Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
971/12.4TBCBR.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
REGISTO A FAVOR DO VENDEDOR
PRESUNÇÃO DERIVADA DO REGISTO
TITULARIDADE DO DIREITO DE PROPRIEDADE
RECURSO
QUESTÃO NOVA
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES - DIREITOS REAIS / POSSE / DIREITO DA PROPRIEDADE / USUFRUTO.
DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO - REGISTO PREDIAL.
Doutrina:
- Antunes Varela, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 120º, p. 121.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 342.º, N.º2, 408.º, 874.º, 875.º, 879.º, 1287.º, 1311.º, 1316.º, 1441.º, 1478.º.
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRP): - ARTIGOS 1.º, 5.º, 7.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 6.1.1988, IN BMJ 373, 533-537;
-DE 26.4.1994, CJSTJ, 1994, II, 63;
-DE 9.10.2007, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1. A transmissão da propriedade de bem imóvel dá-se por mero efeito do contrato – arts. 408º e 879º do Código Civil não sendo o registo sequer constitutivo. O registo na ordem jurídica portuguesa, salvo casos excepcionais, destina-se apenas a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, sendo oponível a terceiros o facto dele constante – arts. 1º, 5º e 7º do CRP.

2. Não tendo os compradores de bem imóvel reivindicado, alegado uma forma originária de aquisição, mas apenas a aquisição derivada do direito real de propriedade pela via de um negócio translativo do direito, no caso um contrato de compra e venda, e tendo-se provado que o alienante directo aos autores compradores beneficiava da presunção registral de ser titular do direito de propriedade do bem objecto do contrato de compra e venda, os compradores beneficiam dessa presunção devendo, por isso, ser reconhecidos como titulares do direito de propriedade se a presunção registral não foi ilidida.

3. Não assentando a permanência da Ré, no rés-do-chão do imóvel reivindicado, mesmo depois de o ter doado ao seu filho – vendedor aos autores – e tendo renunciado ao usufruto de que era titular – a sua pretensão de lhe ser reconhecido o direito de continuar a ocupar aquela parte do imóvel reivindicado, não pode proceder.

4. O pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel constitui questão nova, suscitada pela primeira vez no recurso de revista, que este Tribunal não pode apreciar porque sobre ela não recaiu decisão da instância recorrida. Os recursos ordinários visam o reexame da decisão proferida dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o Tribunal “a quo” no momento em que a proferiu.
Os recursos são meios de impugnação e de reapreciação de decisões proferidas pelo tribunal recorrido e não meios para obter decisões novas, pelo que não pode este Tribunal ser chamado a pronunciar-se sobre questões não suscitadas na decisão de que se recorre, sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária.
Decisão Texto Integral:

Proc.971/12.4TBCBR.C1.S1.

R-477[1]

Revista


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


            AA e mulher BB intentaram, em 12.8.2012, na Comarca de ... – Vara de Competência Mista e Juízos Criminais – Vara de Competência Mista – 2ª secção – acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra:

 CC.

 Pedindo que seja reconhecido o seu direito de propriedade sobre o rés-do-chão do imóvel identificado em 1 e 2 da petição inicial; a Ré condenada a restituir-lhes o imóvel em causa, livre e devoluto de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições e ser a ré condenada a pagar-lhes a título de indemnização a quantia de € 5.000,00.

           

Alegaram, em síntese, que adquiram por compra o identificado imóvel e que a Ré apenas o ocuparia provisoriamente, todavia, até à presente data ainda não o restituiu, causando-lhes prejuízos que quantificam em € 5.000,00.

           

A Ré contestou, pugnando pela improcedência da acção.

           

Alega, em síntese, que o imóvel apenas foi vendido sob a condição da Ré ficar a ocupá-lo, e, em pedido reconvencional, solicita que seja declarado o direito da Ré a habitar o imóvel.

Proferido o despacho saneador, foram especificados os factos assentes e organizada a base instrutória, que não foram objecto de reclamação.


***

            A final foi proferida sentença que:

- Julgou a acção totalmente improcedente, por totalmente não provada e, em consequência absolveu a Ré da totalidade dos pedidos contra si deduzidos pela Autora.

- Julgou a Reconvenção totalmente improcedente, por não provada e, em consequência: absolveu os Autores do pedido contra si deduzido pela Ré.

- Julgou o pedido de condenação como litigante de má-fé deduzido pelos Autores totalmente improcedente, por não provado e, em consequência: absolveu a Ré desse pedido.


***


            Inconformados, os AA. e a Ré recorreram para o Tribunal da Relação de ..., que, por Acórdão de 17.6.2014 – fls. 264 a 286 julgou:

 a) A apelação dos Autores procedente, revogando a sentença na parte em que absolveu a Ré dos pedidos por eles deduzidos, reconhecendo-lhes o direito de propriedade sobre o imóvel indicado no ponto 1) dos factos provados e condenando a Ré a restituir-lhes o rés-do-chão do imóvel livre e devoluto de pessoas e bens;

            b) A apelação da Ré improcedente, confirmando a sentença recorrida na parte em que absolveu os autores do pedido por ela formulado.


***


            Inconformada, a Ré recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça, e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

            A. Crê-se que a decisão recorrida não procedeu à melhor interpretação e aplicação das normas jurídicas de que se socorreu em sede de fundamentação.

            B. O Douto Acórdão vem reconhecer o direito dos Apelados sobre o referido imóvel e considerar que o mesmo direito foi provado, não restando dúvidas acerca da existência tal direito, violando a interpretação que está subjacente ao artigo 7.° do Código do Registo Predial.

            C. Invocar um contrato-promessa de compra e venda para prova de um direito de propriedade sobre uma coisa não se mostra suficiente.

            D. A simples referência à existência de uma escritura pública não é suficiente para a prova do seu direito de propriedade, não provando a aquisição de um direito.

            E. É também entendimento corrente por parte da Doutrina e Jurisprudência que a existência de escritura pública apenas prova que aqueles sujeitos em questão se apresentaram perante o Notário e manifestaram uma determinada vontade, sendo necessário que, no presente caso, os AA. alegassem a presunção da titularidade do direito no sujeito que aparece no registo de acordo com o artigo 7° do C.R.Predial.

            F. Não pode lograr vencimento a ideia que vem sendo defendida pelos AA. de que o seu direito de propriedade possa ser reconhecido mediante declaração ou confissão por parte da ora Ré.

            G. O Douto Acórdão refere-se ainda à força probatória dos documentos particulares tais como a escritura pública, no entanto, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13.09.2012, proferido no âmbito do processo n.°2816/08.OTVLSB.L1 SI, quando refere, “aquela escritura pública (documento autêntico) faz prova plena de que, na presença do notário, foram proferidas as declarações nela inseridas, mas já não prova plenamente que essas declarações sejam verdadeiras ou que sejam válidas ou eficazes”.

            H. Aquando da celebração do contrato-promessa compra e venda do referido imóvel, foi acordado entre a Ré e os AA. que a primeira continuaria a ocupar o imóvel, de onde aliás nunca saiu, bem como a elaboração de um documento que formalizasse tal situação.

            I. O Tribunal da Relação entende que tais estipulações verbais são consideradas essenciais e contrárias ao conteúdo do contrato-promessa, sendo consequentemente nulas.

Ora, de acordo com o proferido no Acórdão da RL de 7.11. 1991, proferido no âmbito do processo n.°0032506, “Elementos essenciais do contrato-promessa de compra e venda são a identidade dos sujeitos e da coisa a transmitir e o preço respectivo”.

            J. As estipulações verbais repetidamente referenciadas pela Ré não poderão ser consideradas nulas, pois enquadrar-se-ão no âmbito das estipulações verbais acessórias. De acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14.09.2010, proferido no âmbito do processo n.°1981/07.9TBGRD.C1.S1[2], verificamos que, pode, todavia, acontecer que a razão da exigência da forma não abranja as estipulações acessórias.

            K. Veja-se também o Acórdão da RL, de 07.11.1991, proferido no âmbito do processo nº 0032506, quando se pronuncia no sentido de que, “no nosso direito não é aceitável o principio de que todo o negócio acessório ou modificativo de um negócio submetido pela lei a forma especial tenha de seguir a forma deste” (Vaz Serra, RLJ 108/335, penúltimo parágrafo da primeira coluna; cfr. art. 410 Código Civil).

            L. Os artigos 220.° e 221.°, ambos do Código Civil, devem ser entendidos no sentido de não obstarem a que, estipulações verbais acessórias como as alegadas pela Ré, sejam consideradas válidas e eficazes.

            M. Os AA. na qualidade de compradores do referido imóvel, agiram com má-fé ao exercerem o seu direito, uma vez que, os mesmos se aproveitaram da incúria, da idade avançada e da boa-fé da Ré, que confiou na palavra daqueles, no sentido de se vir a garantir e acautelar a sua em relação ao imóvel. A entender-se que é nulo o contrato verbal celebrado pelas partes, devido à falta de elementos essenciais, tal facto apenas se deveu ao comportamento dos AA., que não diligenciaram, tal como fora acordado, de reduzir o contrato a escrito.

            N. Ao alegarem a nulidade do contrato, os AA. estão a beneficiar de uma situação a que os próprios deram origem e tal facto consubstancia-se na existência de abuso de direito de acordo com o previsto no artigo 334.° do Código Civil.

 De acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do processo n.º1464/11.2TBGRD-A.C1.SI, de 12/11/2013: “São pressupostos desta modalidade de abuso do direito – venire contra factum proprium – os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente: a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento”que nela assentou.”

O. Encontram-se portanto verificados no presente caso os pressupostos do referido instituto do abuso de direito, e assim sendo, tal comportamento não deve ser alvo de qualquer merecimento por parte do ordenamento jurídico vigente, uma vez que, terá como consequência a desocupação por parte da Ré, agora de idade avançada, da casa que a mesma construiu e onde sempre viveu. Por conseguinte, apenas mediante o reconhecimento de que os AA actuaram contrariamente à boa-fé e aos bons costumes se conseguirá fazer frente à grave injustiça que seria a Ré ver-se destituída da sua habitação, e desta forma a garantir que não fique a mesma privada de um dos direitos mais elementares que é o direito à habitação, de acordo com o consagrado no artigo 65.° da CRP.

            P. Ainda que não se partilhe de tal convicção, sempre poderá a Ré invocar a existência de posse a seu favor. Sendo a posse constituída por dois elementos, corpus e animus, ambos se encontram presentes no presente caso, verificando-se assim cumprido o disposto no artigo 1251.° do Código Civil.

            Q. A Ré sempre se comportou como proprietária do imóvel, sempre praticou actos materiais sobre o imóvel. O próprio Tribunal da Relação de ... reconheceu e afirmou que, “É certo que, tendo ficado provado que ocupava o rés-do-chão, à data do contrato-promessa e que o continuou a ocupar, a Ré tem exercido o poder de facto sobre o rés-do-chão”.

            R. A Ré sempre se comportou e actuou como sendo proprietária do imóvel em causa, concretamente do rés-do-chão, praticando actos correspondentes a este direito.

            S. Quando se refere no Douto Acórdão que não se pode presumir que a Ré tenha posse, estamos perante uma clara violação dos artigos 1252.°, n.° 2 e 1268.°, n.° 1 do Código Civil.

            T. Sempre se poderá entender que, ainda que o Tribunal da Relação tenha posição contrária, perante a ausência do elemento animus, o que não se verifica no presente caso, a verificação deste elemento deve presumir-se a favor de quem exerce poderes de facto sobre a coisa.

A este propósito é de notar o Acórdão do Tribunal da Relação de ..., de 17/11/2009, proferido no âmbito do processo n° 106/06.2TBFCR.Cl, quando refere que, “Posse delimitada como o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251° do Código Civil). Com efeito, em caso de dúvida, a posse presume-se em quem exerce o poder de facto (artigo 1252º, nº2, do Código Civil). Na sua essência, presume-se o exercício do animus naquele que detém o corpus, presunção a que subjaz a dificuldade de provar o animus.”

            U. Ainda que tal não se entenda, sempre poderá a Ré invocar uma das formas de aquisição originária da propriedade: a usucapião, prevista no artigo 1316,° do Código Civil Segundo o artigo 1287.° do Código Civil, “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião”.

            V. Constituem requisitos para a aquisição da propriedade por usucapião, a existência de posse, a mesma ser pública e pacífica e também a necessidade de esta ter que ser invocada. Ora, o primeiro requisito, tal como já tivemos oportunidade de referir, encontra-se verificado e ainda que assim não se entendesse, sempre beneficiaria a Ré da presunção estabelecida no artigo 1252.° do Código Civil, pois segundo este, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto sobre a coisa.

            W. A posse é pública e pacífica, pois, a Ré sempre viveu no referido imóvel, sempre se comportando como proprietária, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse.

            X. A Ré sempre ocupou o referido imóvel e sempre se comportou como sua proprietária, concretamente do rés-do-chão do referido imóvel, mesmo depois da doação feita ao seu filho. Segundo Pires de Lima e Antunes Varela “Assim, a prática de actos materiais (actuação de facto) correspondentes ao exercido do direito de propriedade (corpus) com a intenção de exercício deste direito (animus) e a duração e permanência dessa situação, são, pois, os elementos deste “modo de aquisição originária de direitos reais, pela transformação em jurídica de uma situação de facto, de uma mera aparência, em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa” – Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., p.64.

            Y. Sendo a usucapião um dos efeitos deveras importante da posse, deverá ser permitido à Ré, uma vez que se encontram preenchidos os requisitos pressupostos, a aquisição do direito de propriedade, nos termos do artigo 1287.° e 1316.°, ambos do Código Civil.

            Z. Normas jurídicas violadas: art. 7 ° do Código do Registo Predial, art. 220.°, 221.°, 334.°, 1251.°, 1252.°/2, 1268.°/1, 1287.°, 1316.°, todos do Código Civil.

            Nestes termos, deve proceder o presente recurso e, consequentemente, alterar-se a decisão recorrida no sentido de se reconhecer à Ré o direito de habitar o rés-do-chão do imóvel.

            Os AA. não contra-alegaram.


***

            Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

            “A) O Autor marido, ainda solteiro, outorgou contrato promessa de compra e venda em 30.07.2010, com vista à aquisição do imóvel urbano destinado a habitação composto de rés-do-chão e primeiro andar, sótão e logradouro, sito na Rua …, n.º … em …, inscrito àquela data, na matriz predial urbana da freguesia de ..., ... sob o artigo provisório …, antigo artigo …, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 978 da freguesia de ....

B) Posteriormente, os AA. compraram tal imóvel a DD e EE, mediante escritura pública outorgada em 17.12.2010 no Cartório Notarial da Dr.ª FF (doc. de fls. 30 e ss. que aqui se dá por reproduzido), tendo o prédio passado a ter inscrição definitiva na matriz urbana sob o artigo ….

C) À data da promessa de compra e venda, por parte dos agora Autores, o mesmo encontrava-se, então, ocupado pela Ré, mãe do vendedor do imóvel, DD, a qual ocupava o rés-do-chão do referido imóvel.

1. Os Autores suportam, até à presente data, as despesas da Ré com a electricidade e água.

2. Por uma vez a Ré permitiu que peregrinos se refrescassem no jardim do imóvel.

3. Recentemente, com data de 28.09.2012, a Ré deixou aos Autores um cheque cuja cópia se encontra junta a fls. 98, alegadamente para pagamento da água e da luz.”

Por ter interesse para a decisão da causa (como adiante se evidenciará melhor), nos termos do art. 607, nº4, do Código de Processo Civil, considera-se, ainda, provado o seguinte:

“4. No contrato-promessa referido em A) consta a seguinte cláusula: “5.2. O primeiro outorgante compromete-se a vender o imóvel melhor identificado no considerando I do presente contrato [o identificado em A)], livre de quaisquer ónus ou encargos e devoluto de pessoas e bens”;

 “5. Na escritura pública outorgada, referida em B), DD e EE declararam:

 “Que pela presente escritura vendem, livre de quaisquer ónus ou encargos, aos segundos outorgantes [os aqui autores] pelo preço de cento e trinta e cinco mil euros que já receberam o seguinte imóvel: “Prédio urbano, composto de edifício destinado a habitação de rés-do-chão e primeiro andar, sótão e logradouro, situado na Rua …, nº …, no lugar e freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob o número novecentos e setenta e oito, da freguesia de ..., onde se mostra registado a seu favor pela apresentação um de onze de Abril de mil novecentos e noventa e quatro, inscrito na matriz sob o artigo … (proveniente do anterior artigo …) com o valor patrimonial tributário de 106 670,00 euros”.

6. Na mesma escritura a Sr.ª Notária declarou: “Exibiram-me: Certidão Predial Permanente com o código de acesso …, por onde verifiquei os números de descrição e inscrição referidos (…)”.

7. Por escritura de 16.1.1995 a Ré e o então marido GG renunciaram ao usufruto registado a seu favor pela inscrição … do prédio referido em A).”

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações que se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- se aos AA. poderia ter sido reconhecido o direito de propriedade sobre o imóvel que adquiriram;

- se um acordo verbal com a Ré, no sentido desta permanecer no imóvel após aquele negócio, deveria ter obedecido à exigência de forma de que se revestiu o contrato promessa de compra e venda e o contrato prometido:

- Se os AA., ao não terem reduzido a escrito tal acordo, actuaram com abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium;

- Se a Ré exerceu actos de posse sobre o rés-do-chão do imóvel idóneos para adquirir por usucapião o direito de propriedade.

Vejamos:

Os AA., atenta a causa de pedir e o pedido formulado na acção, intentaram uma acção de reivindicação – art. 1311º do Código Civil. Com efeito, pedem que se lhes reconheça o direito de propriedade sobre o imóvel que identificam e se condene a Ré, que o ocupa sem qualquer título, a restitui-lo.

Alegaram ter celebrado um contrato promessa de compra e venda e depois o contrato prometido, e, não obstante pedirem a entrega do imóvel à Ré que ao tempo ocupava o rés do chão, esta se recusa alegando ter o direito de aí residir, de harmonia com acordo verbalmente celebrado com os compradores.

Quanto ao pedido fulcral na acção real de defesa do direito de propriedade que a acção de reivindicação é, foi ele julgado improcedente na primeira instância com o fundamento de que não sendo o contrato de compra e venda um contrato senão translativo do direito de propriedade, e não tendo os reivindicantes alegado uma das formas originárias de aquisição de tal direito, mormente, a usucapião, nem beneficiando da presunção registral – art. 7º do CRP – não se poderia considerar que eram titulares do direito que se arrogam; como tal, não poderiam reivindicar a entrega daquilo de que não almejaram provar serem donos.

Já a Relação, aditando à matéria de facto oriunda da 1ª Instância os factos antes elencados sob os itens 4) a 7) considerou, diversamente, ou seja,  que os AA. fizeram a prova de serem os donos do imóvel reivindicado, baseados na presunção registral constante da escritura notarial de compra e venda e por aí constar que o imóvel estava registado em nome do vendedor.

Dispõe o art. 1311º do Código Civil:           

           

“1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.

2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”.

 “A acção de reivindicação desdobra-se em dois pedidos: um, o do reconhecimento do direito de propriedade; o outro, o da restituição da coisa.

 Demonstrado pelo autor o seu direito de propriedade o réu só pode evitar a restituição da coisa desde que demonstre que tem sobre ela outro qualquer direito real que justifique a sua posse ou que a detém por virtude de direito pessoal bastante.” – cfr. inter alia, Ac. deste Supremo Tribunal de Justiça, de 26.4.1994, CJSTJ, 1994, II, 63.        

O contrato de compra e venda de imóveis, celebrado através de escritura pública é translativo do direito de propriedade – arts. 874º, 875º e 879º a) do Código Civil.

O direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei – art.1316.°, do Código Civil.

A usucapião é uma forma originária de aquisição daquele direito real – arts. 1287º e 1316º do citado diploma.

O art. 1478º do citado diploma estatui – “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida opor certo lapso de tempo faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação é o que se chama usucapião”. 

A posse conducente a usucapião, tem de ser pública e pacífica, influindo as características de boa ou má-fé, justo título e registo de mera posse, na determinação do prazo para que possa produzir efeitos jurídicos.

 Tendo o Autor invocado a aquisição do direito de propriedade através de contrato de compra e venda, em bom rigor fê-lo invocando, meramente, um contrato translativo do direito de propriedade, ou seja, um modo derivado de aquisição.

Entende-se de harmonia com o velho brocardo “nemo plus iuris in aliud transferre potest quam ipse habet” que o adquirente do direito de propriedade, deve alegar um dos meios de aquisição originária do direito, por forma a garantir-se a certeza jurídica de que adquiriu aquilo que existia na titularidade patrimonial do alienante.

A transmissão da propriedade de bem imóvel dá-se por mero efeito do contrato – arts. 408º e 879º do Código Civil não sendo o registo sequer constitutivo. O registo na ordem jurídica portuguesa, salvo casos excepcionais, destina-se apenas a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, sendo oponível a terceiros o facto constante do registo – arts. 1º, 5º e 7º do CRP.

O comprador reivindicante poderia também lançar da presunção de posse e/ou da presunção registral do direito esta nos termos do art. 7º do CRP.

No acórdão recorrido escreveu-se:

“E se a propriedade do prédio estava registada a favor dos vendedores (transmitentes do direito), tinham estes a seu favor a presunção decorrente do art.7º do CRP, ou seja, a presunção de que o direito de propriedade existia e lhes pertencia.

Mas se é assim, como é, também os adquirentes devem beneficiar dessa presunção.

É o que refere Antunes Varela: “A ideia de que, na aquisição derivada, não basta para provar a existência do direito do reivindicante a alegação do negócio de aquisição (da compra e venda, da doação, da permuta, etc.) nem o registo deste negócio porque pode faltar o direito do transmitente, é perfeitamente justificada.

Mas já não é assim quando o transmitente seja o último titular (do direito) inscrito no registo – facto que, naturalmente, necessita de ser provado. Quando assim suceda, mesmo que o último inscrito no registo não seja apoiado na cadeia ininterrupta de transmissão desde a descrição e a primeira inscrição do imóvel no registo (por falta ou por não aplicação do princípio do trato sucessivo), a prova do direito do adquirente beneficia já da presunção da existência do direito do transmitente, que resulta do registo. Seria um absurdo exigir, mesmo nesse caso, a prova da cadeia ininterrupta do imóvel até se mostrar um título de aquisição originária” – (in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 120º, pág. 121, citado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9.10.2007, Urbano Dias, in www.dgsi.pt)”.

No Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 6.1.1988, in BMJ 373, 533-537, pode ler-se:

“Sendo certo que na acção de reivindicação incumbe ao demandante provar o direito de propriedade sobre a coisa reivindicada – arts. 1311º e 342º do Código Civil – isso não significa que a prova do direito de propriedade terá necessariamente que ser feita através de factos que demonstrem a aquisição originária do domínio, já que na derivada ninguém pode transmitir mais direitos do que os que possui.

Nestes haveria uma função translativa enquanto que naqueles se adquiriria um direito novo, independente e autónomo. Tal, não impõe, porém, que na aquisição derivada se torne necessário provar, por parte do reivindicante todas as necessárias aquisições dos antecessores até à aquisição originária; não basta, para provar a existência do direito do reivindicante, a alegação do negócio de aquisição – o contrato – nem o registo deste, porque pode faltar o direito do transmitente, o que já não acontece quando o transmitente seja o último titular do direito inscrito no registo, facto que, naturalmente, necessita ser provado.

Quando, assim, sucede, mesmo que o último inscrito no registo não esteja apoiado numa cadeia ininterrupta de transmissão desde a inscrição do imóvel no registo, a prova do direito do adquirente beneficia já da presunção da existência do direito do transmitente, que resulta do registo”.

Concordamos com esta argumentação.

Com efeito, desde logo, importa afirmar, pese embora as inflexões da alegação da Ré a este respeito (que adiante analisaremos com mais minúcia), que, em bom rigor, por ela não é posto em causa o facto do vendedor (alegadamente seu filho) ser o dono do imóvel e que este estava registado a favor dele, não tendo a Ré de forma alguma questionado que o direito de propriedade plena (depois dela ter renunciado ao usufruto sobre o imóvel) se ter radicado no filho vendedor aos AA. ora reivindicantes.

Trata-se assim de, inquestionavelmente, a Ré reconhecer um direito em consonância com o que os AA. alegaram e que ela não controverte: o imóvel foi vendido aos AA. por quem era titular do direito de propriedade, e que, como vimos, estava registado a seu favor, presunção de que beneficiam os adquirentes, aqui autores.

Assim sendo, não se vê razão pela qual, não tendo os AA. alegado uma forma originária de aquisição, mas apenas a aquisição derivada do direito real de propriedade pela via de um negócio translativo do direito, no caso um contrato de compra e venda, e tendo-se provado que o alienante directo aos AA. beneficiava da presunção registral dispensando-os da prova da existência do direito na esfera do alienante, nenhuma prova mais importa fazer para que se considerem os reivindicantes titulares do direito que impetram lhes seja reconhecido; só assim não seria se a Ré tivesse ilidido a presunção registral do art. 7º do CRP. Nesse caso os AA. porque não tinham feito prova de que o direito adquirido existia na esfera jurídico-patrimonial do transmitente não estavam dispensados de provar a aquisição do direito por qualquer meio de aquisição originária.

A demandada, na sua contestação/reconvenção, alega que ela o seu marido fizerem doação do imóvel ao filho, vindo ela, após a morte do marido, a renunciar ao usufruto de que era titular (usufruto sucessivo – art. 1441º do Código Civil). Depois de alegar que o filho vendeu o prédio aos AA. e que sempre morou no rés-do-chão, tendo sido acordado que lá continuaria a viver depois do contrato de compra e venda, culmina o seu pedido reconvencional não no sentido do reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel mas apenas impetrando que lhe seja “reconhecido o direito de habitar o rés-do-chão”.

Daqui resulta não só, expressa senão tacitamente, que a Ré não pôs em causa o direito de propriedade dos Autores.

Analisando a segunda questão.

A Ré sustenta que, entre ela e o Autor, foi acordado verbalmente que continuaria a morar no rés-do-chão, sendo que esse acordo fez com que o preço da compra e venda tivesse sido inferior ao valor real e que os AA. não fora isso teriam que pagar. Mais alegou que os Autores, agindo em contrário ao seu compromisso, não reduziram a escrito esse acordo e agora negam-no; articula este comportamento com o enquadramento das cláusulas acessórias do contrato e que não obedeceu sob ponto de vista formal aos elementos essenciais do contrato e ao abuso do direito – art. 334º do Código Civil – na modalidade de venire contra factum proprium.

Tratando-se de factos exceptivos competia à Ré o ónus de prova – art. 342º, nº2, do Código Civil.

Os factos alegados foram levados à Base Instrutória (B.I.), porque impugnados pelos AA., sob a seguinte formulação – fls. 133-134:

Aquando da realização do contrato de promessa, ficou estipulado, oralmente, que a Ré ficaria a viver no rés-do-chão da casa até à sua morte” – (ponto 4º da B.I.)

Como condição sine qua non para realização da venda impunha-se a manutenção da Ré naquela habitação?” – (ponto 5º da B.I.)

Facto com que os AA. concordaram?” – (ponto 6º da B.I.)

Como contrapartida, o preço do imóvel foi diminuído em cerca de € 10.000, 00?” – (ponto 7º da B.I.).

O Autor prometeu redigir um documento onde tal situação era definida, o que não fez, apesar de lho ter sido solicitado diversas vezes?” – ponto 8º da B.I.).

Ficou acordado com os AA. que a Ré contribuía todos os meses com o montante de € 50,00, para as despesas, nomeadamente, de água e electricidade?” – (ponto 9º da B.I.).

Após a aquisição do prédio pelos AA. a Ré sempre procedeu ao pagamento daquela quantia de € 50, 00?” – (ponto 10º da B.I.)

Todos estes quesitos tiveram a resposta de “Não provado”.

Este Tribunal tem que aceitar a matéria de facto e concluir que a Ré não fez qualquer prova da existência do acordo verbal que diz ter celebrado com o Autor e que lhe permitiria, por mero consenso, morar no rés-do-chão do imóvel após o contrato de compra e venda.

Daí que não se tem provado a existência de qualquer acordo com o conteúdo alegado pela Recorrente, ou seja, que entre ela e o Autor foi convencionado, verbalmente, que aquela continuaria no rés-do-chão do imóvel, mesmo após o contrato de compra e venda, prejudicada fica a apreciação das questões suscitadas pela recorrente no que respeita à validade desse alegado acordo e a actuação dos AA. como abusiva do direito.

Sustenta a Ré ter exercido actos de posse sobre o rés-do-chão do imóvel, posse essa que, no seu entender, é boa para adquirir por usucapião o direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado.

Como antes dissemos, a Ré defende com equivocidade a sua pretensão baseada na ocupação que faz do rés-do-chão do imóvel.

 O Tribunal só poderá operar com os factos provados e esses são os que resultam das alíneas C) e D) dos factos assentes:

 “À data da promessa de compra e venda, por parte dos agora Autores, o mesmo encontrava-se, então, ocupado pela Ré, mãe do vendedor do imóvel, DD, a qual ocupava o rés-do-chão do referido imóvel. Actualmente, a Ré continua no imóvel”.

Lembremos que a Ré, na reconvenção, pediu apenas que se lhe reconhecesse o direito de continuar a residir no rés-do-chão.

Todavia, nas conclusões das alegações do recurso de revista, a recorrente alega que sempre se comportou e actuou como sendo proprietária do imóvel, concretamente do rés-do-chão (conclusão R.), na conclusão U. sustenta que pode invocar a usucapião – arts. 1316º e 1287º do Código Civil.

Finalmente, na conclusão X., afirma que “sempre ocupou o referido imóvel como sua proprietária mesmo depois da doação feita ao seu filho […]”.

Não tendo sido colocada, em sede de recurso de apelação, a questão do alegado direito de propriedade da Autora sobre o imóvel adquirido pelos AA., tendo a reconvenção sido julgada improcedente e sendo tal pretensão reconvencional relativa apenas ao alegado reconhecimento do direito da Autora continuar a sua permanência no rés-do-chão ao abrigo do acordo invocado, acordo que poderia ter cariz meramente obrigacional, essa pretensão constitui questão nova, porque submetida pela primeira vez no recurso de revista.

Com efeito a Recorrente peticiona, agora, que lhe seja reconhecido o direito de propriedade, por via de alegados actos de posse conducentes à aquisição do direito de propriedade por usucapião, embora continue a pedir que se “altere a decisão recorrida no sentido de se reconhecer à Ré o direito de habitar o rés-do-chão do imóvel.”

            Assim, na conclusão Y. alega: “Sendo a usucapião um dos efeitos deveras importante da posse, deverá ser permitido à Ré, uma vez que se encontram preenchidos os requisitos pressupostos, a aquisição do direito de propriedade, nos termos do artigo 1287.° e 1316.°, ambos do Código Civil”.

 

            O pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel constitui questão nova que este Tribunal não pode apreciar porque sobre ela não recaiu decisão da instância recorrida.

 Os recursos ordinários visam o reexame da decisão proferida dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o Tribunal “a quo” no momento em que a proferiu.

Os recursos são meios de impugnação e de reapreciação de decisões proferidas pelo tribunal recorrido e não meios para obter decisões novas, pelo não pode o tribunal “ad quem” ser chamado a pronunciar-se sobre questões não suscitadas na decisão de que se recorre, sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária.

            Neste entendimento, este Supremo Tribunal de Justiça não pode apreciar a pretensão da Recorrente, no que respeita à aquisição do direito de propriedade do imóvel, por se tratar de questão nova.

Não merece, destarte, censura o Acórdão recorrido.

Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pela Ré/recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga.

             Supremo Tribunal de Justiça, 17 de dezembro do 2014

Fonseca Ramos (Relator)

Fernandes do Vale

Ana Paula Boularot


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[1] Relator – Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheiro Fernandes do Vale.
Conselheira Ana Paula Boularot.

[2] Consultada a base de dados citada, cremos ter havido erro na identificação do processo. Fica a indicação certa.