Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2209/14.0TBBRG.G3.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
ABANDONO DA OBRA
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
EXTINÇÃO DO CONTRATO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
Data do Acordão: 01/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. Sendo a prestação de realização da obra, típica do contrato de empreitada, uma prestação duradoura e, no tipo de obra aqui em causa, de execução contínua, o abandono da obra, enquanto comportamento de recusa a cumprir, apresenta a especificidade de não consistir numa recusa antecipada, mas sim numa recusa em prosseguir a execução de uma prestação já iniciada.
II. Essa conduta, essencialmente omissiva, mas podendo ser precedida de ações que a anunciam (v.g. retirada de materiais e máquinas), para ser significante de um propósito definitivo de não conclusão do ato de realização da obra, deve ser aparente, categórica e unívoca.

III. Perante uma situação de incumprimento recíproco das prestações acordadas pelas partes, para ultrapassarem uma crise contratual verificada na execução do contrato de empreitada, conjugada com comportamentos concludentes, reveladores de uma perda de interesse mútuo na continuação da execução desse contrato, sendo essa perda de interesse objetivada pelo tempo decorrido, há que concluir que estamos perante um incumprimento definitivo do contrato de empreitada, imputável a ambas as partes.

IV. Não existindo, no caso, dados fácticos que permitam atribuir graus diferentes de imputabilidade no incumprimento, deve presumir-se, como sucede em lugares paralelos de conculpabilidade (v.g. artigo 497.º, n.º 2, do Código Civil), uma culpa igual.

V. Nas situações, em que as partes já revelaram o seu desinteresse pelo cumprimento do contrato, não se justifica que a vigência deste fique dependente de um pedido de resolução deduzido por qualquer um dos contraentes, devendo entender-se que ele se extinguiu, com o seu incumprimento definitivo, cessando o contrato por um duplo comportamento volitivo concludente.

VI. No que toca à eventual existência de indemnizações pelos prejuízos resultantes do incumprimento mútuo do contrato, deve aplicar-se a doutrina do artigo 570.º do Código Civil, que permite que o julgador, atenta a gravidade das culpas e as consequências que delas resultaram, atribua uma indemnização, reduzida ou não, pelos prejuízos que resultaram do incumprimento recíproco, ou exclua a existência de qualquer obrigação de indemnização.

VII. Não se atribuindo diferentes graus de imputabilidade, em situações de incumprimento bilateral de um contrato, deve, tendencialmente, excluir-se a existência de qualquer obrigação indemnizatória, pelos prejuízos resultantes do incumprimento do contrato.

Decisão Texto Integral:
                                               *

I - Relatório

A Autora instaurou ação declarativa comum contra a Ré, pedindo que seja declarada a resolução do contrato de empreitada celebrado entre ambas, em 14.08.2008, devido ao abandono da obra por parte da Ré, e a condenação desta última a pagar-lhe a quantia de € 1.544.919,14, relativa aos prejuízos que resultaram da não realização da obra acordada, acrescida dos respetivos juros de mora, contados à taxa legal, desde a data da propositura da ação e até efetivo e integral pagamento daquela quantia, e ainda do que se vier a liquidar-se posteriormente, por neste momento não ser ainda possível quantificar todos os prejuízos sofridos pela Autora como consequência do comportamento da Ré.

Contestou a Ré, impugnando a factualidade alegada pela Autora, designadamente que tenha abandonado a obra, e alegando que foi a Autora que deixou de efetuar os pagamentos do preço acordados.

Concluiu pela improcedência da ação e deduziu reconvenção, pedindo a condenação da Autora a pagar-lhe o valor global de € 1.510.183,55, acrescido de juros de mora, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento daquela quantia. Pediu ainda que se reconheça ser a Ré titular de um direito de retenção sobre a obra executada, para garantia do pagamento daquele valor.

Replicou a Autora, impugnando a factualidade alegada em sede de reconvenção e concluindo como na petição inicial.

Realizado o julgamento foi proferida sentença, que decidiu:

A) Julgar a ação totalmente improcedente, por não provada, absolvendo a ré do pedido.

B) Julgar a reconvenção parcialmente procedente por provada, condenando a autora/reconvinda a pagar à ré/reconvinte a quantia de € 338.705,14.

Desta decisão interpuseram recurso para o Tribunal da Relação… a Autora e a Ré, tendo sido proferido acórdão, em 04.04.2019, que anulou a sentença proferida em 1.ª instância, determinando que se procedesse à fundamentação da decisão da matéria de facto.

Foi proferida nova sentença, mantendo-se o decidido.

Desta decisão, voltaram a recorrer a Autora e a Ré, tendo sido proferido acórdão pelo Tribunal da Relação …, em 30.04.2020, que julgou improcedentes os dois recursos, tendo confirmado a sentença recorrida, embora por não inteiramente coincidentes fundamentos de direito.

Relativamente às custas, decidiu o mesmo acórdão reduzir a 80% o valor do remanescente da taxa de justiça, consequentemente, dispensando-se o pagamento de 20%.

Desta decisão voltaram a recorrer Autora e Ré para o Supremo Tribunal de Justiça.

A Autora recorreu de revista comum e, subsidiariamente, de revista excecional.

Relativamente à revista comum, concluiu as suas alegações do seguinte modo:

1- Cabe no âmbito das competências do STJ sindicar o uso – no caso mau uso – feito pelo tribunal da Relação dos poderes que o art. 662º do CPC lhe confere, por, e para além do mais, consubstanciar questão de direito.

2 - Tal como cabe nas competências do STJ controlar a forma como o tribunal da Relação utiliza os poderes de reapreciação da decisão de facto da 1ª instância ou, interpretou e aplicou o princípio da livre apreciação da prova.

3 - O tribunal da Relação, melhor dizendo, o acórdão recorrido, em sede de fundamentação do seu acórdão, terá necessariamente que abordar especificamente cada uma das provas e correspondentes razões indicadas seja pela Recorrente, seja até pelo Recorrido, salvo naturalmente aquelas cuja consideração tiver ficado prejudicada sob pena de omissão de pronúncia, conducente até à nulidade da decisão.

4 - Torna-se, em face do invocado nas supra citadas als. a), b), c) e d) da epígrafe I, do requerimento da justificação para a interposição do presente recurso de Revista em termos gerais, e em face das decisões “ex novo” proferidas no acórdão recorrido, que o mesmo é passível da interposição do presente recurso que, como tal, e nos termos do art. 671º nº 1 do CPC, deve ser admitido.

5 - Salvo o devido respeito, em razão da 1ª sentença que tinha sido proferida em 30/05/2018 na 1ª instância, nada transitou em julgado.

6 - Foi ela objecto de recurso integral e irrestrito por parte da A. na parte da Sentença que lhe havia sido desfavorável.

7 - Tendo o tribunal da Relação, naquele seu 1º acórdão de 4/04/2019, decretado também sem qualquer restrição ou reserva a integral anulação da sentença recorrida parece, salvo o devido respeito, que não se possa falar em qualquer espécie ou parte de trânsito em julgado no que a tal 1ª sentença da 1ª instância concerne.

8 - A norma regulada no art. 635º n.º 5 do CPC, não tem por objectivo impedir que num caso como o dos autos, as partes aquando da interposição do Recurso de Apelação de uma Sentença proferida na sequência da total anulação de outra, fiquem inibidas de recorrer da totalidade e em toda a amplitude dessa mesma Sentença.

9 - Tal como, e até por maioria de razão pode ser a A/Recorrente impedida de, quando notificada das alegações de apelação da Ré, apresentar com a amplitude que entender necessário e adequado as suas contra-alegações.

10 -  Não pode ser mantida, devendo ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, de não se pronunciar e não conhecer acerca do que está invocado nas conclusões 21 a 29 das alegações de Apelação apresentadas nos autos em 10/09/2019,

11 -    Bem como, e até por maioria de razão, sendo absolutamente destituído de fundamento legal, a decisão de ignorar e proibir a A/apelante de nas suas contra-alegações elaboradas e apresentadas – aos 26/9/2019 (ref. n.º …) – em razão e para contraponto das alegações de Apelação que a R. entregou nos autos em 28/6/2019 – ref. n.º … – de responder com total liberdade a essas mesmas alegações de Apelação e de ampliar o âmbito do recurso nos termos do que expressamente prevê e permite o art. 636º n.º 2 do CPC.

12 -  Daí que, essa parte da decisão do Acórdão recorrido e no mesmo proferida “ex novo” deverá ser revogada por este Supremo Tribunal – aplicação conjugada das normas do arts. 2º e 20º da CRP e arts. 629 nº 1, 636 nº 1 e 2 e art. 635º n.º 5 “a contrario” do CPC –.

POR OUTRO LADO,

13 -  A Apelante visando a reapreciação da prova gravada, designada e concretamente, a reapreciação dos depoimentos que se deu ao trabalho e com o maior cuidado possível de identificar e localizar indicando:

- a data da sessão da audiência de julgamento, em que o depoimento teve lugar;

- a hora, minuto e segundo do início e a hora, minuto e segundo do término dos depoimentos invocados;

- indicando e identificando o ficheiro informático em que o depoimento se mostra gravado no sistema “Citius”;

- especificando e indicando o concreto tempo da gravação (hora, minuto e segundo) do depoimento em que se funda a impugnação da A. deduzida contra a decisão da matéria de facto proferida em 1.ª instância;

- transcrevendo mesmo e “ex abundantia” essas concretas partes dos depoimentos das testemunhas que, concatenados com a prova documental, igualmente identificada e devida e criticamente analisados, impõem a alteração ou revogação da decisão respeitante à matéria de facto proferida em 1.ª instância.

14 - Ao actuar dessa forma, a A. e Recorrente, tem por certo que cumpriu, pelo menos, com razoável rigor, o estipulado naquelas alíneas a), b) e c) do n.º1 do art. 640º, tal como, também cumpriu o estipulado na al. a) do n.º 2 do mesmo art. 640º do C.P.C., já que :

a) Identificou e especificou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, quer no que diz respeito ao elenco da matéria de facto “provada”, quer no que diz respeito ao elenco da matéria de facto “não provada";

b) Identificou e especificou os concretos meios probatórios, constantes do processo (documentos), bem como os constantes do registo da gravação dos depoimentos (declarações de parte e depoimentos das testemunhas) que, pelas razões e fundamentos que também invocou, impõe decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da proferida na 1.ª instância;

c) Identificou e especificou com toda a clareza as partes – números do elenco da factualidade declarada não provada e provada – da decisão proferida sobre as questões de factos pelo Tribunal de 1.ª instancia que deveria alterada, tal como, logo especificou o sentido e a respectiva amplitude ou restrição dessa alteração, - “vide gratiae” o escrito nas conclusões n.ºs 7, 8, 9, 10 e 11 daquelas alegações de Apelação apresentadas nos autos em 10/09/2019 – ref. n.º … - .          

15 -     Não existe bom fundamento para a conclusão exarada no Acórdão recorrido de que a Apelante impugnou a decisão respeitante à matéria de facto de uma forma “meramente genérica” e a partir dai encontrar pretexto para omitir a sua obrigação de se debruçar e pronunciar acerca da justeza da impugnação da decisão respeitante à matéria de facto proferida em 1.ª instância.

16 -     O que consta e está escrito nos capítulos II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X e XI do corpo das alegações de Apelação da A/Recorrente e do resumo levado às conclusões n.ºs 3ª a 11ª é, salvo o devido respeito, demonstrativo que a mesma deu integral cumprimento ao determinado no art. 639º e 640º n.º1 als. a), b) e c) e n.º 2 al. a) do C.P.C.

17 -     É convicção da A/Recorrente que tendo a mesma cumprido na integra o essencial do ónus que sobre si recaía quanto à indicação e fundamentação para a impugnação da decisão da matéria de facto proferida n 1.ª instancia, o Tribunal “a quo” estava suficiente e essencialmente habilitado a exercer o seu “múnus” no que tange ao respeito e obrigação do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto – art. 639º e 640º do CPC.

18 -     Como se deixou escrito e é jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça:

“ (…) Relativamente à falta de indicação nas conclusões da alegação dos réus dos factos concretos que pretendiam impugnar e do sentido decisório defendido para os pontos de facto questionados, entendemos não ser exigível essa concreta menção na síntese conclusiva apresentada. Necessário e indispensável é que tais elementos constem de forma suficientemente clara e inteligível do corpo da alegação, como acontece no caso vertente, tendo-se por cumprido o ónus imposto ao recorrente pelo artigo 639º do Código de Processo Civil desde que se faça constar nas conclusões uma referência inequívoca à impugnação da decisão de facto.

Sem se dispensar uma concreta referência à impugnação da decisão sobre a matéria de facto nas conclusões, as quais sintetizam e definem o objecto do recurso, é no corpo alegatório que o recorrente deverá dar cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640º do Código de Processo Civil.

Neste contexto, não pode o Tribunal da Relação eximir-se à reapreciação dos depoimentos indicados pelos recorrentes e abster-se, no caso em apreço, de conhecer do objecto da impugnação.” – (Sublinhados nossos) in Ac. de 7/10/2016, proc. n.º 4784/12.5TBSTS.P1.S1 da 7ª Secção do STJ (doc. n.º 1).

19 -Por tudo isto:

O Tribunal “a quo” não podia eximir-se à reapreciação dos depoimentos indicados pela Recorrente e abster-se, no caso em apreço, de conhecer do objecto de impugnação respeitante á matéria de facto, deduzida e elencada pela A./Recorrente.

20 -     Assim terá de ser revogado o Acórdão recorrido e serem os autos remetidos à Relação …. para que de novo seja julgada a Apelação, com efectiva reapreciação da prova produzida e gravada, por forma a que no Tribunal “a quo” seja emitida e lavrada a própria convicção que o Colectivo desse Tribunal acordar a propósito da prova documental, das declarações de parte e dos depoimentos das testemunhas.

SEM PRESCINDIR,

21 - O tribunal “a quo”, como se demonstrou no corpo destas alegações de Revista, não cumpriu a obrigação de extrair da factualidade Provada as necessárias e adequadas presunções judiciais que permitem, e a nosso ver obrigam, declarar que houve efectivo, inelutável, abandono da obra por parte da empreiteira,

22 -     Do elenco dos factos, até ao momento, declarados provados pelas instâncias ressalta a seguinte factualidade:

“ (…)

10º O prazo previsto para conclusão da obra era de 10 meses a contar 62 de 1/09/2008, por forma a estar concluída em 30/06/2009 (clausula sexta do contrato).

(…)

12º Ficou estipulado que as faturas seriam emitidas até ao dia 5 de cada mês e seriam acompanhadas pelo respetivo auto de medição até ao dia 25 do mês anterior, devendo os mesmos ser assinados pelo empreiteiro e pelo dono de obra, fiscalização ou seu representante legal.

(…)

21º Na sequência de negociações entre as partes, em maio de 2009 as mesmas acordaram o seguinte: a autora emitiu e subscreveu no campo do “aceite” de três letras de câmbio do valor global de € 500.000,00, com data de emissão de 11 de maio de 2009 e com vencimento nos dias 11 dos meses de agosto, setembro e outubro de 2009; a ré obrigou-se em contrapartida a reiniciar a obra logo após a recepção e desconto das letras.

22º Estas três letras de câmbio foram efetivamente entregues à ré e por ela descontadas, sem que a ré tenha reiniciado os trabalhos.

23º A ré retirou posteriormente da obra o equipamento que tinha instalado no local e de que se servia para a respetiva execução.

(…)

25º As três letras foram sendo sucessivamente reformadas. (…)”

23 - Acrescendo a esta factualidade provada e em vista da evidencia do abandono da obra por parte da empreiteira, que permitiu no período em que a vigilância da mesma ainda ficou a seu cargo, a ocupação do edifício por terceiras pessoas, indigentes, e indivíduos que destruíram e furtaram materiais já aplicados na obra, o que se manifesta no teor dos documentos e fotografias que se encontram a fls. 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72 e a fls.73, 74, 75, 76, 80, 81, 82, 83, 84, 88, 89, 90, 94, 95 e 96.

24 - Ao que se deve somar o facto de a R. empreiteira após ter recebidos as 3 letras de cambio no montante de €.500.000,00 e após ter obtido desconto cambiário das mesmas, embolsando o respectivo valor – como está totalmente provado pela circunstância de cada uma dessas 3 letras de cambio ter passado ao longo dos sucessivos trimestres e anos a serem objecto de amortização em sucessivas operações de reforma cambiária -, nunca mais ter regressado à obra, a não ser para dali retirar o estaleiro e todas as ferramentas que tinha colocado na mesma;

25 -  Nunca mais qualquer trabalhador ou subempreiteiro da R. voltou a entrar na obra para dar continuidade aos trabalhados abandonados;

26 - A A. esperou seis (6) anos para apresentar a presente acção no tribunal e em face do inevitável e sobretudo em face do claríssimo e com seis (6) anos decorridos invocar e decretar a resolução do contrato de empreitada e a resolução da “adenda” feita ao mesmo aquando da celebração do acordo decorrente da subscrição e entrega das letras de câmbio.

27 -  Aquela expressão da factualidade declarada Provada em nºs 9º, 10º, 12º, 21º, 22º, 23º e 25º supra transcritos, concatenada com os documentos supra citados – notificações da C.M. de … (fls. 59, 60 e 61 dos autos), notificação para retirada da grua abandonada (fls. 68 dos autos), contra-ordenação instaurada por abandono da obra (fls. 69 dos autos), - e conjugada com a comunicação enviada pela própria sociedade R. à C.M. de …. em 4/10/2011 informando que iria desmontar e retirar da obra a grua – que ali estava abandonada – que ali se encontrava para permitir a realização dos trabalhos em curso desde o inicio da obra (fls. 278 e 279 dos autos), evidenciam, para além de qualquer dúvida razoável que a R. efectiva e de forma definitiva abandonou a obra, nunca mais voltando à mesma, logo após ter recebido as 3 letras de cambio e logo após ter retirado da obra todas as suas ferramentas - A ré retirou posteriormente da obra o equipamento que tinha instalado no local e de que se servia para a respetiva execução (facto provado nº 23) -;

28 -  Eis pois um dos casos em que se impõe a intervenção justa e competente deste STJ por forma a conhecer e declarar que aquele voluntário abandono da obra pela empreiteira, aqui R., antes de a mesma estar concluída, evidencia o seu propósito firme e definitivo de não cumprir a obrigação e promessa de continuar a sua prestação e a obra, reiniciando os trabalhos logo após ter recebido as 3 letras de câmbio.

29 -  Eis pois um dos casos em que o STJ usando os poderes e competência para apreciar matéria de facto (art. 674º nº 1 al. b) do CPC) pode e deve conhecer e declarar aquele voluntário e definitivo abandono da obra, ocorrido em 2009 e que se prolongou quer até à data da entrada da acção em tribunal no ano de 2014, quer, em bom rigor até ao dia de hoje.

30 -   Eis pois um dos casos em que o STJ pode e deve declarar que a resolução do contrato de empreitada declarada e decretada pela A. na sua P.I., invocando o definitivo abandono da obra por parte da empreiteira é justificada.

31 - Tendo a obra sido voluntariamente abandonada pela R., numa altura em que o atraso na sua conclusão – o qual, como decorre do contrato inicial, deveria ter-se verificado em Junho de 2009 – já era manifesto e irrecuperável, antes de concluída e nunca tendo a empreiteira retomado os respectivos trabalhos para conclusão da obra, fica demonstrado o seu propósito firme e definitivo de não cumprir com essa sua prestação.

32 -  A partir do momento, designadamente do mês de Junho de 2009, em que a R. não reiniciou os trabalhos na obra inacabada, ficou evidenciado o propósito firme da R. em optar pelo incumprimento definitivo do contrato de empreitada.

33 -  Abandonada pela R. a obra, e nunca, ao longo de 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014 tendo dado mostras de querer reiniciar os trabalhos, a R. manifestou tacitamente e em termos que a lei reputa de eficazes, como se expressa no art. 217º nº 1 do C.C., a sua vontade e propósito firme e definitivo de não cumprir, seja o contrato de empreitada celebrado em Agosto de 2008, seja o acordo subjacente à emissão das três letras de câmbio celebrado em Abril/Maio de 2009.         

34 -  Em face disso e dessa manifestação inequívoca de opção por não cumprir um e outro daqueles contratos, tornou-se dispensável a interpelação admonitória do art. 808º do C.C. por parte da A. – dona da obra - para o efeito da conversão da mora em incumprimento definitivo.

35 -  Por isso a A. tem direito a invocar aquele incumprimento contratual da R., como sempre o fez, bem como a reclamar a compensação pelos prejuízos sofridos, retirando daí as consequências resultantes das normas dos arts. 798º, 799º e 1223º do C.C., os quais lhe conferem o direito a ser indemnizada em consequência daquele incumprimento da R.

36 -  Importa frisar, quanto à perda do interesse do credor, que a mesma deve ser apreciada objectivamente no sentido de o valor da prestação ser aferido em função das utilidades que a prestação teria para aquele, tendo em conta, a justifica-lo, um critério de razoabilidade comummente aceite na devida correspondência com a realidade das coisas, isto é, tendo em atenção elementos capazes de serem valorados pela generalidade das pessoas.

37 -  O incumprimento da obrigação da R. empreiteira de retomar a obra após ter recebido as 3 letras de cambio e nunca mais – durante seis anos - ter regressado à mesma para retomar os trabalhos legitima a resolução do contrato pois que esse abandono durante seis anos com a retirada de todo o equipamento e ferramentas e até com a retirada da grua – comunicada à C.M. de … - traduz nas circunstancias de que se rodeou e fez desaparecer na A. a confiança que antes havia depositado na R., justificando um justo receio quanto ao cumprimento futuro das obrigações contratuais.

38 -  Decorre do exposto que, seja de um ou de outro modo, a R. deve ser condenada a pagar à A. o que a mesma dela aqui reclama, tal como deve a A. ser integralmente absolvida do que, sem bom fundamento a R. contra ela Reconvenciona, até porque a mesma não cumpriu a sua contraprestação de reiniciar e 66 terminar a obra que trazia em curso.

AINDA SEM PRESCINDIR,

39 -  Os bons princípios constitucionais directamente atinentes à situação factual que supra se descreve e que o processo demonstra, particularmente no que à A. directamente diz respeito, obrigam a atender à necessidade de dispensar a mesma do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

40 -  E isto, não só atendendo aos assinalados princípios, designadamente o princípio Constitucional da Proporcionalidade e do Acesso ao Direito e à Justiça mas atendendo também à correspectividade tributária que a aplicação de uma qualquer taxa sempre tem de ter como fundamento inerente à respectiva exigência e quantidade ou valor.

41 -  A taxa de justiça quantificada nos termos em apreço extravasa toda e qualquer legitimidade que lhe pudesse assistir na comparticipação do serviço de administração de justiça, não existindo entre a referida prestação uma relação de correspectividade ou sinalagmaticidade, pelo que, a taxa se transmutou, no caso em apreço, num verdadeiro e inadmissível, tanto quanto ilegal, imposto (sancionatório da utilização daquele serviço, diríamos mesmo), em clara violação dos ditames legais e constitucionais que regulam a criação, fixação e aplicação de tributos na nossa ordem jurídica.

42 -  Não devendo a A. ser mais penalizada, para além do que tem sido ao longo do processo, e agora em sede de custas judiciais, pela simples razão de ter exercido o inalienável direito de reclamar da R. a resolução do contrato de empreitada para obra que se mostrava abandonada há mais de 6 anos, tal como reclamar o pagamento da indemnização e prejuízos decorrentes do abandono da obra.

43 - Parafraseando o supra citado acórdão do STJ, também nos parece excessivo e desproporcionado o valor do remanescente da taxa de justiça que à A. caberia pagar em caso de decaimento sendo necessário repor o justo equilíbrio e a proporcionalidade no valor da taxa a pagar pela A. em razão do imprescindível recurso ao tribunal.

44 -  Proporcionalidade e equilíbrio que no caso e atendendo aos elevados valores já pagos até ao momento pela A. deverá corresponder à dispensa total do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Pelo que,

45 – O acórdão recorrido, salvo o devido respeito, violou e ou interpretou erradamente, entre outros, as normas constantes dos arts. 2º, 18º e 20º da Constituição, os arts. 607º nº 4, 629º nº 1 e 2, 635º nº 5, 636º nº 2, 639º, 640º nº 1 e 2 do CPC e ainda os arts. 217º, 342º, 406º, 432º, 433º, 798º, 799º, 1207º, 1223º e segs. do CC e conjugado com aquelas normas Constitucionais o art. 6º do RCP.

Pede que o acórdão recorrido seja revogado e que seja substituído por outro que condene a Ré no peticionado e absolva a Autora do pedido reconvencional.

A Ré apresentou contra-alegações onde sustentou a inadmissibilidade do recurso de revista comum, argumentando que este não é admissível porque, considerando o âmbito do recurso interposto pela Autora, o acórdão a quo decidiu com a mesma fundamentação da sentença da 1.ª instância, sendo certo que o conhecimento da arguição de nulidades e da impugnação da condenação em custas pelo Supremo Tribunal de Justiça depende da admissibilidade do recurso de revista. Subsidiariamente, pronunciou-se pela improcedência do recurso.

Também a Ré recorreu de revista comum e, subsidiariamente, de revista excecional

Relativamente à revista comum, concluiu as suas alegações do seguinte modo:

...

9 -       O acórdão a quo confirma a sentença de 1ª instância, ainda que por fundamentação diferente nos termos acabados de enunciar, aderindo “nos precisos termos de direito e de facto” ao demais exarado sobre o pedido reconvencional, sem que se perceba, afinal, a que se refere.

10 - A recorrente não pode deixar de considerar que essa adesão, por implicar a omissão de pronúncia quando contrastada a sentença de 1ª instância com o objeto de recurso conforme definido pela instância, não pode deixar de significar a nulidade do acórdão a quo. Assim, dá aqui como reproduzidos os fundamentos de nulidade escritos entre art.º 1º e art.º 55º do requerimento de arguição de nulidade a fls. que antecedem.

11 - Subsidiariamente, aponte-se que a resolução do contrato de empreitada foi declarada no art.º 84º da PI, e julgada sem fundamento. A própria sentença bem o afirma – vd. art.º 7º do presente requerimento.

12 - Se a autora declara a resolução contratual, a sentença não pode convolar essa declaração de resolução em declaração de desistência.

13 - Ora, peticionando a resolução do contrato sem causa para o efeito (o que a sentença a quo afirma ao considerar que “assim, não ser verificam os requisitos para que validamente a autora possa declarar a resolução do contrato”), cabia ao acórdão a quo aplicar o regime dos artigos 432º, e 808º CCiv., a contrario. Ou seja, determinar as consequências do exercício ilícito da faculdade de resolução, nomeadamente por aplicação do disposto no art.º 798º CCiv.: “O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”.

14 - E nessa medida, faltando ao cumprimento do contrato, a questão é por demais simples.

15 - Afirmavam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA – Código Civil Anotado, Vol. II, 1997, p. 52, que em caso de responsabilidade contratual, à “obrigação de indemnização a cargo do devedor faltoso são aplicáveis as disposições dos artigos 562º e seguintes.”

16 - Assim, quem estiver obrigado a reparar um dano, deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.

17 - Ora, “este prejuízo compreende tanto o dano emergente como o lucro cessante (art. 564º) – todo o interesse contratual positivo na hipótese de a obrigação provir de contrato”. É a lição de ANTUNES VARELA – Das Obrigações em Geral, Vol. II, p. 93.

18 - Conforme peticionado a art.º 103º da contestação/reconvenção, a recorrente teria obtido o ganho de € 1.125.000,00 (um milhão cento e vinte e cinco mil euros) caso o contrato fosse cumprido, o que corresponde a 30% do valor do contrato de empreitada – a margem de lucro habitual e corrente do mesmo no mercado de construção civil.

19 - Considerando que “não se verificam os requisitos para que validamente a autora possa declarar a resolução do contrato”, tendo esta optado por expressamente proferir declaração de resolução, deveria ter o acórdão a quo julgado a resolução ilícita e, nessa medida, violadora do disposto no art.º 798º CCiv., espoletando as devidas consequências indemnizatórias ora expostas.

20 - Acresce que resolução do contrato é confessada pela autora por escrito no art.º 84º, sendo um facto aceite por acordo com a declaração referida na contestação da ré – cfr. art.º 465º, n.º 2 CPC.

21 - É um facto essencial porque nele se baseia tanto a causa de pedir da autora como da ré – cfr. art.º 5º, n.º 1, CPC.

22 - Mas, sobretudo, é um facto cuja força de prova resulta da lei – cfr. art.º 607º, n.º 2 CPC – e que tem força probatória plena contra o confitente – cfr. art.º 358º, n.º 1 CPC.

23 - Provada que está, por lei, a resolução do contrato, não pode o acórdão a quo considerar que não há fundamento para o pedido indemnizatório da recorrente sem mais.

24 - Sucede que, subsidiariamente e sem prescindir, o acórdão a quo não aprecia também as consequências da desistência da empreitada por parte da recorrida, o que a sentença afirma ter ocorrido, conforme expressamente alegado a conclusões 20 e 21.

25 - Assim, deveria ter sido analisada a possibilidade de aplicação do disposto no art. 1229º CCiv. ao caso concreto.

26 - A desistência da obra implica dever de indemnizar. É uma responsabilidade por factos lícitos, que deve conter o proveito que o empreiteiro poderia retirar da obra completa e não daquela que efetivamente realizou, sendo, portanto, uma indemnização por interesse contratual positivo.

27 - Determinado que seja o preço global da empreitada, que inclui materiais, mão-de-obra e proveitos ali incorporados, e apurado o valor dos trabalhos não realizados, sem que se prove qualquer outro proveito frustrado, a indemnização corresponderá à diferença entre aquele preço e o valor dos trabalhos não realizados, sem que se mostre relevante discriminar, nessa diferença, a parcela relativa aos gastos e trabalhos realizados e a parcela do proveito frustrado.

28 - A diferença entre o preço global da empreitada e o preço dos trabalhos não realizados se cifra em € 3.010.743,34, sendo que o valor da indemnização está limitado ao pedido realizado em sede de reconvenção e que deve ser concedido ao recorrente.

A Autora apresentou contra-alegações em que se pronunciou pela improcedência do recurso interposto pela Ré e deduziu ampliação do âmbito do recurso, nos seguintes termos:

41 -  A A., ainda em contraponto do alegado pela R., reafirma a impugnação deduzida contra a decisão relativa aos pontos da matéria de facto já identificados e discriminados nas supra citadas alegações de Revista que a mesma apresentou nos autos no dia 3 do corrente mês.

42 - Designadamente, a A. reafirma a sua discordância quanto à decisão do Tribunal “a quo” de:

- Omitir a reapreciação dos depoimentos indicados pela Recorrente e abster-se, no caso em apreço, de conhecer do objecto de impugnação respeitante á matéria de facto, deduzida e elencada pela A./Recorrente naquelas suas Alegações de Apelação;

- Omitir o dever de se pronunciar e conhecer acerca do que está invocado nas conclusões 21 a 29 das alegações de Apelação apresentadas nos autos em 10/09/2019,

- Bem como, e até por maioria de razão, omitir o dever de se pronunciar e conhecer acerca do que está invocado nas conclusões elaboradas e juntas com as Contra-Alegações apresentadas – aos 26/9/2019 (ref. n.º …) – em razão e para contraponto das alegações de Apelação que a R. entregou nos autos em 28/6/2019 – ref. n.º … –;

Reafirmando a A. que,

- Não se conforma com o mau uso que o douto acórdão recorrido fez dos poderes que a lei lhe confere para reapreciar a matéria de facto e conhecer da impugnação respeitante à decisão sobre a matéria de facto que havia sido proferida pelo tribunal de 1ª instancia e, por isso, não se conforma com a inclusão na relação da matéria de facto “Provada” da factualidade constante de nºs 16, designadamente, no que diz respeito à factura nº … com data de 31/03/2009, no valor de €.49.654,99, - a qual não foi entregue à autora e terá origem em “auto de medição” sem qualquer correspondência com obra feita - tal como também não se conforma com a inclusão na relação da matéria de facto “Provada” da factualidade constante de nºs 18, 19, 28, 29, 30, 31, 33, 34 e 35;

E

- Também não se conforma com a decisão proferida pelo tribunal “a quo” relativamente a declarar “Não Provado” a factualidade invocada pela A. na sua PI e elencada em nºs 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, do elenco da matéria de facto declarada “Não Provada” da sentença.

43 - E, concatenando todos os citados documentos que se encontram juntos aos autos, com as regras da experiência comum, bem como atendendo à melhor valoração dos depoimentos das testemunhas prestados na audiência de julgamento, devidamente identificados nas Alegações de Apelação, a A. demonstra que aquela impugnada decisão relativa à decisão de facto proferida pelo tribunal “a quo” deverá ser alterada pelo Venerando tribunal “ad quem”.

44 - Tais vícios que afectaram a decisão relativa à matéria de facto impugnada, devem ser conhecidos e declarados por este Tribunal “ad quem”.

O Tribunal da Relação....... proferiu acórdão em 29.10.2020, rejeitando a existência de quaisquer nulidades no acórdão recorrido.

                                               *

II - Da admissibilidade dos recursos de revista comum

As duas partes interpuseram, em primeira linha, recurso de revista comum do acórdão do Tribunal da Relação ... de 29.10.2020, para o Supremo Tribunal de Justiça.

A Ré questionou a admissibilidade do recurso interposto pela Autora, alegando que, tendo em consideração o seu âmbito, existia uma conformidade entre a sentença da 1.ª instância e o acórdão do Tribunal da Relação, impeditiva do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, atento o disposto no artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Nas suas alegações de recurso, a Autora pretende que lhe seja reconhecido o direito de resolução do contrato de empreitada, face a um alegado incumprimento definitivo do mesmo, por parte da Ré, com a consequente obrigação desta a indemnizar dos prejuízos resultantes desse incumprimento.

Se é verdade que o acórdão recorrido manteve a decisão da 1.ª instância, a fundamentação da sua decisão, relativamente à questão colocada no recurso interposto pela Autora, divergiu radicalmente da seguida pela sentença da 1.ª instância.

Da leitura desta peça, resulta que não foi reconhecido à Autora o direito a resolver o contrato de empreitada celebrado com a Ré, porque se entendeu que a Autora desistiu da realização da empreitada, o que determinou a improcedência dos seus pedidos – ... os pedidos formulados pela Autora devido à sua natureza e fins relacionados com o incumprimento contratual ou também com o cumprimento estrito do contrato, não têm viabilidade jurídica, em face da sua desistência.

Ora, o acórdão recorrido, numa perspetiva contrária, considerou que não se verificou qualquer desistência da obra, por parte da Autora, tendo, no entanto, mantido a decisão de improcedência dos pedidos formulados pela Autora, com fundamento na falta de demonstração que a Ré tivesse incumprido definitivamente o contrato.

São duas linhas de fundamentação distintas, e até antagónicas, no que respeita à perceção de uma desistência da obra por parte da Autora, pelo que não é possível considerar que as duas decisões se apoiem numa fundamentação que não é essencialmente diferente, o que impediria a admissibilidade de um recurso de revista comum.

Relativamente ao recurso interposto pela Ré, o mesmo dirige-se à parte da decisão que não reconheceu à Ré o direito de indemnização pela desistência da obra.

Não tendo o acórdão recorrido reconhecido que se tenha verificado essa desistência, contrariamente à sentença da 1.ª instância, que apenas não tinha reconhecido o direito de indemnização à Ré, por considerar que o mesmo era abusivo, dado o comportamento desta se traduzir num venire contra factum próprio, também não se verifica uma situação de dupla conformidade, impeditiva da interposição de um recurso de revista comum.

Assim sendo, consideram-se admissíveis os recursos de revista comum interpostos pela Autora e pelo Réu, pelo que o seu mérito irá ser apreciado, ficando prejudicada a verificação dos pressupostos dos recursos de revista excecional, subsidiariamente deduzidos.

III – O objeto dos recursos

1. Da ampliação do objeto do recurso

A Autora, nas contra-alegações ao recurso interposto pela Ré, deduziu uma ampliação do objeto desse recurso, invocando o disposto no artigo 636.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, reafirmando a sua discordância relativamente à posição assumida pelo acórdão recorrido de omissão do conhecimento da impugnação da decisão da 1.ª instância que fixou a matéria de facto provada e não provada.

Se aquele dispositivo permite a invocação de nulidades da decisão recorrida pelo recorrido, a título subsidiário, no presente caso, a Autora limita-se a invocar uma nulidade que já tinha arguido nas alegações do recurso por ela interposto, pelo que esta ampliação é desprovida de utilidade, uma vez que a nulidade invocada sempre será conhecida na apreciação do recurso interposto pela Autora.

2. Da reforma do acórdão recorrido quanto a custas

No recurso para o Tribunal da Relação, a Autora requereu que fosse dispensada do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do n.º 7, do artigo 6.º, do Regulamento das Custas Judiciais.

O acórdão recorrido, atendeu parcialmente a este pedido, tendo dispensado o pagamento de 20% do remanescente da taxa de justiça.

A Autora, no recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, pediu que o acórdão recorrido fosse também revogado nessa parte, determinando-se uma dispensa total do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

A discordância quanto à parte da decisões judiciais que condenam no pagamento das custas judiciais deve ser processualmente expressa através de um pedido de reforma da decisão, nessa parte, nos termos do artigo 616.º do Código de Processo Civil, aplicável aos acórdãos proferidos nos recursos de apelação, ex vi artigo 666.º, n.º 1, do mesmo diploma.

No caso de ser deduzido recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, o pedido de reforma deve ser deduzido nas alegações de recurso.

Assim, apesar da Recorrente não ter identificado essa parte das alegações como um pedido de reforma do acórdão recorrido, quanto a custas, deve ser como tal qualificada e considerada essa parte das suas alegações.

Competia, pois, aos subscritores do acórdão recorrido, quando se pronunciaram sobre as nulidades arguidas pelos recorrentes, apreciar esse pedido de reforma (artigo 617.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, adaptado aos casos em que a decisão é um acórdão), o que não foi feito.

Não se afigurando indispensável mandar baixar o processo para que seja proferida essa decisão, deve a divergência suscitada nas alegações deste recurso de revista, integrar também o objeto deste recurso (artigo 617.º, n.º 5, do Código de Processo Civil).

3. As questões a apreciar

Assim, tendo em consideração o conteúdo da decisão recorrida e as conclusões dos recursos deduzidos por Autora e Réu, são as seguintes as questões a apreciar.

Relativamente ao recurso interposto pela Autora:

- O acórdão recorrido não podia excluir do seu objeto o alegado pela Autora nas conclusões 21.º a 29.º das alegações de recurso interpostas para o Tribunal da Relação, nem a ampliação do objeto de recurso que constava das contra-alegações ao recurso interposto pela Ré para o mesmo Tribunal?

- O acórdão recorrido não podia recusar-se a apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto proferida em 1.ª instância?

- Da matéria de facto provada resulta que se verificou um efetivo abandono da obra por parte da Ré, que justifica a resolução do contrato de empreitada, com a consequente obrigação desta pagar à Autora os valores indemnizatórios peticionados?

- Deve ser dispensado o pagamento de qualquer valor do remanescente da taxa de justiça?

- Relativamente ao recurso interposto pela Ré:

- O acórdão recorrido é nulo?

-  A Autora resolveu o contrato sem fundamento, pelo que deve indemnizar a Ré, nos termos que foram objeto da reconvenção deduzida?

- A Autora, por ter desistido da obra, deve indemnizar a Ré, nos mesmos termos?

IV – Das nulidades do acórdão recorrido

1. Da restrição do objeto do recurso de apelação

Nos presentes autos, a 1.ª instância proferiu uma primeira sentença que o Tribunal da Relação, apreciando os recursos que dela foram interpostos, no acórdão proferido em 04.04.2019,  nos termos do artigo 662.º, n.º 2, d), do Código de Processo Civil, decidiu anular a sentença recorrida, determinando-se que o Mº juiz a quo proceda à fundamentação da matéria de facto declarada provada e não provada, com base na prova produzida nos autos , e, com expressa referência especificada e individualizada a cada ponto de facto e meio de prova em que se fundou, de forma crítica e fundamentada.

Tendo a 1.ª instância proferido nova sentença e dela tendo sido interpostos recursos, veio o Tribunal da Relação......., no acórdão recorrido, a considerar que a Autora nas conclusões 21.º a 29.º das suas alegações, assim como na ampliação do objeto do recurso deduzido nas contra-alegações, tinha suscitado nova factualidade e questões sobre as quais já se havia formado caso julgado na primeira sentença proferida pela 1.ª instância, uma vez que, da sua solução, a Autora não havia recorrido, pelo que considerou excluídos esses trechos do objeto do recurso, invocando o disposto no artigo 635.º, n.º 5, do Código de Processo Civil.

A Autora sustenta que, com a anulação da primeira sentença proferida na 1.º instância, a mesma deixou de ser válida, pelo que nenhum dos seus segmentos transitou em julgado, não podendo o Tribunal da Relação....... coartar o direito ao recurso, pelo que tal decisão deve ser revogada.

Nas conclusões 21.º a 29.º do recurso de apelação interposto pela Autora é apenas resumida a lógica argumentária da impugnação da decisão sobre a matéria de facto que conduziu ao apuramento do crédito da Ré, no valor de 338.705,14 €, relativo a trabalhos prestados na execução da obra contratada. E, na ampliação do objeto do recurso, deduzida nas contra-alegações ao recurso de apelação interposto pela Ré, é apenas repetida a impugnação da decisão da matéria de facto relativa à existência daquele crédito da Ré, que já constava das alegações de recurso da Autora.

Daí que tais trechos das conclusões das alegações e das contra-alegações não se traduzam nem em questões, nem sequer em argumentos diversos daqueles que integravam as alegações do recurso de apelação, sendo apenas seus resumos ou repetições, pelo que, a sua exclusão do objeto do recurso, pela sua inocuidade, não é suscetível de provocar uma omissão de pronúncia geradora de uma nulidade do acórdão recorrido, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, d), aplicável ex vi artigo 666.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, não se traduzindo numa violação do direito ao recurso.

Aliás, da leitura integral da decisão recorrida, constata-se que a matéria das referidas conclusões das alegações de recurso e da ampliação deduzida nas contra-alegações não foi conhecida, não por ter sido “excluída” do objeto do recurso, mas sim porque se decidiu que parte da impugnação da matéria de facto nela contida não cumpria os requisitos exigidos pelo artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Daí que improceda este fundamento do recurso.

2. Do não conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto

A Autora, no recurso de apelação para o Tribunal da Relação......., impugnou a decisão sobre a matéria de facto da 1.ª instância, questionando os factos considerados provados na sentença da 1.ª instância sob os números 13, 15, 16, 18, 19, 28, 29, 30, 31, 33, 34 e 35 e os factos considerados não provados, pela mesma sentença, sob os n.º 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13.

O acórdão recorrido julgou improcedente esta impugnação, relativamente aos factos provados n.º 13, 15 e 16, tendo apreciado os fundamentos da impugnação deduzida.

Já quanto à impugnação dos demais factos, o acórdão recorrido, julgou improcedente a impugnação da matéria de facto, por ter considerado que a Recorrente ao deduzir a impugnação não especificou quais os fundamentos de erro na decisão, nem de que forma os meios de prova invertem o decidido ... resultando genérico de conteúdo as Conclusões do recurso de apelação, no tocante á impugnação da matéria de facto, bem como, igualmente se manifestando insuficiência de fundamentação especificada, no teor das alegações, ou de especificação relevante, com vista a obter-se a alteração do decidido.

O acórdão recorrido não conheceu, pois, da impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida pela Autora, quanto aos factos provados sob os números 18, 19, 28, 29, 30, 31, 33, 34 e 35, e quanto aos factos julgados não provados sob os números 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13, com fundamento num deficiente cumprimento dos deveres de especificação exigidos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil.

A Autora sustenta que esses deveres se revelam cumpridos, solicitando a revogação desta decisão.

Verificando as alegações de recurso dirigidas pela Autora ao Tribunal da Relação, relativamente à impugnação da decisão da matéria de facto proferida pela 1.ª instância, na parte em que não foi conhecida, constata-se que a Autora se limitou a dizer quer no corpo das alegações, quer nas conclusões, que não se conformava com a inclusão na relação da matéria de facto provada da factualidade constante dos n.º 18, 19, 28, 29, 30, 31, 33, 34 e 35, e com a inclusão na matéria de facto não provada dos factos que constam nos números 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13, e que, analisando a prova documental junta aos autos, que discrimina (dezenas de documentos), e a prova testemunhal produzida, que igualmente discrimina (cinco depoimentos que transcreve), o primeiro conjunto de factos deveria ter sido julgado não provado e o segundo conjunto de factos deveria ter transitado para os factos provados.

Não especificou, contudo, quais os meios de prova que, relativamente a cada facto, impunham um resultado de prova diferente, nem explicou, salvo uma referência à credibilidade das testemunhas por si mencionadas, as razões pelas quais a prova produzida impunha esse diferente resultado.

O artigo 640.º do Código de Processo Civil impõe o ónus do recorrente que impugne a decisão da matéria de facto de, obrigatoriamente, especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

O cumprimento do segundo requisito deve ser feito, especificando-se, relativamente a cada facto ou a cada bloco de factos que integrem a mesma temática, quais os concretos meios probatórios que impunham um diferente resultado da prova produzida, e expondo uma motivação mínima, explicativa das razões pelas quais esses meios de prova conduzem a esse diferente resultado

Só assim será possível, por um lado, assegurar à parte contrária o exercício de um contraditório esclarecido, garantindo-se o direito de defesa exigido por um processo necessariamente equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição), e, por outro lado, habilitar o tribunal de recurso a decidir do mérito das razões da impugnação deduzida.

Não cumpre estas exigências a impugnação que se limite a indicar, de forma não individualizada, e sem qualquer explicação, os meios de prova que, no seu entender, impunham uma diferente decisão sobre a prova de uma diversidade de factos, sem que seja possível à parte contrária e ao tribunal aperceberem-se quais são os meios de prova que, relativamente a cada facto, o Recorrente entende que exigem a alteração pretendida e quais são as razões desse entendimento.

No presente caso, os factos provados sob os números 18, 19, 28, 29, 30, 31, 33, 34 e 35, assim como os factos não provados sob os números 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13, respeitam a uma diversidade factual quer temática, quer temporal, quer espacial, que exigiam que a Recorrente indicasse, relativamente a cada facto ou a alguns blocos de factos que, eventualmente, pudessem ser agrupados pela sua conexão, quais, entre todos os meios de prova que genericamente enumerou (documentos e depoimentos testemunhais), justificavam um resultado de prova diverso do decidido pelo tribunal da 1.ª instância, assim como uma explicação mínima das razões da divergência.

Não o tendo feito, não possibilitou à parte contrária exercer um contraditório minimamente esclarecido, nem permitiu ao tribunal decidir do mérito da impugnação deduzida, pelo que não restava ao tribunal recorrido outra opção senão a de não conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto, nessa parte.

Improcede, por estas razões, este fundamento do recurso interposto pela Autora.

3. Da nulidade por omissão de pronúncia

A Ré alega que o acórdão recorrido é nulo, por omissão de pronúncia, geradora da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, d), aplicável ex vi artigo 666.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, na parte em que absolveu parcialmente a Autora do pedido reconvencional, por não ter apreciado as consequências da resolução contratual operada pela Autora no artigo 84.º da petição inicial.

Consta da fundamentação do acórdão recorrido:

... no tocante às alegações da Ré improcede, ainda, nos termos expostos, a invocação de verificação de “resolução unilateral ilícita”, pois que, desde logo, a Autora exerceu o pretendido direito de Resolução contratual, tão só, por via da presente acção judicial, formulando a Autora pedido de declaração de resolução do contrato de empreitada celebrado entre Autora e Ré em 14/08/2008, em razão do abandono da obra por parte da ré, cfr. alegação/declaração na pi ( artº 83º )- “Aquela descrita conduta inadimplemente da sociedade R. confere à A. o direito de declarar a resolução do contrato de empreitada, o que aqui expressamente se invoca – art. 432º, 433º, 436º e 1222º do CC.”, e pedido este que improcedeu, ( e cfr. a própria Ré reconhece na contestação artº 91º ), falecendo, desde logo, os fundamentos expostos pela Ré e pedido indemnizatório reconvencional correspondente.

Lendo este trecho verificamos que o acórdão recorrido não considerou que a Autora tenha resolvido o contrato de empreitada com a propositura da presente ação, antes tendo considerado que ela pediu que o tribunal decretasse essa resolução, com fundamento no incumprimento definitivo do mesmo, por parte da Ré. Foi nesta perspetiva que o acórdão recorrido entendeu que não havia lugar ao pagamento de qualquer indemnização pela resolução injustificada do contrato de empreitada, uma vez que no seu entendimento essa resolução não ocorreu.

Não há, pois, qualquer omissão de pronúncia sobre esta questão. O que se verifica é uma pronúncia que não acolhe a pretensão da Ré e com a qual esta não concorda, fazendo uma leitura diferente do que foi peticionado pela Autora.

Por esta razão, improcede a arguição desta nulidade.

4. Da nulidade por contradição entre a fundamentação e a decisão

A Ré alega que existe uma contradição entre a fundamentação e a decisão que absolveu parcialmente a Autora do pedido reconvencional, porque a Ré confessa no artigo 84.º da petição inicial que resolveu o contrato de empreitada e o acórdão recorrido decide que a Ré não tem direito a receber a indemnização, peticionada em reconvenção, porque a Autora não resolveu o contrato.

A contradição entre a decisão e a fundamentação, geradora da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, c), aplicável ex vi artigo 666.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, ocorre quando existe uma contradição lógica entre os fundamentos aduzidos e o sentido da decisão, o que não sucede no presente caso em que o acórdão recorrido entende que a Autora não resolveu o contrato de empreitada e, por isso, decide que não há lugar ao pagamento de uma indemnização pela resolução ilícita desse contrato.

Alega a Ré que no processo existe uma confissão judicial no sentido de que a Autora resolveu o contrato de empreitada, pelo que o acórdão recorrido não poderia ter considerado que essa resolução não ocorreu. Mas essa já é uma questão que bule com um deficiente juízo probatório e não com qualquer contradição entre os fundamentos e o sentido da decisão.

Improcede, por isso, a arguição desta nulidade.

5. Da nulidade por ambiguidade da decisão

A Ré alega ainda que o acórdão recorrido, na parte em que absolveu parcialmente a Autora do pedido reconvencional é ambíguo, o que integra a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, c), aplicável ex vi artigo 666.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil

A Ré aponta ambiguidade à fundamentação da improcedência do pedido indemnizatório.

Sem razão, no entanto.

No excerto da fundamentação acima transcrito, é inteligível que a razão pela qual o acórdão recorrido entendeu que a Ré não tinha direito a ser indemnizada pela resolução ilícita do contrato de empreitada se baseou no entendimento que a Autora não resolveu esse contrato, tendo antes peticionado que o tribunal decretasse a resolução do mesmo, na sequência do apuramento que a Ré o havia incumprido definitivamente, tendo esse pedido improcedido.

Não sofrendo o acórdão recorrido do vício apontado, improcede também a arguição desta nulidade.

V – Os factos

Neste processo foram considerados provados os seguintes factos:

A Autora é uma sociedade comercial que exerce com escopo lucrativo a indústria e o comércio de compra e venda de propriedades e exploração de hotéis com restaurantes.

A Ré é uma sociedade comercial que se dedica à indústria da construção civil e obras públicas.

A Autora, em 2/12/2005, celebrou com a sociedade que então se denominava de “Cofil-José da Costa Costeira & Filhos, Lda.” contrato e empreitada respeitante à construção de edifícios no loteamento urbano sito na …., freguesia de … da cidade de ….

O objeto desse contrato de empreitada era a execução de todos os trabalhos que integram a empreitada de construção dos lotes 1 a 9 do complexo imobiliário de …, loteamento e estruturas em betão armado.

O prazo que havia sido contratado com a “Cofil, Lda.” para a execução e finalização dos trabalhos era até 31/01/2007.

Iniciados esses trabalhos, viria essa sociedade empreiteira, que entretanto se passou a designar de “Cofilport – Sociedade de Empreitadas, S.A.”, a parar a obra, em abril de 2008, em razão das graves dificuldades económicas de que padecia e que conduziram à sua declaração de Insolvência.

A Autora havia contraído para financiamento da construção desta obra, um empréstimo junto da CGD pelo valor de €.2.750.000,00, sob a forma de “contrato de abertura de crédito nº …”, constante do documento nº 3 que aqui se dá por integralmente reproduzido.

No momento de paragem da obra a Autora tinha pago à empreiteira o valor global de €.850.919,49.

A Autora celebrou então com a Ré sociedade “Construções Europa Ar-Lindo, S.A.”, em 14/08/2008, um contrato de empreitada para continuação da construção daquela obra que antes havia sido contratada com a “Cofilport, Lda.”.

10º O prazo previsto para conclusão da obra era de 10 meses a contar de 1/09/2008, por forma a estar concluída em 30/06/2009 (clausula sexta do contrato).

11º O preço acordado foi de € 3.750.000,00 acrescido de IVA.

12º Ficou estipulado que as faturas seriam emitidas até ao dia 5 de cada mês e seriam acompanhadas pelo respetivo auto de medição até ao dia 25 do mês anterior, devendo os mesmos ser assinados pelo empreiteiro e pelo dono de obra, fiscalização ou seu representante legal.

13º Os pagamentos deveriam ser efetuados pelo dono de obra até 30 dias após a data da emissão das faturas acompanhadas de autos de medição.

14º A falta de pagamento de cada fatura dentro do prazo de 30 dias importava o vencimento de juros moratórios à taxa supletiva e contados ao dia e implicava a prorrogação  automática do prazo contratual para conclusão dos trabalhos, por igual período no atraso do pagamento, conferindo ainda direito à resolução do contrato sem prévia interpelação.

15º A Ré elaborou e remeteu à Autora os seguintes autos de mediação:

Doc. n.º      Auto n.º        Data da elaboração   Data do envio

16                    1.º             30.09.2008               07.10.2008

17                    2.º             31.10.2008               28.10.2008

18                    3.º             28.11.2008               26.11.2008

19                    4.º             30.12.2008               31.12.2008

20                    5.º             30.01.2009               30.01.2009

21                    6.º             25.02.2009               26.03.2009

16º A Ré, entre o dia 01 setembro de 2008 e 31 de março de 2009, emitiu e entregou à autora faturas que totalizam o valor de € 909.285,70, com as seguintes datas e valores:

Fatura n.º             Data                     Valor

2008/2...3              30.09.2008            79.761,14

2008/2...0              30.09.2008          167.668,33

2008/3...1              28.11.2008          251.391,95

2008/3...8              30.12.2008          134.090,53

2009/7                  30.01.2009          120.696,28

2009/3...                27.02.2009          106.022,48

2009/6...                31.03.2009            49.654,99

17º A Autora entregou à Ré a quantia de total de €.380.000,00, assim discriminada:     

     a) Aos 06/01/2009 foi entregue a quantia de €. 95.000,00;

     b) Aos 18/02/2009 foi entregue a quantia de €. 95.000,00;

     c) Aos 06/03/2009 foi entregue a quantia de €. 100.000,00;

     d) Aos 25/03/2009 foi entregue a quantia de €. 90.000,00.

18º A Ré através das missivas enviadas em 11.12.2008, 13.01.2009 e 04.02.2009, interpelou a Autora para que procedesse ao pagamento do valor das faturas em dívida, com a advertência de que a persistência da falta de pagamento determinava o vencimento de juros moratórios à taxa supletiva contados ao dia e implicava a prorrogação automática do prazo contratual, por igual período do atraso no pagamento, a suspensão da execução dos trabalhos com retenção da obra realizada, uma vez que não tinha condições económicas para financiar a continuidade da obra.

19º A Ré, por comunicação expedida em 19.03.2009, interpelou novamente a Autora para pagamento do valor em dívida e informou-a que a persistir a omissão de pagamento até ao dia seguinte - 20 de Março de 2009 -, suspendia a execução dos trabalhos com retenção da obra executada, pois não tinha disponibilidades financeiras para continuar a financiar os custos da obra.

20º No início de abril de 2009 a Ré suspendeu a execução dos trabalhos e a partir daí manteve sob a sua alçada o estaleiro da obra.

21º Na sequência de negociações entre as partes, em maio de 2009, as mesmas acordaram o seguinte: a Autora emitiu e subscreveu no campo do “aceite” de três letras de câmbio do valor global de € 500.000,00, com data de emissão de 11 de maio de 2009 e com vencimento nos dias 11 dos meses de agosto, setembro e outubro de 2009; a Ré obrigou-se em contrapartida a reiniciar a obra logo após a receção e desconto das letras.

22º Estas três letras de câmbio foram efetivamente entregues à Ré e por ela descontadas, sem que a Ré tenha reiniciado os trabalhos.

23º A Ré retirou posteriormente da obra o equipamento que tinha instalado no local e de que se servia para a respetiva execução.

24º A Autora não pagou qualquer uma das três letras nas respetivas datas de vencimento.

25º As três letras foram sendo sucessivamente reformadas.

26º A letra de câmbio pelo valor de € 100.000,00, com data de emissão em 11.05.2009, e vencimento em 11.08.2009, apresentada a desconto no Banco Santander Totta, foi objeto de cinco reformas sucessivas de € 10.000,00 cada uma, às quais se seguiram mais quatro no valor de € 1.000,00 cada e cinco reformas no valor de € 2.000,00 cada uma.

27º Quando a letra reformada estava no valor de € 36.000,00 na altura do vencimento em 11.05.2011, a Autora não pagou o seu valor nem o valor das reformas subsequentes que foi sucessivamente suportado pela Ré.

28º Relativamente a essa letra a Ré suportou as despesas com os descontos e reformas bancárias (juros e comissões) e imposto de selo, no montante de € 35.248,68.

29º A letra de câmbio pelo valor de € 200.000,00, apresentada a desconto no Banco Santander Totta, com data de emissão em 11.05.2009 e vencimento em 11.09.2009, foi objeto de quatro reformas sucessivas no valor de € 20.000,00 cada uma, às quais se seguiram mais seis de € 2.000,00 cada uma.

30º Quando a letra reformada estava no valor de € 108.000,00, na altura com vencimento em 25.05.2011, a Autora não pagou o seu valor nem o valor das reformas subsequentes que foi sucessivamente suportado pela Ré.

31º As despesas com os descontos, reformas bancárias (juros e comissões) e imposto de selo, ascenderam ao montante de € 66.818,67.

32º A letra de câmbio pelo valor de € 200.00,00, com data de emissão em 11.05.2009 e vencimento em 11.10.2009, apresentada a desconto no B….– Banco ….., foi objeto de sete reformas sucessivas no valor de € 20.000,00 cada uma, às quais se seguiram mais sete no valor de € 2.000,00 cada uma e duas no valor de € 1.000,00 cada uma.

33º Quando a letra reformada estava no valor de € 44.000,00, na altura com vencimento em 11.05.2011, a Autora não pagou o seu valor bem o valor das reformas subsequentes que foi sucessivamente suportado pela Ré.

34º As despesas com os descontos, reformas bancárias (juros e comissões) e imposto de selo, ascenderam ao montante de € 37.754,19.

35º A Ré, em conformidade com o acordado, notificou a Autora de todas as despesas bancárias e imposto de selo pago pela apresentação a desconto e reforma bancária.

36º A Autora em 10/08/2011 requereu à Câmara Municipal de … a alteração do alvará de loteamento, passando a prever para o local a construção de um hotel, com a demolição de parte do existente e a criação de um novo volume com dois pisos.

37º Em 27 de setembro de 2010, Construções Europa Ar-Lindo, S.A., (aqui Ré) intentou contra Imobiliária Falances & Fontes, Ldª (aqui Autora), um processo de Injunção que correu termos sob o nº …, na Vara de Competência Mista de …, pedindo a notificação desta no sentido de lhe ser paga a quantia de € 119.474,55 respeitantes a capital (€ 115.564,22), juros de mora (€ 3.910,33) e taxa de justiça (€ 76,50), alegando a celebração de um contrato de empreitada, que tinha por objeto a construção do "Empreendimento de … - …", em …, pelo preço global de € 3.750.000,00, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, tendo realizado os trabalhos identificados na fatura nº …, no valor de € 49.654,99 (do qual a requerida apenas pagou o valor de € 15.041,93). Invocou, ainda ter suportado encargos com a movimentação de letras de câmbio aceites pela requerida, os quais ascendem à importância de € 61.464,16 e, também, que o incumprimento desta última originou a suspensão da obra desde Abril de 2009, o que acarretou custos de imobilização do estaleiro com recursos humanos e equipamentos afetos à obra no valor de € 19.487,00.

38º Na oposição deduzida em 25 de outubro de 2010, Imobiliária Falances & Fontes, Ldª alega que a empreiteira se obrigou a concluir a obra até 30-06-2009, mas que apenas realizou cerca de 25% da mesma, no valor faturado de € 864.958,07, tendo entretanto recebido para pagamento da obra executada € 380.000,00, acrescido de € 500.000,00 mediante o aceite de letras de câmbio. Não lhe foi enviado qualquer auto de medição que pudesse ser por si validado, o que determina a inexistência da obrigação de pagamento da referida quantia. Quanto à imobilização do estaleiro, a requerente obrigou-se a reiniciar a obra logo após a receção das já mencionadas letras de câmbio (emitidas em 11 de Maio de 2009), o que não veio a suceder, pelo que a responsabilidade por quaisquer custos derivados desta circunstância não lhe podem ser imputados. Aceitou, porém, dever a quantia de € 61.464,16 correspondente a encargos com a movimentação de letras de câmbio.

39º Na ação nº …., intentada por Construções Europa Ar-Lindo, S.A., (aqui ré) contra Imobiliária Falances & Fontes, Ldª (aqui autora), assente no mesmo contrato de empreitada aqui em discussão, foi proferida decisão já transitada em julgado por Acórdão pelo Tribunal da Relação....... de 22 de janeiro de 2015, que condenou a ali ré a pagar à autora as seguintes quantias (absolvendo-a do demais pedido):

1. A quantia de € 61.464,16, acrescida de juros de mora desde a data de vencimento de cada uma das notas de débito identificadas em 14º dos factos provados até integral pagamento, às taxas legais em cada momento em vigor para as operações comerciais, nos termos da Portaria nº 597/2005, de 19/07;

2. A quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, referente ao preço dos trabalhos que, dos que constam do 7º auto de medição aludido no ponto 7º dos factos provados, se venha a apurar terem sido executados, até ao limite de € 49.654,99 (quantia essa à qual deverá ser deduzida, após liquidação, a importância de € 15.041,93 já paga pela Ré), acrescida de juros de mora desde a data de vencimento da fatura (30-04-2009) até integral pagamento, às taxas legais em cada momento em vigor para as operações comerciais, nos termos da Portaria nº 597/2005, de 19/07.

39º-A Com data de 19 de fevereiro de 2014, a Autora remeteu à Ré duas notas de débito no valor de € 249.496,60 e de € 164.232,68, que dizia respeitarem a trabalhos faturados mas não executados e a materiais furtados da obra, que esta devolveu.

40º Nesta data as partes tinham em curso a execução de uma outra empreitada, obra situada na cidade de …, denominada ….

VI – O direito aplicável

1. Do incumprimento do contrato de empreitada

No recurso interposto a Autora pretende que o tribunal declare a resolução do contrato de empreitada celebrado com a Ré, em 14.08.2008, com fundamento no abandono da obra por parte desta e condene-a a pagar uma indemnização pelos prejuízos causados com o incumprimento do contratado.

O abandono da obra é um conceito que há muito foi adotado no universo da gíria jurídica e que traduz o comportamento do empreiteiro que, após ter iniciado a execução dos trabalhos de realização da obra a que se vinculou, por iniciativa unilateral, cessa essa execução de um modo e/ou durante um período de tempo revelador, de forma concludente, que é sua intenção firme não retomar aqueles trabalhos, deixando a obra inacabada.

Com esta configuração, o abandono da obra, tem sido qualificado pela jurisprudência [1], e pela doutrina [2] como um comportamento significante da recusa do empreiteiro a cumprir integralmente a prestação a que se obrigou, dotada das caraterísticas que justificam a sua equiparação a um incumprimento parcial definitivo da obrigação de realizar a obra contratada.

Note-se que, contrariamente ao pretendido pela Autora nas suas alegações de recurso, o abandono da obra não é um facto que se possa retirar, através de um raciocínio presuntivo da factualidade que se encontra provada, mas sim uma qualificação jurídica de um comportamento cuja descrição deve constar do acervo dos factos provados.

Sendo a prestação de realização da obra, típica do contrato de empreitada, uma prestação duradoura e, no tipo de obra aqui em causa, de execução contínua, o abandono da obra, enquanto comportamento de recusa a cumprir, apresenta a especificidade de não consistir numa recusa antecipada, mas sim numa recusa em prosseguir a execução de uma prestação já iniciada. Essa conduta, essencialmente omissiva, mas podendo ser precedida de ações que a anunciam (v.g. retirada de materiais e máquinas), para ser significante de um propósito definitivo de não conclusão do ato de realização da obra, deve ser aparente, categórica e unívoca.

Conforme resulta da matéria de facto provada estamos perante uma empreitada em que se combinou a fixação de um preço global e um pagamento em prestações, cujo valor e prazo era determinado por medida (elaboração de autos de medição da obra realizada).

Lendo os factos provados, é este o filme da história da execução do contrato de empreitada que as partes alegaram e se apurou:

- Após um período, iniciado em abril de 2009, em que a Ré suspendeu a execução dos trabalhos devido a atrasos no pagamento das faturas por si emitidas, relativas aos trabalhos constantes dos autos de medição por ela elaborados, na sequência de negociações entre as partes, em maio de 2009, acordaram no seguinte: a Autora emitiu e subscreveu no campo do “aceite” três letras de câmbio do valor global de € 500.000,00, com data de emissão de 11 de maio de 2009 e com vencimento nos dias 11 dos meses de agosto, setembro e outubro de 2009, enquanto a Ré se obrigou, em contrapartida, a reiniciar a obra logo após a receção e desconto dessas letras.

- Estas três letras foram entregues pela Autora à Ré e por esta descontadas, sem que a Ré tenha reiniciado os trabalhos da empreitada.

- A Autora não pagou qualquer uma das três letras nas respetivas datas de vencimento, tendo as mesmas vindo a ser sucessivamente reformadas.

- Era a Ré quem pagava os custos dos descontos e reformas destas letras.

- Em 27 de setembro de 2010, a Ré intentou contra a Autora, um processo de injunção, pedindo a notificação desta no sentido de lhe ser paga a quantia de € 119.474,55 respeitantes a capital (€ 115.564,22), juros de mora (€ 3.910,33) e taxa de justiça (€ 76,50), tendo como causa de pedir o contrato de empreitada em causa na presente ação, alegando a realização de trabalhos faturados e não pagos, pagamento de encargos com a movimentação de letras de câmbio aceites pela Autora e custos de imobilização do estaleiro com recursos humanos e equipamentos afetos à obra.

- Nesta ação foi proferida decisão, já transitada em julgado, por acórdão pelo Tribunal da Relação......., de 22 de janeiro de 2015 (já após a propositura da presente ação), que condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 61.464,16, acrescida de juros de mora, relativa às despesas que suportou com a movimentação das letras de câmbio, e a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, referente ao preço dos trabalhos que, dos que constam do 7.º auto de medição se venha a apurar terem sido executados, até ao limite de € 49.654,99 (quantia essa à qual deverá ser deduzida, após liquidação, a importância de € 15.041,93 já paga pela aqui Autora), acrescida de juros de mora.

- A partir de maio de 2011, a Autora deixou de pagar o valor das letras de reforma, tendo esse pagamento passado a ser assegurado pela Ré perante a instituição bancária onde as letras foram descontadas.

- Posteriormente a ter procedido ao desconto das letras aceites pela Autora, em data não apurada, a Ré retirou da obra o equipamento que tinha instalado no local e de que se servia para a respetiva execução

- A Autora em 10.08.2011 requereu à Câmara Municipal .… a alteração do alvará de loteamento, passando a prever para o local a construção de um hotel, com a demolição de parte do existente e a criação de um novo volume com dois pisos.

- Com data de 19 de fevereiro de 2014, a Autora remeteu à Ré duas notas de débito no valor de € 249.496,60 e de € 164.232,68, que dizia respeitarem a trabalhos faturados mas não executados e a materiais furtados da obra, que esta devolveu.

- Nesta data, as partes tinham em curso a execução de uma outra empreitada, obra situada na cidade de …, denominada …..

- Em 22.04.2014. a Autora instaurou a presente ação.

Da narrativa acima exposta resulta que, após a Ré ter suspendido a execução da obra, devido à existência de atrasos da Autora no pagamento das prestações do preço, calculadas através dos autos de medição elaborados pela Ré, para solucionar esta crise contratual, as partes, em Maio de 2009, acordaram que a Autora emitiria e aceitaria três letras de câmbio no valor global de € 500.000,00, com data de emissão de 11 de maio de 2009 e com vencimento nos dias 11 dos meses de agosto, setembro e outubro de 2009, para liquidação das faturas relativas à obra já realizada (datio pro solvendo), obrigando-se a Ré, em contrapartida, a reiniciar a obra logo após a receção e desconto das letras.

Estamos perante uma transação modificativa (artigo 1248.º, do Código Civil), que visou eliminar um litígio, recompondo a relação contratual de empreitada em crise, ocorrendo um fenómeno de substituição-modificação [3].

Se é verdade que a Autora emitiu, aceitou e entregou as três letras de câmbio acordadas, as quais foram descontadas pela Ré, esta última não cumpriu o compromisso assumido de reiniciar os trabalhos de execução da obra contratada, logo após a receção e desconto das letras, entrando, por isso, em mora no cumprimento da prestação a que se obrigou.

Mas a Autora também não pagou o valor total das letras nas datas do seu vencimento (agosto, setembro e outubro de 2009), iniciando uma sucessão de reformas parciais daquelas letras de câmbio, sendo a Ré quem suportava as despesas com os descontos das letras, os juros e comissões das reformas bancárias e imposto de selo. Com esta conduta, a Autora também incorreu em incumprimento da obrigação assumida, uma vez que, tendo a emissão e aceite das letras como objetivo permitir à Ré, o seu desconto, de modo a obter a satisfação das prestações relativas ao preço da obra, aquele acordo pressupunha, necessariamente, que a Autora assumisse todas as obrigações relativas à emissão e aceite das letras, incluindo o pagamento do seu valor, uma vez que era ela a devedora do preço da empreitada.

Note-se que, atenta a descrição constante da matéria de facto provada, não estamos perante um incumprimento unilateral, justificativo de uma subsequente recusa de cumprimento pela contraparte, por invocação da exceptio, mas sim na presença de uma verdadeira hipótese de incumprimento bilateral da transação, com reflexo no contrato de empreitada. Na verdade, tendo a transação visado “salvar” a execução do contrato de empreitada, o seu incumprimento, tem como consequência, o incumprimento de ambas as obrigações do contrato de empreitada – realização da obra e pagamento do preço.

Esta situação de incumprimento recíproco manteve-se inalterada, tendo a Ré, em 27 de setembro de 2010, intentado contra a Autora, um processo de injunção, pedindo a notificação desta no sentido de lhe ser paga uma quantia relativa a trabalhos faturados, aos encargos pagos com a movimentação de letras de câmbio aceites pela Autora e aos custos de imobilização do estaleiro com recursos humanos e equipamentos afetos à obra. E, a partir de Maio de 2011, a Autora deixou sequer de pagar o valor das letras de reforma, tendo esse pagamento passado também a ser assegurado pela Ré, perante a instituição bancária onde as letras foram descontadas.

O prolongado incumprimento bilateral teve como consequência um desinteresse comum na conclusão da execução do contrato de empreitada, evidenciado na retirada pela Ré do equipamento que tinha instalado no local de realização da obra e de que se servia para a respetiva execução, e na apresentação pela Autora de um requerimento na Câmara Municipal .…, pedindo a alteração do alvará de loteamento da obra, passando a prever para o local a construção de um hotel, com a demolição de parte do existente a criação de um novo volume com dois pisos. Esse desinteresse manifesta-se também na posição assumida pelas partes nos litígios judiciais que as têm oposto, em que nenhuma delas reclama a execução futura do contrato de empreitada, pressupondo as suas posições processuais, unanimemente, a cessação da relação contratual, apenas discutindo os termos da sua liquidação.

Como se refere na sentença da primeira instância, analisando o comportamento das partes, na descrição da matéria de facto provada: tudo isto se passa entre as partes sem que se tenha demonstrado a existência de qualquer comunicação escrita, reunião ou outro tipo de acerto ou encontro, de que resulte a tomada de posição sobre o desfecho do contrato ou o imputar de responsabilidades. Decorre deste quadro factual que o programa contratual interrompeu-se e não obstante a promessa de prossecução, não mais foi reatado, sem que qualquer das partes manifestasse verdadeiro interesse no seu reatamento.

Esta situação de incumprimento recíproco da solução acordada pelas partes, em Maio de 2009, para ultrapassarem a crise contratual na altura verificada, conjugada com comportamentos  concludentes, reveladores de uma perda de interesse mútuo na continuação da execução do contrato de empreitada, sendo essa perda de interesse objetivada pelo desinteresse de ambos os sujeitos dessa relação jurídica, consolidado pelo tempo decorrido, resulta num incumprimento definitivo do contrato, imputável a ambas as partes.

Assim, se os factos provados, não contêm uma descrição suficiente para caraterizar, um abandono da obra, por parte da Ré, e/ou uma desistência tácita (artigo 1229.º do Código Civil), por parte da Autora, no mínimo, revelam um incumprimento das respetivas obrigações, causador de uma perda de interesse no seu cumprimento, que traduz uma situação de incumprimento definitivo do contrato.

Não existindo, no presente caso, dados fácticos que nos permitam atribuir graus diferentes de imputabilidade no incumprimento, deve presumir-se, como sucede em lugares paralelos de conculpabilidade (v.g. artigo 497.º, n.º 2, do Código Civil), uma culpa igual [4].

A impossibilidade de cumprimento das obrigações de um contrato bilateral, por causas imputáveis a ambos os contraentes, por não ter uma previsão específica na lei, tem sido objeto de atenção por parte  doutrina [5], e da jurisprudência [6], sendo certo que estas situações tem sido abordadas, sobretudo, a propósito de casos de incumprimento bilateral de contratos-promessa.

Relativamente ao destino do contrato, entendemos que deve considerar-se que o mesmo se extinguiu [7], adotando-se a mesma solução que está prevista para as situações de impossibilidade de cumprimento de uma obrigação por causa não imputável a qualquer das partes (artigo 790.º, n.º 1, do Código Civil). Nestas situações, em que as partes já revelaram o seu desinteresse pelo cumprimento do contrato, não se justifica que a vigência deste fique dependente de um pedido de resolução deduzido por qualquer um dos contraentes, devendo entender-se que ele se extinguiu, com o seu incumprimento definitivo. As imputações em igual grau, no incumprimento do contrato, anulam-se, equivalendo a uma situação de falta de imputação a qualquer das partes da impossibilidade de cumprimento do contrato. O contrato cessa por um duplo comportamento volitivo concludente [8].

No que toca à eventual existência de indemnizações pelos prejuízos resultantes do incumprimento mútuo do contrato, deve aplicar-se a doutrina do artigo 570.º do Código Civil [9], que permite que o julgador, atenta a gravidade das culpas e as consequências que delas resultaram, atribua uma indemnização, reduzida ou não, pelos prejuízos que resultaram do incumprimento recíproco, ou exclua a existência de qualquer obrigação de indemnização.

O disposto neste artigo apesar de se encontrar pensado para as situações de responsabilidade extracontratual, encontra-se colocado no Código Civil na secção que contém as normas que especialmente regem as obrigações de indemnização, independentemente do tipo de responsabilidade que origina esse tipo de obrigação [10], pelo que, apesar da sua inaptidão natural para regular as situações de responsabilidade contratual [11], deve a solução nele adotada aplicar-se, com as necessárias adaptações, aos casos de incumprimento definitivo das obrigações contratuais, imputável a ambas as partes [12].

Não se atribuindo diferentes graus de imputabilidade, em situações de incumprimento bilateral de um contrato, deve, tendencialmente, excluir-se a existência de qualquer obrigação indemnizatória [13], pelos prejuízos resultantes do incumprimento do contrato. No presente caso, essa tendência deve ser confirmada, face ao desinteresse mútuo manifestado, relativamente ao prosseguimento da execução da obra contratada e à inexistência de quaisquer outros elementos justificativos da atribuição de uma indemnização a qualquer dos contraentes.

Conclui-se, pois, do raciocínio exposto, que o contrato de empreitada celebrado entre a Autora e Ré, se extinguiu, por incumprimento definitivo, imputável a ambas as partes, não havendo lugar ao pagamento de qualquer indemnização por essa extinção.

Encontrando-se o contrato extinto, já não há lugar à sua resolução, assim como, sendo essa extinção também imputável à Autora, não tem esta direito a ser indemnizada dos prejuízos que resultaram do não cumprimento integral do contrato de empreitada por parte da Ré.

Do mesmo modo, tendo a extinção do contrato resultado, automaticamente, do incumprimento definitivo do contrato, imputável a ambas as partes, e não da expressão de uma vontade resolutiva ou de desistência por parte da Autora, também não é possível que a Ré seja titular de um direito de indemnização por um ato de desvinculação unilateral da Autora.

Por estas razões, devem os recursos da Autora e da Ré improcederem, mantendo-se o decidido pelas instâncias, embora com diferente fundamentação.

2. Da reforma da condenação em custas

No recurso para o Tribunal da Relação a Autora requereu que fosse dispensada do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do n.º 7, do artigo 6.º, do Regulamento das Custas Judiciais.

O acórdão recorrido, atendeu parcialmente a este pedido, tendo dispensado o pagamento de 20% do remanescente da taxa de justiça.

A Autora, defende que deve ser determinada a dispensa total do pagamento desse remanescente, sob pena do valor das custas se revelar excessivo e desproporcionado, não existindo sinalagmaticidade entre esse valor e o serviço prestado pelo sistema de justiça, resultando na cobrança ilegítima de um imposto.

O Regulamento das Custas Processuais, no artigo 3.º, n.º 1, dispõe que as custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte” constando do artigo 6º que a taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada em função do valor e complexidade da causa de acordo com o presente Regulamento, aplicando-se, na falta de disposição especial, os valores constantes da tabela I-A, que faz parte integrante do presente Regulamento.

O n.º 7, desse mesmo artigo 6.º, prevê que nas causas de valor superior a (euro) 275.000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento.

Este dispositivo visa, por um lado, evitar que nas ações de maior valor, a exigência de um adiantamento de valores elevados, inibitórios do acesso dos cidadãos aos tribunais e, por outro lado, que, a final, sejam cobradas custas com um valor manifestamente excessivo, que resultem numa violação do direito constitucional ao acesso à justiça (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição). 

Assim, nas ações cujo valor é superior a 275.000,00 €, os sujeitos processuais adiantarão apenas o valor correspondente a uma ação de valor entre 250.000,00 € e 275.000,00 €, e o juiz, a final, poderá dispensar o pagamento do remanescente, atendendo à complexidade da causa e à conduta processual das partes, considerando, além do mais, os critérios constantes do n.º 7, do artigo 530.º do Código de Processo Civil.

O valor da presente ação é de € 3.055.102,69, correspondente à soma dos valores do pedido formulado pela Autora e do pedido reconvencional deduzido pela Ré.

A esse valor, segundo a Tabela I-A do Regulamento das Custas Processuais corresponde uma taxa de justiça final de 349 (16 + 333) unidades de conta, tendo a unidade de conta sido fixada para o ano de 2020 em 102,00 €.

Tendo em consideração a prolixidade dos articulados e das alegações de recurso, a abundância de meios de prova documentais, a dificuldade de análise e de avaliação dos meios de prova oferecidos, a interposição de vários recursos para o Tribunal da Relação que implicaram a prolação de três acórdãos, a interposição de dois recursos para o Supremo Tribunal de Justiça, a necessidade de análise de diversas questões processuais e a dificuldade da questão jurídica a solucionar, a redução do remanescente da taxa de justiça (333 unidades de conta) apenas numa percentagem de 20%, afigura-se suficiente para garantir que o valor da taxa de justiça não seja de tal modo excessivo que possa funcionar como um facto inibitório do acesso aos tribunais.

Há que ter presente que os sujeitos processuais sobre os quais irá recair a obrigação de pagamento das custas, designadamente a Autora, são sociedades comerciais e que, na presente ação, estava em discussão a execução de um contrato de empreitada em que a Autora havia adjudicado à Ré a conclusão da construção de vários edifícios, pelo preço de € 3.750.000,00 acrescido de IVA, o que revela uma capacidade económica idónea a suportar, sem sacrifícios incomportáveis, o pagamento das custas desta ação.

Por esta razão, não deve ser reformada a decisão da dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça proferida no acórdão recorrido.

                                               *

Decisão

Pelo exposto, julgam-se improcedentes os recursos de revista interpostos pela Autora e pela Ré e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

                                               *

Custas dos recursos pelos respetivos Recorrentes.

                                               *

Notifique.

                                               *

Nos termos do artigo 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A, de 13 de março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/20, de 1 de maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este coletivo.

Lisboa, 14 de janeiro de 2021

João Cura Mariano (Relator)

Abrantes Geraldes

Tomé Gomes

_________

[1] V.g. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.12.2008, Proc. 08A965 (Rel. Nuno Cameira), de 12.03.2009, Proc. 09A0362 (Rel. Urbano Dias), de 9.12.2010, Proc. 3803/06 (Rel. Álvaro Rodrigues), e de 30.05.2019, Proc. 626/16 (Rel. Bernardo Domingos).
[2] BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Wolters Kluwer, sob a marca Coimbra Editora, 2011, pág. 263, e A Hipótese da Declaração (Lato Sensu) Antecipada de Incumprimento por Parte do Devedor, em “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria”, Coimbra Editora, 2003, pág. 3
[3] TIAGO SOARES DA FONSECA, A Transação Civil na Litigância Extrajudicial e Judicial, Gestlegal, 2018, pág. 475.
[4] BRANDÃO PROENÇA, Do Incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral. A Dualidade Execução Específica-Resolução, Separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra – “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia”, 1984, pág. 103.
   Seguiram igual critério os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.10.2002, Proc. 02A1160 (Rel. Afonso Correia), de 1.04.2008, Proc. 07A4755 (Rel. Nuno Cameira), de 09.09.2008, Proc. 08A1922 (Rel. Alves Velho), de 13.01.2009, Proc. 08A3649 (Rel. Moreira Alves), de 25.11.2010, Proc. 3018/06 (Rel. Gonçalo Silvano), de 11.09.2012, Proc. 3026/05 (Rel. Fonseca Ramos), de 12.09.2017, Proc. 148/14 (Rel. Júlio Gomes) e de 27.11.2018, Proc. 4724/10 (Rel. Graça Amaral).
[5] VAZ SERRA, na R.L.J. n.º 104, anotação ao Acórdão do S.T.J. de 19.12.1969, pág. 8 e seg., e na R.L.J. n.º 110, anotação ao acórdão do S.T.J. de 14 de Maio de 1976, pág. 186, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., Almedina, 16.ª reimp., 2020, pág. 343, nota 1, ABEL PEREIRA DELGADO, Do Contrato-Promessa, Livraria Petrony, 1978, pág. 320-321, BRANDÃO PROENÇA, Do Incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral. A Dualidade Execução Específica-Resolução, cit., pág. 95-104, A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Almedina, 1997, pág. 48-58, e Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., pág. 310-318, CALVÃO DA SILVA, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Separata do vol. XXX do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1987, pág. 292-295, e Sinal e Contrato-Promessa, 12.ª ed., Almedina, 2007, pág. 146-148, ANA PRATA, O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, pág. 718-721 e 801-804, CATARINA MONTEIRO PIRES, Impossibilidade da Prestação, Almedina, 2017, pág. 769-787, e Contratos. Perturbações na Execução, Almedina, 2019, pág. 61-62. É unânime a aplicabilidade da solução prevista no artigo 570.º do Código Civil a esta situação, divergindo os autores sobre se é possível uma resolução do contrato, com este fundamento, por qualquer das partes, ou se ele se extingue automaticamente com o incumprimento definitivo imputável às duas partes.
[6] Os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça citados na nota 4. 
[7] VAZ SERRA, anot. cit., pág. 12, e INOCÊNCIO GALVÃO TELES, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Coimbra Editora, pág. 129, qualificam esta extinção como uma caducidade do contrato.                                  
[8] BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., pág. 312.
[9] Opinião unânime dos autores citados na nota 5.
[10] VAZ SERRA não só propôs intencionalmente essa colocação (Conculpabilidade do prejudicado, B.M.J. n.º 86, pág. 173, nota 73), como, no articulado por ele proposto, concluía com um artigo com a seguinte redação: os critérios dos artigos precedentes são aplicáveis em hipóteses diferentes da de indemnização neles prevista, quando a culpa recíproca de duas ou mais pessoas deva ser apreciada e se verifique a razão de ser dos mesmos critérios.
[11] BRANDÃO PROENÇA, Do Incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral. A Dualidade Execução Específica-Resolução, cit. 101-103, e A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, cit., pág. 52-53.
[12] Relatando as diferentes posições da doutrina alemã sobre o tema perante igual inexistência de um preceito específico, antes e depois das alterações introduzidas em 2002, no BGB, pela lei de Modernização do Direito das Obrigações, CATARINA MONTEIRO PIRES, Impossibilidade da Prestação, cit., pág. 770-785.
    Em Itália, o artigo 1227. do Codice Civile prevê, especificamente, no capítulo dedicado ao Incumprimento das Obrigações, solução semelhante à que consta do artigo 570.º do nosso Código Civil, dispondo: se a negligência do credor tiver contribuído para causar o dano, a indemnização será reduzida de acordo com a gravidade da falta e a extensão das consequências resultantes da mesma (tradução nossa).
[13] CALVÃO DA SILVA, Sinal e Contrato-Promessa, cit., pág. 146-147, assim tendo também decidido os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça referenciados supra, nota 4.