Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
260/21.3TRLSB
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: RECURSO
INQUÉRITO
INTERVENÇÃO HIERÁRQUICA
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
FINALIDADES
REJEIÇÃO
INADMISSIBILIDADE LEGAL
Data do Acordão: 05/31/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Como sabido, a instrução destina-se, consoante os casos, ou a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou a proceder ao controlo judicial da decisão do Ministério Público de arquivar, sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento (art. 286.º, n.º 1, CPP).

II. A instrução não é um pré-julgamento, nem tão pouco se traduz numa forma de completar. ou ampliar a investigação feita no inquérito e, por isso, também não pode constituir um novo inquérito.

III. Não podendo haver instrução (que é facultativa, dependendo de requerimento do assistente idóneo para o efeito) sem previamente existir inquérito (excluídos os processos especiais, por aí não ser admissível instrução, conforme o art. 286.º, n.º 3, do CPP), é lógico que para o juiz de instrução poder ter condições de, se for o caso, formular um juízo positivo de deduzir acusação (como pedido no RAI), tem de o assistente previamente indicar as razões de facto e de direito da sua discordância, quanto ao arquivamento, decisão essa proferida após o encerramento do respetivo inquérito (art. 286.º, n.º1 e 287.º, n.º 2, do CPP), para além de deduzir uma acusação com factos concretos que preencham os crimes que imputa ao arguido.

IV. As razões de facto e de direito que fundamentam a discordância do assistente, para serem aptas e idóneas à abertura de instrução, têm de estar diretamente relacionadas com o arquivamento do inquérito, evidenciando que seria caso de acusar e não de arquivar. O que se compreende uma vez que a dedução de acusação pelo Ministério Público, como deve pugnar o assistente no RAI, depende de no inquérito terem sido recolhidos indícios suficientes do acusado ter cometido o crime ou crimes denunciados (art. 283º, nºs 1 a 3, do CPP).

V. Aqui está em causa a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução (art. 287.º, n.º 3, do CPP), não definindo o legislador o que entende por “inadmissibilidade legal da instrução”. De todo o modo, a “inadmissibilidade legal da instrução” abrange uma interpretação material, atenta a filosofia subjacente a essa fase preliminar e, por isso, engloba igualmente os casos em que o alegado no requerimento de abertura de instrução não satisfaz as finalidades da instrução, como sucede, por exemplo, quando o RAI é inepto (quer seja apresentado pelo assistente, quer seja apresentado pelo arguido) ou quando não é o meio/mecanismo próprio para atingir o fim (neste caso acusação) visado.

VI. Com efeito, sabido que o JI está confinado pelo alegado no RAI (art. 288.º, n.º 4, do CPP), não podendo substituir o sujeito processual que requer a fase de instrução, não se pode aceitar a prática de supostos atos de instrução propriamente ditos que antes envolvem a continuação da investigação que não foi feita pelo Ministério Público no inquérito e, assim, implicam que o JI extravase as suas funções.

VII. Pela simples apreciação do requerimento de abertura de instrução e sem recurso a qualquer elemento externo, era fácil ao juiz concluir que os factos narrados pela assistente jamais poderiam levar à pronúncia da denunciada/arguida e, bem assim, à eventual aplicação de uma sanção, após o julgamento, pelo que sempre teria de concluir-se que a fase de instrução era uma pura inutilidade e, como tal, legalmente inadmissível. Ou seja, a assistente não foi capaz de cumprir a função que lhe incumbia quando apresenta o RAI.

VIII. Mas, além disso, o que se passa neste caso, é que, a recorrente no RAI, indica provas que pretende que o JI leve a cabo para sustentar uma acusação, provas essas que, na sua perspetiva, não foram recolhidas em fase de inquérito pelo Ministério Público, que é o investigador. De resto, pelos motivos indicados, também explicados na decisão recorrida, neste caso, perante forma como a recorrente configurou o RAI, a forma de reagir ao despacho de arquivamento era claramente a reclamação hierárquica.

IX. Daí que (como assinala João Conde Correia), não ficando no “livre arbítrio do assistente” a escolha dos “dois mecanismos processuais penais de impugnação do despacho de arquivamento do inquérito (reclamação hierárquica ou abertura de instrução)”, igualmente como bem diz Paulo Pinto de Albuquerque, neste caso, como se demonstrou, a assistente devia, pois, ter reclamado uma vez “que os elementos do inquérito [eram] insuficientes para apresentar um requerimento de abertura de instrução/acusação”, só podemos concluir que foi muito bem rejeitado o RAI, por inadmissibilidade legal.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça



Relatório


I. A assistente AA, advogando em causa própria nos termos do art. 114.º, n.º 1, do EMP, recorreu do despacho da Relação de Lisboa de 3.02.2023, que rejeitou o RAI que apresentara no inquérito n.º 260/21.3TRLSB, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

1. A assistente elaborou e apresentou tempestivamente em juízo requerimento de abertura de instrução (RAI) nos autos observando de forma rigorosa e objectiva todos os requisitos previstos na lei processual penal para a sua elaboração. Pelo que,

2. O despacho do MMO juiz a quo que rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado nos autos violou os artigos 287.º n.º 1 al. b) , 2 e 3 do CPP.

Pois:

3. No ponto I. do RAI a assistente, em rigorosa observância do disposto no artigo 287.º n.º 2 do CPP, elencou as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação;

4. No ponto II. Do RAI a assistente, em rigoroso cumprimento do disposto no artigo 287.º n.º 2 do CPP, indicou os actos de instrução que pretendia que o juiz de instrução levasse a cabo e quais os factos que esperava provar com esses actos de instrução;

5. No ponto III do RAI, a assistente, observando com rigor o disposto no artigo 283.º n.º 3 al.s b) e c) do CPP ex vi artigo 287.º n.º 2 do CPP, deduziu acusação narrando os factos que fundamentam a aplicação à denunciada de uma pena incluindo o lugar, o tempo, a motivação da sua prática e o grau de participação que a mesma teve neles e indicou as disposições legais aplicáveis (artigo 283.º n.º 3 al.s b) e c) do CPP ex vi artigo 287.º n.º 2 do CPP).

6. A prática de actos - diligências e investigações relativas à instrução - é um poder/dever funcional do juiz de instrução para cumprir as funções em que está investido para comprovar, ou não, judicialmente a decisão do Ministério Público de, in casu, não submeter a causa a julgamento: a prática de diligências e investigações relativas à instrução é inerente à fase de instrução.

7. Ao entender que a indicação pela assistente da prática de actos de instrução que pretendia que o juiz de instrução levasse a cabo é fundamento para rejeitar o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução o MMO Juiz a quo violou os artigos 286.º, n.º 1, 287.º n.º 2, 287.º n.º 3, 288.º n.º 1, 289.º, 290.º n.º 1 e 2 e 291.º n.º 1 e 292.º todos do CPP.

8. Face à indicação dos actos de instrução que a assistente requereu, e pretendia que o juiz de instrução levasse a cabo, o juiz a quo só pode fazer uma de duas coisas: ou defere a prática desses actos requeridos ou os indefere com os fundamentos previstos no artigo 291.º n.º 1 do CPP, isto é, por entender que não interessam à instrução ou que servem apenas para protelar o andamento do processo.

9. O MMO juiz a quo violou o artigo 287.º n.º 3 e 291.º n.º 1 do CPP quando face a um RAI que contém um requerimento de actos de instrução efectuado pela assistente não deferiu nem indeferiu o requerimento de actos de instrução mas sim rejeita o RAI por inadmissibilidade legal da instrução por entender que não cabe ao juiz levar a cabo tais actos.

10. Ao rejeitar sem fundamento legal o RAI o MMo juiz a quo na interpretação que fez do artigo 287.º n.º 3 , parte final, e 291.º n.º 1 do CPP violou de forma manifesta o direito, da assistente ao direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais consagrado no artigo 20.º n.º 1 da CRP e aos direitos e garantias fundamentais da assistente como vítima/ofendida consagrados no artigo 20.º n.º 4, 5 e 7 da CRP.

11. Ao rejeitar o RAI da instrução por inadmissibilidade legal da instrução por entender que o que a assistente pretende é um "inquérito novo" e por isso tem que, não requerer a abertura de instrução mas sim requerer a intervenção hierárquica prevista no artigo 278.º do CPP viola o MMO juiz a quo o direito fundamental da assistente consagrado no artigo 20.º n.º 1 da CRP,

12. Ao rejeitar o RAI da instrução por inadmissibilidade legal da instrução por entender que (por ter requerido a prática de actos de instrução, os termos legais) o que a assistente pretende é um "inquérito novo" e por isso não pode requerer a abertura de instrução mas sim requerer a intervenção hierárquica prevista no artigo 278.º do CPP viola o MMO juiz a quo viola o princípio da separação de poderes consagrado no artigo 113.º n.º 1 da CRP uma vez que, impõe a observância pela assistente de um recurso administrativo necessário que não está previsto na lei pois, em momento algum o CPP, no seu artigo 278.0 do CPP, impõe um recurso administrativo necessário do despacho de arquivamento do MP para o seu superior hierárquico.

13. Conforme resulta do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015 de 7 de Janeiro que aprovou o Novo Código de Procedimento Administrativo as impugnações administrativas só são necessárias quando previstas em lei que utilize as expressões aí previstas.

14. Se a intervenção hierárquica prevista no artigo 278.º do CPP fosse obrigatória, como pretende o MMO juiz a quo então aquela teria que, nos termos do artigo 185.º n.º 1 e 2 e artigo 189º n.º 1, do CPA, necessariamente, ter efeito suspensivo, que não tem : se o assistente optar por requerer a intervenção hierárquica preclude o direito de requerer a abertura da instrução e o acesso ao direito e aos tribunais (artigo 20.º n.º 1 da CRP).

15. O respeito pela estrutura acusatória do processo penal, na fase de instrução, afere-se e satisfaz-se plenamente pela existência de uma acusação deduzida pelo assistente em observância pelo disposto no artigo 287.º n.º 2 e 283.º n.º 3 c) e d) todos do CPP.

16. O MMO Juiz a quo violou os artigos 287.º n.º 2 e n.º 3 e artigo 283.º n.º 3 c) e d) todos do CPP quando rejeitou o RAI com fundamento em inadmissibilidade legal com fundamento em que o concreto RAI apresentado em juízo pela assistente viola a estrutura acusatória do processo penal "mediante o " roubo" do inquérito." (cfr. pág. 2 do despacho de que se recorre).

17. A prática de actos - diligências e investigações relativas à instrução - é um poder/dever funcional do juiz de instrução para cumprir as funções em que está investido para comprovar, ou não, judicialmente a decisão do Ministério Público de, in casu, não submeter a causa a julgamento: a prática de diligências e investigações relativas à instrução é inerente à fase de instrução.

18. Ao entender que a indicação pela assistente da prática de actos de instrução que pretendia que o juiz de instrução levasse a cabo é fundamento para rejeitar o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução o MMO Juiz a quo violou os artigos 286.º, n.º 1, 287.º n.º 2, 287.º n.º 3, 288.º n.º 1, 289.º, 290.º n.º 1 e 2 e 291.º n.º 1 e 292.º todos do CPP.

19. Ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução com os fundamentos invocados incorre o despacho em crise na nulidade prevista no artigo 118.º al. d) do CPP pois, a instrução no caso concreto é obrigatória, inexistindo qualquer fundamento legal para a sua rejeição.

Termina pedindo o provimento do recurso, revogando-se o despacho recorrido, admitindo-se o requerimento de abertura de instrução apresentado em juízo pela assistente e declarando-se aberta a fase de instrução.

II. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação respondeu ao recurso, concluindo pelo seu não provimento, em resumo, “por a assistente não [visar] a comprovação judicial da decisão de arquivar do Ministério Público, nomeadamente a sua infirmação por via de um despacho de pronúncia, mas antes a repetição de toda a investigação desenvolvida em sede de inquérito”, pelo que “para suprir eventuais omissões da investigação desenvolvida cabe ao interessado fazer uso da intervenção hierárquica”, assim não merecendo censura a decisão impugnada.


III. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, o Sr. PGA emitiu parecer no sentido de acompanhar a resposta apresentada na Relação de Lisboa, concluindo pela confirmação da decisão recorrida e improcedência do recurso.


IV. Notificada do Parecer do Sr. PGA, a assistente não respondeu.


V. No exame preliminar a Relatora ordenou que os autos fossem aos vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.


Fundamentação

Factos

VI. Resulta dos autos, em resumo, com interesse para a presente decisão, o seguinte:

- o inquérito n.º 260/21.3TRLSB, a correr termos na Procuradoria Geral Regional ..., secção única, que teve origem na denúncia apresentada pela Senhora Procuradora da República AA, a exercer funções (à época) no Departamento de Investigação e Ação Penal ..., comarca ..., contra a Magistrada do Ministério Público ... da comarca ..., a Procuradora da República BB, por um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal; por um crime de maus-tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal; por um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 182.º, 183.º, n.º 1, alíneas a) e b), 184.º e 188.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal; por um crime de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181.º e 184.º do Código Penal; por um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo artigo 191.º do Código Penal; por um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.º do Código Penal; por um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e d), e n.º 4, do Código Penal; e por um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º do Código Penal, alegadamente cometidos em 6.12.2021, foi objeto de arquivamento por despacho de 2.12.2022;

- notificada desse arquivamento em 6.01.2023, veio a assistente AA, além do mais, requerer em 7.01.2023, em simultâneo, por um lado, reclamação/intervenção hierárquica junto da Senhora Procuradora Geral Regional ... e, por outro lado, apresentou junto do Tribunal da Relação de Lisboa, Requerimento de Abertura de Instrução, cujo teor aqui se dá por reproduzido;

- por despacho de 19.01.2023 da Senhora Procuradora-Geral Regional ... (cujo teor aqui se dá por reproduzido) foi indeferida “a reclamação hierárquica apresentada, porquanto, para reação ao despacho de arquivamento, a assistente requereu cumulativamente a abertura de instrução”;

- o despacho impugnado pela assistente, que rejeitou o RAI, sendo de 3.02.2023, é do seguinte teor:

A assistente, AA, veio requerer a abertura da instrução, na sequência de despacho de arquivamento de 2.12.2022, proferido ao abrigo do disposto no nº 1 do artº 277º do Código de Processo Penal.


*


Cabe assim e em primeiro lugar ajuizar sobre a admissibilidade legal da instrução.

*


A assistente no seu requerimento tece críticas à condução do inquérito pelo Ministério Público, manifestando o seu desacordo, do mesmo passo que requer a realização de um conjunto de diligências:

Tomada de declarações à assistente, com concessão do estatuto de vítima; Reinquirição da testemunha Sr. Dr. CC;

Solicitação ao processo disciplinar ...0 dos ofícios que identificou no requerimento feito nos autos no dia 19.8.2022;

Certidão integral do inquérito disciplinar 27445/21;

Interrogatório da denunciada com prévia constituição como arguida e tomada de TIR.

Diligências que, como resulta claro do RAI, visam obter a prova que no seu entender faltou ao inquérito.


*


Ora, é justamente por isso que é legalmente inadmissível a abertura de instrução.

Vejamos.

Nas acertadas palavras da decisão instrutória proferida em 9.1.2019, do Juízo de Instrução Criminal ..., que aqui fazemos nossas sem qualquer reserva: “as finalidades da instrução, nunca é por demais recordá-lo, estão positivadas no n.º 1 do artigo 286.º, do Código de Processo Penal, e consistem «na comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».

Da limpidez desta norma extrai-se aquilo que desde 1987 pretendia o Legislador e sempre foi assinalado pela Doutrina: a instrução consubstancia uma fase de controlo da actividade pretérita (o inquérito) onde germinou a decisão de acusar ou de arquivar, de modo a apurar se tal decisão se deve manter ou não (se a mesma se comprova ou se, ao invés, não se comprova).

Finalidade legal que, sublinhe-se, é corolário evidente da estrutura acusatória que perpassa pelo nosso processo penal. Esta é uma implicação de onde brotam várias consequências e que, muitas vezes, é escamoteada.

Porém, as aludidas finalidades legais da instrução impedem que se conceba e compreenda a instrução,

mesmo quando requerida pelo sujeito processual assistente, como uma fase “despida” de limites, como uma fase onde se facultasse ao assistente uma verdadeira “carta-branca” para a defesa dos seus legítimos interesses.

“Brigam” com essa pretensão, também, as distintas intervenções processuais e seus pressupostos que podem ser despoletadas ou convocadas após a prolação do despacho de arquivamento, quais sejam: a intervenção hierárquica ou a abertura da instrução, cf. artigos 278.º, 286.º e 287.º, todos do Código de Processo Penal.

E é, a todas as luzes, inviável, ab initio, julgamos nós, nesta particular situação, a realização das finalidades legais da instrução previstas no artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

A não ser que se entenda, como, salvo o devido respeito”... “que deve ser o juiz a levar a cabo os actos previstos no n.º 1 do artigo 262.º do Código de Processo Penal na fase da instrução a que preside, pois é isso, salvo o devido respeito, o que se pretende materialmente...” bastas vezes “...a continuação ou desenvolvimento efectivo do inquérito, propósito bem visível pela extensão e natureza das «diligências instrutórias de prova»...

Em suma: a realização de diligências de indagação, de investigação, dos factos necessários à decisão sobre a acusação, diligências que não tiveram lugar no inquérito.

Mas este entendimento frustra as finalidades legais da instrução pois que esta não visa, não consubstancia, nem se destina, à realização, seja de outro (novo) inquérito (i), seja de um complemento do inquérito já efectuado, ampliando-o na investigação de factos relevantes (essenciais) à imputação (ii) objectiva e subjectiva, definindo-os, recolhendo as inerentes provas, determinando a identidade dos seus autores, etc.

Estas são as finalidades positivadas pelo Legislador para a fase do inquérito pelo qual é responsável único o Ministério Público, vd. também os artigos 53.º, n.º 1 e 2, al. b) e 263.º, n.º 1 do mesmo código.

De facto, a submissão de uma pessoa a julgamento, como consequência de eventual procedência da pretensão do sujeito processual assistente, não pode ser obtida mediante o “roubo” do inquérito.

Em situações deste jaez, a admissão do requerimento acarretaria a substituição do Ministério Público e das atribuições constitucionais deste por banda do Juiz de Instrução, em ostensiva violação da estrutura acusatória que caracteriza o processo penal, uma vez que sob o manto da instrução nada se iria comprovar mas tudo adquirir.

No Acórdão da Acórdão da Relação de Guimarães de 01/02/2010, de que foi relator o Exm.º Sr. Juiz Desembargador Fernando Monterroso, acessível in www.dgsi.pt/jtrg, escreveu-se, de forma curta mas incisiva, o seguinte:

«Toda a argumentação dos recorrentes pressupõe que a instrução é um simples prolongamento do inquérito, em que a “investigação” passa a ser feita por um juiz. É um equívoco, relativamente vulgar nas práticas judiciárias, mas que não tem suporte na lei». (…)

«É certo que o Código de Processo Penal prevê a possibilidade do juiz efectuar diligências prévias ao debate instrutório e de os sujeitos processuais as requererem. Mas essas diligências não visam substituir a “investigação” do inquérito. Destinam-se a dissipar e esclarecer eventuais dúvidas existentes no espírito do juiz (e não na perspectiva subjectiva das partes) sobre a decisão que vai tomar».

Donde, nunca por nunca, poderá transmutar-se a instrução em inquérito”…

O caminho facultado pela lei ao sujeito processual assistente, quando entenda que a investigação devia ter ido mais além antes de se proferir o despacho de arquivamento, não é a abertura da instrução, mas sim o pedido de intervenção hierárquica a que alude o artigo 278.º do Código de Processo Penal.

De facto, em torno do modo de relacionamento entre o pedido de abertura de instrução e a reclamação para a intervenção hierárquica deixamos aqui as palavras do Exm.º Sr. Procurador da República João Conde Correia que sufragamos:

«A configuração legal (art. 286.º, n.º 1, do CPP), jurisprudencial e doutrinal da instrução como comprovação judicial da decisão de deduzir ou não acusação tomada pelo Ministério Público e os requisitos que estão associados ao requerimento para a abertura de instrução formulado pelo assistente parecem atirar a intervenção hierárquica, preferencialmente, para uma fase prévia, de verdadeiro complemento da investigação já realizada por forma a permitir uma avaliação rigorosa dos indícios e, assim, decidir sobre a sua suficiência ou insuficiência.

Através da intervenção hierárquica, é mais fácil estender a investigação a zonas até agora inexploradas e, quem sabe, decisivas para o futuro andamento do processo. Ao invés, se o que está em causa é apenas a leitura dos indícios já, suficientemente, recolhidos ou da sua relevância jurídica parece ser preferível o requerimento de abertura de instrução» (Questões Práticas Relativas Ao arquivamento e à Acusação e À Sua Impugnação», Publicações Universidade Católica, Colecção Estudos e Monografias, Porto 2007, pág. 53).

Neste sentido, além do acórdão supra referido, vejam-se os seguintes acórdão da Relação de Évora, todos acessíveis em www.dgsi.pt.:

De 11-11-2014, Relator Renato Damas Barroso;

De 7/02/2017, Relator Carlos Berguete Coelho;

De 24/10/2017, Relatora Ana Barata Brito.”

Ora, as diligências pretendidas pela assistente e a sua finalidade não deixam qualquer margem para dúvida.

Tratar-se-ia de um novo inquérito, ainda que aproveitando alguns actos do anterior, mas já subtraído à competência própria do Ministério Público.

A prova a produzir, ao invés da residual e complementar, própria da instrução, constituiria, eventualmente, mas sobretudo nas palavras da própria assistente, prova essencial.

A escolha entre a instrução e a intervenção hierárquica não pode ser aleatória, muito menos dependente da vontade de qualquer um dos sujeitos processuais.

E tanto mais assim será quando as duas possibilidades se situam em tempo e momento processuais coincidentes.

Não teria qualquer sentido a possibilidade de opção sem critério (ou, pior, a faculdade de proceder a ambas simultaneamente e com o mesmo fito) em face de princípios processuais como os da celeridade e utilidade dos actos e unidade do sistema.

E é também justamente por aquela coincidência temporal que se conclui pela absoluta necessidade de delimitação das duas figuras, em termos de se poder afirmar que se a pretensão relevar de actividade tipicamente judicial, estaremos em face de caso em que caberá instrução, ao passo que se aquela solicitação tem em vista actividade tipicamente do Ministério Público, será a correspondente intervenção a figura processualmente adequada.

Como manifestamente sucede no caso, pelo que o requerimento de abertura de instrução deduzido pela assistente deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal, nos termos do nº 3 do artº 287º do Código de Processo Penal.


*


Termos em que rejeito o requerimento de abertura de instrução.

Custas pela assistente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC.


Direito

VI. Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação que apresentou (art. 412.º, n.º 1, do CPP).

Ora, analisadas as conclusões do recurso apresentadas pela assistente para o STJ, verifica-se que discorda do fundamento invocado para a rejeição do RAI, pretendendo que seja declarada aberta a instrução.

A recorrente argumenta, em resumo, que observou as normas legais aplicáveis ao caso, sendo que com a acusação que deduziu no RAI ficou respeitada a estrutura acusatória do processo penal e, perante os atos de instrução requeridos, o Sr. JI apenas os podia deferir ou indeferir, não podendo impor a intervenção hierárquica (art. 278.º do CPP), a qual preclude o direito de requerer a abertura de instrução e, assim, impede o acesso ao direito e aos tribunais (art. 20.º, n.º 1, da CRP) no âmbito do inquérito penal, violando o disposto no art. 32.º, n.º 4, n.º 5 e n.º 7 da CRP, os seus direitos como vítima/ofendida (art.20.º, n.º 4, n.º 5 e n.º 7, da CRP), para além de violar o princípio da separação de poderes (art. 113.º, n.º 1, da CRP), por estar a tornar obrigatória a observância pelo assistente de um recurso administrativo necessário que não está previsto na lei (CPA), padecendo ainda o despacho impugnado da nulidade prevista no art. 119.º, al. d), do CPP, por ser obrigatória a instrução.

Vejamos então.

O fundamento da rejeição do RAI foi, o da sua inadmissibilidade legal (art. 287.º, n.º 3, do CPP), por ao caso caber, perante a forma como a assistente configurou o seu requerimento (RAI), o mecanismo da intervenção hierárquica e não o da abertura de instrução, uma vez que as diligências pretendidas (consideradas prova essencial) configuram a realização de um novo inquérito, ainda que aproveitando alguns atos do anterior, que já foi subtraído à competência própria do MP e que não é da competência do JI, não estando na disponibilidade dos sujeitos processuais a escolha arbitrária de um mecanismo de reação ao arquivamento que é impróprio para o fim em vista (no caso o de conseguir a acusação da denunciada que, portanto, nem sequer chegou a ser constituída arguida por não haver matéria para o efeito).

Como sabido, a instrução destina-se, consoante os casos, ou a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou a proceder ao controlo judicial da decisão do Ministério Público de arquivar, sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento (art. 286.º, n.º 1, CPP).

Enquanto fase jurisdicional[1] (ainda que facultativa), a instrução compreende a prática dos atos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.

A instrução não é um pré-julgamento, nem tão pouco se traduz numa forma de completar. ou ampliar a investigação[2] feita no inquérito e, por isso, também não pode constituir um novo inquérito.

Nos termos do n.º 2 do art. 287.º (requerimento para abertura de instrução), do CPP, “O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.”

Neste caso, tendo sido a instrução requerida pelo assistente destina-se a proceder ao controlo judicial da decisão do Ministério Público de arquivar, tendo em vista a submissão da causa a julgamento (estando por isso dependente da formulação de um juízo positivo que terá por suporte factos e razões alegadas no RAI) exigindo-se, para o efeito, que o requerimento de abertura de instrução contenha, ainda que em súmula, as razões de facto e de direito que fundamentam a discordância relativamente ao arquivamento, podendo, se for caso disso, indicar os atos de instrução que pretende que o juiz leve a cabo, os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e os factos que, através de uns e de outros, espera provar.

Não podendo haver instrução (que é facultativa, dependendo de requerimento do assistente idóneo para o efeito) sem previamente existir inquérito (excluídos os processos especiais, por aí não ser admissível instrução, conforme o art. 286.º, n.º 3, do CPP), é lógico que para o juiz de instrução poder ter condições de, se for o caso, formular um juízo positivo de deduzir acusação (como pedido no RAI), tem de o assistente previamente indicar as razões de facto e de direito da sua discordância, quanto ao arquivamento, decisão essa proferida após o encerramento do respetivo inquérito (art. 286.º, n.º1 e 287.º, n.º 2, do CPP), para além de deduzir uma acusação com factos concretos que preencham os crimes que imputa ao arguido.

As razões de facto e de direito que fundamentam a discordância do assistente, para serem aptas e idóneas à abertura de instrução, têm de estar diretamente relacionadas com o arquivamento do inquérito, evidenciando que seria caso de acusar e não de arquivar.

 O que se compreende uma vez que a dedução de acusação pelo Ministério Público, como deve pugnar o assistente no RAI, depende de no inquérito terem sido recolhidos indícios suficientes do acusado ter cometido o crime ou crimes denunciados (art. 283º, nºs 1 a 3, do CPP).

Por sua vez, segundo o n.º 3 do art. 287.º do CPP, “O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.”

Aqui está em causa a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução.

O legislador não define o que entende por “inadmissibilidade legal da instrução”.

O facto de indicar alguns casos em que se verifica formalmente essa situação (v.g. quando se está perante uma forma de processo especial, quando a instrução é requerida fora das situações indicadas no art. 287.º, n.º 1, do CPP), não significa que o conceito de “inadmissibilidade legal da instrução” tenha de ser interpretado de forma restrita ou que tenha de ser restringido a uma visão formal.

A “inadmissibilidade legal da instrução” abrange uma interpretação material, atenta a filosofia subjacente a essa fase preliminar e, por isso, engloba igualmente os casos em que o alegado no requerimento de abertura de instrução não satisfaz as finalidades da instrução, como sucede, por exemplo, quando o RAI é inepto (quer seja apresentado pelo assistente, quer seja apresentado pelo arguido) ou quando não é o meio/mecanismo próprio para atingir o fim (neste caso acusação) visado.

Com efeito, sabido que o JI está confinado pelo alegado no RAI (art. 288.º, n.º 4, do CPP), não podendo substituir o sujeito processual que requer a fase de instrução, não se pode aceitar a prática de supostos atos de instrução propriamente ditos que antes envolvem a continuação da investigação que não foi feita pelo Ministério Público no inquérito e, assim, implicam que o JI extravase as suas funções.

Sobre o requerimento do reclamante efetuado ao abrigo do art. 278.º do CPP, como explica Paulo Pinto de Albuquerque[3], apesar de não estar “sujeito a formalidades especiais, deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente ao arquivamento, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de inquérito que o recorrente pretende que o Ministério Público realize e dos factos que se espera provar com eles. O assistente deve, pois, reclamar sempre que os elementos do inquérito sejam insuficientes para ele apresentar um requerimento de abertura de instrução/acusação.

Também, nesta matéria João Conde Correia[4] é esclarecedor, quando chama à atenção que os dois mecanismos processuais penais de impugnação do despacho de arquivamento do inquérito (reclamação hierárquica ou abertura de instrução), “embora sejam alternativos, no sentido de que ou se utiliza um ou se utiliza outro, a verdade é que a escolha de um [deles] (…) não fica no livre arbítrio do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir como tal. O requerimento de abertura de instrução pressupõe a dedução de uma acusação, mediante a descrição de factos suscetíveis de determinar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança ao arguido (art. 287.º/2). Daí que, quando os factos ainda não estejam suficientemente clarificados, será impossível cumprir essa exigência formal e, logo, impossível requerer, com sucesso, a abertura de instrução, restando apenas a via da reclamação hierárquica (…). Sendo a instrução, neste caso, a mera comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito tomada pelo MP (art. 286.º/1), a intervenção hierárquica deverá ser empregue quando seja necessário ampliar ou complementar a investigação e a abertura de instrução deverá ser utilizada quando apenas esteja em causa a leitura dos indícios já suficiente­mente recolhidos ou a leitura da sua relevância jurídica [ac. do STJ/FJ 3/2015, 8.1.2015 (Manuel Joaquim Braz)]. O âmbito de aplicação objetivo destes dois instrumentos de impugnação do despacho de arquivamento não é coincidente e, por isso mesmo, em bom rigor, nem sempre se poderá dizer que os mecanismos são alternativos ou que se pode optar discricionariamente entre ambos.”

Em resumo, diríamos que não se pode, invocando o facto dos atos ocorrerem durante a instrução, etiquetar, ou seja, apelidar como “atos de instrução” em sentido material ou atos de instrução propriamente ditos, os contidos no requerimento de realização de atos de investigação que completam a investigação e se traduzem em novo inquérito, os quais são da competência do Ministério Público, extravasando os poderes do JI, na fase da instrução.

Mas, vejamos em concreto, o que se passa neste caso.

Como se verifica pelo RAI, a recorrente na sua parte I, que intitula como “Razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação”, não é capaz de indicar as provas recolhidas durante a fase do inquérito que contém indícios suficientemente recolhidos que permitiriam deduzir de acusação contra a denunciada.

Aliás, pela simples apreciação do requerimento de abertura de instrução e sem recurso a qualquer elemento externo, era fácil ao juiz concluir que os factos narrados pela assistente jamais poderiam levar à pronúncia da denunciada/arguida e, bem assim, à eventual aplicação de uma sanção, após o julgamento, pelo que sempre teria de concluir-se que a fase de instrução era uma pura inutilidade e, como tal, legalmente inadmissível.

Ou seja, a assistente não foi capaz de cumprir a função que lhe incumbia quando apresenta o RAI.

Mas, além disso, o que se passa neste caso, é que, a recorrente no RAI, no ponto II, indica provas que pretende que o JI leve a cabo para sustentar uma acusação, provas essas que, na sua perspetiva, não foram recolhidas em fase de inquérito pelo Ministério Público, que é o investigador.

E, por isso, ainda que usando formalmente, porque no âmbito da instrução, o nome de “atos de instrução” (podemos dizer indevidamente, porque olhando para o seu conteúdo, percebe-se que não são atos de instrução propriamente ditos da competência do JI e só estes é que são permitidos na fase da instrução) escreve no RAI:

- Requer-se sejam tomadas declarações à Assistente: Considerando a natureza pessoal dos bens jurídicos tutelados pelos crimes em investigação é manifestamente ilegal a omissão do magistrado Titular dos autos quanto à não tomada de declarações à Assistente, que durante todo o inquérito não foi ouvida, nem como ofendida testemunha sendo o seu depoimento/declarações uma diligência de investigação incontornavelmente essencial à descoberta da verdade de todos os factos que constituem o objecto processual; E deve também ser concedido à assistente o Estatuto de Vítima, nos termos legais.

- Requer-se a reinquirição da testemunha Sr. Dr. CC que foi indeferida por despacho do magistrado titular de 28.09.2022 pois visa-se com a sua inquirição provar que a assistente esteve coartada na sua liberdade de movimentos: o Sr. Dr. CC é, para além da assistente, a única testemunha presencial que ouviu a assistente a pedir inúmeras vezes à denunciada que a deixasse sair "deixe-me sair" e que aquela sempre disse: "não sai não senhora que vou notifica-la" e que nunca tirou o seu corpo da frente para a assistente passar e que, finalmente, ainda inclinava o seu ombro para a frente para reforçar que a assistente não podia passar.

- Requer-se que seja solicitado ao PD 15329/20 os ofícios que se identificou no requerimento feito nos autos no dia 19.08.2022, o que foi indeferido por despacho do titular do inquérito proferido no dia 28.09.2022. Com a junção de tais documentos quer-se provar que o carácter infundado e difamatório do comportamento infundado da denunciada ao reportar superiormente que antevia que a assistente se ia recusar a ser notificada por informações obtidas através da Inspectora do PD 15329/20 que veiculou como verdadeiras.

- Requer-se seja solicitada certidão integral do Inquérito Disciplinar n.° 27445/21 que tinha como arguidas a assistente e a aqui denunciada e como ofendida a aqui assistente. Com a junção de tal certidão visa-se comprovar a verdade de todos os factos denunciados pela assistente.

- Requer-se seja realizado o interrogatório da denunciada com prévia constituição como arguida e tomada de TIR.


 Como se vê pelas diligências de prova requeridas:

- por um lado a requerente pretende que o JI a ouça como assistente, porque se insurge contra a decisão a esse respeito tomada pelo Ministério Público, titular do inquérito, quando decidiu a não ouvir, matéria da qual deveria ter antes reclamado hierarquicamente, quando foi proferido o despacho final de encerramento do inquérito, uma vez que o JI não é superior hierárquico do Ministério Público, nem tão pouco a fase de instrução serve para prosseguir com a investigação do inquérito, nem para fazer um novo inquérito;

- por outro lado, requer a reinquirição de uma testemunha ouvida em inquérito (Dr. CC), por também discordar com o despacho do titular do inquérito proferido no dia 28.09.2022, que indeferiu requerimento por si (assistente/recorrente) apresentado em 19.08.2022, o que evidencia claramente que deveria ter antes reclamado hierarquicamente, quando foi proferido o despacho final de encerramento do inquérito, uma vez que o JI não é superior hierárquico do Ministério Público, nem tão pouco a fase de instrução serve para prosseguir/complementar a investigação do inquérito, nem sequer considerando o motivo invocado para pretendida reinquirição;

- acresce, ainda, a solicitação ao PD 15329/20 dos ofícios que identificou no requerimento feito nos autos em 19.08.2022, também indeferido por despacho do titular do inquérito proferido em 28.09.2022, mostrando, assim, igualmente a discordância da assistente/recorrente daquele decisão e, portanto, o meio de reação adequado era, tal como acima se viu nas demais diligências requeridas, reclamar hierarquicamente, quando foi proferido o despacho final de encerramento do inquérito, uma vez que o JI não é superior hierárquico do Ministério Público, nem tão pouco a fase de instrução serve para prosseguir com a investigação do inquérito, nem sequer para realizar um novo inquérito, mesmo considerando os motivos invocados para tais pedidos;

- finalmente pede a requisição de certidão integral do Inquérito Disciplinar n.° 27445/21 (que tinha como arguidas a assistente e a aqui denunciada e como ofendida a aqui assistente), o que se destina ao complemento da investigação do inquérito, atenta a finalidade em vista, sendo nítido que lhe cabia reclamar hierarquicamente, quando foi proferido o despacho final de encerramento do inquérito, uma vez que o JI não é superior hierárquico do Ministério Público, nem tão pouco a fase de instrução serve para prosseguir com a investigação do inquérito, nem sequer considerando os motivos invocados para tais pedidos.

Em suma, a assistente/recorrente errou quando apresentou simultaneamente a reclamação hierárquica e o RAI, o que não podia ser, como é bem claro o CPP.

Mais.

A recorrente parte de um pressuposto errado quando argumenta que a intervenção hierárquica faz precludir o direito de requerer a abertura de instrução.

Com efeito, ao contrário do que alega a recorrente, tal como salienta, entre outros, Paulo Pinto de Albuquerque[5] “a interposição da reclamação hierárquica não preclude o direito de requerer a abertura de instrução, após a decisão final tomada pelo MP na sequência da intervenção do superior hierárquico. Tal como o arguido pode reagir com um pedido de instrução a uma acusação que venha a ser deduzida na sequência da intervenção hierárquica, também o assistente pode reagir com um pedido idêntico a um segundo arquivamento posterior à intervenção hierárquica. O assistente tem o direito constitucional de controlo judicial da última palavra do MP sobre o objecto do inquérito, como o mesmo direito tem o arguido (…).”

Aliás, no mesmo sentido vai Maia Costa[6], quando afirma que “a confirmação do despacho de arquivamento não priva o reclamante do direito de requerer a abertura de instrução, incidindo não já sobre o primeiro despacho, mas sobre aquele que o confirmar, pois é esta última decisão que constitui a decisão final do Ministério Público.”

De resto, pelos motivos indicados, também explicados na decisão recorrida, neste caso, perante forma como a recorrente configurou o RAI, a forma de reagir ao despacho de arquivamento era claramente a reclamação hierárquica.

De esclarecer que a pretensão da recorrente de aplicar à reclamação hierárquica prevista no art. 278.º do CPP, regras previstas e não previstas no CPA, não fazem sentido, sendo uma argumentação gratuita no âmbito do processo penal que dispõe de normas próprias (note-se que neste caso não é aplicável o CPA, pelo que todos os raciocínios feitos com base nele não são aqui aplicáveis).

O Código de Processo Penal e os meios de reação nele previstos quanto ao despacho de arquivamento garantem o acesso ao direito e aos tribunais previsto no artigo 20.° n.° 1 da CRP, a qualquer cidadão.

Daí que (como assinala João Conde Correia[7]), não ficando no “livre arbítrio do assistente” a escolha dos “dois mecanismos processuais penais de impugnação do despacho de arquivamento do inquérito (reclamação hierárquica ou abertura de instrução)”, igualmente como bem diz Paulo Pinto de Albuquerque[8], neste caso, como se demonstrou, a assistente devia, pois, ter reclamado uma vez “que os elementos do inquérito [eram] insuficientes para apresentar um requerimento de abertura de instrução/acusação”.

Por isso, foi muito bem rejeitado o RAI, por inadmissibilidade legal, uma vez que nela se abrange precisamente este caso em que o RAI, apresentado pela assistente não é o meio/mecanismo próprio para atingir o fim (neste caso acusação) visado.

Assinale-se, ainda, que o facto de ser rejeitado o RAI, por inadmissibilidade legal, nos termos do art. 287.º, n.º 3, do CPP, não se confunde, nem significa a existência de qualquer nulidade e, muito menos da prevista no art. 119.º, al. d), do CPP (que nem sequer é uma fora de impugnação do despacho que rejeita o RAI), pois a fase da instrução não é obrigatória, mas antes facultativa, razão pela qual aquela arguição em sede de recurso não tem qualquer eficácia.

Também pelo facto de ter sido rejeitado o RAI, nos termos do art. 287.º, n.º 3, do CPP, por um juiz (art. 32.º, n.º 4 da CRP, que foi garantido), conforme assinalado, mostra também que foi igualmente garantido o acesso ao direito e aos tribunais da assistente (art. 20.º, n.º 1, da CRP) e os seus direitos como ofendida (art. 32.º, n.º 7 da CRP).

Prova disso é, desde logo, também a possibilidade que teve de recorrer e, do seu recurso ser apreciado por este STJ através deste acórdão.

A discordância da recorrente da interpretação do direito, que aliás está sedimentada, quer na jurisprudência[9], quer na doutrina[10], que aqui se faz, confirmando-se a decisão recorrida, não significa que haja a alegada violação do acesso ao direito e aos tribunais da assistente (art. 20.º, n.º 1, da CRP), pois como já se disse, o seu recurso (que mostra que tem acesso ao direito e aos tribunais, embora nos termos permitidos por lei), é apreciado nesta decisão.

Como é evidente não há qualquer violação da separação de poderes (e muito menos do alegado art. 113.º, n.º 1, da CRP), uma vez que é a lei processual penal que prevê estes mecanismos de reação ao despacho de arquivamento em sede de inquérito (e, o JI teve o cuidado, como era sua obrigação, atentos os seus poderes de cognição, de não invadir a esfera de atuação do MP em sede de inquérito e, por isso, não podia realizar o novo inquérito que a assistente pretendia que fosse realizado, nem tão pouco complementar o anterior, encerrado pelo MP, titular do inquérito arquivado).

Tais mecanismos de reação previstos na lei processual penal, não são impostos, antes devem ser usados adequadamente, conforme se verifiquem os pressupostos para a utilização de um ou de outro, como acima foi explicado.

Em conclusão: improcede o recurso, sendo certo que para além de terem sido garantidas todas as normas e direitos constitucionais da Ilustre Recorrente, também não foram violadas as normas por si invocadas.


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Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pela assistente AA.

Vai a recorrente condenado em 8 UCs de taxa de justiça.


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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

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Supremo Tribunal de Justiça, 31 de Maio de 2023

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Pedro Branquinho Dias (Adjunto)

Teresa Almeida (Adjunta)

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[1] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 1994, p. 128, citando Jorge Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 16, refere: “A actividade processual desenvolvida na instrução é, por isso, materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações”. Por isso, é comum afirmar-se que a instrução não é um complemento da investigação feita em inquérito.
[2] Assim, entre outros, Ac. do TC nº 459/2000, DR II de 11/12/2000.
[3] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2007, p. 708.
[4] João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, 2ª edição, Coimbra: Almedina, 2022, p. 1088.
[5] Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 709. Acrescenta na anotação 7 que “O requerimento de abertura de instrução preclude o direito de requerer a intervenção hierárquica.”
[6] Maia Costa, Código Processo Penal Comentado, Lisboa: Almedina, 2014, p. 975.
[7] Ob.cit.
[8] Ob. cit., p. 708.
[9] Entre outros, Ac. STJ 26.02.2020, processo n.º 17/17.6YGLSB; AUJ n.º 3/2015, DR I1ª Série de 20.03.2015;
[10] Ver, nomeadamente, os AA acima citados.