Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P665
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SILVA FLOR
Descritores: RECEPTAÇÃO
DOLO EVENTUAL
NEGLIGÊNCIA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
REENVIO DO PROCESSO
Nº do Documento: SJ20060329006653
Data do Acordão: 03/29/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADO O ACORDÃO
Sumário :
I - A representação do preenchimento do tipo legal como resultado possível ou provável da conduta é um traço comum, quer ao dolo eventual, quer à negligência consciente.
II - Tendo sido dado como provado que:
- o arguido comprou uma máquina fotográfica pela quantia de 60;
- desconfiou que aquela máquina, cujo valor é de 389, não pertencia à pessoa que a vendia e que estava na sua posse contra a vontade do respectivo dono;
- quis ao ficar com ela obter vantagem patrimonial a que sabia não ter direito, que consistia na diferença entre o valor real da mesma e o dinheiro que em troca entregou;
- agiu de forma livre e deliberada, consciente de ser a sua conduta proibida; daqui resulta que o arguido admitiu que a máquina fotográfica tinha proveniência ilícita, mas não se pode dizer que agiu conformando-se com a realização do resultado, isto é, que se conformou com a aquisição de coisa de proveniência ilícita, já que a mera suspeita de que a máquina tivesse essa proveniência é compatível com a negligência consciente, a que alude o art. 15.º, al. a), do CP, ou seja, que representou como possível que a coisa tivesse proveniência ilícita e a comprou sem se conformar com o resultado.
III - Ocorre assim um segmento de indefinição fáctica, que à partida tanto pode ser preenchido por factualidade integradora do dolo eventual como da culpa consciente, pelo que não se pode considerar verificado o elemento subjectivo do crime de receptação na forma dolosa.
IV - Uma vez que o acórdão recorrido implicitamente considerou verificados todos os elementos do crime de receptação dolosa, mas a falta do referido elemento no elenco factual impede uma decisão segura da causa, designadamente porque não se pode concluir com segurança pela verificação do crime de receptação dolosa, nem pelo crime de receptação culposa previsto no n.º 2 do art. 231.º, sendo certo que a averiguação (ou descrição) do referido segmento permitiria concluir pela verificação de um desses crimes, sem excluir que tivesse de se decidir pela absolvição, ocorre o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, que, sendo no caso insusceptível de suprimento, é causa do reenvio do processo para novo julgamento nessa parte, para apuramento da factualidade pertinente.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I. No 2.º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Silves, foram julgados em processo comum AA e BB, tendo o tribunal colectivo decidido:
─ Condenar o AA pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 da Janeiro, na pena de 4 anos e 9 meses de prisão, pela prática de um crime de receptação previsto e punido pelo artigo 231.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão, e em cúmulo jurídico na pena única de 5 anos e 1 mês de prisão;
─ Ordenar a expulsão de Portugal do AA, vedando-lhe a entrada no país por 10 anos;
─ Condenar BB pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, na pena de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa por 4 anos na sua execução, sob regime de prova orientado para obrigatória cura de desintoxicação.
─ Ordenar a destruição da droga apreendida e declarar perdidos a favor do Estado os telemóveis e dinheiro apreendidos;
─ Ordenar a entrega da viatura apreendida a AA, bem como o ouro apreendido, à excepção de dois dos anéis, a pulseira e o cordão mais pequeno de fls. 77, que serão devolvidos a CC.
Inconformado, o AA recorreu para este Supremo Tribunal, formulando na motivação do recurso as conclusões que em seguida se transcrevem.
1 ─ O Arguido AA foi condenado pela prática de l crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21° do Dec.-Lei n° 15/93, de 22/1 e de l crime de receptação, p. e p. pelo art. 231° do Código Penal, na pena única de 5 anos e l mês de prisão.
2 ─ O Arguido não se conforma com esta decisão e dela interpõe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
3 – O Tribunal recorrido considerou, relativamente ao crime de receptação, que teve dúvidas, designadamente afirmando que " não se pode o tribunal duvidar que, pelo menos, (o arguido) não deixou de se ter interrogado quanto à proveniência ilícita do aparelho que adquiriu..."
4 ─ Estranhamente, o tribunal não aplicou, nesta situação, como devia, o princípio "in dubio pro reo", absolvendo o Arguido AA da prática de l crime de receptação.
5 ─ O tribunal recorrido, no que tange ao crime de tráfico de estupefacientes praticado pelo Arguido, errou na determinação da norma aplicável.
6 ─ O tribunal "a quo" aplicou aos factos dados como provados, e que constam da motivação e do Acórdão recorrido, não se repetindo agora em nome do princípio da economia processual, o artigo 25° do citado, Decreto-Lei, julgando provado l crime de tráfico de estupefacientes.
7 ─ Errou o tribunal recorrido.
8 ─ Efectivamente, se o tribunal tivesse aplicado bem o Direito, teria inquestionavelmente considerado fazendo até jus ao que diz quando refere que a quantidade de heroína transaccionada foi forçosamente diminuta e ao facto de nenhuma quantidade da dita droga ter sido apreendida na posse do Arguido, que o AA tinha praticado l crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25° do referido Decreto-Lei.
9 ─ Caso o tribunal recorrido tivesse aplicado correctamente o Direito, no sentido e da forma exposta supra, o Arguido teria sido absolvido da prática do crime de receptação e condenado pela prática de l crime de tráfico de menor gravidade.
10 ─ Por outro lado, sem prejuízo do que acima foi dito quanto à aplicação do Direito, o Arguido entende que a medida da pena que lhe foi aplicada é também censurável.
11 ─ O Arguido AA foi condenado a 5 anos e l mês de prisão, pena que reputa manifestamente excessiva e que não realiza adequadamente os fins das penas e que são, como se sabe, a ressocialização do agente e a sua plena reintegração na sociedade.
12 ─ O Arguido entende ainda que não foram ponderadas devidamente as suas condições pessoais.
13 ─ A pena que deveria ter sido aplicada ao Arguido deveria ter sido sempre a constante dos limites mínimos.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve o presente recurso ser recebido nos termos requeridos e obter provimento, devendo esse Tribunal Superior substituir o Acórdão recorrido por outro que absolva o Arguido AA do crime de receptação e que o condene no crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25° do Dec.-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro.
Deverá ainda esse Tribunal Superior, sem prejuízo do que foi dito supra, e em qualquer caso, substituir o Acórdão recorrido por outro que aplique ao Arguido pena única no seu limite mínimo.
O Ministério Público respondeu ao recurso, dizendo em síntese que o acórdão não merece reparo quer quanto à verificação dos elementos dos crimes quer quanto às penas aplicadas, pelo que deve ser negado provimento ao recurso.
Colhidos os vistos legais teve lugar a audiência, com produção de alegações orais, cumprindo agora apreciar e decidir.
II. Foram dados como provados os seguintes factos:
1. De Fevereiro de 2005 até Abril do mesmo ano o arguido AA dedicou-se na cidade de Silves à venda de heroína aos consumidores que o contactassem para o efeito;
2. Com efeito, o arguido, em 3 de Março de 2005, tinha consigo 5.000 euros em dinheiro proveniente de vendas de droga já realizadas;
3. Também em 26 de Abril de 2005 tinha o arguido consigo a quantia de 4.290 euros, dinheiro esse proveniente de vendas de droga já realizadas, bem como 1,498 gramas de haxixe;
4. Foram igualmente apreendidos nessa altura 4 telemóveis, os quais eram pelo arguido utilizados para receber chamadas dos toxicodependentes e marcar os locais de encontro para entrega das doses de heroína;
5. O arguido conhecia as características estupefacientes dos produtos que vendia e sabia que a respectiva detenção e venda são proibidas;
6. Agiu livre, deliberada e consciente de ser a sua conduta proibida;
7. Antes de 26 de Abril de 2005, em Silves, o arguido AA comprou uma máquina fotográfica marca “ HP Photosmart ” modelo 935 com bolsa, pela quantia de 60 euros que entregou ao vendedor, cuja identidade desconhece;
8. O arguido AA desconfiou que aquela máquina, cujo valor é de 389 euros, não pertencia à pessoa que a vendia e que estava na sua posse contra a vontade do respectivo dono;
9. Quis ao ficar com ela obter a vantagem patrimonial a que sabia não ter direito e que consistia na diferença entre o valor real da mesma e o dinheiro que em troca entregou;
10. Agiu de forma livre e deliberada, consciente de ser a sua conduta proibida;
11. No dia 3 de Março de 2005 pela 1.45 horas, o arguido BB, utilizando um arame que introduziu na ranhura da caixa do correio e com o qual conseguiu abrir a fechadura da porta da casa de AA, sita em Silves, entrou na mesma e dela retirou 5000 euros em dinheiro, duas câmaras de filmar no valor de 850 euros, uma aparelhagem de som no valor de 90 euros, 1 leitor de DVD e um casaco;
12. O arguido, agindo de forma livre, deliberada e consciente, quis fazer seus tais objectos conforme fez, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que actuava contra a lei e a vontade do respectivo proprietário;
13. O arguido AA é de nacionalidade búlgara e provém desse país. Foi criado num sistema familiar pouco diferenciado. Frequentou 8 anos do ensino escolar regular. Cumpriu o serviço militar num período superior a dois anos;
14. Laboralmente exerceu funções na agricultura, nomeadamente como manobrador de máquinas agrícolas. Contraiu matrimónio e foi pai de 3 filhos nascidos na constância desta relação;
15. Dispunha de uma situação económica que lhe permitiu autonomizar-se.Todavia perspectivou com o processo de emigração como forma de melhorar as condições de vida do grupo;
16. Imigrou para Portugal há 3 anos, tendo sido secundado pelo cônjuge. Encontra-se em situação de permanência irregular em território nacional desde essa altura;
17. Convivia basicamente em meio familiar. Todavia desenvolveu contactos com pares conotados com o uso e tráfico de estupefacientes, se bem que não fosse consumidor de heroína;
18. Em Abril de 2005 residia em Silves numa casa arrendada. Desenvolvia actividade de tratamento de animais e trabalhos na construção civil, sem qualquer regime contratual de suporte legal aos seus desempenhos profissionais;
19. Após o regresso da cônjuge à Bulgária, teve alguma desorientação face aos objectivos migratórios, facilitando o contacto com pares associados ao tráfico e consumo de estupefacientes, embora apenas consumisse esporadicamente haxixe;
20. A família tem conhecimento da sua actual situação. O arguido mantém contacto telefónico com o cônjuge e o envio de quantitativos monetários para a família foi afectado pela sua reclusão.
21. Em meio prisional apresenta um comportamento consentâneo com as regras vigentes. Revela capacidade crítica. Não tem antecedentes criminais em Portugal;
22. O arguido BB, por decisão de 19-2-1987, foi condenado na pena de 3 anos de prisão, pelo cometimento de oito crimes de furto qualificado. Por decisão de 26.9.1990 foi condenado na pena de 3 anos e 2 meses de prisão, pelo cometimento, em 25-9-89, de crime de roubo. Por decisão de 24-3-1994 foi condenado na pena de 14 meses de prisão, pelo cometimento, em 9.1.86, de crime de furto qualificado. Por decisão de 1-3-1996 foi condenado na pena de 7 meses de prisão, pelo cometimento, em 10-3-93, de crime de detenção de arma proibida;
23. Em audiência reconheceu ter assaltado a casa do outro arguido, descrevendo como ali entrou;
24. O arguido provém de um sistema familiar onde os valores transmitidos enalteciam o comportamento socialmente ajustado e a coesão A manutenção do agregado foi assumida pelo progenitor, enquanto a mãe garantiu a orientação dos descendentes e gestão dos aspectos domésticos, numa perspectiva tradicional;
25. Interrompeu a frequência escolar sem ter concluído o 2º ciclo do ensino básico. Retomou os estudos no ensino recorrente e terminou o 6º ano. Em meio familiar o insucesso escolar do arguido foi atribuído a problemas de aprendizagem e algumas limitações cognitivas. Já em adulto foi-lhe diagnosticada epilepsia subsequente a um acidente de viação no qual o arguido sofreu fractura craniana. Efectuou terapia medicamentosa para a epilepsia desde então;
26. Acresce à problemática anteriormente referida o uso regular de droga e álcool. Foi na sequência de comportamentos associais para obtenção de produtos estupefacientes que foi alvo da intervenção do sistema judicial penal, tendo cumprido penas de prisão e medidas de flexibilização da pena com sucesso;
27. Reside com os pais numa casa de habitação social camarária. A família subsiste basicamente com os rendimentos provenientes da reforma do progenitor do arguido, uma vez que os desempenhos laborais deste são irregulares;
28. O arguido evidencia dificuldades na concretização de um projecto de vida autónomo do grupo de origem, constituindo os pais e a irmã elementos de referência relevantes para a sua estabilidade emocional. A imaturidade que evidencia parece ser potenciada pelo estilo de vida do arguido associado ao uso regular de droga e a outros aspectos de saúde, nomeadamente a epilepsia;
29. A família assume uma postura preocupada e interessada relativamente aos problemas de saúde do arguido, enquadrando de modo desculpabilizador os eventuais constrangimentos à sua falta de emprego. Nesta perspectiva não antevêem que se emancipe economicamente. Esteve um ano desempregado e há cerca de dois meses exerce funções de servente de pedreiro para uma empresa de trabalho temporário;
30. Os tempos livres são partilhados com os elementos da família mas também com pares residentes na sua zona e conotados com o uso de droga.
Não se provaram outros factos nomeadamente que:
─ O arguido AA se haja dedicado à venda de heroína antes de Fevereiro de 2005;
─ Este arguido para se deslocar aos locais onde procedia às vendas de heroína se fizesse transportar na viatura de matrícula …;
─ As câmaras de filmar, aparelhagem de som, leitor de DVD, objectos em ouro e câmara de vídeo hajam sido recebidos pelo arguido … de toxicodependentes em troca de doses de heroína;
─ A máquina fotográfica de marca HP valesse cerca de 500 euros e que o arguido AA soubesse que a mesma não pertencia ao vendedor ou que havia sido retirada ao dono.
Consta ainda da fundamentação do acórdão recorrido:
«A convicção do tribunal quanto aos factos provados formou-se com base no que relataram as pessoas inquiridas em audiência, aliado às respectivas atitudes, porte, olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reacções comportamentais, isoladas ou entre si combinadas, às diversas perguntas e questões abordadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade das atitudes humanas, levando-se ainda em consideração os documentos juntos.
Assim a caracterização da actividade de venda de droga do arguido AA resultou clara do testemunho isento de DD, agente da G.N.R. que, para além da busca, observou a actividade do arguido ao proceder à investigação, tendo revelado conhecimento dos factos, relatando-os em audiência, depondo por forma sincera, com postura espontânea, gestos tranquilos, semblante franco e sereno, dando pormenores congruentes, de maneira a não deixar qualquer tipo de dúvida sobre a veracidade do seu depoimento e da ocorrência daqueles.
O seu depoimento foi ainda confirmado pelo que em audiência contaram as testemunhas EE e FF, que afirmaram terem comprado doses de heroína ao arguido depois de o contactarem para um telemóvel, o que de resto foi ainda relatado pelo co-arguido.
A proveniência das quantias em dinheiro que o arguido tinha resulta óbvia, por um lado da actividade a que sem qualquer tipo de dúvida se dedicava, por outro da circunstância processualmente documentada de que dispunha de conta bancária, onde movimentava quantias muito inferiores, a coincidirem com o que auferia dos seus trabalhos de tratador de animais e construção civil. Ou seja, impõe-se concluir à luz de elementares regras de experiência comum que o arguido mantinha em casa o produto da sua actividade ilícita, movimentando os seus proveitos lícitos em conta bancária.
As quantias resultam do auto de apreensão de 26.4.2005 e do que o arguido AA afirmou em audiência, asseverando que era de 5.000 euros a soma que o co-arguido lhe levou de casa, contra o que este pretendeu, dizendo que apenas ali se encontravam 1.000 euros.
O interesse do co-arguido em diminuir a quantia é óbvio, enquanto que o do arguido AA em a fazer descer também o é, pelo que a sua afirmação, nestas circunstâncias, merece neste particular muito maior crédito e a partir do momento em que é indubitável que lhe foi retirada uma quantia em dinheiro.
O provado relativamente à aquisição da máquina fotográfica resulta em primeiro lugar do que testemunhou GG, o dono, a quem a aquela foi retirada de casa durante um assalto que a mesma sofreu em Outubro de 2004. Depois pelo exame efectuado à máquina e de onde resulta o respectivo valor. Finalmente pelo que afirmou o próprio arguido AA que relatou ter adquirido a máquina em local público por 60 euros a um indivíduo que desconhecia e que lhe disse ter fome, contrariamente a todos os outros aparelhos que detinha em casa e que lhe foram furtados, pois relativamente a esses afirmou terem sido por si adquiridos em lojas, dizendo ainda ter consigo os respectivos comprovativos. Evidencia assim ter perfeito conhecimento acerca da forma como se processa o normal e lícito tráfego jurídico, pelo que embora o haja negado, não pode o tribunal duvidar de que, pelo menos, não deixou de se ter interrogado quanto à proveniência ilícita do aparelho que adquiriu, atendendo à forma como ele mesmo relatou o sucedido, para não entrar, por mera desnecessidade, em considerações quanto ao conhecimento que seguramente teria quanto a trocas de objectos furtados por doses de heroína, tão vulgares no meio que então frequentava e que certamente também não desconhecia.
O apurado relativamente ao assalto a casa do arguido resultou das declarações do arguido BB. Na verdade, este arguido relatou tais factos de forma sincera e credível, dando pormenores coincidentes com o que a tal propósito esclareceu também o co-arguido, excepto no que toca ao pormenor do total de dinheiro retirado.
O mais apurado resulta dos C.R.C. dos arguidos, dos relatórios sociais e dos documentos do S.E.F. juntos, tendo o arguido AA negado consumir heroína.»
III. O recorrente suscitou no recurso as seguintes questões: violação do princípio in dubio pro reo em relação ao crime de receptação; qualificação jurídico-penal do tráfico de estupefacientes; e medida da pena.
Todavia, impõe-se verificar oficiosamente se existe qualquer dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o que, em caso afirmativo, poderá conduzir ao reenvio do processo para novo julgamento.
O recorrente não invocou a sua existência como fundamento de recurso para esse Supremo Tribunal, nem podia fazê-lo, sem prejuízo do seu conhecimento oficioso, como decorre do disposto nos artigos 427.º, 432.º, alínea d), e 434.º, do Código de Processo Penal, e é jurisprudência corrente do Supremo.
A questão coloca-se em relação a um dos elementos constitutivos do crime de receptação e à factualidade integrante do crime de tráfico de estupefacientes.
III.1. Quanto ao primeiro ponto verifica-se que o recorrente foi condenado pelo crime de receptação, previsto e punido no artigo 231.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, considerando-se que agiu com dolo eventual.
Comete o crime previsto nesse preceito, quem, com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa que foi obtida por outrem mediante facto ilícito contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar ou transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse.
O tribunal colectivo considerou que o arguido agiu com dolo eventual.
E a dúvida que se coloca é exactamente quanto à verificação do dolo eventual.
O dolo eventual vem previsto no n.º 3 do artigo 14.º, nos seguintes termos:
«Age com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência possível da sua conduta.»
São situações em que o agente quer realizar um facto e, prevendo como possível a realização de um determinado resultado, não renuncia à conduta, aceitando que esse resultado se verifique.
O Prof. F. Dias, em Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, pg. 358, expende, a propósito do dolo eventual, que «o agente, que revela uma absoluta indiferença pela violação do bem jurídico, apesar da representação da consequência como possível, sobrepõe de forma clara a satisfação do seu interesse ao desvalor do ilícito e por isso decide-se (se bem que não sob a forma de uma resolução ponderada, ainda que implicitamente, mas nem por isso de forma menos segura) pelo sério risco contido na conduta e, nesta acepção, conforma-se com a realização do tipo objectivo.»
O tribunal colectivo deu como provado o seguinte:
«7. Antes de 26 de Abril de 2005, em Silves, o arguido AA comprou uma máquina fotográfica marca “ HP Photosmart ” modelo 935 com bolsa, pela quantia de 60 euros que entregou ao vendedor, cuja identidade desconhece;
8. O arguido AA desconfiou que aquela máquina, cujo valor é de 389 euros, não pertencia à pessoa que a vendia e que estava na sua posse contra a vontade do respectivo dono;
9. Quis ao ficar com ela obter a vantagem patrimonial a que sabia não ter direito e que consistia na diferença entre o valor real da mesma e o dinheiro que em troca entregou;
10. Agiu de forma livre e deliberada, consciente de ser a sua conduta proibida».
Resulta daqui que o arguido admitiu que a máquina fotográfica tinha proveniência ilícita.
Mas não se pode dizer que agiu conformando-se com a realização do resultado, ou seja, que se conformou com a aquisição de coisa de proveniência ilícita.
Com efeito, a mera suspeita de que a máquina tivesse essa proveniência é compatível com a negligência consciente, a que alude o artigo 15.º, alínea a), do Código Penal, ou seja, que representou como possível que a coisa tivesse proveniência ilícita e comprou-a sem se conformar com o resultado.
Como sustenta o Prof. José de Faria Costa, no parecer publicado na CJ, STJ, V, I, PGR. 13, representar o preenchimento do tipo legal como resultado possível ou provável da conduta é um traço comum, quer ao dolo eventual, quer à negligência consciente.
No caso dos autos, ocorre assim um segmento de indefinição fáctica, que à partida tanto pode ser preenchido por factualidade integradora do dolo eventual como da culpa consciente.
Deste modo não se pode considerar verificado o elemento subjectivo do crime de receptação na forma dolosa.
E será de considerar que, por falta de um dos elementos do crime, se impõe, sem mais, a absolvição, ou antes que se está perante o vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada)?
Tal vício, como os das alíneas b) e c), tem de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e pode conduzir a que, se não for possível decidir da causa, o processo tenha de ser reenviado para novo julgamento (artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Nem sempre é fácil a autonomização desse vício de sentença, perante duas situações próximas que na prática frequentemente surgem: falta de um elemento constitutivo do crime por não se ter feito a respectiva prova; e falta de pronúncia do tribunal em relação a um facto descrito na acusação. No primeiro caso, impõe-se a absolvição, no segundo, tratando-se de nulidade nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, haverá que anular a sentença.
O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada tem de comum com aquelas situações o impedir que o arguido possa ser condenado ou absolvido nos termos em que o foi.
O traço distintivo incide essencialmente neste ponto: é uma omissão a nível factual que, por falta de averiguação ou descrição, impede uma decisão da causa com a necessária segurança jurídica, quer se trate da decisão proferida quer de outra que o pudesse ter sido.
Voltando ao caso dos autos, constata-se que subsistem dúvidas sobre a correcta qualificação jurídica dos factos.
O acórdão recorrido implicitamente considerou verificados todos os elementos do crime de receptação dolosa, mas a falta do referido elemento no elenco factual impede uma decisão segura da causa, designadamente porque não se pode concluir com segurança pela verificação do crime de receptação dolosa, nem pelo crime de receptação culposa previsto no n.º 2 do artigo 231.º, sendo certo que a averiguação (ou descrição) do referido segmento permitiria concluir pela verificação de um desses crimes, sem excluir que tivesse de se decidir pela absolvição.
Ocorre assim o referido vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, que, sendo no caso insusceptível de suprimento, é causa do reenvio do processo para novo julgamento nessa parte, para apuramento da factualidade pertinente.
III.2. Em relação ao crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro também é de considerar que a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito.
O tribunal colectivo deu como provado, na parte que interessa considerar:
«1. De Fevereiro de 2005 até Abril do mesmo ano o arguido AA dedicou-se na cidade de Silves à venda de heroína aos consumidores que o contactassem para o efeito;
2. Com efeito, o arguido, em 3 de Março de 2005, tinha consigo 5.000 euros em dinheiro proveniente de vendas de droga já realizadas;
3. Também em 26 de Abril de 2005 tinha o arguido consigo a quantia de 4.290 euros, dinheiro esse proveniente de vendas de droga já realizadas, bem como 1,498 gramas de haxixe;
4. Foram igualmente apreendidos nessa altura 4 telemóveis, os quais eram pelo arguido utilizados para receber chamadas dos toxicodependentes e marcar os locais de encontro para entrega das doses de heroína;
5. O arguido conhecia as características estupefacientes dos produtos que vendia e sabia que a respectiva detenção e venda são proibidas;
6. Agiu livre, deliberada e consciente de ser a sua conduta proibida».
O crime de tráfico de estupefacientes tem por objecto actos concretos em qualquer das modalidades contempladas no artigo 21.º, n.º 1.
Todavia, do elenco factual consta apenas, como acto concreto, a detenção de 1,498 gramas de haxixe. E imputa-se ao recorrente uma actividade genérica de venda de heroína, durante cerca de três meses, de que proveio o dinheiro que tinha em seu poder ─ 5.000 euros em 3-03-2005 e 4.290 euros em 26-04-20005.
Não se caracteriza a venda da heroína pata além dessa afirmação genérica.
Sendo de reduzido relevo penal a detenção do haxixe, já que se tratava de uma quantidade quase insignificante, importava mencionar, com um mínimo de concretização, actos do tráfico de heroína, que permitissem não só o enquadramento da conduta no artigo 21.º como a ponderação de elementos fundamentais para avaliação do grau de culpa e de ilicitude.
Por outro lado, essa concretização era exigida para que o recorrente pudesse eficazmente exercer o direito de defesa que a Constituição lhe assegura (artigo 32.º). Neste sentido cfr. os acórdãos deste Supremo Tribunal de 6-05-2004, proc. n.º 908/04, de 4-05-2005, proc. n.º 889/05, e de 19-10-2005, proc. n.º 2421/05.
Certo é que tanto para a qualificação jurídica dos factos como para a determinação da pena aplicável, a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito, sendo de rejeitar, por constituir uma omissão de conhecimento do objecto do processo, a solução de condenar o recorrente como traficante apenas pela detenção de 1,498 gramas de haxixe, sem averiguar a prática de outros actos de tráfico no âmbito da acusação. Ou seja, não se dispõe de elementos para uma decisão segura quer no sentido da condenação pelo tráfico de heroína, tal como se decidiu, nem é caso de, sem mais, o condenar apenas pelo tráfico de 1,498 gramas de haxixe, nos termos do artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro,
Em conformidade com as considerações supra a propósito do crime de receptação, está-se perante uma situação em que a factualidade descrita não permite uma decisão jurídica da causa dotada da necessária segurança, pelo que se verifica o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal.
É certo que os factos que o tribunal colectivo deu como provados eram os que constavam da acusação. Todavia, a parcimónia factual dessa peça processual não impedia que o tribunal colectivo concretizasse minimamente o tráfico de heroína, eventualmente com recurso ao mecanismo processual previsto no artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Também aqui se impõe o reenvio do processo, nos termos do artigo 426.º. n.º 1, do Código de Processo Penal.
III.3. Há assim que reenviar o processo para novo julgamento das referidas questões de facto ─ preenchimento do elemento subjectivo do crime de receptação e actos concretos de tráfico de heroína.
Consequentemente, não se conhecerá do objecto do recurso.
IV. Nestes termos, anulam em parte o acórdão recorrido, determinando o reenvio do processo para novo julgamento relativamente às referidas questões, a efectuar em conformidade com o disposto no artigo 426.º-A, do Código de Processo Penal.
Não é devida taxa de justiça.
São devidos honorários ao defensor nomeado, segundo a tabela legal.
Lisboa, 29 de Março de 2006

Silva Flor (relator)
Soreto de Barros
Armindo Monteiro
Sousa Fonte