Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3621/19.4T8AVR.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
LESADO
SEGURADORA
RESPONSABILIDADE CIVIL EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Um dos principais propósitos do DL n.º n.º 291/2007, de 21.08, é, em convergência com a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11.05 (que aquele diploma visa transpor), o do ressarcimento completo (ou mais completo possível) do lesado.

II. O Fundo de Garantia Automóvel (FGA) apresenta-se como garante do pagamento desta indemnização, o que encontra a sua justificação naquele propósito do ressarcimento completo do lesado.

III. Entre o regime de indemnização a título de acidente de viação e o regime de indemnização a título de acidente de trabalho existe uma relação de complementaridade, significando, pela negativa, que os dois regimes não devem cumular-se e, pela positiva, que os dois regimes devem completar-se, o que, mais uma vez, é coerente com o (e é mesmo instrumental ao) propósito do ressarcimento completo do lesado.

IV. A norma do artigo 51.º do DL n.º 291/2007 não dita a exclusão da responsabilidade do FGA pela indemnização dos danos segundo as regras dos acidentes de viação mas sim, apenas, uma sua limitação – a limitação aos danos que não possam ser ressarcidos segundo as regras dos acidentes de trabalho mas que ainda devam ser ressarcidos nos termos gerais.

V. O disposto no artigo 51.º do DL n.º 291/2007 é aplicável sempre que se verifiquem os requisitos de que depende a sua aplicabilidade implicando que o lesado não pode reclamar do FGA o montante indemnizatório que pode e deve reclamar da seguradora de acidentes de trabalho ou do respectivo Fundo de Garantia.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. RELATÓRIO

Recorrente: Fundo de Garantia Automóvel

Recorrida: AA

1. AA, mais bem identificada nos autos, intentou acção declarativa de condenação em processo comum contra o Fundo de Garantia Automóvel (doravante: FGA), alegando em resumo que:

No dia ... de ... de 2015, a autora sofreu um acidente de viação.

Não foi possível apurar nem o condutor do veículo, nem o veículo de embate por a colisão ter ocorrido com fuga imediata.

O acidente ficou a dever-se a conduta culposa desse condutor cuja identidade não foi possível apurar.

Por causa do acidente, a autora sofreu diversas lesões e diversos danos.

Conclui pedindo a condenação da ré no pagamento à autora da quantia de 329.153,60 €, valores acrescidos de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

2. Citado o réu, apresentou contestação, invocando a sua ilegitimidade, impugnando a versão do acidente carreada aos autos pela autora e impugnando os danos invocados e o seu valor.

3. Realizada a audiência de discussão e julgamento (em que se ampliou ampliado o pedido, nomeadamente no que respeita a apoio de terceira pessoa de forma diária para o valor de € 184.300,00 em vez do pedido de € 34.560,00), foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Por todo o exposto.

Julgo parcialmente procedente por provada a presente acção, condenando-se o Réu Fundo de Garantia Automóvel a pagar à Autora:

- A quantia de 825,00 € (oitocentos e vinte e cinco euros) a título de danos patrimoniais - danos da bicicleta e roupas-;

- A quantia de 25.000 € (vinte e cinco mil euros) referente à perda de capacidade económica fora da actividade profissional;

Quantias acrescidas dos juros legais de 4% contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.

- A quantia de 60.000,00 € (sessenta mil euros), a título de danos não patrimoniais, quantia acrescidas dos juros legais de 4%, contados desde a prolação da presente decisão até efectivo e integral pagamento”.

4. Tanto o réu FGA como a autora AA interpuseram recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação do Porto proferido Acórdão com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto delibera-se:

 - Recurso da autora

Julgar parcialmente procedente o recurso, ou seja, procedente quanto à indemnização de 250.000 € por danos patrimoniais complementares, referente a apoio de terceira pessoa e quanto aos juros de mora, a contar do momento da citação e improcedente quanto ao demais.

- Recurso do FGA

Julgar o recurso totalmente improcedente.

Custas pelos recorrentes nas respectivas apelações, sendo total o decaimento do FGA e na proporção do vencimento a da autora.

5. Inconformado, vem o réu FGA interpor recurso de revista, concluindo assim:

1. A indemnização fixada no pagamento da quantia de 250.000,00 €, a título de danos patrimoniais complementares, referente a apoio de terceira pessoa, não deve ser atribuída;

2. O artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, limita o âmbito de aplicação da responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel, aqui Recorrente;

3. A intervenção do Recorrente circunscreve-se aos casos em que a mesma é estritamente necessária para acautelar os direitos da vítima, não se justificando a sua tutela quando os direitos da vítima estejam acautelados por outra via;

4. Quando o lesado sofre um acidente coberto pelo seguro de acidentes de trabalho, deve ser a seguradora do acidente de trabalho a responder pela reparação dos danos do acidente;

5. Sendo o dano abrangido pela lei de reparação de acidentes de trabalho, Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro, não cabe no âmbito das normas legais dos artigos 49.º e 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21 de agosto;

6. A responsabilidade do Recorrente apenas se verificará, na circunstância de ninguém assumir a mesma, o que não sucedeu no caso sub judice;

7. Quando um regime de seguro obrigatório dá cobertura aos direitos do lesado, torna-se desnecessária a intervenção do Recorrente;

8. Ao não os interpretar da forma acima assinalada, a decisão recorrida violou o preceituado nos artigos 49.º e 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21 de agosto”.

6. A autora AA contra-alegou, sustentando, em conclusão:

1. O presente recurso impende sobre o douto acórdão que condenou o FGA a liquidar, à aqui recorrida, a quantia de 250.000,00 € (duzentos e cinquenta mil euros) referente a apoio de terceira pessoa,

2. Acórdão, que por ter sido doutamente e de forma exemplar e legal decidido, não pode merecer outra atitude que não seja a total e completa concordância da ora recorrida.

3. Erradamente, estamos em crer, entende a recorrente que ao proferir tal acórdão, encontra-se a ser violado o disposto no art. 51º do Decreto-Lei 291/2007 de 21 de agosto.

4. Entende, mal, a recorrente FGA que a responsabilidade possui a limitação expressa no art. art. 51º nº 1 da lei que cria tal instituto, porquanto entende que sendo simultaneamente acidente de trabalho e de viação, o Fundo só responde por danos materiais e, relativamente ao dano corporal, pelos danos não patrimoniais e os danos patrimoniais não abrangidos pela lei da reparação daqueles acidentes.

5. Entendendo, igualmente, que relativamente à indemnização relativa à necessidade de ajuda de terceira pessoa não é o Fundo de Garantia Automóvel responsável pois que este é um dano abrangido pela lei da reparação de acidentes de trabalho, nos termos do art. 47º h) da Lei 98/2009 de 04 de setembro, não cabendo pois no âmbito das normas dos artigos 49º e 51º do Decreto-Lei 291/2007 de 21 de agosto.

6. O entendimento, aliás já sufragado na jurisprudência nacional, e comunitária, é exatamente no sentido proferido pelo acórdão, e não o que tenta, a ora recorrente, fazer passar, e como tal nenhuma razão assiste à recorrente,

7. Até porque, como é do conhecimento geral, a indemnização que a mesma auferirá numa situação de acidente de viação é superior à que auferirá no caso de acidente de trabalho, aliás como tem entendido a jurisprudência.

8. Posto isto, entende a recorrida que a norma apenas exclui a responsabilidade do Fundo no tocante ao valor da indemnização que a seguradora de acidentes de trabalho tiver de pagar ao autor mas não em relação à indemnização que, apurada segundo as regras gerais do direito de indemnização, exceder o montante proporcionado para os mesmos danos pela lei dos acidentes de trabalho.

9. Aliás, nesse sentido foi proferido o douto acórdão, que ora é colocado em crise por parte da recorrente.

10. Não nos podemos, jamais, esquecer que tendo o Fundo de Garantia Automóvel a finalidade de assegurar que o lesado obtém a reparação dos danos materiais e pessoais que sofreu num acidente de viação, não parece que se adeque a essa finalidade qualquer solução que a propósito da chamada de outro responsável a reparar danos sofridos pelo lesado conduza ao resultado prático de proporcionar ao lesado uma indemnização inferior àquela que receberia se esse responsável não interviesse.

11. Até porque, a ser dessa forma, encontrar-se-ia a violar o princípio da igualdade e do tratamento mais favorável, como aliás já determinou a jurisprudência nacional e comunitária.

12. Repare-se que essa é afinal de contas a solução prevista nos n.os 2 e 3 do artigo 51.º para os casos em que o lesado beneficia da cobertura de um contrato de seguro automóvel de danos próprios.

13. Pelo que, não faria qualquer sentido, e roçaria a ilegalidade, atrever-nos-emos, porquanto violadora do princípio da igualdade e do tratamento mais favorável, qualquer interpretação do art. 51º que divergisse dessa posição.

14. Sendo de tal forma, que no domínio dos próprios acidentes de trabalho no artigo 17.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, se viu sufragada esta nossa posição, quando refere que quando o acidente for causado por terceiro, se o sinistrado receber de terceiro indemnização superior à devida pelo empregador, este considera-se desonerado da respetiva obrigação e tem direito a ser reembolsado das quantias que tiver pago ou despendido, mas se for arbitrada ao sinistrado indemnização inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente, a exclusão da responsabilidade é limitada àquele montante.

15. Tudo isto para se dizer, que a existência de outro responsável pela reparação dos danos, não exclui a responsabilidade da entidade patronal ou da respetiva seguradora, apenas a limita.

16. Posto isto, não se vislumbra, nem se entende, qualquer fundamento para tratar diferentemente as situações em que a responsabilidade do Fundo concorre com a da seguradora de acidentes de trabalho ou o Fundo de Garantia de Acidentes de Trabalho ou concorre com a seguradora de acidentes pessoais ou a segurança social.

17. E nem sequer na génese da criação do FGA, poderemos entender ou vislumbrar, até porque que a teleologia da existência do Fundo de Garantia Automóvel é, perante um acidente de viação, assegurar a indemnização até ao limite do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

18. Por conseguinte, o artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 pode e deve ser interpretado não como excluindo à partida a responsabilidade do Fundo pelo ressarcimento dos danos que serão indemnizados nos termos da lei dos acidentes de trabalho, mas apenas como limitando a sua responsabilidade àquilo que exceder o valor da indemnização laboral, o que foi, de forma clara, feito pelo Tribunal a quo, e vertida no seu douto acórdão!

19. Aliás, a expressão “sem prejuízo do disposto no artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2007”, significa sem prejuízo de a responsabilidade do Fundo estar limitada por esse preceito, sem prejuízo de em qualquer circunstância o lesado não poder reclamar do Fundo o montante indemnizatório que pode e deve reclamar da seguradora de acidentes de trabalho ou do respetivo Fundo de Garantia.

20. Aliás, parece ter sido essa a posição sustentada pelo Fundo de Garantia Automóvel, aqui recorrido, e acolhida pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 09.02.2012, proferido no processo 1082/01-E1.S1, relatado por Abrantes Geraldes, in www.dgsi.pt, na medida em que ali se afirma que, invocando o disposto no art. 51º do DL nº 291/07, o Fundo “questionou o facto de não ter sido feita a dedução nos montantes em que foi condenado dos quantitativos que a autora… receberá a título de pensão devida por acidente de trabalho”, tendo o Supremo Tribunal entendido que esse acolhe “o entendimento que defende, no sentido da supletividade da responsabilização do Fundo de Garantia Automóvel relativamente às Seguradoras responsáveis pela reparação de acidentes de trabalho”.

21. Por outro lado, a criação do Fundo de Garantia Automóvel foi uma imposição comunitária, resultante da Diretiva 2009/103/CE, a qual determina, no seu art. 3º que “… Cada Estado-Membro, sem prejuízo do artigo 5º., adota todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro.…”.

22. Pelo que, atento o exposto, tal diretiva terá forçosamente de ser alvo de análise e aplicação nos presentes autos, até porque a não ser assim, estamos em crer que se encontra a ser violada o n.º 4 do artigo 10.º da referida Diretiva, a qual consagra aquilo que podemos designar por princípio do tratamento mais favorável dos sinistrados, como aliás supra se referiu.

23. Segunda esta, caberá a cada Estado-Membro aplicar ao pagamento de indemnizações pelo organismo de garantia as respetivas disposições legislativas, regulamentares e administrativas, sem prejuízo de qualquer outra prática mais favorável às vítimas.

24. Assim, e ao fazer aplicar um mecanismo de pagamento de indemnização pelas diversas entidades envolvidas que envolvesse o afastamento do Fundo sem previamente assegurar que o lesado seria, em qualquer circunstância, integralmente ressarcido dos seus danos, como qualquer outra vítima de um acidente de viação, a legislação nacional consagraria um tratamento menos favorável para o sinistrado que afrontaria a aludida disposição europeia.

25. Refira-se aliás que, igualmente a jurisprudência comunitária no seu Acórdão de 23.01.2014 (Segunda Secção) no processo C-371/12, que tinha por objeto pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Tribunale di Tivoli (Itália), o Tribunal de Justiça da União Europeia, já se pronunciou sobre a compatibilidade com o direito europeu de disposições nacionais que instituem modalidades de cálculo para os acidentes de circulação menos favoráveis às vítimas que as previstas pelo regime comum de responsabilidade civil.

26. Assim, e considerando que no caso nos encontramos perante lesões corporais que não podem ser classificadas como pouco significativas, muito pelo contrário,

27. Conjugado que na legislação portuguesa as indemnizações consequentes ao acidente de viação e ao sinistro laboral estão assentes em critérios distintos e cada uma delas com a sua funcionalidade própria (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.12.2012, no processo nº 40/08.1TBMMV.C1.S1, in www.dgsi.pt),

28. Que para as lesões sofridas pelo autor e respetivas sequelas se antevê que a indemnização calculada segundo as regras gerais de ressarcimento dos danos por acidente de viação será superior à que foi apurada segundo das regras dos acidentes de trabalho,

29. Entendemos que fazendo uma interpretação teleológica dos preceitos nacionais no sentido assinalado, respeitando a unidade do sistema jurídico e a solução da ordem jurídica para as situações análogas citadas e,

30. Por fim, obedecendo ao princípio da interpretação conforme ao Direito da União Europeia, se deve concluir que nos casos em que o acidente é em simultâneo de viação e de trabalho, o FGA continua a responder perante o autor pela indemnização dos danos que de outra forma sempre teria de indemnizar nos termos do artigo 49.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, com a única diferença de que no tocante aos danos que, de entre aqueles, também são indemnizáveis pela seguradora de acidentes de trabalho, a responsabilidade do Fundo é apenas pela parte da indemnização que exceder o montante apurado segundo as regras dos acidentes de trabalho até perfazer a totalidade da indemnização devida ao autor segundo as regras gerais.

31. Aliás, a interpretação aqui feita respeita a Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de Setembro de 2009.

32. Atento o exposto, bem andou o tribunal a quo ao determinar a condenação da recorrente, FGA, no montante de €250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros),

33. Porquanto, se a recorrente tivesse sido ressarcida por montante derivado do acidente de viação, facilmente obteria um valor bem superior ao que no acidente de trabalho lhe foi arbitrado.

34. Pelo que, pelos fundamentos supra expostos, conjugado com o primado do tratamento mais favorável, reconhecido no direito constitucional e comunitário, entende a recorrida que deverá a recorrente condenada no pagamento do montante de €250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros).

35. A não ser assim, entende a ora recorrente que se encontra a ser violada os princípios constitucionais e comunitárias, com as legais consequências que daí advém.

36. Aliás, nesse sentido, veja-se o Ac. TRP, processo Nº 3541/10.8TBGDM.P1, o qual, prescreve que: “…Nos termos do artigo 51.º, n.º 1, do DL n.º º 291/2007, de 21.08, que aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, nos acidentes que são em simultâneo de trabalho e de viação, o FGA só responde por danos materiais e, relativamente ao dano corporal, pelos danos não patrimoniais e os danos patrimoniais não abrangidos pela lei da reparação daqueles acidentes. III - Esta norma deve ser interpretada não como excluindo em qualquer caso a responsabilidade do FGA pela indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais, resultantes de lesões corporais, abrangidos pela lei dos acidentes de trabalho, mas antes como delimitando essa responsabilidade do FGA ao montante da indemnização por esses danos que, calculada segundo as regras gerais, exceda aquele que o lesado obterá ao abrigo da lei dos acidentes de trabalho e calculada segundos os critérios desta. IV - Essa interpretação é conforme à Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16.09.2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil automóvel, onde se reconhece aos Estados-Membros o direito de atribuir à intervenção do FGA um carácter subsidiário, isto é, uma intervenção que apenas tem lugar se e quando o lesado não puder obter de outra entidade, a que tenha igual facilidade de acesso, a indemnização que, não fora isso, seria assegurada pelo Fundo…”.

37. Sendo que “V - Não é conforme ao direito europeu, nem conforme aos princípios que se observam no direito nacional, designadamente nos nºs. 2 e 3 do artigo 51.º do DL 291/2007, no artigo 17.º da Lei 98/2009, e no artigo 9.º da Portaria n.º 377/2008, uma interpretação segundo a qual sendo o acidente imputável a um terceiro estranho à relação laboral, mesmo no caso de lesões corporais significativas, o lesado apenas pode aspirar à indemnização calculada segundo as regras dos acidentes de trabalho a cargo da respetiva seguradora, e não pode reclamar do FGA a indemnização, até ao limite do seguro de responsabilidade civil automóvel, calculada segundo as regras gerais e que exceda a que receberá da seguradora de acidentes de trabalho.”

38. Bem andou o tribunal recorrido, quando determinou que a interpretação sufragada pela ora recorrente, não é pois compatível com o direito dos Estados-Membros,

39. Na verdade, uma disposição nacional que conduza ao resultado prático de excluir in totum a responsabilidade do Fundo sem estar assegurado o direito do lesado de obter o ressarcimento dos danos que ao Fundo caberia indemnizar e pelos montantes que este indemnizaria se só estivesse em causa a sua responsabilidade, pelo que se violaria o disposto no n.º 4 do artigo 14.º da Diretiva em causa, que consagra aquilo que podemos designar por princípio do tratamento mais favorável dos sinistrados,

40. Isto porque ao adotar um mecanismo de pagamento de indemnização pelas diversas entidades envolvidas que envolvesse o afastamento do Fundo sem previamente assegurar que o lesado seria, em qualquer circunstância, integralmente ressarcido dos seus danos, como qualquer outra vítima de um acidente de viação, a legislação nacional consagraria um tratamento menos favorável para o sinistrado que afrontaria a aludida disposição europeia.

41. Assim, a interpretação vertida, doutamente, no acórdão recorrido respeita a Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de Setembro de 2009.

42. Aliás, o Ac. STJ, Proc. Nº 3100/11.8TBSTS.P1.S1, afirmou expressamente que: “… O FGA constitui um mecanismo de garantia de reparação específico dos acidentes de viação cujo limite último é o capital do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e não os limites indemnizatórios da lei de acidentes de trabalho…”, dito isto, e a ser como pretende a recorrente, dúvidas não nos restam de que se encontra a ser violado o princípio do tratamento mais favorável, violação incompreensível, na situação em causa.

43. Pois, “…Não se pode tratar de forma diferente as situações em que a responsabilidade do Fundo concorre com a da seguradora de acidentes de trabalho ou o Fundo de Garantia de Acidentes de Trabalho ou concorre com a seguradora de acidentes pessoais ou a segurança social, sob pena de se subverter a própria finalidade que presidiu à criação do Fundo de Garantia Automóvel que é a de, perante um acidente de viação, assegurar a indemnização até ao limite do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, só se relegando essa responsabilidade se a mesma for assegurada concretamente por outra entidade, sobretudo quando o responsável originário pelos danos não tem qualquer ligação com a relação de trabalho mas apenas precisamente com a circulação automóvel…”.

44. Sendo que neste caso, como aliás bem fez o acórdão recorrido, “…Os regimes de indemnização por acidente de viação (regras gerais) e de indemnização por acidentes de trabalho (regras específicas) são complementares entre si e o lesado pode optar pela indemnização que lhe for mais favorável, só não podendo cumular ambas as indemnizações pelo mesmo dano. Nesta confluência de razões, o artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 terá de ser percebido como não excluindo a priori a responsabilidade do Fundo pela indemnização dos danos segundo as regras dos acidentes de viação, visando, tão somente, limitá-la àquilo que exceder o valor da indemnização laboral...”

45. E conforme determinou o acórdão doutamente proferido, tal interpretação decorre desde logo da opção legislativa de que nas situações em que se verificam as duas fontes da obrigação de indemnizar (civil e laboral), a responsabilidade infortunística laboral assume carácter subsidiário relativamente à responsabilidade civil extracontratual, cabendo a responsabilidade primacial e definitiva ao responsável civil

46. Assim, bem andou o tribunal a quo ao determinar a condenação da recorrente no pagamento da quantia de €250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), porquanto se a mesma tivesse sido ressarcida por montante derivado do acidente de viação, facilmente obteria um valor bem superior ao que no acidente de trabalho lhe foi arbitrado.

47. A não ser assim, violar-se-ia os princípios fundamentais, nomeadamente o tratamento mais favorável, bem como o princípio da igualdade, os quais, relembramos, se encontram devidamente consagrados na CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA!”.

7. O Exmo. Senhor Desembargador do Tribunal da Relação do Porto proferiu o seguinte despacho:

Porque legal, tempestivo e haver legitimidade, admite-se o recurso de revista, a subir imediatamente, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo”.


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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se, ao condenar o FGS na obrigação de indemnização no montante de 250.000,00 €, a título de danos patrimoniais complementares, referente a apoio de terceira pessoa, o Tribunal recorrido incorreu em violação da lei, designadamente do disposto nos artigos 49.º e 51.º do DL n.º 291/2007, de 21.08.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1 - A ora Autora é proprietária e condutora habitual de um veículo velocípede com motor, sem matrícula. de marca/modelo Vortrex, de cor vermelha, do ano de 2012, Portugal, com o N.º de Chassis ...13.

2 - No dia ... de ... de 2015, pelas 07:30 horas, ocorreu um acidente rodoviário na Rua ... da freguesia ..., concelho e distrito ..., em que foi interveniente o veículo melhor identificado em 1. conduzido pela A. e um outro veículo e condutor que não foi possível identificar à data do sinistro ou a posteriori.

3 - Estava a amanhecer, o tempo estava soalheiro, limpo; o piso seco e em bom estado para a circulação automóvel.

4 - O local é composto por duas faixas de trânsito, sem separador central, uma para cada sentido de marcha.

5 - O limite de velocidade máxima é de 50 km/h.

6 - A A. na data e hora e demais circunstâncias descritas em 1. conduzia o velocípede no sentido de Aveiro para Aradas, em direcção ao seu local de trabalho.

7 - No mesmo sentido e faixa seguia o outro veículo interveniente no acidente.

8 - Nessa altura a A. é abalroada pela retaguarda, no local correspondente ao n.º ...69 da Rua ..., em Aradas.

9 - Como resultado do embate traseiro no velocípede em que seguia a A., foi a mesma projectada pela acção da força do embate - para fora do velocípede de duas rodas em que seguia, passando em “voo” até o corpo se prostrar no passeio que ladeia o piso estradal alguns metros adiante do local exato do embate.

10 - O velocípede em que seguia ficou tombado para a lateral, em cima do passeio para peões.

11. O veículo que embateu no velocípede onde seguia a A. encetou manobra de fuga imediata do local do sinistro seguindo em sentido a Aveiro, não tendo sido possível identificar nem o veículo nem o seu condutor.

12 - A A. foi conduzida pelo INEM para o Centro Hospitalar ..., ... e de imediato transferida para o ..., passando pelo Centro Hospitalar e Universitário ... e o centro de recuperação denominado ... entre ulteriores unidades de saúde, ficando a A. em situação de internamento durante quatro meses, com diversas cirurgias e tratamento em seio hospitalar.

13 - No momento em que foi observada no serviço de urgência a autora apresentava as seguintes lesões:

- esfacelo grave da perna esquerda com desluvamento e exposição de tíbia e peróneo; com fracturas várias - cominutiva, da apófises espinhosas de D7-D9, fracturas também de arcos costais à direita e esquerda e fractura da escápula direita. Pneumotórax bilateral mais volumoso à esqueda e fez derrame bilateral (e ulterior drenagem).

14 - Sofreu 21 dias de internamento em CH no Hospital ..., no ..., 21 dias de internamento em HUUC, em ..., 7 dias + 12 dias de internamento em Hospital de ... e de 21-10-2015 a 19-12-2015 (59 dias) de internamento no ..., ....

15 - Foi sujeita a diversas intervenções cirúrgicas - cirurgia à coluna a 21-08-2015, cirurgia plástica em 16-09-2015, cirurgia em 18-09-2015, cirurgia ortopédica em 26-04-2016, extração de fixadores externos em 28-07-2016.

16 - Durante os diversos internamentos sofreu de infeção respiratória, teve de ser sujeita a terapia da fala, não fazia levante, não contraia esfíncteres

17 - Apresenta lentidão psicomotora, diminuição de tolerância ao esforço em actividades que requeira uso de ombro com o qual não faz movimentos; diminuição de destreza.

18 - Foi-lhe diagnosticada alteração de humor e alterações de capacidade cognitiva, apresentando dificuldade de atenção e concentração bem como esquecimentos.

19 - Apresenta fenómenos dolorosos na coluna e lombar, no joelho, perna e tornozelo, região occipital, cefaleias; perda de acção em ambas as mãos.

20 - Apresenta alteração de ritmo cardíaco e qualidade do sono.

21 - Tem vestígios de cicatriciais de tonalidade rosada com quadro doloroso no crânio, ao fazer higiene e pentear o cabelo.

22 - Tem uma cicatriz no pescoço com dimensão de 7cm por 4 cm; uma cicatriz cirúrgica com 25 cm, duas cicatrizes no tórax com 2 cm de aplicação de drenos.

23 - Apresenta diminuição franca de massa muscular nos 2 membros superiores e disfomia grave no membro inferior direito com limitação de mobilidade.

24 - Por conta do que fica descrito a demandante AA teve um período de 574 dias de Défice Funcional Temporário Total (entre 20/08/2015 e 15/03/2017), correspondente aos períodos de internamento e/ou de repouso absoluto.

25 - Teve um período de repercussão temporária na actividade profissional total de 574 dias.

26 - O quantum doloris foi fixado no grau 5 em sete pontos, sendo considerado neste parâmetro as lesões resultantes, o período de recuperação funcional, o tipo de traumatismo e os tratamentos efectuados.

27 - O dano estético permanente foi fixado em 5 numa escala de 7, considerando que a autora apresenta claudicação da marcha e cicatrizes e precisa de utilizar ajudas técnicas.

28 – A autora ficou com um défice funcional permanente da integridade física de 34 pontos percentuais, atendendo a que o valor global da perda funcional decorrente das sequelas e o facto de estas serem causa de limitações funcionais, com repercussões na independência do examinado, tornando-o dependente de ajudas medicamentosas, técnicas e dependente de terceira pessoa.

29 - As sequelas descritas são impeditivas do exercício da actividade profissional habitual.

30 - A Autora precisará, de modo permanente, de consultas de ortopedia, MFR, psiquiatria e consulta da dor e de medicação associada e receitada no acompanhamento em consulta da dor e da psiquiatria.

31 - Precisará de usar, de forma permanente canadiana e ortótese de conforto em tornozelo/pé esquerdos.

32 - Precisará, a título permanente, de ajuda de terceira pessoa para a totalidade das actividades da vida pessoal e cuidados pessoais, concretizada pelo marido em cerca de 8 horas diárias.

33 - Apresenta-se triste, com pensamento suicida sentindo-se revoltada e incapaz de se adaptar à sua vida diária.

34 - A ora A. deixou de ter qualquer vontade em socializar, em sair de casa, em se movimentar, ou mesmo em ver e falar com colegas de trabalho e vizinhas, de sair para ir à missa, de ir ao café.

35 - O velocípede custou à A. €750,00 (setecentos e cinquenta euros), sendo que à data do sinistro estava em bom estado de conservação, sem danos quer de mecânica e/ou carnagem.

36 - Ficou em situação de perda total.

37 - Toda a roupa que a A. envergava ficou completamente destruída.

38 - A ora A. cultivava as terras propriedade do seu progenitor e dali retirava alimentos para si e para a sua família, sendo que agora fruto do acidente, a mesma tem que adquirir tais bens.

39 - A mesma vendia o excesso que possuía junto das suas vizinhas e colegas de trabalho.

40 - Criava animais, os quais, além de servir para seu consumo próprio e família, eram também cedidos às suas vizinhas e colegas de trabalho,

41 - A Autora sofreu o susto devido à forma como o embate foi perpetrado.

42 - A fuga do condutor do veículo que colidiu com o velocípede da Autora deixou nesta um profundo motivo de desconfiança diários, nunca mais se sentindo em segurança e com confiança para circular, sobretudo sozinha, na via pública, mesmo que sem recurso a meios motorizados.

43 - Teve de recorrer a uma terceira pessoa para efectuar as limpezas e restantes lides domésticas como aspirar, limpar o pó, lavar casas de banho, lavar e estender roupa, passar a ferro, arrumar a casa, etc.

44 - Na altura do acidente a A. exercia as funções de empregada de limpezas na empresa “F..., Lda” e auferia anualmente a retribuição de € 8.864,98.

45 - O acidente descrito deu origem ao processo n.º 2538/16.... que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo do Trabalho ... -Juiz 1e no âmbito do qual lhe foi atribuída uma “IPP de 47,5913.

46 - No âmbito desse processo foi a L..., Companhia de Seguros, SA condenada a pagar à aqui Autora:

- A pensão anual e vitalícia de 5.276,28 € actualizável todos os anos

- 4.663,64 € de subsídio por elevada incapacidade permanente

- 95,00 € por despesas de transporte

Foi ainda a Ré condenada a prestar à A. acompanhamento regular pelas especialidades de Ortopedia, Medicina Física e Reabilitação e Psiquiatria e a facultar-lhe ajudas medicamentosas.

47 - A autora nasceu a .../03/1967.

E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido:

a) A roupa que a Autora trazia vestida valia € 150.00.

b) Para realização das tarefas descritas em 43 a Autora paga a uma senhora seis horas por semana, sendo o valor de cada hora de trabalho de € 4.00.

O DIREITO

A questão a apreciar no presente recurso está circunscrita à obrigação de indemnização por danos patrimoniais complementares sofridos pela lesada e respeitantes à sua necessidade de apoio por terceira pessoa em que o Tribunal recorrido condenou o réu FGA.

Relativamente a este pedido de indemnização, o Tribunal de 1.ª instância entendeu que o FGA não era responsável pois que estes não eram danos abrangidos pelas normas dos artigos 49.º e 51.º do DL n.º 291/2007, de 21.08, cabendo, sim, no âmbito de aplicabilidade da lei da reparação de acidentes de trabalho (Lei n.º 98/2009 de 4.09), adquirindo relevância para o caso, em especial, o disposto no artigo 47.º, al. h) deste diploma.

Afirma-se na sentença:

quanto à indemnização relativa à necessidade de ajuda de terceira pessoa não é o Fundo de Garantia Automóvel responsável pois que este é um dano abrangido pela lei da reparação de acidentes de trabalho, nos termos do art. 47º h) da Lei 98/2009 de 04 de setembro, não cabendo pois no âmbito das normas dos artigos 49º e 51º do Decreto Lei 291/2007 de 21 de agosto”.

Já o Tribunal da Relação do Porto adoptou, como se sabe, entendimento diverso.

Apoiou-se na seguinte fundamentação:

O referido D.L. nº 291/2007 transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio (5ª Directiva sobre o seguro automóvel) e, com o já acontecia no âmbito do D.L. 522/85, impõe a obrigatoriedade de seguro que cubra os riscos decorrentes da circulação de veículos automóveis.

No respectivo preâmbulo consignou-se:” O vector do aumento da protecção dos lesados de acidentes de viação assegurada pelo sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, adiante designado por sistema SORCA, enforma diversas matérias ao nível de ambos os pilares do sistema (o pilar-seguro obrigatório e o pilar-FGA).

Nesta sede releva especialmente a actualização dos capitais mínimos do seguro obrigatório, através de um processo faseado que, atenta a realidade nacional, se pretendeu suave e progressivo, quer seja por um período de transição de cinco anos, quer pelos limites máximos de capital por sinistro.

Relevante é ainda a extensão da cobertura dos danos materiais pelo FGA nos sinistros causados por responsável desconhecido, sendo que ao caso previsto na directiva (ocorrência de danos corporais significativos), o legislador nacional, por analogia de razão (improbabilidade da fraude), veio prever um outro, o do abandono do veículo causador do acidente sem seguro no local do acidente em determinadas circunstâncias.”

Importa realçar que o Fundo de Garantia Automóvel é um fundo público autónomo, gerido pelo Instituto de Seguros de Portugal que tem por finalidade salvaguardar as indemnizações devidas ao s lesados em consequência de acidentes de viação quando, por motivos vários, apesar da obrigatoriedade do seguro, não seja possível que uma seguradora responda pelos danos de responsabilidade civil automóvel, seja porque o responsável é desconhecido e, consequentemente, desconhecida a seguradora, seja porque não foi cumprida a obrigação de celebração do seguro.

A DIRECTIVA 2009/103/CE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 16 de Setembro de 2009 procedeu à codificação das directivas relativas à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, inclusive da aludida Directiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio de 2 005 (que alterou as Directivas 72/1 66/CEE, 84 /5/CEE, 88/3 57/CEE e 90/232/CEE do Conselho e a Directiva 2000/26/CE relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis).

Ora, o Fundo de Garantia Automóvel é um fundo público autónomo, gerido pelo Instituto de Seguros de Portugal que tem por finalidade salvaguardar as indemnizações devidas aos lesados em consequência de acidentes de viação, quando, por variados motivos, apesar da obrigatoriedade do seguro, não seja possível fazer responder pelos danos um a seguradora de responsabilidade civil automóvel.

Como se viu, ele tem a sua génese no direito europeu derivado - as aludidas Directivas - operativas quer seja pela sua transposição para o direito nacional, quer proclamando-se o efeito directo das mesmas.

No considerando 14.º da aludida Directiva codificadora menciona-se ser necessário prever a existência de um organismo que garanta que a vítima não ficará sem indemnização, no caso do veículo causador do sinistro não estar seguro ou não ser identificado.... É, todavia, conveniente, dar aos Estados-Membros a possibilidade de aplicarem certas exclusões limitativas no que respeita à intervenção deste organismo e de prever, no caso de danos materiais causados por um veículo não identificado, devido aos riscos de fraude, que a indemnização por tais danos possa ser limitada ou excluída.”

O próprio artigo 14º nº 1 da Directiva prescreve que: "Cada Estado-Membro deve criar ou autorizar a criação de um organismo que tenha por função reparar, pelo menos dentro dos limites da obrigação de seguro, os danos materiais e pessoais causados por veículos não identificados ou relativamente aos quais não tiver sido satisfeita a obrigação de seguro...”

Respondendo a seguradora de acidentes de trabalho apenas por determinados danos (os definidos na lei dos acidentes de trabalhos), o Fundo tem de continuar responsável pela indemnização dos demais danos, exactamente para garantir que o lesado é ressarcido de todos os danos.

Esta é a mesma lógica para a solução prevista nos n.ºs 2 e 3 do artigo 51.º relativamente aos casos em que o lesado beneficia da cobertura de um contrato de seguro automóvel de danos próprios ou do direito a prestações ao abrigo do sistema de protecção da segurança social, em que a responsabilidade do Fundo está limitada ao valor dos danos que exceda a cobertura de danos próprios ou o montante das prestações asseguradas pela segurança social.

Não se pode tratar de forma diferente as situações em que a responsabilidade do Fundo concorre com a da seguradora de acidentes de trabalho ou o Fundo de Garantia de Acidentes de Trabalho ou concorre com a seguradora de acidentes pessoais ou a segurança socais, sob pena de se subverter a própria finalidade que presidiu à criação do Fundo de Garantia Automóvel que é a de, perante um acidente de viação, assegurar a indemnização até ao limite do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, só se relegando essa responsabilidade se a mesma for assegurada concretamente por outra entidade, sobretudo quando o responsável originário pelos danos não tem qualquer ligação com a relação de trabalho mas apenas precisamente com a circulação automóvel.

A Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, emitida ao abrigo do n.º 5 do artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto veio apenas confirmar todo este regime legal, ao dispor no seu artigo 9.° que:

“1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 51º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, quanto ao Fundo de Garantia Automóvel, se o acidente que originou o direito à indemnização for simultaneamente de viação e de trabalho, o lesado pode optar entre a indemnização a título de acidente de trabalho ou a indemnização devida ao abrigo da responsabilidade civil automóvel, mantendo-se a actual complementaridade entre os dois regimes.

2 - Sendo o lesado indemnizado ao abrigo do regime específico de acidentes de trabalho, as indemnizações que se mostrem devidas a título de perdas salariais ou dano patrimonial futuro são sempre inacumuláveis.

3 - Nos casos em que não haja lugar à indemnização pelos danos previstos na alínea a) do artigo 3 º, é também inacumulável a indemnização por dano biológico com a indemnização por acidente de trabalho.”

Nos termos do artigo 47.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, o Fundo garante a reparação dos danos causados por responsável desconhecido ou isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ou por responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel. E o artigo 48.º estabelece que essa responsabilidade compreende, designadamente, as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal e originados por veículo cujo responsável pela circulação está sujeito ao seguro obrigatório, tenha o veículo e estacionamento habitual em Portugal ou matrícula em países que não tenham serviço nacional de seguros, ou cujo serviço não tenha aderido ao Acordo entre os serviços nacionais de seguros.

Efectivamente, a montante, o artigo 4.º comanda que toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade.

Em conformidade com o artigo 49.º, quando o responsável pelos danos é desconhecido o Fundo de Garantia Automóvel garante, até ao valor do capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a satisfação das indemnizações por: i) danos corporais; ii) danos materiais, quando o Fundo deva satisfazer um a indemnização por danos corporais significativos, considerando-se com o tal a lesão corporal que determine, designadamente, incapacidade temporária absoluta por período igual ou superior a 60 dias.

Os regimes de indemnização por acidente de viação (regras gerais) e de indemnização por acidentes de trabalho (regras específicas) são complementares entre si e o lesado pode optar pela indemnização que lhe for mais favorável, só não podendo cumular ambas as indemnizações pelo mesmo dano. Nesta confluência de razões, o artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2 007 terá de ser percebido com o não excluindo a priori a responsabilidade do Fundo pela indemnização dos danos segundo as regras dos acidentes de viação, visando, tão somente, limitá-la àquilo que exceder o valor da indemnização laboral. A expressão “sem prejuízo do disposto no artigo 51° do Decreto-Lei n.° 291/2007”, significa apenas que o lesado não pode reclamar do Fundo o montante indemnizatório que pode e deve reclamar da seguradora de acidentes de trabalho ou do respectivo Fundo de Garantia.

Aliás, esta interpretação decorre desde logo da opção legislativa de que nas situações em que se verificam as duas fontes da obrigação de indemnizar (civil e laboral), a responsabilidade infortunística laboral assume carácter subsidiário relativamente à responsabilidade civil extracontratual, cabendo a responsabilidade primacial e definitiva ao responsável civil, seja com base na culpa, seja com fundamento no risco, podendo sempre a entidade patronal ou a respectiva seguradora repercutir naquele responsável civil o que, a título de responsável objectivo pelo acidente laboral, tenha pago ao sinistrado.

Tal decorre do artigo 17º da Lei n.º 98/2009 de 4 de Setembro, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais e também já derivava BASE XXXVII da Lei n.º 2127, de 3/8/65, passando pelo artigo 31º da Lei.º 1 00/97, de 13 de Setembro.

Numa análise de integralidade do sistema jurídico e vista a sua inserção no direito europeu não pode ser outra a interpretação.

De outro modo, haveria uma violação inadmissível do disposto no n.º 4 do artigo 14.º da Directiva 2009/103/CE que consagra aquilo que podem os designar por princípio do tratamento mais favorável dos sinistrados.

Este normativo europeu permite a cada Estado-Membro aplicar ao pagamento de indemnizações pelo organismo de garantia as respectivas disposições legislativas, regulamentares e administrativas, podendo prever mecanismos legais que sejam

O Tribunal de Justiça da União Europeia no acórdão de 2 3.01.201 4, processo C-371/12, proferido no decurso de um pedido de decisão prejudicial formulado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Tribunale di Tivoli de Itália, validou a conformidade com o direito europeu da interpretação ora preconizada.

Considerou o Tribunal de Justiça que:

a) a obrigação de cobertura, pelo seguro de responsabilidade civil, dos danos causados a terceiros por veículos automóveis é distinta da extensão da indemnização desses danos a título da responsabilidade civil do segurado; enquanto a primeira é definida e garantida pela legislação da União, a segunda é regulada, essencialmente, pelo direito nacional;

b) no estado actual do direito da União, os Estados-Membros são livres para determinar, no âmbito dos seus regimes de responsabilidade civil, em particular, os danos causados por veículos automóveis que devem ser indemnizados, o alcance da indemnização desses danos e as pessoas que têm direito à referida indemnização;

c) as disposições nacionais que regulam a indemnização devida por sinistros resultantes da circulação de veículos não podem privar, nomeadamente, a Primeira e Segunda Directivas do seu efeito útil, ou prever montantes que violem o mínimo fixado pelo artigo 1.° da Segunda Directiva;

d) a regulamentação nacional não pode excluir oficiosamente ou limitar de forma desproporcionada o direito da vítima a uma indemnização pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil que resulta da circulação dos veículos automóveis;

e) a legislação nacional pode impor aos órgãos jurisdicionais nacionais critérios vinculativos para a determinação dos danos imateriais a indemnizar ou regimes específicos adaptados às particularidades dos acidentes de circulação, ainda que tais regimes comportem, para certos danos imateriais, um modo de determinação do alcance do direito à indemnização menos favorável à vítima do que o aplicável ao direito à indemnização das vítimas de acidentes que não sejam os da circulação automóvel;

f) no caso de danos imateriais resultantes de lesões pouco significativas, a omissão ou limitação dos elementos do cálculo aplicável em matéria de indemnização das vítimas de acidentes que não sejam os da circulação automóvel não afecta a compatibilidade dessa legislação nacional com as directivas acima mencionadas, desde que aquela não tenha por efeito excluir oficiosamente ou limitar de forma desproporcionada o direito da vítima a beneficiar de uma indemnização. No caso estamos precisamente no campo da obrigação de cobertura, pelo seguro de responsabilidade civil, do s danos causados a terceiros por veículos automóveis em que prevalece o direito da União e as lesões corporais em apreciação, patentemente, não podem ser classificadas como pouco significativas para efeitos do referido artigo. 4 9.º, do Decreto-Lei n.º 2 91/200 7.

Assim, tem de concluir-se como no citado acórdão desta Relação [acórdão desta Relação do Porto de 17-12-2014, proc. nº 3541/10.8 T BGDM.P1];"...- nos casos em que o acidente é em simultâneo de viação e de trabalho, o FGA continua responder perante o autor pela indemnização dos danos que de outra forma sempre teria de indemnizar nos termos do artigo 49º do Decreto-Lei nº 291/2007, com a única diferença de que no tocante aos danos que, de entre aqueles, também são indemnizáveis pela seguradora de acidentes de trabalho, a responsabilidade do Fundo é apenas pela parte da indemnização que exceder o montante apurado segundo as regras dos acidentes de trabalho até perfazer a totalidade da indemnização devida ao autor segundo as regras gerais”[1].

Dissentindo do entendimento propugnado pelo Tribunal recorrido e defendendo uma interpretação diferente dos artigos 49.º e 51.º do DL n.º 291/2007, o réu / recorrente FGA contrapõe que a indemnização por danos complementares referentes a apoio de terceira pessoa não deve ser atribuída à autora porquanto:

3. A intervenção do Recorrente circunscreve-se aos casos em que a mesma é estritamente necessária para acautelar os direitos da vítima, não se justificando a sua tutela quando os direitos da vítima estejam acautelados por outra via;

4. Quando o lesado sofre um acidente coberto pelo seguro de acidentes de trabalho, deve ser a seguradora do acidente de trabalho a responder pela reparação dos danos do acidente;

5. Sendo o dano abrangido pela lei de reparação de acidentes de trabalho, Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro, não cabe no âmbito das normas legais dos artigos 49.º e 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21 de agosto;

6. A responsabilidade do Recorrente apenas se verificará, na circunstância de ninguém assumir a mesma, o que não sucedeu no caso sub judice;

7. Quando um regime de seguro obrigatório dá cobertura aos direitos do lesado, torna-se desnecessária a intervenção do Recorrente”.

Quid juris?

Como se sabe, o caso dos autos reconduz-se à categoria de casos em que verifica simultaneamente um acidente de viação e um acidente de trabalho.

Como não foi possível identificar o sujeito que foi responsável pelo acidente, pode e deve equacionar-se a intervenção do FGA.  Veja-se que, de acordo com o artigo 47.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, “a reparação dos danos causados por responsável desconhecido ou isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ou por responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, é garantida pelo Fundo de Garantia Automóvel (…)”.

De facto, nos termos do DL n.º 291/2007, sobre o FGA impende um conjunto de atribuições no plano das indemnizações devidas aos lesados no caso de acidentes de viação, cumprindo, pois, conhecer o regime de responsabilidade definido, em especial, nas normas dos artigos 49.º e 51.º.

Certo é que o referido DL n.º 291/2007 transpõe parcialmente para ordem jurídica interna a Directiva 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11.05 (5.ª Directiva sobre o seguro automóvel). Assim, como salientou o Tribunal recorrido, as normas constantes daquele diploma não podem deixar de ser apreciadas à luz desta Directiva e nem da Directiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16.09, que procedeu à codificação desta e de outras directivas em matéria de seguro de responsabilidade civil respeitante à circulação de veículos automóveis (Directiva codificadora).

Deve dar-se atenção, desde logo, ao considerando 14 desta Directiva codificadora. Diz-se aí:

É necessário prever a existência de um organismo que garanta que a vítima não ficará sem indemnização, no caso do veículo causador do sinistro não estar seguro ou não ser identificado. É importante prever que a vítima de um sinistro ocorrido naquelas circunstâncias se possa dirigir directa e prioritariamente a esse organismo. É, todavia, conveniente, dar aos Estados-Membros a possibilidade de aplicarem certas exclusões limitativas no que respeita à intervenção deste organismo e de prever, no caso de danos materiais causados por um veículo não identificado, devido aos riscos de fraude, que a indemnização por tais danos possa ser limitada ou excluída”.

Em consonância, dispõe-se no artigo 10.º esta Directiva:

1 - Cada Estado-Membro deve criar ou autorizar a criação de um organismo que tenha por função reparar, pelo menos dentro dos limites da obrigação de seguro, os danos materiais e pessoais causados por veículos não identificados ou relativamente aos quais não tiver sido satisfeita a obrigação de seguro referida no artigo 3.º.

(…)

4 - Cada Estado-Membro pode aplicar ao pagamento de indemnizações pelo referido organismo as respectivas disposições legislativas, regulamentares e administrativas, sem prejuízo de qualquer outra prática mais favorável às vítimas”.

Retira-se destas disposições algumas conclusões importantes.

Antes de tudo, nota-se a preocupação do legislador europeu em garantir que o lesado de um acidente de viação não fica desprovido da indemnização que lhe é devida.

Em razão disso, os Estados-membros são obrigados a criar / manter um organismo que garanta que a vítima não ficará sem indemnização, no caso de o veículo causador do sinistro não estar seguro ou não ser identificado.  

Escusado será dizer que, no ordenamento jurídico português, esse organismo é o FGA[2] mas é importante dizer que ele surge, não como devedor de qualquer indemnização, mas como garante do pagamento da indemnização devida ao lesado[3]. Por outras palavras: enquanto pilar (um dos pilares) em que assenta a função social do seguro (a máxima protecção das vítimas dos acidentes de viação), o FGA tem por objectivo a garantia da indemnização às vítimas de acidentes de viação em determinados casos (nos casos legalmente previstos)[4].

Voltando à Directiva, verifica-se ainda que ela deixou aos Estados-membros liberdade para disporem no sentido da exclusão ou da limitação da responsabilidade daquele organismo.

Finalmente, segundo a Directiva, o que deve orientar o regime jurídico a que fica sujeito o referido organismo é o princípio da prática mais favorável à vítima[5].

Depois destes esclarecimentos, volte-se à leitura das normas dos artigos 49.º e 51.º do DL n.º 291/2007.

Dispõe-se no artigo 49.º, sobre o âmbito material das atribuições do FGA no que respeita ao pagamento de indemnizações, o seguinte:

1 - O Fundo de Garantia Automóvel garante, nos termos do n.º 1 do artigo anterior, e até ao valor do capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a satisfação das indemnizações por:

a) Danos corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido e eficaz, ou for declarada a insolvência da empresa de seguros;

b) Danos materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido e eficaz;

c) Danos materiais, quando, sendo o responsável desconhecido, deva o Fundo satisfazer uma indemnização por danos corporais significativos, ou tenha o veículo causador do acidente sido abandonado no local do acidente, não beneficiando de seguro válido e eficaz, e a autoridade policial haja efectuado o respectivo auto de notícia, confirmando a presença do veículo no local do acidente.

2 - Para os efeitos previstos na primeira parte da alínea c) do número anterior, consideram-se danos corporais significativos a lesão corporal que determine morte ou internamento hospitalar igual ou superior a sete dias, ou incapacidade temporária absoluta por período igual ou superior a 60 dias, ou incapacidade parcial permanente igual ou superior a 15 %.

3 - Para os efeitos previstos na segunda parte da alínea c) do n.º 1, considera-se aplicável ao veículo abandonado a exclusão prevista na alínea a) do n.º 4 do artigo 14.º[6].

E dispõe-se no artigo 51.º, fixando limites especiais à responsabilidade do FGA:

1 - Caso o acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º seja também de trabalho ou de serviço, o Fundo só responde por danos materiais e, relativamente ao dano corporal, pelos danos não patrimoniais e os danos patrimoniais não abrangidos pela lei da reparação daqueles acidentes, incumbindo, conforme os casos, às empresas de seguros, ao empregador ou ao Fundo de Acidentes de Trabalho as demais prestações devidas aos lesados nos termos da lei específica de acidentes de trabalho ou de serviço, salvo inexistência do seguro de acidentes de trabalho, caso em que o FGA apenas não responde pelas prestações devidas a título de invalidez permanente.

2 - Se o lesado por acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º beneficiar da cobertura de um contrato de seguro automóvel de danos próprios, a reparação dos danos do acidente que sejam subsumíveis nos respectivos contratos incumbe às empresas de seguros, ficando a responsabilidade do Fundo limitada ao pagamento do valor excedente.

3 - Quando, por virtude de acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º, o lesado tenha direito a prestações ao abrigo do sistema de protecção da segurança social, o Fundo só garante a reparação dos danos na parte em que estes ultrapassem aquelas prestações.

4 - As entidades que satisfaçam os pagamentos previstos nos números anteriores têm direito de regresso contra o responsável civil do acidente e sobre quem impenda a obrigação de segurar, que respondem solidariamente.

5 - O lesado pelo acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º não pode cumular as indemnizações a que tenha direito a título de responsabilidade civil automóvel e de beneficiário de prestações indemnizatórias ao abrigo de seguro de pessoas transportadas.

6 - O pagamento pela empresa de seguros da indemnização prevista no n.º 2 não dá, em si, lugar a alteração de prémio do respectivo seguro quando o dano reparado for da exclusiva responsabilidade do interveniente sem seguro”.

Decorrem desta última norma, de forma razoavelmente clara, as seguintes regras (em formulação simplificada e adaptada ao caso dos autos):

1.º) Quando o acidente seja simultaneamente de viação e de trabalho, o FGA só responde, em regra, pelos danos materiais e, relativamente ao dano corporal, pelos danos não patrimoniais e pelos danos patrimoniais não abrangidos pela lei específica de acidentes de trabalho;

2.º) Quando exista um seguro automóvel de danos próprios ou o lesado tenha direito a prestações sociais, a responsabilidade do FGA é meramente subsidiária, ou seja, está limitada ao pagamento do valor que não possa ser pago pela outra entidade.

Esta parece ser a interpretação coerente com as regras e os princípios decorrentes da Directiva e enunciados acima, designadamente, com o propósito do ressarcimento completo ou mais completo possível do lesado e o princípio do tratamento mais favorável ao lesado. Parece ainda ser a interpretação coerente com o papel para o qual foi concebido e que é desempenhado pelo FGA – de garante do ressarcimento dos danos sofridos pelo lesado[7].

A interpretação do artigo 51.º do DL n.º 291/2007 aparece como uma consequência lógica do que se disse. Como entendeu o Tribunal recorrido, a norma não dita a exclusão da responsabilidade do FGA pela indemnização dos danos segundo as regras dos acidentes de viação mas sim, apenas, uma sua limitação[8] – a limitação aos danos que não possam ser ressarcidos segundo as regras dos acidentes de trabalho mas que ainda devam ser ressarcidos nos termos gerais[9].

Em favor da interpretação preconizada, é possível convocar o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 9.02.2012 (Proc. 1082/01-E1.S1), onde pode ler-se:

o art. 51º do Dec. Lei nº 291/07, de 21-8, [acolhe] o entendimento que defende, no sentido da supletividade da responsabilização do Fundo de Garantia Automóvel relativamente às Seguradoras responsáveis pela reparação de acidentes de trabalho”.

E veja-se também o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17.12.2014 (Proc. 3541/10.8TBGDM.P1), de cujo sumário consta:

II - Nos termos do artigo 51.º, n.º 1, do DL n.º º 291/2007, de 21.08, que aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, nos acidentes que são em simultâneo de trabalho e de viação, o FGA só responde por danos materiais e, relativamente ao dano corporal, pelos danos não patrimoniais e os danos patrimoniais não abrangidos pela lei da reparação daqueles acidentes.

III - Esta norma deve ser interpretada não como excluindo em qualquer caso a responsabilidade do FGA pela indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais, resultantes de lesões corporais, abrangidos pela lei dos acidentes de trabalho, mas antes como delimitando essa responsabilidade do FGA ao montante da indemnização por esses danos que, calculada segundo as regras gerais, exceda aquele que o lesado obterá ao abrigo da lei dos acidentes de trabalho e calculada segundos os critérios desta.

IV - Essa interpretação é conforme à Directiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16.09.2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil automóvel, onde se reconhece aos Estados-Membros o direito de atribuir à intervenção do FGA um carácter subsidiário, isto é, uma intervenção que apenas tem lugar se e quando o lesado não puder obter de outra entidade, a que tenha igual facilidade de acesso, a indemnização que, não fora isso, seria assegurada pelo Fundo.

V - Não é conforme ao direito europeu, nem conforme aos princípios que se observam no direito nacional, designadamente nos nºs. 2 e 3 do artigo 51.º do DL 291/2007, no artigo 17.º da Lei 98/2009, e no artigo 9.º da Portaria n.º 377/2008, uma interpretação segundo a qual sendo o acidente imputável a um terceiro estranho à relação laboral, mesmo no caso de lesões corporais significativas, o lesado apenas pode aspirar à indemnização calculada segundo as regras dos acidentes de trabalho a cargo da respectiva seguradora, e não pode reclamar do FGA a indemnização, até ao limite do seguro de responsabilidade civil”.

Assim, sendo certo que a prestação suplementar para assistência de terceira pessoa está prevista na Lei n.º 98/2009, de 4.09, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais [cfr. artigo 47.º, al. h)], não pode deixar de se responsabilizar o recorrente FGA nos termos previstos no artigo 51.º do DL n.º 291/2007.

E porque o recorrente FGA apenas pôs em causa o fundamento da sua responsabilidade e não já a extensão dessa responsabilidade (por outras palavras, nunca colocou em causa que, a interpretar-se o art. 51.º do DL n.º 291/2007 no sentido em que se interpretou, o montante indemnizatório devido fosse aquele em que foi condenado pelo Tribunal da Relação), assim delimitando o objecto do recurso, nada mais há a apreciar.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pelo réu / recorrente Fundo de Garantia Automóvel.


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Lisboa, 2 de Março de 2023

Catarina Serra (Relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano

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[1] Sublinhados nossos.
[2] Sobre a génese e o regime actual do FGA cfr. Filipe Albuquerque Matos, “O Fundo de Garantia Automóvel. Um organismo com uma vocação eminentemente social”, in: Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes, Vol. I, 2011, Lisboa, Universidade Católica Editora, pp.559 e s.
[3] Como se diz no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 16.11.2017 (Proc. 533/09.3TBALQ.L1.S1), o FGA “é instituído como garante da proteção imediata dos lesados por acidente de viação, nomeadamente quando o responsável não beneficie de seguro obrigatório válido ou eficaz. Assim, o FGA não é um devedor, mas apenas um garante do cumprimento da obrigação do responsável civil pela indemnização dos danos emergentes do acidente, respondendo, a título subsidiário, pela obrigação do terceiro lesante”. Cfr. ainda, embora no quadro normativo anterior, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.05.2013 (Proc. 6330/03.2TVLSB.L1.S1), onde é citada abundante jurisprudência no mesmo sentido. Pode ler-se neste aresto: “o Fundo de Garanta Automóvel  (…) nem sequer é responsável civil – seja esta responsabilidade civil fundada em culpa (art. 483º e segs CC), seja fundada em risco (art. 503º CC) – pelo acidente. Mais: em bom rigor, nem sequer é “devedor” de qualquer indemnização (no sentido de parte na relação jurídica causal da mesma), mas apenas “garante” da indemnização devida aos lesados em acidente de viação em casos especiais, um dos quais é o de o responsável pelo acidente ser desconhecido (art. 21º nº1-a) e 29º nº8 do DL nº 522/85 de 31/12); logo, é garante perante o lesado da obrigação de um dos sujeitos dessa relação jurídica causal, isto é, da parte que, em tal relação, tem a obrigação de indemnizar. Foi o entendimento sufragado nesta 2ª Secção, em acórdão de 04-11-2010 (Cons. Pereira da Silva) para quem o FGA “não é um devedor, mas tão só um garante do cumprimento das obrigações do responsável civil pela reparação dos danos causados ao lesado, respondendo subsidiariamente e não como devedor principal ou directo (…); inexiste assim entre o lesante e o FGA uma relação de solidariedade passiva”. O terceiro responsável, esse, é que é o principal ou primitivo obrigado de regresso: o FGA é “um mero obrigado subsidiário, que se substitui ao devedor originário”, como entendeu a Relação de Lisboa em 02-11-2010”.
[4] Filipe Albuquerque Matos (“O Fundo de Garantia Automóvel. Um organismo com uma vocação eminentemente social”, cit. p. 560) associa a isto o princípio jurídico da subsidiariedade.
[5] Este princípio é reiterado, dando-se-lhe um alcance mais geral, no artigo 28.º da Directiva. Diz-se aí: “Nos termos do Tratado, os Estados-Membros podem manter ou pôr em vigor disposições mais favoráveis para a pessoa lesada do que as disposições necessárias para dar cumprimento à presente directiva”-
[6] Para um comentário extenso a este artigo 49.º e à divisão, nele delineada, entre danos corporais e danos materiais, cfr. Filipe Albuquerque Matos (“O Fundo de Garantia Automóvel. Um organismo com uma vocação eminentemente social”, cit. pp. 567 e s.
[7] Ainda com relevância para os casos do tipo do dos autos (acidente simultaneamente de viação e de trabalho) e com uma referência expressa àquela norma do artigo 51.º, o artigo 9.º da Portaria n.º 377/2008, de 26.05, dispõe que:
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, quanto ao Fundo de Garantia Automóvel, se o acidente que originou o direito à indemnização for simultaneamente de viação e de trabalho, o lesado pode optar entre a indemnização a título de acidente de trabalho ou a indemnização devida ao abrigo da responsabilidade civil automóvel, mantendo-se a actual complementaridade entre os dois regimes.
2 - Sendo o lesado indemnizado ao abrigo do regime específico de acidentes de trabalho, as indemnizações que se mostrem devidas a título de perdas salariais ou dano patrimonial futuro são sempre inacumuláveis.
3 - Nos casos em que não haja lugar à indemnização pelos danos previstos na alínea a) do artigo 3.º, é também inacumulável a indemnização por dano biológico com a indemnização por acidente de trabalho”.
Também daqui resulta um par de ideias importantes para a questão aprecianda: 1.º) No caso de acidente simultaneamente de viação e de trabalho, o lesado tem o direito de optar pelo regime de indemnização que quiser, isto é, que entender que lhe é mais favorável, embora isso não ponha em causa o disposto naquele artigo 51.º; e 2.º) Entre o regime de indemnização a título de acidente de viação e o regime de indemnização a título de acidente de trabalho existe uma relação de complementaridade. Esta complementaridade – como qualquer complementaridade – significa, pela negativa, que os dois regimes não devem cumular-se. E significa, pela positiva, que os regimes devem completar-se, o que é plenamente coerente com o (e mesmo instrumental ao) propósito geral do ressarcimento completo (mais completo possível) do lesado.
[8] Esta interpretação é a que mais bem se harmoniza com a epígrafe da norma (“Limites especiais à responsabilidade do Fundo”). Em reforço, note-se que é o artigo 52.º que se intitula “Exclusões”.
[9] Por sua vez, a ressalva contida no artigo 9.º, n.º 1, da Portaria (“Sem prejuízo do disposto no artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, quanto ao Fundo de Garantia Automóvel”) terá a função de afirmar a subsistência do artigo 51.º do DL n.º 291/2007 apesar da opção do lesado. Quer isto dizer que, mesmo que o lesado opte por um dos regimes, e seja qual for a sua opção, o disposto no artigo 51.º do DL n.º 291/2007 será aplicável sempre que se verifiquem os requisitos de que depende a sua aplicabilidade com o significado, acima referido, de o lesado não poder reclamar do FGA o montante indemnizatório que pode e deve reclamar da seguradora de acidentes de trabalho ou do respectivo Fundo de Garantia.