Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1350/1998.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURO OBRIGATÓRIO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
CONDENAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/05/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA DA RÉ TRANSPORTES CENTRAIS DE ARGANIL, LDA. CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
DO FUNDO GARANTIA AUTOMÓVEL
Sumário :
I - É nulo, por falta de motivação (art. 668.º, n.º 1, al. b), do CPC), o acórdão da Relação que omite qualquer referência aos factos, às razões jurídicas e às disposições legais em que se abona para determinar a condenação do FGA nos termos do art. 21.º do DL n.º 522/85, de 31-12.

II - Tal nulidade, porém, não é de conhecimento oficioso, não podendo ser conhecida pelo STJ se não tiver sido arguida em sede de recurso.
III - O STJ pode servir-se de qualquer facto que, apesar de não ter sido utilizado pela Relação, deva considerar-se adquirido desde a 1.ª instância.

IV - Não constando da matéria de facto dada como assente pela Relação qualquer menção à existência ou inexistência, à data do sinistro, de seguro válido e eficaz do veículo pertencente ao responsável pelo evento danoso, mas tendo a 1.ª instância considerado, para efeitos de apreciação da excepção dilatória da ilegitimidade do FGA, que à data do acidente não estava em vigor o contrato de seguro invocado pelo co-réu do Fundo, sem que qualquer das partes tenha reagido contra esta decisão, não pode tal facto deixar de haver-se como provado e, como tal, ser tido em conta pelo STJ.

V - O art. 29.º, n.º 6, do DL n.º 522/85, de 31-12, ao impor que as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido ou eficaz, devem ser interpostas obrigatoriamente contra o FGA e o responsável civil, sob pena de ilegitimidade, é uma norma processual, não assumindo uma natureza substantiva, definidora da responsabilidade civil.

VI - A intervenção do responsável civil ao lado do FGA visa, em essência, (i) facilitar ao lesado a satisfação do seu direito, facultando-lhe a possibilidade de reclamar a indemnização do responsável civil ou do Fundo, (ii) ajudar o FGA no conhecimento das circunstâncias do acidente e das causas e efeitos, bem como do pertinente material probatório, pelo contributo que, para tanto pode ser trazido por quem, melhor do que o próprio Fundo, conhece esses elementos de facto, a que este não tem, por vezes, fácil acesso, e (iii) definir logo, com a presença de todos os interessados, a medida em que deverá ser exercido, posteriormente, o direito do Fundo a ser reembolsado, nos termos do art. 25.º, n.º 1, do DL n.º 522/85.

VII - Daí que, e como forma de satisfação dos objectivos referidos em VI, sendo condenado o FGA, também deverão ser com ele solidariamente condenados os responsáveis civis.

VIII - Nem todos os danos não patrimoniais são ressarcíveis: só o são aqueles que sejam suficientemente graves para justificar a tutela do direito (art. 496.º, n.º 1, do CC).
São dignos de ressarcimento, a esse título, porque suficientemente graves, os danos sofridos pela vítima do acidente de viação, traduzidos em acentuadas dores (fractura da tíbia e do perónio), subsequentes tratamentos (designadamente, o necessário tratamento cirúrgico), incómodo relativo causado pelo esforço físico, sofrimento, angústia e apreensão.

IX - Considera-se equitativa e na linha das decisões jurisprudenciais mais recentes nesta matéria a indemnização de € 20.000,00 destinada à justa reparação dos apontados danos não patrimoniais.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1.

AA intentou, em 16.03.1998, pela 17ª Vara Cível de Lisboa, contra TRANSPORTES BB, L.da e FUNDO DE CC, a presente acção com processo sumário, pedindo a condenação destes a pagar-lhe a quantia de 83.116.000$00, acrescida de juros, à taxa legal, desde o vencimento de cada parcela da dívida, a liquidar a final.
Como fundamento alegou, em síntese, que trabalhava como mecânico por conta e sob a direcção da sociedade ré, e foi por esta incumbido, em 17.03.95, de proceder à reparação da bomba de travão do semi-reboque de um camião de marca Iveco e matrícula ., pertencente à mesma ré, que se achava na Rua ..................
Quando chegou ao local, encontrava-se dentro da cabina do camião o respectivo motorista, de nome DD., a quem o autor pediu que travasse o camião e abandonasse a cabina do mesmo.
Depois de efectuada a reparação, o autor procedeu à ligação da tubagem entre a bomba de ar e a válvula reguladora, o que operou o desbloqueamento do semi-reboque.
Mas, porque o DD tinha deixado o veículo destravado, sucedeu que, quando o sistema de travagem ganhou compressão, o conjunto camião/semi-reboque começou a deslocar-se sozinho, para trás, apanhando o autor na zona do joelho, e fracturando-lhe a tíbia, tarso e perónio da perna direita.
Em consequência das lesões sofridas, foi o autor submetido a tratamento cirúrgico, tendo ficado com incapacidade funcional de 25% na perna direita, o que o impede de fazer a sua vida pessoal e profissional.
Sofreu dores, angústia e apreensão.
Reclama, por isso, perdas salariais ocorridas até Fevereiro de 1998, e as futuras, resultantes de ter ficado impossibilitado de exercer a sua profissão, bem como indemnização pelo dano não patrimonial sofrido, nos montantes que indica.
A responsabilidade do Fundo de CC (FGA) decorre do facto de não ter a ré, proprietária do veículo e do semi-reboque, seguro válido.

Em contestação, o FGA arguiu a sua ilegitimidade, com fundamento em não ter o autor demandado o condutor do veículo, e impugnou os factos alegados pelo demandante.
Também contestou a ré Transportes BB, L.da, arguindo a verificação de várias excepções: a excepção de litispendência – por se encontrar pendente, no Tribunal do Trabalho de Lisboa, acção com as mesmas partes e os mesmos pedido e causa de pedir; a ilegitimidade de ambas as demandadas – a do FGA, porque ela, ré, tinha, na data dos factos, contrato de seguro relativamente ao semi-reboque e ao tractor; e a da própria demandada, porque os factos que servem de suporte à causa são imputáveis a um terceiro, que não é parte nesta acção; a da incompetência do tribunal em razão da matéria, sendo competente o foro laboral.
Deduziu também defesa por impugnação, negando os factos alegados pelo autor; e terminou, defendendo a improcedência da acção e a condenação do autor como litigante de má fé, em multa e indemnização.

Foi, sequentemente, requerida pelo autor a intervenção principal de DD, enquanto condutor do veículo, e oferecida resposta à matéria das excepções.

Admitido o chamamento, foi citado o chamado, que, porém, não ofereceu contestação.

No saneador, o Ex.mo Juiz considerou prejudicado o conhecimento da excepção de litispendência, por ter sido entretanto julgada improcedente, com trânsito, a acção que corria termos no Tribunal do Trabalho, o mesmo sucedendo com a da incompetência do tribunal.
A excepção de ilegitimidade passiva foi julgada improcedente.
Com a selecção da matéria de facto relevante (factos assentes e base instrutória) seguiu o processo a sua ulterior tramitação, vindo a ser efectuada a audiência de julgamento e a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo do pedido os réus e o chamado.

O autor reagiu, interpondo da sentença o pertinente recurso de apelação, no qual, além do mais, suscitou uma questão de natureza processual, em seu entender geradora de nulidade, e traduzida na deficiente gravação dos depoimentos de várias testemunhas.
E fê-lo com êxito, pois a Relação de Lisboa julgou procedente a apelação e verificada a invocada nulidade, anulando a decisão da matéria de facto e a sentença, e determinando se procedesse à repetição dos depoimentos na parte afectada.

Cumprido, na 1ª instância, o determinado, foi proferida nova sentença, com o mesmo teor da primeira.
E dela recorreu, de novo, o autor, e também desta vez com sucesso, vindo a Relação a alterar a resposta a um dos artigos da base instrutória (o 15º) e a proferir decisão do teor seguinte:
- condenação do FGA a pagar ao autor a indemnização de € 25.000,00, a título de danos não patrimoniais ou morais;
- condenação do mesmo FGA a pagar ao autor a indemnização que se vier a liquidar em execução de sentença, relativa aos danos patrimoniais resultantes do prejuízo directo e bem assim da perda da capacidade de ganho, calculados com base no rendimento que o autor auferia à data do acidente, e até ao limite estabelecido no art. 6º do Dec-lei 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção que lhe foi conferida pelo Dec-lei 301/2001, de 23 de Novembro;
- condenação da ré transportadora e do chamado a pagarem ao autor os prejuízos que se vierem a apurar, que porventura ultrapassem o limite estabelecido no citado art. 6º do Dec-lei 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção do Dec-lei 301/2001, de 23 de Novembro;
- condenação do FGA, da ré transportadora e do chamado a pagarem ao autor os juros contados sobre as sobreditas quantias, à taxa legal supletiva do juro moratório desde a citação, sem prejuízo do limite estabelecido no art. 6º do Dec-lei 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção do Dec-lei 301/2001, de 23 de Novembro.

Recorrem agora, de revista, os réus FGA e Transportes BB, L.da.

O primeiro remata as suas alegações com a enunciação das seguintes conclusões:
1ª – O tribunal a quo, ao condenar o FGA, violou o disposto no art. 21º, n.º 2, do Dec-lei 522/85, de 31 de Dezembro, porquanto a inexistência de seguro válido ou eficaz é condição sine qua non para a responsabilização do Fundo na satisfação das indemnizações originadas por acidente de viação;
2ª – O tribunal a quo, ao não condenar solidariamente os responsáveis civis identificados como proprietária do veículo lesante e seu condutor, violou o disposto no art. 29º, n.º 6, do Dec-lei 522/85, de 31 de Dezembro, preterindo desta forma o litisconsórcio necessário passivo;
3ª - O tribunal a quo fixou, nos presentes autos, a título de dano moral pelas ofensas corporais sofridas pelo autor, o valor global de € 25.000,00;
4ª – A fixação em tal montante, para além da convicção e consciência pessoal do Ex.mo Juiz a quo, baseou-se num quadro traçado na fundamentação da douta sentença cujos componentes são de gravidade média (no domínio das ofensas corporais), pelo que está desenquadrado do contexto jurisprudencial para aquele tipo de danos, mesmo do mais recente, que apontaria para um valor não superior a € 10.000,00;
5ª – O acórdão recorrido violou, assim, o disposto no art. 496º do Cód. Civil.

Por seu turno, a ré Transportes BB, L.da apresenta o seguinte repertório conclusivo:
1 – A Relação decidiu alterar a resposta à matéria do artigo 15º da base instrutória – Por desatenção, DD deixou o veículo destravado quando esteve na cabine do camião?;
2 – Discorda-se totalmente da alteração para Provado da resposta anteriormente dada: Provado apenas que, aquando da ocorrência, o veículo se encontrava destravado;
3 – Esta alteração encontra-se sustentada pelo argumento de que apenas DD tinha acesso à cabine do camião e, consequentemente, só ele o poderia ter deixado destravado;
4 – Tal assunção é falaciosa: não ficou de modo algum provado que somente o chamado tinha acesso à cabine do camião. Tendo ele esse acesso, tal não era impeditivo que outras pessoas o tivessem, nomeadamente o autor;
5 – O autor também tinha acesso à cabine do camião. Não está provado nos autos que o acidente ocorreu imediatamente a seguir à saída do DD da cabine do camião. Não está provada a contemporaneidade entre a saída do DD do camião e o evento (deslizamento da viatura);
6 – Portanto, não está provado que o acidente se deveu ao suposto facto de o camião estar destravado, posto que é do conhecimento geral que os camiões, mesmo destravados e sem estarem a trabalhar, ficam imóveis. O nexo causa-efeito do acidente está no ponto 9 da matéria de facto provada;
7 – O camião é composto pelo tractor e pelo semi-reboque, e foi relatado pelas testemunhas que, mesmo destravado, tem sistemas de segurança que o imobilizam, sobretudo o semi-reboque. Foi o desbloqueamento do semi-reboque que causou o acidente (ponto 9 dos factos provados), o que não tem nada a ver com o facto do tractor estar ou não travado ou destravado. E isso só poderia ser causado por acção do próprio autor;
8 – O depoimento da testemunha EE, exemplo da base de argumentação do acórdão recorrido, não a pode sustentar, visto que em parte alguma do seu depoimento está expresso ou se subentende que apenas o chamado DD tinha acesso à cabine do camião. O camião ficou com a chave na ignição;
9 – Refere-se sim que o chamado “esteve presente no decurso da operação” e que “entrava e saía da cabine, actuando de acordo com as instruções do autor”, não se vislumbrando como daqui o Tribunal chegou à conclusão de que somente o chamado tinha acesso à dita cabine;
10 – Claro que só poderia ser o autor quem cortou ou desligou o sistema de segurança do semi-reboque, e com isso ele deslizou. A viatura estava imobilizada … e só o autor nela mexeu para que ocorresse o evento (deslizamento);
11 – O que se retira do exposto da supra indicada testemunha é que a cabine não estava vedada à presença de outras pessoas, tais como a do trabalhador acidentado, e que em nada este estava impedido de velar pela sua segurança;
12 – Deve retirar-se do exposto apenas que a cabine não estava vedada à presença de outros indivíduos, como a do autor, e que em nada este estava impedido de velar pela sua segurança, já que comunicava com as restantes pessoas presentes no local e conseguia movimentar-se livremente, não estando impossibilitado de se certificar de que estavam reunidas as condições de segurança para proceder à reparação do veículo. E o mesmo se diga quanto ao semi-reboque que estava engatado com o tractor;
13 – Como bem decidiu a sentença da 1ª instância, “um mecânico numa situação normal não podia deixar de diligenciar pelo travamento do veículo e de só dar início à reparação, que implicava o seu posicionamento debaixo do mesmo, quando as condições de segurança estivessem reunidas”;
14 – Sendo que o acima é reforçado pelo facto de inúmeras vezes estar explanado no acórdão recorrido que o trabalhador comandava as operações de reparação e que as outras pessoas presentes, principalmente o chamado, agiam sob as suas instruções: “(…) ficou provado que ele (o chamado) entrava e saía do mesmo (veículo) seguindo as instruções do autor”, “(…) também se provou que o motorista DD” executava “todas as operações” que o autor “lhe ia dizendo para executar”;
15 – Concluiu o acórdão recorrido que não se provou que o autor tenha ordenado ao chamado o destravamento do camião, no entanto aquele, como mecânico e pessoa que emitia ordens na operação de reparação, nunca diligenciou por verificar se aquele estava ou não travado, colocando, assim, em risco a sua segurança e a dos demais. Até porque o problema não é o tractor, mas sim o semi-reboque que, é consabido, tem sistemas de travagem e segurança autónomos;
16 – É que, o facto de o camião estar destravado ou não, é irrelevante, pois está provado – ponto 9 da matéria assente – que foi durante a reparação, ou seja, muito depois da saída do DD da cabine, que o semi-reboque desbloqueou;
17 – Tal só seria possível pela actuação do autor, posto que o DD já lá não estava há muito. É do semi-reboque que se trata;
18 – Deve alterar-se o sentido do acórdão recorrido, não se imputando qualquer responsabilidade no acidente à recorrente;
19 – É absolutamente inventivo dizer-se que o autor nunca teve acesso à viatura (tractor), facto não alegado nem provado, percebendo-se dos factos assentes que tinha total e absoluto acesso (ponto 12 da parte II do acórdão recorrido);
20 – Por outro lado, é absolutamente contraditório dizer-se que o acidente se deveu ao destravamento de um tractor (camião) que se percebe pela descrição dos factos ficou parado com o semi-reboque engatado (causa), quando o que está provado é que posteriormente a esse facto o sistema de travagem ganhou compressão. E já lá não estava o DD na viatura, posto que, como se provou, “tinha sido deixado na rua pelo DD – artigo 9º da base instrutória”;
21 – Ora, toda a gente sabe que os sistemas de travagem das viaturas pesadas só ganham compressão com o motor da viatura a trabalhar (funcionam a óleo). Se o DD deixou a viatura destravada, naturalmente sem estar com o motor a trabalhar, só pode ter sido o autor que a colocou a trabalhar ou foi ele que causou o deslizamento do semi-reboque;
22 – É que não estava lá mais ninguém. A não ser que se queira imputar responsabilidade ao “espírito” do DD.

Em contra-alegações, o autor/recorrido pugna pela improcedência de ambos os recursos.
Corridos os vistos legais, cumpre conhecer do mérito de ambos os recursos.
2.

Vejamos, antes de mais, o acervo fáctico que vem, das instâncias, dado como assente.
É o seguinte:
1 - Transitou em julgado, em 24.06.1999, a sentença proferida no Proc. 127/96, que correu termos pela 3ª Secção do 4º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa, instaurado por AA contra Transportes BB L.da e na qual se decidiu julgar improcedente o pedido formulado pelo autor AA contra a ré Transportes BB L.da por se ter entendido que «Nada de absolutamente conclusivo se apurou no sentido de o autor estar ligado à ré por um contrato de trabalho» e se ter concluído que «Os indícios recolhidos, embora precários, apontam no sentido de à ré apenas interessar o resultado da actividade desenvolvida pelo autor, ou seja, indícios da existência de um contrato de prestação se serviços» (alínea A) da Matéria de Facto Assente).

2 - Desde final do ano de 1994 que o autor exercia a actividade de mecânico na reparação do parque automóvel da ré Transportes BB, L.da (resposta ao artigo 1º da Base Instrutória).

3 - A ré pagava ao autor a quantia de 1.500$00 por cada hora de serviço que o mesmo efectuava (resposta ao artigo 2º da Base Instrutória).

4 - O autor exercia a actividade aludida no n.º 2 sempre que a ré Transportes BB, L.da necessitava de proceder à reparação de avarias nos camiões de que era proprietária (resposta ao artigo 3º da Base Instrutória).

5 - A actividade do autor era exercida nas instalações da ré Transportes BB, L.da ou em locais que esta lhe indicava (resposta ao artigo 4º da Base Instrutória).

6 - No dia 17.03.1995 cerca das 19h30/20h00, o autor deslocou-se á Rua ................., em Lisboa, para aí proceder à reparação de uma bomba de travão do semi-reboque de matrícula.......... de um camião de marca Iveco, com a matrícula ......... (resposta ao artigo 5º da Base Instrutória).

7 - O autor deslocou-se à Rua ................. na data, hora e para os fins aludidos no artigo 5º, por solicitação da ré Transportes BB, L.da (resposta ao artigo 6º da Base Instrutória).

8 - Os referidos semi-reboque e tractor são propriedade da ré Transportes BB, L.da (resposta ao artigo 7º da Base Instrutória).

9 - O semi-reboque tinha uma fuga de ar no sistema de travões, o que impedia a sua deslocação (resposta ao artigo 8º da Base Instrutória).
10 - ... e tinha sido deixado naquela rua pelo respectivo motorista, DD (resposta ao artigo 9º da Base Instrutória).

11 - ... empregado da ré Transportes BB, L.da (resposta ao artigo 10º da Base Instrutória).

12 - ... e que o pilotava por ordem e sob a direcção e no interesse da ré Transportes BB, L.da (resposta ao artigo 11º da Base Instrutória).

13 - Durante a reparação, o sistema de travagem ganhou compressão, o que teve como consequência o desbloqueamento do semi-reboque (resposta ao artigo 14º da Base Instrutória).

14 - DD deixou o veículo destravado quando esteve na cabine do camião (resposta ao artigo 15º da Base Instrutória, nos termos fixados no acórdão recorrido).

15 - Quando o sistema de travagem ganhou compressão, o conjunto formado pelo camião e pelo semi-reboque começou a deslocar-se sozinho para trás (resposta ao artigo 16º da Base Instrutória).

16 - Um eixo do veículo apanhou o autor na zona do joelho e fracturou-lhe a tíbia e o perónio da perna direita (resposta aos artigos 17º e 18º da Base Instrutória).

17 - Em virtude do acidente o autor foi removido para o Hospital de S. José em Lisboa onde foi submetido a tratamento cirúrgico em 23.05.1995 (resposta ao artigo 19º da Base Instrutória).

18 - Em consequência das lesões sofridas o autor ficou afectado com uma Incapacidade Genérica Parcial Permanente de 3% (resposta ao artigo 20º da Base Instrutória).

19 - O autor ficou impossibilitado de exercer a sua profissão de mecânico, em virtude de sentir dores, nomeadamente no joelho direito, quando se mantém de cócoras ou ajoelhado (resposta ao artigo 21º da Base Instrutória).

20 - O autor encontra-se impossibilitado de dar uma corrida, fazer uma marcha mais apressada, suportar um peso ou subir uma escada mais íngreme, em virtude de tais actividades lhe provocarem dor, nomeadamente no joelho direito (resposta ao artigo 22º da Base Instrutória).

21 - Se não fosse o acidente o autor continuaria a exercer a actividade de mecânico (resposta ao artigo 23º da Base Instrutória).
22 - A ré Transportes BB, L.da entregou ao autor a quantia de 20.000$00 no mês de Abril de 1995 e a quantia de 20.000$00 no mês de Maio do mesmo ano (resposta ao artigo 24º da Base Instrutória).

23 - O rendimento da sua actividade profissional de mecânico era a única fonte de subsistência do autor (resposta ao artigo 25º da Base Instrutória).

24 - O autor sofreu acentuadas dores com as lesões e subsequentes tratamentos (resposta ao artigo 26º da Base Instrutória).

25 - O referido nas respostas aos artigos 20º a 23º e 25º provoca ao autor sofrimento, angústia e apreensão (resposta ao artigo 27º da Base Instrutória).
3.

Estão, como vimos, interpostos e admitidos dois recursos.
O recurso da ré Transportes BB, L.da questiona, porém – ao contrário do do Fundo de CC – a decisão da Relação em sede de fixação da matéria de facto, pelo que, por óbvias razões, dele se conhecerá em primeiro lugar.

3.1. Recurso da ré Transportes BB, L.da

A recorrente assesta baterias contra o acórdão recorrido por ter este alterado a resposta à matéria do quesito 15º da base instrutória.
Este quesito foi assim formulado:
Por desatenção DD deixou o veículo destravado quando esteve na cabine do camião?
Na audiência de julgamento, este quesito obteve a seguinte resposta:
Provado apenas que aquando da ocorrência do que consta do artigo 16º o veículo se encontrava destravado.
[No artigo (ou quesito) 16º questionava-se se «Quando o sistema de travagem ganhou compressão, o conjunto formado pelo camião e pelo semi-reboque começou a deslocar-se sozinho para trás», e a resposta foi Provado].
No recurso de apelação, o autor impugnou a resposta ao aludido quesito 15º. E a Relação atendeu essa reclamação, determinando que a resposta passasse a ser a que acima se deixou indicada no n.º 14 dos factos assentes: provado que DD deixou o veículo destravado quando esteve na cabine do camião.
E disso discorda a recorrente, que pretende convencer, ao longo do vasto acervo conclusivo apresentado, que tal alteração não se justificava. A isso se reduzem, praticamente, as suas conclusões.
É, porém, seguro que o seu intento não pode lograr êxito, e o recurso que interpôs – definido que está, quanto ao seu âmbito, pelas conclusões acima transcritas – está necessariamente condenado ao malogro.
O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa – diz o n.º 2 do art. 722º do CPC – não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
No mesmo sentido dispõe o n.º 2 do art. 729º:
A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 2 do artigo 722º.
A regra é a de que o STJ, como tribunal de revista que é, apenas controla a decisão de direito, e não reexamina a decisão sobre a matéria de facto – regra que, aliás, tem expressa consagração no art. 26º da Lei 3/99, de 13 de Janeiro (LOFTJ).
É às instâncias, e designadamente à Relação, que incumbe apurar a factualidade relevante, sendo, neste âmbito, meramente residual a intervenção deste Supremo Tribunal e destinada a averiguar da observância de regras de direito probatório material, nos termos dos normativos vindos de citar (ou a mandar ampliar a decisão sobre matéria de facto, tal como disposto no n.º 3 do mesmo art. 729º).
Ou seja: o Supremo conhece de matéria de facto apenas nas duas hipóteses da 2ª parte do n.º 2 do art. 722º: quando o tribunal recorrido tiver dado como provado um facto sem que se tenha produzido a prova que, segundo a lei, é indispensável para demonstrar a sua existência (1ª hipótese), ou quando tenham sido desrespeitadas as normas que regulam a força probatória de algum dos meios de prova admitidos no nosso sistema jurídico (2ª hipótese).
E nenhuma delas se invoca (nem ocorre) no caso em apreço, como fácil é concluir da leitura das conclusões da alegação da recorrente.
Daí que não possa este Supremo Tribunal censurar a resposta que, em alteração da do julgamento na 1ª instância, a Relação, fundada na apreciação que fez do depoimento de uma testemunha, deu ao artigo 15º da base instrutória. Bem pode a recorrente insurgir-se contra a operada alteração, forcejando por demonstrar o mal fundado da apreciação da Relação e a intervenção do autor no deslizamento do conjunto formado pelo camião e pelo semi-reboque. É que, mesmo que a Relação não tivesse apreciado correctamente o depoimento em causa, o certo é que, como vimos, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser fundamento do recurso de revista.
Cabe ainda salientar a inanidade da argumentação da recorrente, quando defende que “o nexo causa-efeito do acidente” está no facto constante do ponto 9 da pregressa inventariação fáctica, e não no indicado pela Relação – o referido na resposta ao mencionado artigo 15º da base instrutória. Como também constitui jurisprudência pacífica, o nexo de causalidade naturalística entre o facto e o dano constitui matéria de facto e, como tal, também escapa à censura deste Supremo Tribunal.
Assim, em atenção a todo o exposto, não resta senão repetir o que já se deixou referido, ou seja, a improcedência do recurso da ré.

3.2. Recurso do réu Fundo de CC

O recurso do FGA coloca à apreciação deste Supremo Tribunal três questões:
- a da eventual violação do art. 21º/2 do Dec-lei 522/85, de 31 de Dezembro, por não estar demonstrada a inexistência de seguro válido ou eficaz;
- a da ofensa do preceituado no art. 29º/6 do mesmo diploma, por não terem sido condenados, solidariamente com o Fundo, a proprietária do veículo lesante e o condutor deste;
- a da errada valoração (€ 25.000,00) da indemnização por danos não patrimoniais.
Analisemos cada uma destas questões.

3.2.1. É, antes de mais, de assinalar que, lido e relido o acórdão recorrido, não se vislumbra qualquer referência aos factos nem às razões jurídicas ou às disposições legais em que tal aresto se abona para determinar a condenação do FGA.
Existe, pois, nesta parte, falta absoluta de motivação do acórdão, ausência total dos fundamentos de facto e de direito – é dizer, uma clara e grosseira nulidade do mesmo (art. 668º/1.b) do CPC).
Todavia, não a arguiu o recorrente. O recurso, no que tange à conclusão 1ª da alegação do FGA, não se funda na verificação da nulidade, num vício processual, mas antes num alegado erro de julgamento (1), na não conformidade da decisão com o direito substantivo aplicável: não ter ficado provado, como o exige o n.º 2 do art. 21º do Dec-lei 522/85 (2)., que o responsável civil não possuía seguro válido ou eficaz.
Por isso, porque não tendo sido arguida não constitui objecto do recurso, não pode tal nulidade ser decretada, com os efeitos que lhe são inerentes, por este Supremo Tribunal, pois que não se trata de questão de conhecimento oficioso.
Mas também não consta, da matéria de facto que, da Relação, vem dada como assente, menção da existência ou inexistência, à data do evento, de seguro válido e eficaz.
E um dos pressupostos de responsabilização do FGA é, segundo aquele indicado normativo, que o responsável pelo acidente originado por veículo sujeito ao seguro obrigatório, não beneficie de seguro válido ou eficaz.
Significará isto admitir o bem fundado da questão suscitada pelo recorrente, que constitui o tema da conclusão 1ª da sua alegação de recurso?
Vejamos.
No art. 39 da petição inicial, o autor alegou que a ré “é a proprietária do veículo e não tinha, segundo informação dela própria e do Instituto de Seguros, seguro válido da viatura e nem do atrelado intervenientes no acidente.”
Na contestação, a ré Transportes BB, L.da excepcionou a ilegitimidade do FGA, alegando que sempre teve e tinha à data do acidente, contrato de seguro relativamente ao semi-reboque e ao tractor – seguro que, porém, não identificou.
Notificada para o fazer (fls. 94), disse (a fls. 108) que o n.º da apólice era o 7756786 e a seguradora a Mundial Confiança.
Notificada a fls. 110 para juntar os documentos comprovativos da existência do seguro, a ré não o fez.
Foi, por isso, pedida informação ao Instituto de Seguros de Portugal (fls. 113); e, na sequência de tal pedido, a Mundial Confiança veio inicialmente dizer que o seguro teve início em 01.11.96 (fls. 136), mas logo rectificou (fls. 138) essa informação, explicando que o seguro foi efectuado na indicada data, mas em nome de outra entidade que não a ré, a Transbeiras – Transportes Rodoviários das Beiras, L.da.
A fls. 150 e ss. foi lavrado o despacho saneador, no qual foram apreciadas as excepções arguidas nos articulados e, entre elas a da ilegitimidade do FGA.
E, relativamente a esta, e com base nos factos que antecedem, o Ex.mo Juiz exarou o seguinte:
“Verifica-se, assim, que à data do alegado acidente – 17.03.95 – não estava em vigor o contrato de seguro invocado pela ré (destaque de nossa autoria).
Pelo exposto e considerando o preceituado no art. 29º n.º 6 do DL 522/85, julgo improcedente a excepção de ilegitimidade”.
Contra esta decisão não reagiu qualquer das demandadas, pelo que, embora não incluído na selecção da matéria de facto, de seguida operada, nem constante do acervo factual inserido como provado no acórdão recorrido, o facto agora posto em destaque não pode deixar de haver-se como provado, e, como tal, tido em conta por este Supremo Tribunal, já que se trata de facto material adquirido nos autos. Como expressivamente dimana do Acórdão deste Supremo Tribunal, de 23.01.2001, é indiscutível que o STJ pode servir-se de qualquer facto que, apesar de não ter sido utilizado pela Relação, deva considerar-se adquirido desde a 1ª instância (3).
Pelo que, não se mostrando agredida a norma invocada (art. 21º/2 do Dec-lei 522/85), improcede a primeira questão suscitada pelo recorrente FGA.

3.2.2. As acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido ou eficaz, devem obrigatoriamente ser interpostas contra o Fundo de CC e o responsável civil, sob pena de ilegitimidade.
Assim textua o n.º 6 do art. 29º do já citado Dec-lei 522/85.
Trata-se de uma norma processual, como logo decorre da epígrafe do capítulo (“Das Normas Processuais”) e do preceito (“Legitimidade das partes e outras regras”) em que se insere; não é um preceito de natureza substantiva, definidor da responsabilidade civil.
E não se mostra que tal regra adjectiva tenha sofrido entorse no caso que é objecto de análise, já que, além do Fundo de CC, foram igualmente demandadas a sociedade proprietária do camião e o condutor deste veículo (este, pela via do incidente de intervenção principal provocada).
Mas, decretada que foi a condenação do FGA, deveriam ser com ele solidariamente condenados os responsáveis civis – a proprietária do veículo e o condutor deste?
O FGA entende que sim, pretendendo que, ao estabelecer o mencionado normativo uma situação de litisconsórcio necessário passivo entre os responsáveis civis e o próprio Fundo, não só a acção tem de ser intentada contra aqueles e este, como a sua condenação tem de ser solidária, sob pena de violação do litisconsórcio necessário passivo.
Defende também que “estão apurados os factos atinentes à determinação da culpa do chamado, DD, neste acidente, porquanto deixou o veículo destravado quando esteve na cabine, pelo que se entende que a este é de imputar a responsabilidade na produção do acidente, e, consequentemente, a responsabilidade da ré Transportes BB, L.da pelo pagamento das indemnizações pelos danos causados, porquanto o chamado pilotava o veículo ......... e o semi-reboque L ........ por ordem e sob a direcção e no interesse daquela.”
Vejamos, pois!
O Fundo de CC é, nos termos da lei (art. 21º, n.º 2, al. a) e b) do citado Dec-lei 522/85) uma entidade que, além do mais, garante, por acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal, a satisfação das indemnizações por morte ou lesões corporais ou materiais quando o responsável não beneficie de seguro válido ou eficaz.
Quando, assim, satisfaça a indemnização aos lesados, o Fundo fica sub-rogado nos direitos destes, tal como dispõe o n.º 1 do art. 25º do mesmo diploma.
Daqui decorre que o Fundo não é um devedor – é um mero garante do cumprimento da obrigação do responsável civil de reparar os danos causados ao lesado.
A sua obrigação é autónoma e subsidiária da obrigação do responsável civil, não respondendo ele como devedor principal ou directo (que é o incumpridor da obrigação de segurar), pois que não existe entre este e o Fundo uma relação de solidariedade passiva própria.
O Fundo não é um devedor solidário, mas enquanto garante legal da obrigação do responsável civil, um mero obrigado subsidiário, um obrigado ao cumprimento, se o directo devedor o não fizer.(4).
No acórdão de 28.05.2009, deste Supremo Tribunal, refere-se, em sentido idêntico ao acabado de expressar, que a norma acima transcrita, do n.º 6 do art. 29º do Dec-lei 522/85, não foi estabelecida por a obrigação do FGA e a do responsável civil serem verdadeiramente solidárias, no contexto do art. 497º do Cód. Civil, porque essa solidariedade é uma solidariedade imprópria, imperfeita ou “impura”. Só nas relações externas, face ao lesado, é que ambos respondem; no plano interno, paga a indemnização pelo Fundo, fica este investido nos direitos do credor – o lesado – podendo pedir do lesante o que pagou (5).
Ora, se assim é – se, perante o lesado, ambos (responsável civil e FGA) respondem, embora o Fundo seja um mero obrigado subsidiário, um obrigado ao cumprimento, se o directo devedor, o responsável civil, o não fizer – parece irrecusável que a condenação na indemnização dos danos sofridos pelo lesado deve abranger todos os que por ela respondem.
A condição – do Fundo – de garante da obrigação do responsável civil postula, naturalmente, a existência dessa obrigação, e a vinculação deste último (i.e., do responsável civil) ao cumprimento dessa obrigação – vinculação que a sentença deve expressar.

A respeito da imputação da responsabilidade pelo sinistro e suas consequências danosas, o acórdão recorrido queda-se, lamentavelmente, muito aquém do exigível.
Na verdade, depois de – precedendo a apreciação da impugnação da matéria de facto (!) – ter entendido importante “fazer uma indagação de direito”, que se resumiu na transcrição da norma do n.º 1 do art. 503º do Cód. Civil, e na afirmação de que “a reparação de um sistema de travões e/ou de bloqueio de rodas de um veículo está intimamente ligada à sua utilização e aos seus riscos próprios, pelo que é aplicável o disposto na norma (6).”, a Relação limitou-se, mais adiante, à consideração de que o condutor do camião – o chamado DD – por ter deixado o veículo destravado quando esteve na cabine, “omitiu uma diligência cautelar indispensável”, e “essa omissão foi causal do acidente, o que faz com que os danos apurados sejam susceptíveis de indemnização, face ao art. 483º, n.º 1 do Código Civil”.
E, parcimoniosamente, por aqui se quedou!
Nenhuma explicação fornece quanto às razões de direito por que não foi condenado o DD, a par do Fundo; e incorre igualmente em omissão total de fundamentos jurídicos quanto à não responsabilização de Transportes BB, L.da ao lado do Fundo.
Ora, segundo cremos, a intervenção do responsável civil ao lado do FGA – que a lei quis assegurar de forma tão vincada, a ponto de a tornar obrigatória, sob pena de ilegitimidade – visa, em essência,
- facilitar ao lesado a satisfação do seu direito, facultando-lhe a possibilidade de reclamar a indemnização do responsável civil ou do Fundo;
- ajudar o FGA no conhecimento das circunstâncias do acidente e das suas causas e efeitos, bem como do pertinente material probatório, pelo contributo que, para tanto, pode ser trazido por quem, melhor do que o próprio Fundo, conhece esses elementos de facto, a que este não tem, por vezes, fácil acesso;
- definir logo, com a presença de todos os interessados, a medida em que deverá ser exercido, posteriormente, o direito do Fundo a ser reembolsado, nos termos do art. 25º n.º 1 do Dec-lei 522/85.
Tais objectivos – designadamente o primeiro e o último – reclamam a necessidade de condenação solidária dos demandados, responsáveis civis e FGA, sob pena de ficar sem justificação plausível o regime processual que a lei quis impor.
Pois bem!
Os factos apurados nas instâncias integram todos os pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos, e da correspectiva obrigação de indemnizar, por parte da ré Transportes BB, L.da e do chamado DD (art. 483º/1 do CC).
Ao actuar pela forma descrita, deixando o veículo destravado quando esteve na cabine do camião, o DD cometeu um acto ilícito, que, como refere a Relação, foi causa adequada do deslizamento do veículo e do acidente, e produziu no autor os danos referenciados nos n.os 16 e seguintes do rol dos factos assentes.
Estamos perante um facto, uma omissão, que se volve em causa do dano porque havia um especial dever, por parte do chamado, de praticar um acto (travar o veículo) que, seguramente ou muito provavelmente, teria impedido a consumação do dano.
A ilicitude traduz-se, aqui, na violação de um dever – o dever de observância de regras de ordem técnica, ligadas às leges artis do exercício da actividade de motorista profissional, e mesmo de regras de prudência comum.
O nexo de causalidade entre o facto e o evento foi afirmado pela Relação. Trata-se aqui de questão de facto, da exclusiva competência das instâncias, como vem sendo reiteradamente decidido por este Supremo Tribunal.
A culpa do chamado – o juízo de reprovabilidade pessoal da sua conduta, assente no nexo existente entre o facto e a vontade deste – é também evidente: em face das circunstâncias específicas do caso, devia e podia ter actuado de outro modo.
Quanto ao dano – patrimonial e não patrimonial – ele decorre exuberantemente do acervo fáctico que vem provado.
A responsabilidade da ré Transportes BB, L.da radica, por seu turno, no disposto no art. 500º n.os 1 e 2 do Cód. Civil.
Deverá, assim reconhecer-se razão, na questão em análise, ao recorrente FGA.
Deverá, isto é, determinar-se a condenação solidária dos demandados – os responsáveis civis (art. 497º/1 do CC) e o Fundo.

3.2.3. E eis-nos chegados à última questão – a do montante dos danos não patrimoniais fixados no acórdão recorrido.
O acórdão fixou a indemnização devida por tais danos no quantum peticionado pelo autor (€ 25.000,00), soma que o recorrente reputa excessiva, entendendo ajustado montante não superior a € 10.000,00.
Fundamentação do acórdão:
Relativamente aos danos morais, face à matéria de facto fixada supra nos n.os 24 e 25, parece razoável fixar a indemnização pedida de 25.000 €.
Nem mais uma palavra!
Mais uma vez, não podemos calar o comentário: pouco, muito pouco!
Permita-se-nos a transcrição do notável passo do Ac. n.º 55/85, do Trib. Const., de 25.03.85:
A fundamentação dos actos jurisdicionais (decisões judiciais), em geral, cumpre duas funções:
a) uma, de índole endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permite às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente(7);
b) outra, de ordem extraprocessual, já não dirigida essencialmente às partes e ao juiz ad quem, que procura, acima de tudo, tornar possível o controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão – que procura, dir-se-á por outras palavras, garantir a “transparência” do processo e da decisão.
Dito isto, avancemos!
Decorre do disposto no n.º 1 do art. 496º do Cód. Civil a reparabilidade dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. O que vale dizer que nem todos os danos não patrimoniais são ressarcíveis: só o são aqueles que sejam suficientemente graves para justificar a tutela do direito.
A gravidade do dano é um conceito relativamente indeterminado, carecido de preenchimento valorativo a fazer caso a caso, de acordo com a realidade fáctica apurada. Todavia, como realça ANTUNES VARELA (8), não obstante dever essa apreciação ter em conta as circunstâncias de cada caso, a gravidade deverá medir-se por um padrão objectivo, e não de acordo com factores subjectivos, ligados a uma sensibilidade particularmente aguçada ou especialmente fria e embotada do lesado; e, por outro lado, deverá ser apreciada em função da tutela do direito: o dano deverá ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.
O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado, em qualquer caso, segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, e às demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam, seguramente, as lesões sofridas e os sofrimentos, físicos e psíquicos, devendo ter-se em conta, na sua fixação, todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida (9)..
Sendo certo que, nestes casos, a indemnização não visa propriamente ressarcir, tornar indemne o lesado, mas proporcionar-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido, impõe-se que tal compensação seja significativa, e não meramente simbólica.
Mas indemnização significativa não quer dizer indemnização arbitrária. O legislador manda, como vimos, fixar a indemnização de acordo com a equidade, tendo em atenção as circunstâncias, já enunciadas, referidas no art. 494º do Cód. Civil – o que significa que o juiz deve procurar um justo grau de “compensação”.
A equidade é, no dizer de CASTANHEIRA NEVES, “um momento da concreta realização do direito”.
No caso em análise, constitui uma evidência, face ao que vem de ser exposto, que o autor sofreu danos de índole não patrimonial, não suscitando dúvidas que eles assumem gravidade suficiente para justificar a intervenção reparadora do direito.
Padeceu acentuadas dores com as lesões (fractura da tíbia e do perónio) e subsequentes tratamentos (designadamente o necessário tratamento cirúrgico), e o esforço físico continua a causar-lhe algum incómodo; e tudo isso, e as sequelas das lesões, provocam-lhe sofrimento, angústia e apreensão.
Considerados os factores relevantes na formulação do juízo de equidade para a fixação do quantum indemnizatório e não perdendo de vista o sentido das decisões jurisprudenciais mais recentes nesta matéria, isto é, os padrões de indemnização que vêm sendo adoptados pela jurisprudência, os quais constituem também circunstância a ter em conta, entendemos que a justa reparação do dano não patrimonial sofrido pelo autor se alcança com a atribuição de indemnização do montante de € 20.000,00.
4.

Face a tudo quanto fica exposto, acorda-se em
- negar a revista pedida pela ré Transportes BB, L.da; e
- conceder parcialmente a revista pedida pelo réu Fundo de CC, revogando em parte o acórdão recorrido, ficando aquela ré e o chamado DD solidariamente condenados com o Fundo a pagar ao autor a indemnização de € 20.000,00 (vinte mil euros), a título de danos não patrimoniais, bem como a que vier a ser liquidada (art. 661º/2 do CPC), relativamente aos danos patrimoniais referidos no acórdão recorrido.
No mais, acorda-se em manter o decidido pelo Tribunal a quo.
As custas do recurso da ré Transportes BB, L.da ficam inteiramente a cargo desta.
Sem custas o recurso do Fundo de CC, por delas estar isento (art. 29º, n.º 11 do Dec-lei 522/85).

Lisboa, 05 de Novembro de 2009

Santos Bernardino (Relator)
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva
______________________________________
(1) O erro de julgamento não se inclui entre as nulidades da sentença (cfr. A. Varela et alteri, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 686).
(2) Este diploma, hoje revogado pelo Dec-lei 291/2007, de 21 de Agosto, é o aplicável ao caso dos autos, por ser a lei vigente à data da ocorrência do sinistro.
(3) Acórdão proferido na revista 3781/00, da 1ª Secção, indicado nos Sumários de Acórdãos Cíveis do STJ, edição anual – 2001, pág. 23. No mesmo sentido, o Acórdão de 06.10.2005, na revista 2753/04, desta 2ª Secção. Também para F. AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, 7ª ed., pág. 281, o STJ tem de acatar a matéria de facto adquirida nos autos, que não tem necessariamente de coincidir com a seleccionada pela Relação, pois pode também servir-se dos factos notórios e dos que chegaram ao seu conhecimento por virtude do exercício das suas funções (art. 514º).
(4) Cfr. o acórdão deste Supremo Tribunal, de 23.09.2008, proferido no Proc. n.º 08A1994, disponível em www.dgsi.pt/jstj que, nesta parte, seguimos de perto.
(5) Este acórdão foi lavrado no Proc. 529/04.1TBFR.S1, e acha-se disponível em www.dgsi.pt/jstj.
(6) É nosso o sublinhado.
(7) Sublinhado de nossa autoria.
(8) Das Obrigações em Geral, 7ª ed., vol. I, pág. 600.
(9) Cfr. A. Varela, ob. cit., 2ª ed., vol. I, pág. 486.