Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P2812
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
REABERTURA DA AUDIÊNCIA
CRIME CONTINUADO
BENS EMINENTEMENTE PESSOAIS
CULPA
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
Nº do Documento: SJ200811050028123
Data do Acordão: 11/05/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - O art. 371.º-A do CPP, aditado pela Lei 48/2007, de 29-08, visa, em caso de sucessão de leis penais, a aplicação da lei mais favorável, mesmo havendo trânsito em julgado da condenação, mas antes da execução desta, com o que atenua o lançar mão do recurso extraordinário de revisão, além de realizar a justiça material que uma lei mais favorável introduz, estabelecendo a concordância prática entre o regime substantivo e o direito processual penal, instrumento de realização daquele, finalidade que se harmoniza, também, com o art. 2.º, n.º 4, do CP, na alteração trazida pela Lei 59/2007, de 04-09.
II - O art. 371.º-A do CPP, ao permitir a reabertura da audiência, com eventual produção de prova, não se traduz num irrestrito novo julgamento, e menos ainda da matéria de facto, que deixa intocável, mas apenas num julgamento parcelar da questão, em manifesto benefício do arguido, para determinação, no confronto de leis em sucessão, do regime penal que lhe é mais benéfico, ou seja, para proporcionar nova sanção e não a discussão da culpabilidade.
III - A reabertura da audiência passa pela suficiente alegação de um circunstancialismo prévio que permita conjecturar, ab initio, que a norma agora introduzida, se existisse no momento do julgamento, introduziria uma nota em favor do arguido, que é, materialmente, por isso, de pôr em prática (cf., neste sentido, Código de Processo Penal Anotado, Vinício Ribeiro, pág. 779, e Ac. da Relação do Porto de 10-12-2007, Proc. n.º 2361/07 - 1.ª).
IV - A figura do crime continuado recebeu por incorporação o seu primeiro desenvolvimento na tese do Prof. Eduardo Correia (in Unidade e Pluralidade de Infracções) e teve por fonte o art. 33.º do Projecto do Código Penal de 1963, discutido na 13.ª sessão da Comissão Revisora, em 08-02-1964, aí sendo aprovado um último período para o n.º 2 do art. 30.º, do seguinte teor: «A continuação não se verifica, porém, quando são violados bens jurídicos inerentes à pessoa, salvo tratando-se da mesma vítima».
V - A circunstância de tal período não ter sido, então, acrescentado não significa que outra solução deva ser adoptada, mas apenas que o legislador considerou desnecessário introduzi-la, por resultar da doutrina, sendo até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no âmbito do que à doutrina cabe, escreve Maia Gonçalves, ao comentar aquele art. 30.º do CP.
VI - E o mesmo ilustre comentador pondera que deve ser excluída a figura do crime continuado quando as condutas violem bens jurídicos inerentes às pessoas, como emanação eminentemente pessoal dos bens jurídicos violados, como resultante da própria natureza das coisas, formulação indiscutível pela doutrina.
VII - Em tais situações mostram-se preenchidos tantos tipos legais quantas vezes são negados bens jurídicos eminentemente pessoais, que, segundo palavras do Prof. Eduardo Correia (ob. cit., pág. 255), se encarnam individualmente nas pessoas dos vários portadores, dos quais se não pode fazer abstracção, não se dissociando de Jescheck, para quem são condições de primeiro plano para aplicação do conceito a existência de uma actividade homogénea e que os actos sejam referidos à mesma pessoa, afectando o mesmo bem jurídico. Sendo bens eminentemente pessoais, o conceito está arredado pois que tanto a ilicitude da acção e do resultado como o conteúdo da culpa são distintos em relação a cada acto individual sem se verificar a renúncia a valorações separadas, atenta a não identidade de bens jurídicos – cf. Tratado de Derecho Penal, I, Parte Generale, ed. Bosh, pág. 652 e ss., e Acs. deste STJ de 10-09-2007, CJSTJ, Ano XV, tomo 3, pág. 193, e de 19-04-2006, CJSTJ, Ano XIV, tomo 2, pág. 169.
VIII - Mas sempre que é a mesma a pessoa do ofendido em bens eminentemente pessoais a jurisprudência deste STJ maioritariamente entendeu que a plúrima violação de bens daquela natureza, cometida por forma substancialmente homogénea, num quadro temporalmente unificado, só integra aquela figura se ocorrer um quadro exterior ao agente que diminua consideravelmente a sua culpa.
IX - É, pois, uma questão de culpa, de que o aplicador da lei não pode divorciar-se e que com dificuldade se pode ver, por exemplo, em caso de abusos sexuais de crianças, incapazes de avaliarem os seus actos, mesmo que consentidos, por a lei presumir, juris et de jure, essa incapacidade de livre disposição do seu corpo ou de obstarem a que outrem o faça. E muito particularmente se, mais do que a uma especial solicitação do exterior, a reiteração do agente ficar a dever-se a uma deficiência de personalidade, a uma sua propensão para o crime, enraizada em qualidade desvaliosa do agente, aumentando a culpa.
X - O fundamento da teoria da continuação está em íntima ligação com a gravidade penal: com uma oportunidade favorável, com a presença do objecto da acção, da disponibilidade dos meios de execução ou seus auxiliares, da vantagem do lugar e do tempo e, de uma maneira geral, de todas as circunstâncias que tornam o fim do crime facilmente atingível ou asseguram o sucesso e a impunidade – ob. cit., págs. 205 e 216.
XI - O n.º 3 do art. 30.º do CP não possui um alcance inovador, que conduziria a um chocante e absurdo resultado de ter de ver-se o agente do crime, sobretudo no caso de as vítimas serem crianças ou mentalmente incapazes, justamente os mais indefesos da sociedade, punido, apenas, por um crime quando sobre a vítima praticou vários, ofendendo o sentimento jurídico reinante no seio da comunidade, efeito ainda mais visível no caso de crianças vivendo sob o mesmo tecto do abusador, em que, em lugar de manter contenção e respeito sobre o seu instinto sexual, aquele exerce acção infrene e, assim, mais censurável.
XII - A ser outra a interpretação, conducente a um efeito perverso, ter-se-ia que, em nome da justiça, da lógica e do mais elementar bom senso, atalhar o alcance de quem fez a lei, lançando-se mão de uma imperiosa interpretação restritiva.
XIII - Mas temos como assente que o legislador não quis divergir da orientação do antecedente e, assim, a violação plúrima de bens eminentemente pessoais de que é vítima uma mesma pessoa só é crime continuado se concorrer o circunstancialismo de que a lei o faz depender, esse sendo o alcance da remissão do n.º 3 para o n.º 2 do art. 30.º do CP, de cujos pressupostos não quis abdicar, afastando-o, então, pela verificação da inexistência de um quadro exterior ao agente reduzindo-lhe o grau de culpa, facilitante do resultado, antes por ele criado, aproveitando-se da fragilidade da criança, do seu ascendente ou de um método enganoso.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça :

No processo comum com intervenção do tribunal colectivo sob o 602/2000 , do 3º juízo , do TJ de Águeda, o arguido AA , foi condenado pela prática de um crime de abuso sexual de uma única criança (art. 172.º n.º 2 do CP), sob a forma continuada (art. 30.º n.º 2 , do CP) e por factos praticados em sequência, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão.

Em cúmulo com outro crime, o arguido foi condenado na pena única de 6 anos de prisão.

O arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra e esta decisão foi confirmada.

O arguido recorreu do acórdão da Relação para o STJ, que , por seu acórdão de 25.5.2005 , alterou a qualificação jurídica dos factos pelos quais o arguido tinha sido condenado por aquele crime de abuso sexual, considerando que não deveria haver unificação dos mesmos sob a forma de continuação, por não estar provada uma situação exterior ao agente que o tivesse impelido à repetição da conduta criminosa, nem a mencionada diminuição da culpa.

Assim, o arguido ficou condenado antes por dois crimes de abuso sexual de criança, um do nº. 1 e outro do nº. 2 do art. 172 do CP, nas penas de, respectivamente, 2 anos e 6 meses de prisão e 4 anos de prisão.

Em cúmulo dos três crimes, foi mantida a pena única de 6 anos de prisão.

O arguido requereu , agora, ao tribunal de 1.ª instância a aplicação da norma acrescentada pela Lei 59/2007, de 04/09, ao artigo 30 do CP, ou seja o seu n.º 3 , alegando que antes não havia a possibilidade de ser condenado pelo abuso sexual de criança na forma continuado , o que , agora , se torna possível por força dessa expressa alteração , sendo de subsumir a sua conduta àquela figura .

Na altura daquela condenação não havia , segundo a doutrina maioritária , a hipótese de a violação plúrima de bens eminentemente pessoais importar uma redução da culpa mas uma agravação dela .

De facto do art.º 30.º n.º 3 , do CP , resulta que , agora , é possível condenar o arguido por crime continuado sempre que a sua conduta atentar contra bens eminentemente pessoais e a vítima seja a mesma .

Por outro lado persiste uma situação exterior que facilita a execução e diminui a culpa.

Face a tal lei mais favorável deve o arguido ser condenado pelo crime continuado e ser-lhe reduzida a pena .

O tribunal de 1.ª instância , em 25.2.2008 , após reabertura da audiência nos termos do art.º 371.º n.º 1 –A , do CPP , na alteração introduzida ao CP pela Lei n.º 59/07 , de 4.9 , por acórdão daquela data , considerou ser o regime jurídico-penal exactamente o mesmo e mais que a decidir-se em contrário do STJ , no sentido da continuação criminosa , estar-se-ia em presença da sua revogação , com subversão das regras e , por isso , manteve a condenação nos exactos moldes do antecedente .

Inconformado recorre o arguido para o Tribunal da Relação de Coimbra que , por , em decisão sumária , entender ser este STJ a instância de recurso competente para apreciação do recurso , aqui sendo recebidos os autos , sempre com oposição à alteração ao decidido pelo Exm.º Magistrado do M.º P.º em todas as instâncias .

Nas suas conclusões do recurso diz o arguido :

A fundamentação do “ juiz “ ( sic) é errada , violando o disposto no art.º 97.º n.º 5 , do CPP .

O regime a aplicar não é o mesmo agora e cita vários acórdãos deste STJ em que ,do antecedente , por se tratar de bens eminentemente pessoais , se mostrava afastado o regime do concurso continuado .

Diversamente no CP actual com a alteração à redacção do art.º 30.º , do CP , com a adição do n.º 3 , do CP , pela Lei n.º 59/07 , de 4/9 , importa analisar sempre se os pressupostos do crime continuado estão registados, como aliás o determinado uma Circular interna para os Magistrados do Ministério Público .

As condutas do recorrente devem ser qualificadas juridicamente como um crime de abuso sexual continuado de crianças , nomeadamente os factos 10 a 15 da sentença .

Quando foi feita a alteração legal pelo STJ ainda não existia o art.º 30.º n.º 3 , do CP , pelo que havendo uma nova norma a prever o crime continuado tinha que o tribunal aferir os seus requisitos .

A decisão recorrida violou o disposto no art.º 97.º n.º 5 , do CPP e o 30.º n.º 3 , do CP.

Deve , pois , o arguido ser condenado pela prática de um crime continuado revogando-se o acórdão recorrido .

Colhidos os legais vistos , cumpre decidir :

O art.º 371.º -A ,do CPP , aditado pela Lei n.º 48/07 , de 29/8 , visa , em caso de sucessão de leis penais , a aplicação da lei mais favorável , mesmo em caso de trânsito em julgado da condenação , mas antes da sua execução , com o que atenua o lançar mão do recurso extraordinário de revisão , além de realizar a justiça material que uma lei mais favorável introduz estabelecendo a concordância prática entre o regime substantivo e o direito processual penal , instrumento de realização daquele , finalidade que se harmoniza , também , com o art.º 2.º n.º 4 , do CP , na alteração trazida pela n.º 59/07 , de 4/9.

A afronta ao caso julgado não é , de resto , dogma intransponível em vigência no nosso direito , menos noutros ainda , constitucionalmente consentida nos art.ºs 29.º n.º 4 e 282 .º n.º 3 , da CRP , sendo exemplos dessa flexibilização o aludido recurso extraordinário de revisão , a amnistia , o perdão e o regime da prisão preventiva sujeito como está à cláusula “ rebus sic stantibus “ .

Aquele art.º 371.º n.º 1 –A , do CPP , ao permitir a reabertura da audiência , com eventual produção de prova , não se traduz num irrestrito novo julgamento e , menos , ainda da matéria de facto , que deixa intocável , mas apenas um julgamento parcelar da questão em manifesto benefício do arguido para determinação , no confronto de leis em sucessão , do regime penal que lhe é mais benéfico , ou seja proporcionar nova sanção e não a discussão da culpabilidade .

A reabertura da audiência passa pela suficiente alegação de um circunstancialismo prévio que permita conjecturar , “ ab initio “, que a norma agora introduzida , se existisse no momento do julgamento introduziria uma nota em favor do arguido , que agora é , materialmente , de , por isso , põr em prática ( Cfr. neste sentido Código de Processo Penal Anotado , de Vinício Ribeiro , pág. 779 e Ac. da Rel. Porto , de 10.12.2007 , P.º n.º 2361 /07 -1 ).

Em causa está a questão colocada pelo arguido de , em reabertura da audiência , saber se o CP , na sua nova redacção introduzida pela Lei n.º 59/98 , de 4/9 , ao aditar um n.º 3 , ao art.º 30.º , veio arredar consagrar incondicionalmente a figura do crime continuado , sobretudo em estando em causa a violação plúrima de bens pessoais , de que é titular a mesma vítima.

O segmento do n.º 3 apontado dispõe que “ O disposto no n.º anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais , salvo tratando-se da mesma vítima .“

Por seu turno o art.º 30.º , no seu n.º 2 , configura o conceito de crime continuado sempre que “ …a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico , executada por forma essencialmente homogénea e no quadro de uma solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. “

A figura do crime continuado , de resto já conhecida na Idade Média , de forma sincopada , mais com uma finalidade de evitar a eternização da pena de prisão em se tratando de crimes em reiteração , recebe por incorporação o seu primeiro desenvolvimento na tese do Prof. Eduardo Correia , in Unidade e Pluralidade de Infracções e teve por fonte o art.º 33.º do Projecto de 1963 , discutido na 13.ª Sessão da Comissão Revisora , em 8 de Fevereiro de 1964 , aí sendo aprovado um último período para o n.º 2 , que tinha o seguinte teor : “ A continuação não se verifica , porém , quando são violados bens jurídicos inerentes à pessoa , salvo tratando-se da mesma vítima .”

Essa síncope normativa não significa , porém , que outra deva ser a solução adoptada mas apenas que o legislador considerou desnecessário introduzi-la , por resultar da doutrina , sendo até inconveniente , por a lei não dever entrar demasiadamente no âmbito do que à doutrina cabe , escreve Maia Gonçalves , ao comentar aquele art.º 30.º .

E o mesmo ilustre comentador pondera que não deve ser excluída a figura do crime continuado quando as condutas violem bens jurídicos inerentes às pessoas , como emanação eminentemente pessoal dos bens jurídicos violados , como resultante da própria natureza das coisas , formulação indiscutível pela doutrina .

Em tais situações mostram-se preenchidos tantos tipos legais quantas vezes são negados bens jurídicos eminentemente pessoais , que , segundo palavras do Prof. Eduardo Correia , in Unidade e Pluralidade de Infracções citada , pág. 255 , se incarnam individualmente na pessoas dos vários portadores dos quais se não pode fazer abstracção , que se não dissocia de Iescheck , para quem são condições de primeiro plano para aplicação do conceito a existência de uma actividade homogénea e que os actos sejam referidos à mesma pessoa , afectando o mesmo bem jurídico .Sendo bens eminentemente pessoais o conceito está arredado por tanto a ilicitude da acção e do resultado como o conteúdo da culpa são distintos com relação a cada acto individual sem se verificar a renúncia a valorações separadas , atenta a não identidade de bens jurídicos –cfr. Tratado de Derecho Penal , I , Parte Generale , I , ed. Bosh , pág. 652 e segs e Acs. deste STJ , de 10.9.2007 , in CJ , STJ , Ano XV, TIII, 193 e de 19.4.2006 , in CJ , STJ ,Ano XIV, TII , 169.

Mas sempre que é a mesma a pessoa do ofendido em bens eminentemente pessoais , a jurisprudência deste STJ maioritariamente entendeu que a plúrima violação de bens daquela natureza , cometida por forma substancialmente homogénea , num quadro temporalmente unificado , só integra aquela figura se ocorrer um quadro exterior ao agente que diminua consideravelmente a culpa do agente .

É , pois , uma questão de culpa de que o aplicador da lei não pode divorciar-se , e que com dificuldade se pode ver , por ex.º , em caso de abusos sexuais de crianças , incapazes de avaliarem os seus actos , mesmo que consentidos , por a lei presumir, “ juris et de jure “, a vontade de livre disposição do seu corpo ou obstarem a que outrém o faça .

E muito particularmente se , mais do que a uma especial solicitação do exterior , a reiteração do agente fique a dever –se a uma deficiência de personalidade , a uma sua propensão para o crime , enraizada em qualidade desvaliosa do agente , aumentando a culpa .

O fundamento da teoria da continuação está em íntima ligação com a gravidade penal ; com uma oportunidade favorável , com a presença do objecto da acção , da disponibilidade dos meios de execução ou seus auxiliares , da vantagem do lugar e do tempo e , de uma maneira geral , de todas as circunstâncias que tornam o fim do crime facilmente atingível ou asseguram o sucesso e a impunidade –op. cit . 205 e 216 .

Este STJ , de 25.5.2005 , em recurso da decisão da Relação , tributário daquele pensamento , afirmou que sem circunstância exteriores ao agente redutoras da culpa não concorre a figura do crime continuado e , depois do exame da matéria de facto , foi muito claro em afirmar que “ …dos factos provados não resulta que esta reiteração criminosa tenha sido fruto mais de uma falada situação exterior ( circunstâncias exógenas ) do que de motivos endógeno inerentes à personalidade do arguido .

Resulta , ao invés , ter sido o próprio a arguido a criar e a dominar o condicionalismo favorável à concretização do seu propósito criminoso quanto ao cometimento dos crimes em questão . “

E mais afirmou que não surgiram “ circunstâncias exteriores facilitando o crime “ , antes estas apresentaram-se conscientemente procuradas por ele próprio para concretizar a sua intenção. “

E esta factualidade assente é , absolutamente inatacável , constituindo um dado irrefutável , a coberto do trânsito em julgado , para o efeito de questionar-se e decidir-se se a lei nova , o n.º 3 , do art.º 30.º , do CP , agora introduzido faz reviver a figura do crime continuado , uma vez que é a mesma a pessoa do ofendido .

Esse segmento normativo não possui um alcance inovador , que conduziria a um chocante e absurdo resultado de ter de ver-se o agente do crime , sobretudo em caso de as vítimas serem crianças de tenra idade e muito jovens ou mentalmente incapazes , justamente os mais indefesos da sociedade e serem eles os mais desprotegidos , punido , apenas , por um só crime quando sobre a vítima se praticaram vários , ofendendo o sentimento jurídico reinante no seio da comunidade .

Isto mais visível é no caso de crianças vivendo sob o mesmo tecto do abusador em que em lugar de manter contenção e respeito sobre o seu instinto sexual aquele exerce acção infrene e assim mais censurável , como nos parece inevitavelmente ser .

A ser outra a interpretação , conducente a um efeito perverso , ter-se-ia que , em nome da justiça , da lógica e do mais elementar bom senso , atalhar o alcance de quem fez a lei ; ele quis dizer mais do que exprimiu nas palavras da lei , lançando-se mão de uma imperiosa interpretação restritiva , não proibida por lei .

Mas seguramente temos como assente que o legislador não quis divergir da orientação do antecedente e assim a violação plúrima de bens eminentemente pessoais de que é vítima uma mesma pessoa só é crime continuado se concorrer o circunstancialismo de que a lei o faz depender , esse sendo o alcance da remissão do n.º 3 para os n.ºs 2 , do art.º 30.º , do CP , e de cujos pressupostos não quis abdicar , afastando-o , então , pela verificação da inexistência de um quadro exterior ao agente reduzindo-lhe o grau de culpa , facilitante do resultado , antes por ele criado , aproveitando-se da fragilidade da criança , do seu ascendente ou de um método enganoso .

O aditamento não permite , pois , uma interpretação segundo a qual uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduza automaticamente ao crime continuado , afastando-se um concurso real ( Cfr. Ac. do STJ , de 8.11.2007 , P.º n.º 3296 /07 -5 .ª Sec. , acessível in www. dgsi.pt .) , só significa que o tribunal deve constatar , esgotantemente , se se mostrarem preenchidos os seus pressupostos enunciados no n.º2 , de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito .

Interpretação em contrário seria , até, manifestamente , atentatória da CRP , restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana , violando o preceituado no art.º 1.º , comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais em ofensa ao disposto no art.º 18.º , da CRP .

A Circular interna da PGR , de 9.8.2008 , tendo presente a errada divulgação da notícia pelos mais díspares meios de comunicação social de que a norma do n.º 3 viria permitir uma punição leve dos abusadores sexuais , fez questão de significar que “ as críticas conhecidas não abalaram o entendimento firmado de décadas “ , que já se deixou expresso .

Maria Conceição Valdágua , no seu artigo sobre Alterações ao Código Penal de 95, Relativas ao Crime Continuado , Propostas no Anteprojecto de Revisão do Código Penal , publicado na RPCC, Ano 16 , 2006 , 536 e segs . , salienta que aquela alteração se não reconduz a um “ regime novo “ , até porque da Exposição de Motivos que precedeu a alteração se escreveu que o conteúdo do aditamento está “ de acordo (…) com o entendimento da jurisprudência “ , podendo levar a interpretação oposta .

A figura do crime foi claramente abandonada pelo Tribunal Federal Alemão , na chamada “ decisão do século “ , de 3.5.1994 , não mais sendo retomada nas ulteriores questões que foi chamado a decidir nomeadamente nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual , de ofensas corporais , furto , extorsão , infidelidade , falsificação de documentos , suborno activo e passivo , entre outros , rejeição que conta com o apoio de numerosos e de credenciados penalistas como Jackobs , Iescheck , Roxin , SchmidHäuser e Stratenwerth.

Aquela autora , na Revista citada, aponta ao crime continuado , questionando até a sua manutenção no ordenamento jurídico- penal , inconvenientes de índole de justiça material, privilegiando injustamente o agente do crime continuado , punido nos termos do art.º 79.º , do CP , quando comparado com a punição com o agente em caso de concurso de crimes , estabelecido no art.º 77.º , do CP , beneficiando , também , injustamente o agente do crime , quando se articula a figura com o princípio “ in dubio pro reo “ , podendo levar à impunidade de actos singulares que só se tornaram conhecidos depois da condenação , além de que protela , dilatando , nos termos do art.º 119.º n.º 2 b) , do CP , o início da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal reportando-o ao último acto de continuação , bem como do direito de queixa fixando-o no último acto singular integrado naquela continuação .

Salvam –se os “ objectivos irrenunciáveis de economia processual e de simplificação da actividade dos Tribunais “ , sublinha a mesma autora , R e v . cit., pág. 538 .

De todo o exposto resulta que se a conduta do agente não preenchia figura do crime continuado à data da condenação por este STJ, igualmente o não configura depois da alteração do CP à norma art.º 30.º , do CP , através do seu n.º 3 , pois a lei nova é coincidentemente portadora da mesma eficácia punitiva, em nada beneficiando o arguido , manifestando-se uma mesma continuidade normativo-típica, não se excluindo a pluralidade criminosa quando é a mesma a pessoa da vítima , se não concorrerem os pressupostos da continuação criminosa , tal como no n.º 2 , do art.º 30.º , do CP , se definem .

O recurso do arguido não merece provimento , mantendo-se o acórdão recorrido , que , sem ser exuberantemente explicativo , deixa entrever a ideação dos seus subscritores e a forma como o novo regime legal deve ser interpretado , não padecendo de falta de fundamentação .

Condena-se o recorrente ao pagamento de 8 Uc, s de taxa de Justiça . Procuradoria : 1/3 .

Lisboa, 5 de Novembro de 2008

Armindo Monteiro (Relator)

Santos Cabral