Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B3014
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: QUIRINO SOARES
Descritores: COMPRA E VENDA
NULIDADE DO CONTRATO
TRADIÇÃO DA COISA
TRANSMISSÃO DA POSSE
COMPROPRIEDADE
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
Nº do Documento: SJ200311200030147
Data do Acordão: 11/20/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : 1. A norma do artº1406º, 2, CC, tem perfeita aplicabilidade no âmbito da comunhão hereditária.
2. Embora nula ou ineficaz, a compra e venda que seja acompanhada da traditio do prédio, opera a transferência da posse do vendedor para o comprador.
3. Sendo titular de uma composse (correspondente ao direito de comproprietário), o vendedor não pode transmitir ao comprador mais posse do que a que tinha (nemo plus juris ad alium transferre potest, quam ipse habet).
4. Embora substancialmente nula ou ineficaz, a venda, se formalmente válida, permite ao comprador juntar a sua posse (composse) à que o vendedor havia transmitido, conforme prescreve o artº1256º, 1 e 2, CC.
5. Uma posse assim transmitida é uma posse jure proprio, porque assim resulta, inequivocamente, da causa da posse, isto é, da natureza do acto jurídico por que se transferiu o direito susceptível de posse.
6. A acção reivindicatória, que o artº1311º, CC, prevê, serve a pretensão do proprietário não possuidor contra o possuidor não proprietário, ou a do proprietário possuidor contra o detentor, e está, inclusive, ao dispor do comproprietário face a terceiro, mas não foi concebida, nem podia sê-lo, para ser usada entre comproprietários.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
1. A e filhos pediram, contra B e marido C, e outros, a condenação dos réus a reconhecer o direito de propriedade exclusivo, que invocam, sobre a casa de dois andares, sita no ...., freguesia de Penamacor, e inscrita no artº714, da correspondente matriz.
Os réus alegaram a qualidade de comproprietários sobre metade indivisa do prédio, e, nesse qualidade, reivindicaram-no com êxito, nas instâncias.
Os autores pedem, agora, revista, fundamentando em que, apesar de não provado o animus possidendi, beneficiam, mesmo assim, da presunção consagrada no nº 2, do artº1252º, CC (1), que não foi ilidida, e com base na qual provam uma posse pública e pacífica por tempo suficiente para adquirirem, por usucapião, a totalidade do prédio.
Houve contra-alegações.
2. São os seguintes os factos provados:
· por escritura pública de 7 de Outubro de 1961, celebrada no Cartório Notarial de Penamacor, os ali outorgantes D e E, marido de A, declararam respectivamente vender e comprar a casa de habitação de dois andares sita no Beco da rua Taborda, freguesia de Penamacor a confrontar do norte e poente com Beco da rua Taborda, nascente com rua pública e sul com F, inscrita na respectiva matriz sob o artigo 714;
· E faleceu em Penamacor, a 29 de Abril de 1991;
· como únicos herdeiros, sucederam-lhe A e os filhos de ambos;
· a aquisição não foi registada;
· a aquisição de metade daquela casa foi, através da apresentação 01/100369, registada a favor de G e H , por partilha judicial da herança deixada por I ou e marido D;
· os réus registaram a seu favor, em comum e sem determinação de parte ou direito, através da apresentação 01/270794, a aludida metade indivisa, por sucessão hereditária de G e mulher H;
· na data da escritura pública, aludida, A e seu marido, E, receberam as chaves e passaram a tratar a referida casa, sempre entrando e saindo dela, guardaram as respectivas chaves, cederam a terceiros o seu respectivo gozo, providenciaram ao necessário para o seu bom estado de conservação e transformação, sem pedirem autorização de quem quer que fosse o que fizeram durante mais de 20 anos, sempre à vista de toda a gente;
· após o falecimento de E, marido de A, esta e seus filhos, na qualidade e representantes da herança que ficou por óbito de seu marido e pai, continuaram a praticar todos aqueles actos;
· a herança aberta por óbito de E mantém-se indivisa;
· D, que outorgou como vendedor na escritura de venda ao marido de A, faleceu no estado de viúvo de I e não deixou descendentes;
· A não foi interessada no inventário, nem interveio na partilha judicial da herança dos referidos I e D;
· quando foi celebrada a escritura de 7.10.61, entre D e E, a casa pertencia já à herança aberta pelo falecimento de I (mulher do outorgante vendedor na escritura), cujo óbito ocorreu em 29/7/1946, casada que fora no regime da comunhão geral com o referido D;
· A e marido tinham perfeito conhecimento dessa situação;
· do inventário nº32/67, do Tribunal Judicial de Penamacor, aberto por óbito de D e I, fez parte, entre outras, a verba nº12 que corresponde a metade da casa que foi objecto da aludida escritura de compra e venda;
· essa verba foi licitada pelos avós das rés, H, que também usava o nome de H , e G, aos quais foi adjudicada;
· ao longo dos últimos 30 anos, têm os avós das rés J e L e os próprios réus praticado junto de diversas repartições actos inerentes à qualidade de proprietários, nomeadamente efectuando correcção à matriz predial;
· os réus foram residir para Lisboa;
· A referiu, pelo menos à testemunha M, que metade da casa não era dela;
· A e marido sempre tiveram consciência de que quando foi celebrada a escritura de 7.10.61, entre D e E, a casa pertencia já à herança aberta pelo falecimento de I, mulher do outorgante vendedor.
3. Prescreve o nº2, do artº1406º, CC, que "o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título".
É esta uma regra que, de acordo com o estabelecido no artº1404º, CC, se aplica "com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles".
É uma regra, acrescenta-se, que tem perfeita aplicabilidade no âmbito da comunhão hereditária.
Esta referência à comunhão hereditária impunha-se porque, afinal de contas, o prédio, quando foi vendido, já se encontrava afecto ao acervo hereditário da falecida mulher do vendedor.
Circunstância esta que convoca, necessariamente, o artº2091º, 1, CC, segundo o qual "...os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros...", e que, aplicado à escritura de 7 de Outubro de 1961, significa que, para ser válida a venda, ela deveria ter tido a intervenção activa dos herdeiros da falecida mulher do vendedor.
Aquele negócio é, pois, nulo e ineficaz relativamente à herança, mas, pelos vistos, os herdeiros entenderam-no como a venda da metade indivisa correspondente à qualidade de meeiro, que o vendedor tinha, nos bens que compunham o património do dissolvido (por morte da mulher) casal.
Outra coisa se não pode, ou deve, com efeito, concluir do facto de, no inventário por morte daquele vendedor e da mulher, ter sido relacionada e partilhada apenas a metade indivisa do prédio.
Podendo, portanto, arrogar-se o direito de propriedade sobre a totalidade da casa, invocando a nulidade e, mesmo, a ineficácia do contrato de compra e venda de 7 de Outubro de 1961, os réus limitaram-se a pedir que lhes seja reconhecido o direito à tal metade indivisa, numa espécie de conversão do negócio, ao estilo do artº293º, CC.
Limitaram-se a tal, e bem, ao fim e ao cabo, embora os caminhos certos sejam outros.
É que, embora nula ou ineficaz, a compra e venda, por ter sido acompanhada da traditio do prédio ("na data da escritura pública,... a autora e seu marido receberam as chaves e passaram a tratar do prédio urbano..."), teve o condão de transferir a posse do vendedor para o comprador (cfr. artº1263º, b, CC, onde se prevê e descreve, precisamente, o modo de aquisição derivada da posse).
Mas está claro que, sendo titular de uma composse (correspondente à situação de contitular do acervo do extinto casal, em cuja posse, por via sucessória, e nos termos do artº1255º, CC, haviam ingressado os filhos do casal), o vendedor não poderia ter transmitido ao comprador mais posse do que a que tinha (nemo plus juris ad alium transferre potest, quam ipse habet).
Foi a medida de posse correspondente à sua condição de titular da meação nos bens do casal (pois o casamento regia-se pela comunhão geral e o óbito da mulher do vendedor ocorreu antes da reforma do Código Civil, introduzida pelo DL 496/77, de 25/11, que acrescentou o cônjuge sobrevivo ao elenco dos herdeiros legais), foi aquela medida, dizíamos, que o vendedor transmitiu para o comprador.
E, embora substancialmente nula ou ineficaz, a venda, porque formalmente válida, permite ao comprador ou herdeiros juntar a sua posse (composse) à que o vendedor havia transmitido, conforme prescreve o artº1256º, 1 e 2, CC.
É inquestionavelmente, e naquela medida, uma posse jure proprio, porque assim resulta, inequivocamente, da causa da posse, isto é, da natureza do acto jurídico por que se transferiu o direito susceptível de posse.
E não só por isso, mas, também, porque o comprador e, agora, os seus herdeiros e sucessores beneficiam da presunção prevista no artº1252º, 2, CC, que não foi ilidida pelo simples facto de não ter ficado provado, perante o julgador de facto, o animus da actuação dos possuidores aparentes.
Com efeito, uma presunção juris tantum, como aquela, só soçobra perante a prova do contrário (artº350º, 2, CC).
Posse jure proprio e, além disso, pacífica, na acepção do artº1261º, CC.
Não se compreende, aliás, como foi possível por em causa uma tal característica, apenas porque vem omitida na resposta ao quesito que a continha.
A omissão pode ter resultado da consideração de que se tratava de matéria de direito (saber se a posse foi adquirida pacificamente envolve, com efeito, uma indispensável consulta da lei, uma qualificação jurídica de factos), mas, ainda que assim não tenha sucedido, o certo é que a omissão nada vale perante a prova provada de que a posse foi adquirida através de um contrato de compra e venda acompanhado de uma pacífica entrega das chaves.
Como dizer, nestas circunstâncias, que se não provou que a posse "foi adquirida sem violência" (artº1261º,1, CC)?
A posse (composse) dos autores/recorrentes tem, assim, todas as características e a antiguidade bastante para produzir a aquisição da propriedade do prédio, na medida correspondente, isto é, a compropriedade.
Na indicada medida, é, com efeito, uma posse de boa fé (artº1260º, 1, CC), com justo título (artº1259º, 1, CC), pacífica (artº1262º, 1, CC), com mais de 30 anos, à data da propositura da acção (artº1296º, CC).
Só que, e é ocasião de voltar ao princípio, "o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título".
O facto de, durante todos estes anos, o antigo comprador e, agora, a viúva e herdeiros se terem comportado como donos exclusivos da casa, nenhum prejuízo provocou nos direitos do outros compossuidores, herdeiros da falecida mulher do vendedor.
A menos que, por um acto ostensivo de oposição ao uso dos respectivos compartes, tivessem provocado a inversão do título da posse relativamente à parte destes.
Mas não foi o caso.
Antes pelo contrário. A prova produzida vai, até, no sentido de que houve, da parte do comprador e herdeiros, a consciência de que, ali, o senhorio não era só deles.
Temos, assim, uma compropriedade entre autores (donos de metade indivisa) e os réus (donos da outra metade).
A pretensão dos autores abrangia a totalidade; ser-lhes-á reconhecido o direito a metade indivisa.
A pretensão reconvencional dos réus era menos ambiciosa quanto à medida do direito: precisamente a metade que lhes irá ser reconhecida.
Mas, não se ficaram por aí. Com base nesse direito de comproprietários reivindicaram dos outros consortes o prédio. E tiveram êxito nas instâncias.
Mas não pode ser.
Como é por demais sabido, a acção reivindicatória, que o artº1311º, CC, prevê, serve a pretensão do proprietário não possuidor contra o possuidor não proprietário, ou a do proprietário possuidor contra o detentor, e está, inclusive, ao dispor do comproprietário face a terceiro.
Não foi concebida, nem podia sê-lo, para ser usada entre comproprietários.
Entre estes, os problemas de posse resolvem-se através dos meios possessórios previstos nos artº1276º, e segs., CC, considerando, especialmente, o que dispõe o artº1286º, 2 e 3.
Sendo assim, foi mal julgado nas instâncias o pedido reconvencional, que só vai avante no que respeita ao reconhecimento do direito, não, já, no que toca à entrega do prédio.
4. Pelo exposto, concedem parcialmente a revista, e, em consequência, declaram os autores donos de metade indivisa do prédio urbano em causa, e absolvem-nos do pedido de entrega aos réus/reconvintes.
No mais, mantêm o já decidido.
Custas, aqui e nas instâncias, por autores e réus, na proporção de metade.
Lisboa, 20 de Novembro de 2003
Quirino Soares
Neves Ribeiro
Araújo Barros
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(1) Código Civil.