a cobertura Multi assistência VIP Plus, sendo que em caso de perda total, como ocorreu no caso em apreço, o limite de cedência de veículo de substituição é de 15 dias, sendo os 5 primeiros contados entre a data da imobilização e o início da reparação, e os restantes 15 nos termos das condições particulares contratadas.

19. A garantia de viatura de substituição por perda total do veículo seguro, prevê um máximo de 15 dias.

20. No dia 17.11.2017, no seguimento da assistência prestada no dia anterior, disponibilizou-se ao A. uma viatura de substituição por 5 dias (17 a 22 de Nov.), ficando-se a aguarda a recepção do relatório de peritagem.

21. No dia 22.11.2017, recebida a comunicação da perda total do veículo seguro emitida pelos serviços de peritagem, definiu-se, consequentemente, um período de 15 dias de reserva a ser usufruído ao abrigo da respectiva garantia.

22. Tendo o A. já usufruído inicialmente de 5 dias, permaneciam por usufruir 10 dias, aceitando o A. uma viatura de gama inferior para se dilatar o período da reserva por tempo superior.

23. Assim, a viatura de gama inferior foi disponibilizada por um total de 20 dias adicionais, no período compreendido entre 23.11.2017 e 13.12.2017.

24. Após o referido período de tempo, o A. ficou impossibilitado de continuar a fazer uso do veículo, necessitando de recorrer a veículos de familiares.

25. O A. transportou o veículo para as instalações da S..., Ld.ª, (Mercedes Benz) em ..., a fim de fazer a peritagem de reparação e, como o mesmo lá se encontra, esta sociedade notificou o A., para pagar a título de parqueamento, quantia diária de 5,00€.

26. Entre a R., na qualidade de seguradora, e o A., na qualidade de tomador, foi celebrado o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel a que se designou de “Valor Mais” sobre o veículo de matrícula ..-SE-.., titulado pela apólice n.º ...59 e regulado pelas Condições Gerais, Especiais e Particulares, constando como objecto seguro Mercedes-Benz, modelo ... E ..., versão Elegance e o capital seguro de €34.000,00.

27. A tal contrato de seguro foi atribuído a apólice n.º ...59, com início em 7/12/2016 e com a duração de um ano e seguintes.

28. Em tal contrato de seguro celebrado com a Ré, o A. contratualizou a cobertura de danos próprios do próprio veículo, tais como choque, colisão ou capotamento, furto ou roubo.

29. Em consequência do contrato de seguro celebrado, a Ré obrigou-se a indemnizar o A. dos danos que fossem ocasionados em consequência da circulação terrestre do mencionado veículo, na eventualidade de ocorrer qualquer acidente, de acordo com as coberturas constantes da apólice referida.

30. O veículo seguro trata-se de um modelo ..., ou seja, a versão Classic e não a versão Elegance - e que saiu de fábrica com equipamento apto a servir as funções de táxi, conforme lista do equipamento obtida através do VIN do veículo (vehicle identification number), entre outros, pintura marfim, taxímetro integrado, conexão para sinal luminoso, antena para táxi.

31. O A. despendeu €25.000,00 na aquisição do veículo.

32. A avaliação eurotax do veículo é de €13.088,00.

33. A DAV não menciona a versão (Classic ou Elegance) do veículo.


*

Factos Não Provados

Não resultaram provados os seguintes factos:

a) Que o A. havia contratualizado a cobertura do veículo de substituição em consequência do acidente, pelo prazo máximo de 30 dias.

b) Que face ao contratado, a Ré estava obrigada a facultar ao A. veículo de substituição por mais 10 dias.

c) Que o valor de aquisição do veículo teria sido na ordem dos € 5.000,00 a € 7.000,00.

d) Que quando o A. efectuou o seguro, em 07.12.2016, ainda não estava em posse do DAV, pelo que a versão registada no sistema informático aquando da subscrição do seguro terá de ter sido comunicada pelo A.

e) Que aquando da celebração do contrato de seguro, foi o autor que indicou ao mediador de seguros da ré que o veículo era o Modelo Elegance, para originar um incremento do capital seguro.

f) Que quando foi celebrado o contrato de seguro, o Autor apenas tinha na sua posse o DAV.

B – O Direito

 

I - Da existência de dupla conforme quanto ao valor do veículo

1. No âmbito da presente ação declarativa comum, o autor, ora recorrente, peticionou a condenação da ré Seguradoras Unidas, S.A. no pagamento i) da quantia de € 33 750,00, a título de quantia correspondente ao valor do veículo sinistrado, ii) de uma quantia diária de € 200,00, a título de privação do uso de veículo e iii) ainda no pagamento de todas as quantias que a sociedade S..., Ldª vier a debitar ao A., a título de parqueamento do veículo, a apurar em sede de liquidação de sentença.

O tribunal de 1.ª instância condenou a ré a pagar ao autor a quantia de € 8 478,00  a título de indemnização pela perda total de veículo (“correspondente ao valor real de €13.088,00 descontando-se o valor do salvado, na quantia de €4.360,00 e o valor da franquia de €250,00”); a quantia de € 8 655,00, a título de indemnização pela privação do uso do veículo automóvel e ainda a quantia correspondente ao valor que o autor vier a despender com o parqueamento do seu veículo durante o período de tempo em que o mesmo ali se encontre até ao trânsito em julgado da sentença, a apurar em sede de liquidação de sentença.

Interposto recurso de apelação pelo autor e pela ré, o Tribunal da Relação proferiu acórdão, nos termos do qual manteve a decisão da 1.ª instância quanto ao valor atribuído ao veículo sinistrado, a título de perda total de veículo, revogando a decisão proferida pela 1.ª instância na parte atinente à indemnização atribuído a título de privação do uso e ainda quanto à condenação na quantia a apurar relativa ao parqueamento do veículo.

Irresignado com a decisão do Tribunal da Relação, interpõe agora o autor o presente recurso de revista, pugnando pela atribuição da quantia de € 25 000,00, a título de indemnização pela perda total de veículo, da quantia de € 70,00 diários, a título de indemnização pela privação do uso e ainda de quantia a apurar em liquidação de sentença, a título de despesas de parqueamento.

2. Dispõe o artigo 671.º, n.º 3, do CPC, que não é admissível revista normal do acórdão que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível.

No caso em análise, o recorrente coloca em crise a decisão proferida pelo tribunal da Relação de Coimbra, na sua integralidade, pugnando pela atribuição da quantia de € 25 000,00, a título de indemnização pela perda total de veículo, da quantia de € 70,00 diários, a título de indemnização pela privação do uso de veículo e ainda de quantia a apurar em liquidação de sentença, a título de despesas de parqueamento.

O caso em presença convoca a análise da segmentação decisória e dos efeitos de tal segmentação na verificação de uma situação de dupla conforme.

A jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal propugna o entendimento de que, sempre que a parte dispositiva da decisão contenha segmentos decisórios distintos e autónomos, a dupla conforme deve ser aferida em função de cada um desses segmentos individualmente considerados, de modo que, se a Relação confirmar apenas algumas das decisões ou segmentos decisórios, “a sintonia decisória é apenas parcial, abrangendo tão só um dos segmentos da decisão, ou um (ou mais, mas não a totalidade) dos pedidos “pelo que nos restantes haverá situação de “desconformidade” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 29-10-2009 [Revista n.º 1449/08.6TBVCT.G1.S1).

Nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-05-2021 (proc. n.º 10157/16.3T8LRS.L1.S1): “I. Havendo diversos segmentos decisórios (uns favoráveis, outros não), distintos e autónomos, o conceito de dupla conforme terá de se aferir, separadamente, relativamente a cada um deles. II. Assim, só não há dupla conforme (havendo revista normal nessa parte) no segmento em que a Relação não confirme a decisão da 1ª inst. (ou confirme mas com fundamentação essencialmente diferente) (…)” (em idêntico sentido, vejam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-05-2021 , 6-04-2021 , 12-01-2021 , 21-05-2020  e 23-05-2019).

 

3. Regressando ao caso concreto, importa salientar que, no que concerne ao pedido de condenação no pagamento do valor do veículo por perda total, existe dupla conformidade decisória. De facto, para além de o Tribunal da Relação ter confirmado na íntegra tal segmento decisório, fê-lo com recurso a uma fundamentação essencialmente idêntica, não convocando normas ou institutos jurídicos distintos. Moveu-se, assim, no mesmo quadro legal, nada acrescentando à fundamentação da 1.ª instância.

Neste âmbito, este Supremo Tribunal tem entendido, de forma reiterada, que para afirmar a existência de fundamentação essencialmente diferente não basta que se constante uma qualquer modificação ou alteração da fundamentação, sendo antes indispensável que ocorra uma diversidade estrutural e diametralmente diferente no plano da subsunção do enquadramento normativo da mesma matéria litigiosa.

Assim, apenas deixa de se verificar uma situação de dupla conforme “quando a solução jurídica prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a sentença apelada, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada” – acórdão do STJ de 17-11-2021 (Reclamação n.º 22990/16.1T8PRT-B.P1-A.S1), o que não foi o caso do acórdão recorrido destes autos, que manteve a fundamentação aduzida pelo tribunal de 1.ªinstância.

Existe, pois, dupla conforme quanto ao segmento decisório relativo à indemnização do veículo por perda total, não sendo admissível o recurso para impugnar o cálculo desta indemnização (artigo 671.º, n.º 3, do CPC).

No que concerne aos pedidos de condenação no pagamento de quantia pela privação do uso de veículo e ainda pelos custos de parqueamento, não há dúvidas de que inexiste uma situação de dupla conformidade decisória já que o Tribunal da Relação revogou a sentença da 1.ª instância nessa parte.

Assim, o presente recurso de revista será conhecido apenas nesta parte, sem incluir a questão do valor do veículo. 

II - Da indemnização pelo dano da privação do uso e pelo parqueamento do automóvel

1. Tendo por referência as conclusões do recurso de revista, a questão que cumpre dilucidar é a de saber se, no âmbito de um seguro facultativo/danos próprios, a seguradora deve indemnizar o segurado pelos danos sofridos com a privação do uso de veículo e outros danos decorrentes do atraso na liquidação da indemnização.

2. Relativamente ao dano da privação do uso, entende o tribunal de 1.ª instância que o autor tinha direito à indemnização pelas seguintes razões:

«No caso concreto em apreciação ficou provado que a Ré facultou ao Autor veículo de substituição não somente no período de tempo convencionado, como ainda por período de tempo superior, na medida em que o Autor optou por veículo de gama mais baixa.

No entanto, ficou de igual modo provado que a Ré não liquidou em prazo razoável a indemnização devida, não bastando alegar ser duvidosa a versão do acidente ou que o mesmo foi simulado ou que existiu sobresseguro, uma vez que não ficou provado (cujo ónus competia à Ré – cfr. art. 342.º, n.º 2, do Código Civil) que foi o Autor que comunicou ao mediador de seguros um modelo diferente do modelo real do veículo, nem que o fez para originar um incremento no seguro.

Com efeito, no âmbito de contrato de seguro por danos próprios, se a Ré seguradora, na sequência de processo de averiguações relativamente ao sinistro participado e respetivas consequências, se recusa a pagar ao Autor sinistrado a quantia que lhe é devida, incorre em responsabilidade contratual respondendo pelos danos que decorrem dessa recusa de pagamento designadamente a privação de uso do veículo.

Ou seja, a seguradora não pode eximir-se ao pagamento da prestação visto que o segurado tem um interesse digno de proteção legal relativamente ao risco coberto (artigo 43.º, n.º 1, do RJCS) que consiste em ver satisfeita pelo segurador a prestação convencionada "em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato" contrapartida da obrigação de pagamento do prémio (artigo 1.º do RJCS), estando obrigado o segurador a satisfazer a prestação contratual a quem for devida nos termos do artigo 102.º, n.º 1, do RJCS, disposições que se conjugam com o princípio da boa fé no cumprimento da obrigação que consta do artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil

A lei impõe, assim, ao segurador, uma obrigação de liquidação atempada da indemnização, não lhe confere o direito a uma injustificada e inexplicável recusa de pagamento da indemnização devida que se traduziria num manifesto e intolerável abuso do direito que a lei confere à seguradora de proceder a averiguações tendo em vista apurar o sinistro e suas consequências (artigo 334.º, do Código Civil).

(…)

Deste modo, o Autor tem direito a ser ressarcido pelo dano da privação do uso, ou seja, após cessar a utilização do veículo de substituição e até efectivo pagamento da indemnização devida.

Para calcular a quantia devida pela privação do uso, importa atentar na utilização que o Autor fazia do seu veículo, bem como, que desde 14/12/2017 o Autor deixou de beneficiar de veículo de substituição e ainda não recebeu qualquer indemnização da Ré, por isso, de acordo com a equidade deve ser fixada desde já a quantia global de €8.655,00, correspondente aproximadamente à quantia diária de €15,00.

Em suma, a Ré está obrigada a indemnizar o Autor na quantia de €8.655,00 (oito mil, seiscentos e cinquenta e cinco euros), correspondente à privação do uso do seu veículo desde a referida data».

Em sentido diverso, o acórdão recorrido, revogando este segmento da sentença, não arbitrou qualquer indemnização pelo dano da privação do uso, considerando que o segurado não demonstrou que a recusa da seguradora em pagar indemnização pelo valor do veículo fosse injustificada, e, só nos casos em que a seguradora, ao recusar o pagamento da indemnização, viole deveres acessórios de conduta, como o da boa fé, é que será obrigada a ressarcir o dano da privação do uso, conforme resulta do seguinte excerto da fundamentação que agora se transcreve:

«E é exactamente aqui que estará o cerne da questão, ou seja, tudo está em saber/estabelecer, em cada caso, se a justificação da seguradora, para a não realização da prestação devida no prazo fixado, é (ou não) violadora dos deveres de boa-fé (cfr. art. 762.º/2 do C. Civil) e de diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado/credor na prestação (art. 153.º da lei 147/2015).

(…)  

Como acima se disse, ao transcrever o Acórdão desta Relação a que se adere, situações haverá em que não obstante a seguradora se tenha recusado a pagar a indemnização devida, a única sanção será a do pagamento de juros de mora.

Dependendo, em cada caso concreto, da justificação apresentada pela seguradora, para se concluir se a mesma viola ou não os deveres de boa-fé, diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado na prestação, como a isso a obriga o disposto no artigo 153.º da Lei n.º 147/2015.

(…)

Ora, conforme resulta dos factos descritos nos itens 26.º, 27º, 30.º e 31.º, dos factos provados, está assente que o declarado modelo do veículo seguro não corresponde à realidade, o que se traduz no respectivo valor, que ascende ao de 13.088,00 € e não o declarado/indicado de 34.000,00 €; ou seja, verifica-se, efectivamente, um caso de sobresseguro.

A existência de sobresseguro, implica uma indicação em que o capital seguro exceda o valor do interesse seguro (artigo 132.º, n.º 1, do RJCS) e pode justificar a conduta da ré, ao declinar a sua responsabilidade pelo pagamento das peticionadas indemnizações.

Efectivamente, a ré sempre alegou a questão da desconformidade do valor real do veículo seguro e o declarado na proposta de seguro, para não pagar a pretendida indemnização.

É certo que não se demonstrou que foi o autor que indicou qual o Modelo do veículo, mas isso, para a questão sub judice é irrelevante, uma vez que o artigo 132.º da Lei do Seguro, não faz depender a existência de uma situação de sobresseguro de uma conduta dolosa do segurado. Basta-se com a situação objectiva de sobresseguro, relevando a conduta dolosa na prestação de informações para efeitos da validade do contrato, nos termos dos seus artigos 24.º e 25.º

Por outro lado, como resulta do seu artigo 49.º, n.º 1, “O capital seguro representa o valor máximo da prestação a pagar pelo segurador por sinistro ou anuidade de seguro, consoante o que esteja estabelecido no contrato”.

Como se refere na Lei do Contrato de Seguro Anotada, 4.ª Edição, Almedina, a pág. 274, “no âmbito dos seguros facultativos regidos por normas imperativas de lei especial, como é o caso dos seguros que confiram coberturas relativas a danos próprios de veículos automóveis, regulados pelo Decreto-Lei n.º 214/97, de 16.08, cabe ao tomador do seguro fornecer ao segurador os dados que permitam a determinação do valor ou capital seguro, tendo em conta o regime estabelecido”.

(…)

Ora, o autor deveria saber o que comprou, tendo que arcar com as consequências da falsa indicação que consta da proposta de seguro quanto ao Modelo do veículo.

Em suma, a ré tinha o direito de apurar o valor do veículo sinistrado, tendo razões para o fazer, o que se veio a revelar fundado, dada a grande disparidade entre o valor declarado e o real do bem seguro, sendo este o determinante para efeitos da quantificação da indemnização devida pela ocorrência do ajuizado acidente e não qualquer outro.

Consequentemente, daqui decorre que a ré não pode ser responsabilizada pela violação de quaisquer deveres acessórios de conduta, nem da boa-fé negocial, única forma de a responsabilizar pelo pagamento da peticionada indemnização a título da privação de uso do veículo, o que acarreta a improcedência de tal pedido».

3. Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, perfilam-se, essencialmente, duas posições acerca da indemnização do segurado pela privação do uso de veículo, em caso de seguro facultativo/danos próprios, sendo tal divergência extensível, mutatis mutandis, ao pedido de indemnização por despesas de parqueamento.

A posição maioritária propugna o entendimento de que, mesmo não estando o dano pela privação do uso coberto pela apólice de seguro facultativo, existe o dever de indemnizar pela privação de uso de veículo sempre que se verifique que a seguradora ao não agir com prontidão e diligência, atrasou, injustificadamente e de forma abusiva, o desfecho do processo de sinistro, causando danos ao segurado. Neste sentido, pronunciaram-se os Acórdãos de 20-02-2020 (proc. n.º 19475/17.2T8LSB.L1.S1), de 08-11-2018 (proc. n.º 1069/16.1T8PVZ.P1.S1), de 23-11-2017 (proc. n.º 4076/15.8T8BRG.G1.S2), de 23-11-2017 (proc. n.º 2884/11.8TBBCL.G1), de 11-10-2016 (proc. n.º 76/13.0EPS.G1.S1), de 14-12-2016 (proc. n.º 2604/13.2TBBCL.G1.S1).

Como se tem entendido na jurisprudência (Acórdão deste Supremo Tribunal, 20-02-2020, Revista n.º 19475/17.2T8LSB.L1.S1), «Impõe-se à seguradora que actue com a possível prontidão e diligência nas averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos, de acordo com o princípio da boa-fé, pelo que o atraso injustificado da seguradora na gestão célere e eficiente dos processos de sinistro responsabiliza a seguradora no pagamento de indemnização pela privação do uso do veículo, sendo que o dano decorrente da privação do veículo constitui dano patrimonial autónomo, quando o proprietário do veículo danificado se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, nos termos do art. 1305.º do CC, com violação do respectivo direito de propriedade».

4. No caso vertente, o contrato de seguro do ramo automóvel, na modalidade de danos próprios/seguro facultativo, não cobria o valor de privação de uso. Contudo, ainda que o risco de privação do uso do veículo não se encontre adicionalmente coberto pelo contrato de seguro, pode tal ocorrência ser objeto de indemnização, em razão da violação culposa, por parte da seguradora, de deveres acessórios de conduta conexionados com o princípio da boa fé na execução do contrato (artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil),

Daí que se entenda que, como consta do Acórdão deste Supremo Tribunal de 23-11-2017 

(Revista n.º 4076/15.8T8BRG.G1.S2), «No âmbito do contrato de seguro por danos próprios, a seguradora que, na sequência do processo de averiguações relativamente ao sinistro participado e respetivas consequências, se recusa, sem qualquer explicação, a pagar ao sinistrado a quantia que lhe é devida, incorre em responsabilidade contratual respondendo pelos danos que decorrem dessa recusa de pagamento designadamente a privação de uso do veículo». (…) «A lei impõe, assim, ao segurador uma obrigação de liquidação atempada da indemnização, não lhe confere o direito a uma injustificada e inexplicável recusa de pagamento da indemnização devida que se traduziria num manifesto e intolerável abuso do direito que a lei confere à seguradora de proceder a averiguações tendo em vista apurar o sinistro e suas consequências (art. 334.º do CC)».

O Supremo Tribunal de Justiça vem decidindo, maioritariamente, no domínio da responsabilidade extracontratual emergente de acidente de viação que a privação do uso de um veículo automóvel constitui um dano autónomo indemnizável na medida em que o seu dono fica impedido do exercício dos direitos de usar, fruir e dispor inerentes à propriedade, que o artigo 1305.º do Código Civil lhe confere de modo pleno e exclusivo, bastando, para o efeito, que o lesado alegue e demonstre, para além da impossibilidade de utilização do bem, que esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal, 14-12-2016 , Revista n.º 2604/13.2TBBCL.G1.S1).

Da leitura da jurisprudência maioritária a que se fez referência, resulta que o atraso injustificado se reporta a uma avaliação da tomada de posição por parte da seguradora, quando decidiu não assumir a responsabilidade a que estava contratualmente obrigada. Nesta sede, entende-se que a seguradora tem o direito de analisar se está ou não perante causas que excluam a sua responsabilidade, como por exemplo, a simulação de um acidente, uma situação de sobresseguro, etc., sendo responsabilizada pelo atraso no pagamento da indemnização se os motivos de recusa forem manifestamente infundados ou contrários à boa fé.

A regra da conduta de boa fé tem um conteúdo diverso e aberto, que pode ser difícil de concretizar, mas entende a doutrina (cfr. Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 2004, p. 455), que impõe uma ideia de proporcionalidade no exercício de posições relativas, e remete para exigências de consideração para com interesses alheios, «incorporando uma pluralidade muito rica de valores susceptíveis de se articular com variável intensidade entre si, o que faz dela uma realidade de conteúdo multipolar. Uma das circunstâncias relevantes para aferir o conteúdo da boa fé da seguradora será a desigualdade entre as partes e a assimetria informativa típica dos contratos de seguro.

Assim, em face dos critérios aplicados pela jurisprudência citada, tudo se resume em saber se a recusa da seguradora em pagar a indemnização pela perda do veículo – a situação de sobresseguro – constitui ou não uma recusa justificada à luz do princípio da boa fé. Neste avaliação importa analisar se a seguradora atuou com «a possível prontidão e diligência nas averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos, de acordo com o princípio da boa-fé, pelo que o atraso injustificado da seguradora na gestão célere e eficiente dos processos de sinistro responsabiliza a seguradora no pagamento de indemnização pela privação do uso do veículo» (cfr. Acórdão 0-02-2020, proc. n.º 19475/17.2T8LSB.L1.S1).

 

5. No caso vertente, o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel por danos próprios não previa uma cláusula de cobertura facultativa do dano da privação do uso, mas esta indemnização é devida se a seguradora não atribui ao segurado, após o decurso de um período temporal razoável para verificar se existe alguma cláusula de exclusão ou se foi cometida alguma fraude, o valor correspondente à perda do veículo.

Nos termos do facto provado n.º 26, foi celebrado, entre a R., na qualidade de seguradora, e o A., na qualidade de tomador, um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel a que se designou de “Valor Mais” sobre o veículo de matrícula ..-SE-.., titulado pela apólice n.º ...59 e regulado pelas Condições Gerais, Especiais e Particulares, constando como objecto seguro Mercedes-Benz, modelo ... E ..., versão Elegance e o capital seguro de €34.000,00.

Para o que aqui, releva o facto provado n.º 28, indica que, em tal contrato de seguro celebrado com a Ré, o A. contratualizou a cobertura de danos próprios do próprio veículo, tais como choque, colisão ou capotamento, furto ou roubo. Em consequência do contrato de seguro celebrado, a Ré obrigou-se a indemnizar o A. dos danos que fossem ocasionados em consequência da circulação terrestre do mencionado veículo, na eventualidade de ocorrer qualquer acidente, de acordo com as coberturas constantes da apólice referida (facto provado n.º 29).

Nos termos do facto provado n.º 30, o veículo seguro é um modelo ..., ou seja, a versão Classic e não a versão Elegance - e que saiu de fábrica com equipamento apto a servir as funções de táxi, conforme lista do equipamento obtida através do VIN do veículo (vehicle identification number), entre outros, pintura marfim, taxímetro integrado, conexão para sinal luminoso, antena para táxi. O A. despendeu €25.000,00 na aquisição do veículo (facto provado n.º 31). A avaliação eurotax do veículo é de €13.088,00 (facto provado n.º 32).

Decorre, pois, dos factos provados que a ré se obrigou a reparar o autor pelos danos próprios do veículo, resultantes de capotamento, choque ou colisão. Segundo os factos provados n.ºs 8 e 9, o veículo capotou e ficou imobilizado na via, impossibilitado de circular por meios próprios, e, segundo o facto n.º 13, apresentava danos avultados na frente e lateral direita, consequentes do embate na oliveira, e no capot e no tejadilho, decorrentes do capotamento. Segundo o facto 28, em tal contrato de seguro celebrado com a Ré, o A. contratualizou a cobertura de danos próprios do próprio veículo, tais como choque, colisão ou capotamento, furto ou roubo. Adita o facto n.º 29 que, «Em consequência do contrato de seguro celebrado, a Ré obrigou-se a indemnizar o A. dos danos que fossem ocasionados em consequência da circulação terrestre do mencionado veículo, na eventualidade de ocorrer qualquer acidente, de acordo com as coberturas constantes da apólice referida».

O facto n.º 10 afirma que a seguradora declinou a sua responsabilidade, conforme consta de aditamento realizado pelo autor, em 14-02-2018, ao auto de participação elaborado pela GNR.

Nos termos do artigo 128.º da Lei do Contrato de Seguro (DL n.º 72/2008, de 16 de abril), «A prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro». A lei consagrou o chamado princípio indemnizatório, destinado a conter o valor da indemnização dentro da finalidade ressarcitória da responsabilidade civil e tendo em vista inviabilizar o enriquecimento do lesado, prevenindo também a provocação voluntária de danos (cfr. Arnaldo Costa Oliveira, Lei do Contrato de Seguro Anotada, Almedina, Coimbra, 2020, p. 449).

Verificando-se uma situação de sobresseguro, aplica-se o artigo 132.º, segundo o qual,  «1 - Se o capital seguro exceder o valor do interesse seguro, é aplicável o disposto no artigo 128.º, podendo as partes pedir a redução do contrato. 2 - Estando o tomador do seguro ou o segurado de boa fé, o segurador deve proceder à restituição dos sobreprémios que tenham sido pagos nos dois anos anteriores ao pedido de redução do contrato, deduzidos os custos de aquisição calculados proporcionalmente».

Demonstrou-se nos autos que o veículo tinha sido segurado por 34.000,00 euros, o que foi considerado uma situação se sobresseguro em relação à avaliação eurotax. Todavia, não se provou que o sobresseguro fosse imputável ao segurado. Conforme al. e) dos factos não provados, não ficou demonstrado «Que aquando da celebração do contrato de seguro, foi o autor que indicou ao mediador de seguros da ré que o veículo era o Modelo Elegance, para originar um incremento do capital seguro». Prevê a lei que nas situações de sobresseguro, pode haver um pedido das partes para uma redução do prémio a pagar (artigo 132.º, n.º 1, da LCS) e,  na falta de intenção fraudulenta do segurado ou na mera na mera hipótese de não lhe ter sido imputável  o sobresseguro,  a lei estipula a restituição dos sobreprémios a cargo da seguradora nos dois anos anteriores ao pedido de redução do contrato  (artigo 132.º, n.º 2, da LCS). A mesma lógica de proporcionalidade e de equilíbrio das prestações deve presidir à situação em que o sobresseguro só foi detetado aquando a regularização do sinistro, como foi aqui o caso. Não tendo sido o sobresseguro imputável ao segurado, a seguradora não pode recusar a prestação, mas apenas proceder a uma redução proporcional da indemnização a pagar. Esta solução decorre de uma aplicação analógica do artigo 133.º, n.º 2, da LCS, para a hipótese de omissão não fraudulenta de informação quanto à pluralidade de segurados, que só exonera a seguradora do dever de cobertura se a omissão de informação for fraudulenta.

Este princípio de proporcionalidade para os casos de sobresseguro está também consagrado no DL n.º 24/97, de 16 de agosto (regime da maior transparência em matéria de sobresseguro nos contratos facultativos do ramo Automóvel), que estipula no artigo 2.º que «O valor seguro dos veículos deverá ser automaticamente alterado de acordo com a tabela referida no artigo 4.º, sendo o respectivo prémio ajustado à desvalorização do valor seguro. E, no artigo 3.º, estabelece que «A cobrança de prémios por valor que exceda o que resultar da aplicação do disposto no número anterior constitui, salvo o disposto no artigo 5.º, as seguradoras na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, sem direito a qualquer acréscimo de prémio e sem prejuízo de outras sanções previstas na lei».

Entendemos, pois, que, de acordo com a boa fé, o sobresseguro não fraudulento não pode dar lugar a uma recusa da seguradora ao pagamento da indemnização, mas apenas a uma redução da indemnização proporcional ao valor real do bem segurado, o que a seguradora podia e devia ter feito, em vez de recusar até hoje a indemnização ao segurado, taxista, que precisava do automóvel para o exercício da sua profissão.

Assim, tendo a seguradora recusado definitivamente o pagamento da indemnização, quando podia e devia, de acordo com a boa fé, ter procedido, com celeridade, a uma reavaliação do automóvel e adaptar o montante da indemnização ao valor real do veículo à data da celebração do contrato, reduzindo-o proporcionalmente de forma a não causar prejuízo a si própria, nem permitir o enriquecimento do segurado, deve responder pelo dano da privação do uso.

A exigência à seguradora deste comportamento é postulada pelo princípio da boa fé, enquanto dever objetivo de conduta (artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil), e pelo artigo 153.º, n.º 1, da Lei n.º 147/2015, de 9 de setembro, que consagra um dever de as empresas de seguros atuarem de forma diligente, equitativa e transparente no seu relacionamento com os tomadores de seguros, segurados, beneficiários e terceiros lesados.

6. Em conclusão, condena-se a seguradora a pagar a indemnização pelo dano da privação do uso, nos termos decididos pelo tribunal de 1.ª instância, bem como pelos danos decorrentes das despesas com o parqueamento, estes últimos a calcular em execução de sentença, conforme também decidido pelo tribunal de 1.ª instância.

7. Anexa-se sumário elaborado nos termos do n.º 3 do artigo 667.º do CPC:

I – Não tendo ficado provado «Que aquando da celebração do contrato de seguro, foi o autor que indicou ao mediador de seguros da ré que o veículo era o Modelo Elegance, para originar um incremento do capital seguro», devia a ré, de acordo com a boa fé, numa situação de sobresseguro não imputável ao assegurado, reduzir o montante da indemnização em proporção ao valor real do veículo à data da celebração do contrato.

II –Tendo a seguradora recusado definitivamente o pagamento de qualquer indemnização, violou deveres acessórios de boa fé na execução do contrato, respondendo, por isso, pelo dano da privação do uso.  

III – A exigência à seguradora deste comportamento é postulada pelo princípio da boa fé, enquanto dever objetivo de conduta (artigo 762.º, n.º 2 do Código Civil) e pelos deveres acessórios consagrados no artigo 153.º, n.º 1, da Lei n.º 147/2015, de 9 de setembro, que onera as empresas de seguros com o dever de atuarem de forma diligente, equitativa e transparente no seu relacionamento com os tomadores de seguros, segurados, beneficiários e terceiros lesados.

IV - A regra da conduta de boa fé tem um conteúdo diverso e aberto, que pode ser difícil de concretizar, mas entende a doutrina (cfr. Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 2004, p. 455), que impõe uma ideia de proporcionalidade no exercício de posições relativas, e remete para exigências de consideração para com interesses alheios, «incorporando uma pluralidade muito rica de valores susceptíveis de se articular com variável intensidade entre si, o que faz dela uma realidade de conteúdo multipolar.

V - Uma das circunstâncias relevantes para aferir o conteúdo da boa fé da seguradora será a desigualdade entre as partes e a assimetria informativa típica dos contratos de seguro.

 

III – Decisão

Pelo exposto, concede-se a revista, revoga-se o acórdão recorrido e repristina-se a sentença do tribunal de 1.ª instância.

Custas pela recorrida.

Lisboa, 14 de julho de 2022

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Maria João Vaz Tomé (2.ª Adjunta)