Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4086/18.3T8FAR.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO
PEÃO
EXCESSO DE VELOCIDADE
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
VEÍCULO AUTOMÓVEL
CULPA EXCLUSIVA
DANO MORTE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
DUPLA CONFORME
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
Data do Acordão: 02/25/2021
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Inserindo-se a ação no âmbito da responsabilidade civil emergente de acidente de viação e assentando esta responsabilidade civil extracontratual  na verificação cumulativa dos pressupostos a que se reporta o art. 483º, do C. Civil, ou seja, o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade  entre o facto e o dano, a  conformidade ou desconformidade das decisões de 1ª e 2ª Instâncias não pode ser aferida em relação a cada um destes elementos constitutivos, pois os mesmos são incindíveis não só  na medida em que todos eles concorrem para a constituição da obrigação de indemnizar como também servem, nos termos dos do disposto nos arts. 494º, 496º, 566º, nº 3 e 570º, todos do CPC, de medida de determinação do quantum da indemnização.

II. Assim, não obstante o  acórdão recorrido ter confirmado, por unanimidade e com base em fundamentação que, no essencial, se mostra coincidente com a fundamentação da decisão da 1ª instância, o segmento decisório da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância que considerou existir concorrência de culpas de ambos os intervenientes no acidente de viação, não ocorre, quanto a este segmento decisório, dupla conforme, obstativa do recurso de revista  quanto à  reapreciação da questão da culpa na produção do acidente, nos termos do art.º 671º, nº 3, do CPC.

IV. Em sede de compensação pela perda do direito à vida, tendo em conta que a vítima tinha 53 anos e não contribuiu para a produção do acidente, à luz dos parâmetros mais recentes da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, tem-se por razoável fixar o valor base daquela compensação em € 80.000,00.

V. Perante um quadro factual integrado pelas circunstâncias em que ocorreu o embate e pelo tipo de lesões sofridas e demonstrativo de que a vítima, durante as horas em que sobreviveu, teve sofrimento físico, mostra-se adequada, à luz dos parâmetros seguidos pela jurisprudência no tipo de dano em referência, a compensação de € 20.000,00.

VI. Tendo em conta os parâmetros seguidos pela jurisprudência deste Supremo Tribunal e a necessidade de uma progressiva atualização dos valores indemnizatórios, considera-se justo e adequado  fixar o valor base da compensação pelos sofrimentos próprios do filho da vítima e da pessoa com quem esta vivia em união de facto desde há 6 anos, em € 35.000,00, não se vislumbrando razões para estabelecer, a este nível, qualquer diferenciação entre eles  visto resultar claro  da matéria provada que ambos mantinham com a vítima laços de afetividade e convivência no âmbito de um mesmo consolidado agregado familiar, admitindo-se, por isso, que terão ficado psicologicamente afetados, em igual medida, pela perda da vítima.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




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I. Relatório

1. AA intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Ageas Portugal-Companhia de Seguros, S.A, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia global de €180.000,00 devida a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos em consequência de acidente de viação que  causou a morte do seu do pai e cuja verificação imputa a culpa do condutor de veículo automóvel seguro nesta ré.

2. A ré contestou, excecionando a ilegitimidade do autor por se encontrar desacompanhado do membro sobrevivo da união de facto, imputando a culpa na produção do acidente ao comportamento da vítima e impugnando os alegados danos bem como os respetivos montantes.

Deduziu incidente de intervenção principal provocada da seguradora da entidade patronal, por se tratar de acidente em simultâneo de trabalho.

3. O autor veio requerer a intervenção principal provocada de BB, que vivia em união de facto com a vítima.

4. Admitidas as requeridas intervenções principais provocadas, a Allianz Portugal- Companhia de Seguros, S.A., deduziu pedido de reembolso da quantia de €16.495,85, referente a pensões e outras despesas pagas, acrescida de juros vincendos a contar da citação e  até integral pagamento, e a BB  deduziu pedido de condenação da ré no pagamento da quantia de €120.000,00, acrescida de juros de mora a contar da notificação até integral pagamento, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais decorrentes da morte do companheiro.

5. Citado, o Centro Nacional de Pensões veio deduzir pedido de reembolso da quantia de €899,70, paga a título de pensão de sobrevivência, acrescida das pensões que se vencerem e forem pagas na pendência da ação, com juros de mora legais, desde a citação até integral pagamento.

6. A ré contestou o pedido formulado pelo CNP, concluindo pela sua improcedência.

7. Realizada audiência prévia, nela foi proferido despacho saneador, fixado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

8. Foi admitida a ampliação do pedido formulada pelo Centro Nacional de Pensões para o valor de €1.209,48, a título de pensões de sobrevivência pagas.

9. Foi admitida a ampliação do pedido formulada pela interveniente Allianz para a quantia de €17.990,91, a título de pensões e outras despesas pagas.

10. Realizada audiência de discussão e julgamento, foi subsequentemente proferida sentença que decidiu julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência:

- condenou a ré Ageas Portugal- Companhia de Seguros, S.A a pagar ao autor a quantia de € 47.500,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa de juros legal de 4%, ou outra que lhe sobrevier, contados desde a data da prolação da sentença até integral pagamento;

- condenou a ré Ageas Portugal- Companhia de Seguros, S.A a pagar à interveniente BB a quantia de € 42.500,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa de juros legal de 4%, ou outra que lhe sobrevier, contados desde a data da prolação da sentença até integral pagamento;

- condenou a ré Ageas Portugal- Companhia de Seguros, S.A a pagar à interveniente Allianz Portugal- Companhia de Seguros, S.A. a quantia de € 8.995,45 a título de reembolso das quantias pagas, acrescida de juros de mora, à taxa de juros legal de 4%, ou outra que lhe sobrevier, contados desde a data da notificação para contestar o pedido até integral pagamento;

- condenou a ré Ageas Portugal- Companhia de Seguros, S.A a pagar ao interveniente Centro Nacional de Pensões a quantia de € 656,49 a título de reembolso das quantias pagas, acrescida de juros de mora, à taxa de juros legal de 4%, ou outra que lhe sobrevier, contados desde a data da notificação para contestar o pedido até integral pagamento;

- absolveu a ré do demais peticionado.

11. Inconformados com esta decisão, dela apelaram o autor e as intervenientes Allianz Portugal- Companhia de Seguros, S.A. e BB bem como a ré Ageas Portugal- Companhia de Seguros, S.A para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão proferido em 24 de setembro de 2020, julgou:

a) Improcedentes as apelações do autor, da Allianz Portugal-Companhia de Seguros, S.A. e de BB;

b) Parcialmente procedente a apelação da ré Ageas Portugal-Companhia de Seguros, S.A e, alterando a sentença recorrida, decidiu:

- Condenar a ré Ageas Portugal- Companhia de Seguros, S.A a pagar ao autor a quantia de € 33.750,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa de juros legal de 4%, ou outra que lhe sobrevier, contados desde a data da prolação da sentença até integral pagamento;

- Condenar a ré Ageas Portugal- Companhia de Seguros, S.A a pagar à interveniente BB a quantia de € 26.250,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa de juros legal de 4%, ou outra que lhe sobrevier, contados desde a data da prolação da sentença até integral pagamento.

12. Inconformados com este acórdão, o autor e a interveniente BB dele interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1 - Conforme factos provados nºs 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8, 9, 10, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 21, 22, 23, 24 e 25 da sentença da 1ª instância o acidente ficou a dever-se, exclusivamente, ao condutor do veículo ...-LO-... segurado pela Ré.

2 - O condutor do ...-LO-... conseguia visualizar o peão a pelo menos 100 metros de distância do local onde o peão se encontrava parado na berma e com os pés na berma.

3 - O condutor do ...-LO-..., não reduziu a velocidade, não travou, não desviou a marcha que seguia, e aproximou-se do local onde se encontrava o peão, e sem guardar a distância da berma para evitar embater com o espelho lateral direito do ...-LO-... no corpo do peão, o que veio a ocorrer e causou a morte do peão.

4 - Sendo a condução de veículos automóveis uma actividade perigosa cabe aos condutores desses veículos o respeito absoluto pelos peões que são utilizadores vulneráveis.

5 - Mesmo que o peão tenha efectuado um movimento de inclinação do seu corpo na direcção da faixa de rodagem por onde seguia o ...-LO-... e sem que os seus pés (do peão) ultrapassassem a linha delimitadora existente entre a berma e a hemi-faixa de rodagem desse movimento não se pode imputar qualquer responsabilidade ao peão na ocorrência do acidente, pois este nunca penetrou na hemi-faixa de rodagem por onde circulava o ...-LO-....

6 - O artº. 13º, nº 1 do Cód. da Estrada impunha ao condutor do ...-LO-... que este circulasse pela hemi-faixa de rodagem conservando da berma (onde o peão se encontrava) uma distância suficiente que permitisse evitar o acidente - o que o condutor do ...-LO-... não fez, e em clara violação do artº. 13º, nº 1 do Cód. Estrada.

7 - E os artºs. 24º, nº 1, e 25º, nº 1, al. e), ambos do Cód. da Estrada impunham ao condutor do ...-LO-... que este regulasse e moderasse especialmente a velocidade à aproximação do utilizador vulnerável (o peão e vítima CC), o que o dito condutor não fez.

8 - E o artº. 38º, nº 2, al. e) do Cód. da Estrada impunha que o condutor do ...-LO-... face à presença do peão na berma guardasse a distância lateral mínima de 1,5 metros do dito peão e abrandasse a velocidade do ...-LO-..., o que também não foi cumprido pelo dito condutor.

9 - E pelo que o condutor do ...-LO-... violou as normas dos artºs. 13º, nº 1, 24º, nº 1, 25º, nº 1, al. e) e 38º, nº 2, al. e), todos do Código da Estrada.

10 - E sendo pois o condutor do ...-LO-... 100% responsável pela ocorrência do acidente.

11 - Os Tribunais não devem ser miserabilistas e sendo justo e equilibrado o valor de 80.000,00€ para o dano morte, o valor de 20.000,00€ para o dano sofrido pela vítima, o valor de 45.000,00€ como indemnização ao A. e o valor de 35.000,00€ como indemnização à Interveniente.

12 - O Acórdão recorrido violou o disposto nos artºs. 483º, 487º, 503º, 562º e 563º, todos do Código Civil, e nos artºs. 13º, nº 1, 24º, nº 1, 25º, nº 1, al. e) e 38º, nº 2, al. e), todos do Código da Estrada».

Termos em que requerem seja dado provimento à revista, considerando o condutor do veículo seguro na ré o único responsável pela produção do acidente, condenando-se a ré seguradora a pagar ao autor a quantia total de 95.000,00€ e a à interveniente/recorrente BB a quantia total de 85.000,00€.

13. A ré Ageas Portugal- Companhia de Seguros, S.A respondeu, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1. O art. 674.º, n.º 1 do CPC prescreve o seguinte: “A revista pode ter por fundamento:

a) A violação de lei substantiva, que pode consistir tanto no erro de interpretação ou de aplicação, como no erro de determinação da norma aplicável; b) A violação ou errada aplicação da lei de processo; c) As nulidades previstas nos artigos 615.º e 666.º.” (destaque nosso).

2. A revista interposta pelos Recorrentes omite qual a fundamentação do recurso e não faz subsumir o mesmo a qualquer das alíneas do n.º 1, do apenas invocado art. 674.º, do CPC.

3. De acordo com o disposto no n.º 3 do art. 671.º do CPC: “Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.”

4. Quer a 1.ª Instância, quer a Relação de Évora, entenderam pela fixação de repartição de responsabilidades na proporção de 50/50.

5. Estamos, assim, perante a figura da dupla conforme, traduzida na inadmissibilidade de recurso de acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido, e sem fundamentação substancialmente diversa, a decisão proferida pela 1.ª Instância.

6. Não pode, por isso, ser admitida a revista interposta, porquanto os Recorrentes pretendem a alteração de segmento decisório proferido na 1.ª Instância e confirmado pela Relação.

7. Neste conspecto, deverá o recurso de revista ser considerado inadmissível, com base no disposto no n.º 3 do art. 674.º, mantendo-se, assim, a decisão do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora.

8. A culpa pela eclosão do acidente não pode ser atribuída, em exclusivo, ao condutor do veículo seguro da Recorrida.

9. O douto Acórdão recorrido decidiu aderir à proporção de culpa que foi fixada na sentença proferida pela 1.ª Instância, e, bem assim, considerar a inexistência de fundamento para imputar o acidente a culpa exclusiva do condutor do veículo seguro na Recorrida – para o que se baseou na mesma linha argumentativa.

10. Assim, e atendendo à matéria assente que não foi impugnada em sede de apelação, não resultam quaisquer dúvidas de que, para a ocorrência do embate contribuíram, em igual medida, as condutas, quer do condutor do veículo seguro na Recorrida, quer do peão vítima mortal – como bem entenderam quer a 1.ª Instância, que a Relação de Évora.

11. Termos em que se requer que seja liminarmente rejeitada a pretensão dos Recorrentes na alteração da fixação de repartição de responsabilidade com imputação exclusiva ao condutor do veículo seguro na Recorrida.

12. Os Recorrentes não alegaram qualquer matéria de direito para suportar a sua pretensão relativamente ao quantum indemnizatório a atribuir, limitando-se a considerar errada a repartição da culpa.

13. Na verdade, para a determinação do quantum compensatório pela perda do direito à vida, importa ter em conta a própria vida em si, como bem supremo e base de todos os demais, e, no que respeita à vítima, a sua vontade e alegria de viver, a sua idade, a saúde, o estado civil, os projectos de vida e as concretizações do preenchimento da existência no dia-a-dia, incluindo a sua situação profissional e sócio-económica.

14. No caso em apreço, apenas ficou assente que a vítima mortal nasceu em 19/03/1963 e faleceu no estado de divorciado, vivendo há pelo menos 6 anos com a sua companheira (e aqui Recorrente), exercendo funções de motorista de veículos pesados.

15. Assim, e atendendo à prova produzida no âmbito dos presentes autos, bem como à jurisprudência maioritária do STJ, entende a Recorrida que o valor peticionado pelos aqui Recorrentes pelo dano morte é claramente excessivo.

16. O mesmo se diga quanto ao valor peticionado a título de danos não patrimoniais pelo sofrimento da vítima (o qual foi reduzido e fixado em € 5.000,00 pelo douto Acórdão da Relação).

17. Não resultou provado que “antes do embate o peão apercebeu-se que ia ser embatido e que iria falecer atropelado; g) desde o embate até falecer sofreu dores intensas; h) com o embate ficou de imediato inconsciente”.

18. Ora, salvo o devido respeito, entende a Recorrida que não foi produzida prova bastante para sustentar a fixação de indemnização superior aos fixados € 5.000,00, pelo que o valor peticionado pelos Recorrentes a este título revela-se absolutamente infundado e excessivo, devendo, por isso, e igualmente, improceder».

Termos em que requer seja negado provimento ao recurso, mantendo-se o acórdão recorrido.


14. Dados os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II.  Questão prévia.

Nas suas contra alegações, suscita a ré a inadmissibilidade do recurso de revista interposto pelo autor AA e pela interveniente BB, na parte respeitante à culpa pela produção do acidente, com fundamento na existência de dupla conforme, porquanto  quer o Tribunal de  1ª Instância, quer o Tribunal da Relação, decidiram, com base em idêntica fundamentação, pela fixação de repartição da culpa na proporção de 50% para o autor e de 50% para o condutor do veículo seguro na ré.

Vejamos

No caso dos autos, sustentando que o condutor do veículo seguro na ré foi o único responsável pela produção do acidente, formularam o autor e a interveniente BB pedido de condenação da ré a pagar-lhes, respetivamente, a indemnização global de € 180.000,00 (sendo €100.000,00, a título de perda do direito à vida do pai do autor; € 20.000,00, a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima e € 60.000,00, por danos não patrimoniais sofridos pelo próprio) e de € 120.000,00 (sendo 50.000,00€ correspondente à sua quota-parte do dano pela supressão da vida da vítima, 10.000,00€ relativos à sua quota-parte do dano respeitante aos sofrimentos físicos da vítima e € 60.000,00, por danos não patrimoniais por ela sofridos).

Por outro lado, do confronto entre a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância e o acórdão da Relação, decorre terem ambas as instâncias concluído, com base em idêntica fundamentação, pela existência de concorrência de culpas na produção do acidente, na proporção de 50% para o autor e de 50% para o condutor do veículo seguro na ré, divergindo apenas quanto aos montantes indemnizatórios arbitrados a título de perda do direito à vida do pai do autor e companheiro da interveniente BB, de danos não patrimoniais sofridos pela vítima e dos danos não patrimoniais sofridos pelo autor e pela BB, que a sentença fixou, respetivamente, em € 80.000,00, € 20.000,00, € 45.000,00 e € 35.000,00 e que o acórdão da Relação, alterando esta decisão, fixou, respetivamente, em € 60.000,00, € 5.000,00, € 35.000,00 e € 20.000,00.

É, assim, neste contexto que importa indagar se assiste razão à ré, tendo em conta que, conforme resulta do disposto no art. 671º, nº 3 do CPC, a dupla conforme entre as decisões das instâncias, como circunstância de irrecorribilidade da revista, afere-se, por regra, em função da decisão final e, consequentemente, pela confirmação desta decisão, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente[1].

Ora, inserindo-se a presente ação no âmbito da responsabilidade civil emergente de acidente de viação e assentando esta responsabilidade civil extracontratual na verificação cumulativa dos pressupostos a que se reporta o art. 483º, do C. Civil, ou seja, o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, não se vê que, que a conformidade ou desconformidade possa operar separadamente em relação a cada um destes elementos constitutivos, pois os mesmos são incindíveis não só na medida em que todos eles concorrem para a constituição da obrigação de indemnizar  como também servem, nos termos dos do disposto nos arts. 494º, 496º, 566º, nº 3 e 570º, todos do CPC, de medida de determinação do quantum da indemnização.

Não se pode, assim, dizer que há dupla conforme a respeito da existência, ou não, de culpa ou do risco, da existência de culpa exclusiva ou concorrente.

Significa isto, no caso dos autos, que a uniformidade das decisões do Tribunal de 1ª Instância e do Tribunal da Relação, quanto à concorrência de culpas, não releva para efeitos de dupla conformidade decisória, obstativa do recurso de revista quanto à reapreciação da questão da culpa na produção do acidente, nos termos do art.º 671º, nº 3, do CPC.


Termos em que se impõe julgar improcedente a questão prévia suscitada pela ré.


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III. Delimitação do objeto do recurso

Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[2].

Assim, a esta luz, as questões a decidir traduzem-se em saber:

1ª- se é de imputar ao condutor do veículo seguro na ré a culpa exclusiva pela produção do acidente;

2ª- se foram corretamente avaliados o dano decorrente da perda do direito à vida da vítima; o dano não patrimonial sofrido pela vítima durante o período que mediou entre o acidente a morte e os danos não patrimoniais sofridos pelo autor, filho da vítima, e pela interveniente BB, com quem a vítima vivia em união de facto.


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IV. Fundamentação


4.1. Fundamentação de facto

Factos provados:

« 1 - No dia 29.10.2016, pelas 09h40m, DD conduzia um veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ...-LO-..., de marca ..., modelo …, de cor branca, pela EN …, ao km …, no Sítio da ..., freguesia de ..., concelho de ..., no sentido .../....

2 - No local, a faixa de rodagem configurava uma reta, com mais de um quilómetro de extensão, com visibilidade em ambos os sentidos de trânsito.

3 - Possuindo uma largura total de 5,75 metros, com uma hemi-faixa rodagem para cada sentido de trânsito, com uma largura de 2,85 metros cada.

4 - As quais se encontravam separadas por traço longitudinal descontínuo.

5 - A ladear a faixa de rodagem existiam bermas compostas por alcatrão e por terra batida, delimitadas da faixa de rodagem por linha longitudinal.

6 - As quais permitiam a paragem e estacionamento de veículos ligeiros e pesados, sem condicionar o trânsito.

7 - No local o limite de velocidade instantânea era de 90 Km/hora.

8 - Na data o tempo estava bom e o piso encontrava-se seco e em razoável estado de conservação.

9 - DD havia percorrido mais de 500 metros da reta e circulava a uma velocidade de pelo menos 50 km/hora.

10 - Atento o sentido de trânsito que seguia, apresentava-se estacionado na berma do lado esquerdo, com o motor ligado, o veículo pesado de matrícula ...-...-VR, marca …, de cor branca.

11 - O qual era propriedade da empresa “T….., Lda.” e que momentos antes havia sido conduzido por CC.

12 - O CC encontrava-se parado na berma do lado direito, de frente para a faixa de rodagem, junto da linha que delimitava a berma da hemi-faixa.

13 - E pretendia atravessar a faixa de rodagem e dirigir-se para o veículo pesado que se encontrava estacionado na berma contrária.

14 - Olhou para a sua direita, no sentido de ….., não visualizando qualquer veículo a circular.

15 - E efetuou um movimento de inclinação do corpo na direção da faixa de rodagem.

16 - Sem que os seus pés ultrapassassem essa linha delimitadora existente entre a berma e a hemi-faixa de rodagem.

17 - Nesse momento aproximava-se o veículo de matrícula ...-LO-....

18 - O qual embateu com o espelho retrovisor lateral direito no corpo do CC.

19 - O CC conseguia visualizar o veículo de matrícula ...-LO-... a aproximar-se do local onde se encontrava a pelo menos 100 metros de distância.

20 - Não representando que ocorresse o embate.

21 - O condutor do veículo …-L0-… conseguia visualizar o peão e o veículo pesado imobilizado a pelo menos 100 metros de distância.

22 - Não reduziu a velocidade, nem travou ou desviou a marcha que seguia, ao aproximar-se do local onde se encontrava o peão.

23 - Nem guardou a distância da berma para evitar embater com o espelho lateral direito no corpo do peão.

24 - Não representando que ocorresse o embate.

25 - No pavimento não foi deixado rasto de travagem.

26 - Após o embate o veículo ligeiro imobilizou-se em local não apurado.

27 - Com o embate do espelho retrovisor direito o CC foi projetado no ar.

28 - Vindo a cair no solo, ficando prostrado com a parte superior do corpo (da cintura para cima) dentro da berma do lado direito, e a parte inferior (da cintura para baixo) dentro da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha .../....

29 - Na berma e perto da zona da cabeça ficou uma poça de sangue.

30 - Foi socorrido no local pelo INEM e após transportado para o Hospital .....

31 - Onde lhe realizaram exames e tratamentos.

32 - Em consequência do embate sofreu laceração encefálica, traumatismo craniano e politraumatismos, com fratura do 3º ao 6º arco costais anteriores, com fraturas no parietal direito, no occipital direito, no maxilar inferior à esquerda, nas órbitas, no tecto, com infiltração hemorrágica parieto-temporal direita, contusão e status craniotomia, status craniotomia descompressiva e focos de contusão, edema cerebral e laceração.

33 - Lesões que foram causa direta e necessária da sua morte, declarada no dia 30.10.2016, pelas 14h00m.

34 - O CC havia nascido em … .03.1963 e faleceu no estado de divorciado.

35 - Vivia há pelo menos 6 anos com BB como se de marido e mulher se tratassem.

36 - Trabalhava como motorista de veículos pesados.

37- O autor é filho de CC, com o qual ficou a residir após separação dos pais.

38 - Sofreu desgosto com a morte do pai, com o qual mantinha relação de amizade, de suporte e amparo, material e sentimental.

39 - A companheira BB sofreu desgosto com a morte do companheiro, com o qual mantinha relação de suporte e amparo, material e sentimental.

40 - A empresa “T…..., Lda” transferiu a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho para a Companhia de Seguros Allianz mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º …26.

41 - O embate ocorreu quando CC se encontrava ao serviço da empresa “T…..., Lda.”.

42 - No     âmbito do processo de acidente de trabalho n.º .…, que correu termos no Tribunal de Trabalho de ..., a Companhia de Seguros Allianz obrigou-se a pagar a BB a pensão anual e vitalícia até à idade da reforma por velhice de € 3.355,87 e de € 4.474.49 a partir dessa idade ou no caso de doença física ou mental que afete sensivelmente a sua capacidade de trabalho, a quantia de € 1.419,00 respeitante a subsídio de funeral e a quantia de €  5.533,68 de subsídio por morte, mais a quantia de € 8,50 a título de compensação obrigatória das despesas de deslocação ao Tribunal de Trabalho.

43 - A pensão foi atualizada em 01.01.2017, para o valor de € 3.372,65, em 01.01.2018, para o montante de € 3.433,36 e em 01.01.2019, para € 3.488,29.

44 - Até julho de 2019 a interveniente Allianz pagou a BB a quantia de € 9.534,71, a título de pensões, € 1.419,00 a título de subsídio de funeral, € 5.533,68 a título de subsídio por morte, € 8,50 a título de outras despesas.

45 - E liquidou desde agosto de 2019 até dezembro de 2019 a quantia de € 1.495,02, a título de pensões e subsídio de natal– fls.211/213.

46 - Devido à morte de CC o Centro Nacional de Pensões pagou a BB a título de pensão de sobrevivência o montante de € 1.312,99, no período de 11.2016 a 01.2020.

47 - Na sequência do embate foi instaurado processo de inquérito, com o n.º …, que correu termos no DIAP de ... e no qual foi proferido despacho de arquivamento, conforme documento de fls. 85/93, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

48 - A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de matrícula ...-LO-... encontrava-se transferida para a ré através da apólice nº …62.


*


Factos Não Provados

Não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente que:

a) em momento anterior ao embate o CC olhou para a esquerda, no sentido de ...;

b) o CC iniciou a travessia da faixa de rodagem de forma perpendicular no sentido nascente/poente;

c) percorrendo mais de um metro da largura da faixa de rodagem antes de ser embatido pelo veículo de matrícula ...-LO-...;

d) o embate deu-se com a parte frontal direita do veículo de matrícula ...-LO-... no peão;

e) o peão foi projetado mais de 5 metros de distância do local do embate;

f) antes do embate o peão apercebeu-se que ia ser embatido e que iria falecer atropelado;

g) desde o embate até falecer sofreu dores intensas;

h) com o embate ficou de imediato inconsciente;

i) o CC iniciou a travessia quando o veículo de matrícula ...-LO-... se encontrava próximo, praticamente ao seu lado;

j) atravessando repentinamente a faixa de rodagem, fora do local destinado para a travessia de peões e sem se certificar que o podia fazer.».


***


4.2. Fundamentação de direito

Conforme já se deixou dito, o objeto do presente recurso prende-se, essencialmente, com a questão de saber a quem é imputável a produção do acidente e se foram corretamente avaliados o dano decorrente da perda do direito à vida da vítima; o dano não patrimonial sofrido pela vítima antes de falecer e os danos não patrimoniais sofridos pelo autor, filho da vítima, e pela interveniente BB, com quem a vítima vivia em união de facto.


*


4.2.1. Da imputação subjetiva da ocorrência do acidente. 

Neste capítulo está em causa saber se a factualidade dada como provada e supra descrita sob os nºs 1 a 28, constitui suporte suficiente para imputar, a título de culpa, a ocorrência do acidente em causa ao condutor do veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ...-LO-..., seguro na ré.

Analisando aquela factualidade dada como provada em conjugação com estes factos dados como não provadas e convocando o disposto nos arts. 3º, nº 2, 11º, nº 3, 24º, nº 1, 25º, nº 1, al. e), do CE, no que respeita aos condutores de veículos automóveis, e o estabelecido nos arts. 99º, nºs 1 e 2, als. a) e ), 101º, nºs1 e 4, do mesmo código quanto à conduta a adotar pelos peões, considerou o Tribunal de 1ª Instância, no essencial, dela resultar, por um lado, que, atendendo às características  da via, à localização do peão e ao facto de este estar virado na direção da estrada e de, na berma contrária, encontrar-se imobilizado o veículo pesado, o condutor do veículo  ...-LO-... encontrava-se em condições de perceber que aquele queria iniciar a travessia e de evitar embater nele com o espelho retrovisor,  guardando da berma a distância para o efeito  ou desviando-se para a esquerda.

E, por outro lado, que o peão não calculou, devidamente, a distância a que se encontrava do veículo …-LO-… que circulava na hemi-faixa de rodagem e, convencido que teria tempo de atravessar a estrada antes da passagem daquele veículo, fletiu, precipitadamente, o corpo na direção da via, sem atentar na proximidade do veículo de matrícula …-LO-… que, entretanto, encontrava-se a circular junto dele, não guardando da berma a distância suficiente  para evitar o embate.

Assim, com base nesta fundamentação, concluiu que o movimento de inclinação em direção à estrada que o peão realizou, foi fatal e causal do acidente, pelo que ambos os intervenientes incumpriram os deveres de cuidado que lhes eram exigíveis e decidiu que o acidente ficou a dever-se a culpas concorrentes e em igual medida do condutor do veículo ...-LO-... e do peão.

No mesmo sentido pronunciou-se o Tribunal da Relação de Évora, perfilhando «também, o entendimento de que ocorreu comparticipação do peão no processo causal que conduziu ao seu embate pelo veículo seguro na Ré Ageas: postou-se junto da linha que delimitava a berma da hemi-faixa donde provinha aquele veículo e efectuou um movimento de inclinação do corpo na direcção da faixa de rodagem que foi determinante para a colisão ocorrida (com o espelho lateral direito da viatura)».

Mais argumentou que:

«Tudo inculca que, naquele preciso momento, o peão se aprestava a atravessar a faixa de rodagem ao encontro do “seu” veículo pesado que se encontrava estacionado na berma contrária.

É certo que se provou que os seus pés não ultrapassaram aquela linha delimitadora existente entre a berma e a hemi-faixa de rodagem mas foi indubitavelmente aquela inclinação do seu tronco no sentido da faixa de rodagem que contribuiu para o embate tanto mais que não resultou provado que, em momento anterior, tivesse olhado para a esquerda, no sentido de ..., sentido donde o veículo provinha.

Essa imprevidência numa estrada nacional leva-nos à conclusão de que o malogrado peão não agiu com a prudência exigível a uma pessoa medianamente cuidadosa e precavida, colocada nas circunstâncias concretas do caso e que tal conduta contribuiu, em termos de causalidade adequada para a produção do dano.

Na verdade, na formulação negativa da causalidade adequada – que é a mais ampla- a condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre inteiramente inadequada, indiferente para aquele resultado, o que neste conspecto não se mostra afastada.

Por outro lado, para além de não se ter provado que o veículo excedia o limite de velocidade instantânea no local, que era de 90 Km/hora, não se pode afirmar, perante o quadro fáctico enunciado, que ainda assim seguisse em velocidade “excessiva”, para efeitos do nº 1 do art.º 24º do C.E., já que a mera circunstância de ter ocorrido o embate com a projecção do peão a distância não apurada não é suficiente para tanto.

Ademais, “a regra, afirmada pelo nº 1 do art. 24º do CE, de que o condutor deve especialmente fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente significa dever assegurar-se, no exercício da condução automóvel, de que a distância entre ele e qualquer obstáculo visível é suficiente para, em caso de necessidade, o fazer parar, regendo especialmente para os condutores que circulam com veículos automóveis à sua vanguarda pressupõe a inverificação de condições anormais ou obstáculos inesperados e imprevisíveis, não lhe sendo exigível que contem com eles, nomeadamente os derivados da imprevidência alheia.”.

Aderimos, assim, à proporção de culpa que foi fixada na sentença inexistindo fundamento para imputar o acidente a culpa exclusiva do condutor do veículo».

Persistem, porém, os recorrentes em defender que a responsabilidade pelo acidente deve ser imputada, a título de culpa exclusiva, ao condutor do veículo ...-LO-....

E, em nosso entender, assiste-lhes razão.

Senão vejamos.

No que aqui releva, prescreve o Código da Estrada, alterado pela Lei nº 72/2013, de 3 de setembro, em vigor à data do acidente dos autos, no seu art. 3º, nº 2 que « As pessoas devem abster-se de atos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança, a visibilidade ou a comodidade dos utilizadores das vias, tendo em especial atenção os utilizadores vulneráveis», entre os quais se encontram os peões, nos termos da al. q) do art. 1º.

Relativamente aos veículos automóveis, dispõe o art. 13º, n.º 1 do Código da Estrada, que «a posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes».

Fixa, pois, tal disposição o local onde deve decorrer o trânsito num justo meio termo – o mais próximo possível das bermas ou passeios, mas a uma distância destes que permita evitar qualquer acidente.

No mesmo sentido, preceitua o art. 38º, nº 2, al. e), do CE que «o condutor deve, especialmente, certificar-se de que (…) à passagem de peões que circulem ou se encontrem  na berma, guarda a distância lateral mínima de 1,5 m e abranda a velocidade », estabelecendo ainda o art. 24º, nº 1, que «o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via (…) e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo  no espaço livre e visível à sua frente» e o art. 25º, nº 1, al. e) que « Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor  deve moderar especialmente a velocidade … à aproximação de utilizadores vulneráveis»

Por sua vez, no que se refere ao trânsito de peões, dispõe o art. 99º, nº 1, que «Os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas », estabelecendo no seu nº 2, al. a que «Os peões podem, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudica o trânsito de veículos (…) quando efetuem  o seu atravessamento».

E estipula o art. 101º, no nº 1, que «Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa  dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente » e, no nº 4, que «Os peões não devem (…) utilizar as bermas de modo a prejudicar ou perturbar o trânsito » .


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Por outro lado e no que respeita à dinâmica do acidente, analisando a factualidade dada como provada nos pontos nºs 1 a 28, colhe-se, no essencial, que o CC encontrava-se parado na berma do lado direito, de frente para a faixa de rodagem, junto da linha que delimitava a berma da hemi-faixa e que, pretendendo atravessar a faixa de rodagem e dirigir-se para o veículo pesado que se encontrava estacionado  na berma contrária, olhou para a sua direita,  no sentido de ..., e não visualizando qualquer veículo a circular, efetuou um movimento de inclinação do corpo na direção da faixa de rodagem, sem que os seus pés ultrapassassem essa linha delimitadora existente entre a berma e a hemi-faixa de rodagem, não representando que ocorresse o embate.

Nesse momento, aproxima-se o veículo de matrícula ...-LO-..., circulando a uma velocidade de, pelo menos, 50 Km/hora,  cujo condutor não reduziu a velocidade,  não travou, não desviou a marcha a que seguia ao aproximar-se do local onde se encontrava o peão, não guardou a distância da berma para evitar embater neste e não representou que ocorresse o embate, pelo que embateu com o espelho retrovisor lateral direito do ...-LO-... no corpo do CC, que foi projetado no ar, vindo a cair  no solo, ficando com a parte superior do corpo (da cintura para cima) dentro da berma do lado direito, e a parte inferior (da cintura para baixo) dentro da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha .../....

Mais se colhe  que, no  local, a faixa de rodagem configurava uma reta, com mais de um quilómetro de extensão, com visibilidade em ambos os sentidos de trânsito; o condutor do veículo ...-L0-... conseguia visualizar o peão e o veículo pesado imobilizado a, pelo menos, 100 metros de distância e que, aquando do embate, o mesmo já havia percorrido mais de 500 metros da reta; no local, a faixa de rodagem tinha a largura total de 5,75 metros, com uma hemi-faixa rodagem para cada sentido de trânsito, com uma largura de 2,85 metros cada, separadas por traço longitudinal descontínuo e que a ladear a faixa de rodagem existiam bermas compostas por alcatrão e por terra batida, delimitadas da faixa de rodagem por linha longitudinal, as quais permitiam a paragem e estacionamento de veículos ligeiros e pesados, sem condicionar o trânsito; no local o limite de velocidade instantânea era de 90 Km/hora e na data o tempo estava bom e o piso encontrava-se seco e em razoável estado de conservação.

Ora, analisando esta factualidade à luz do quadro jurídico supra traçado, diremos, desde logo, que contrariamente ao decidido pelas instâncias, não se vislumbra que se possa imputar ao CC culpa pela produção do acidente, pois nem sequer se vê que o mesmo tenha violado, mesmo objetivamente, qualquer  regra de trânsito.

É que se é certo  não se ter provado que  o mesmo, antes de ter efetuado o movimento de inclinação do corpo na direção da faixa de rodagem, tivesse olhado para a esquerda, no sentido de ..., donde  provinha o veículo de matrícula ...-LO-...,   certo é também que, dessa falta de prova, não se pode concluir que não olhou.

Do mesmo modo não se descortina que  com a  inclinação  do  corpo na direção da faixa de rodagem, o CC tenha dado causa ao embate, pois a verdade é que os seus pés nem sequer  ultrapassaram a linha delimitadora existente entre a berma, onde estava parado, e a hemi-faixa de rodagem por onde circulava o ...-LO-....  

Quanto a nós, o acidente dos autos ficou a dever-se a culpa exclusiva do condutor deste veículo que, para além de ter violado, objetivamente, as regras ínsitas nos supra citados arts. 13º, nº 1, 38º, nº 2, al. e), 24º, nº 1 e 25º, nº 1, al. e), fê-lo de forma culposa na medida em que podia ter agido de modo diverso.

Desde logo, porque a faixa de rodagem destinada à  sua circulação tinha 2,85 metros de largura e, por isso, era suficiente para o mesmo deixar um certo espaço livre entre o veículo  e berma por forma a  não colocar em perigo os peões que  nela se encontrassem ou por ela transitassem, tanto mais que, na altura não circulava qualquer veículo no sentido de .../..., como resulta claro dos factos dados como provados no nº 14.

E a verdade é que aquele condutor, como evidenciam os factos provados no nº 23, não só não guardou a distância lateral mínima de 1,5m à passagem do CC, imposta pelo art. 38º, nº 1, al. e), do C. Estrada, como também não  observou a “ margem de segurança” a que alude o art. 13º nº 1, do mesmo diploma, sendo que o facto de ter ido embater com o espelho retrovisor do ...-LO-... no CC, que se encontrava parado na berma, sem que os seus pés tivessem fora da linha que separava esta berma da hemi faixa de rodagem é bem demonstrativo de que conduzia aquele veículo muito próximo da berma, sem justificação para tanto, pois, tal como se deixou dito, na altura, não circulava qualquer veículo no sentido de .../....

Acresce que, configurando  a estrada, no local, uma reta com mais de um quilómetro de extensão, com visibilidade em ambos os sentidos de trânsito, que, aquando do embate, o condutor do veículo ...-LO-... já havia percorrido mais de 500 metros da reta e que podia visualizar o CC a, pelo menos, 100 metros de distância, não se pode deixar de concluir que se o mesmo não viu o CC, isso só pode ser imputado à sua distração, falta de cuidado e diligência.

De resto, a circunstância de, tal como ficou provado, aquele condutor não ter reduzido a velocidade, não ter travado, nem desviado a marcha que seguia, ao aproximar-se do local onde se encontrava o peão, é disso bem elucidativo.

Por outro lado, mesmo admitindo,  na hipótese mais favorável ao condutor do ...-LO-..., que este veículo circulava à velocidade de 50 Km/hora, impunha-se que, à aproximação do peão, o mesmo moderasse especialmente a velocidade, como impõe o art. 25º, nº 1, al. e), do CE, sendo certo que o facto do CC, com o embate ter sido projetado no ar, é bem demonstrativo de que a velocidade a que seguia não era a ajustada.

Daí que, por todo o exposto, seja de concluir ter o condutor do ...-LO-... infringido o disposto nos citados artigos 13º, 38º, nº 2. al. e), 24, nº 1 e 28º, nº 1, al. e), todos do CE, constituindo, nessa medida, o único culpado[3],  para a produção do acidente.

Procede, pois, quanto a este segmento, o presente recurso.


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4.2.2. Indemnização pela perda do direito à vida do pai do autor e companheiro da BB.

Neste capítulo, peticionou o autor a fixação de uma compensação de € 100.000,00 pela perda do direito à vida do seu falecido pai, a ser-lhe atribuída na proporção de metade para ele e para a BB.

A sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, considerou, na esteira dos ensinamentos de Leite Campos[4] que esta obrigação de indemnizar deve se avaliada “pelo valor da vida para a vítima enquanto ser”, traduzindo o dano morteum prejuízo  igual para todos os homens” e a  “lesão de um bem  superior a todos os outros ».

Assim, atendendo, nos termos do art. 496º, nºs 1 e 4, do C. Civil, a todas as circunstâncias apuradas nos autos e seguindo de perto a orientação  plasmada, entre outros, no Acórdão do STJ, de 08.06.2017 (processo nº 1524/10.7TBOAZ.P1.S1)[5], entendeu «ser justo e equitativo fixar o valor do dano da perda da vida no montante de € 80.000,00».

Por sua vez, considerou o acórdão recorrido que, tal como se vem afirmando repetidamente nos acórdãos deste Supremo Tribunal, «consolidou-se na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o entendimento de que o dano pela perda do direito à vida, direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos, situa-se, em regra e com algumas oscilações, entre os € 50 000,00 e € 80 000,00, indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a € 100.000,00» [6].

Deste modo, ante o disposto no art. 496º, nºs 1 e 4, do C. Civil e tendo em conta que, à data, a vítima tinha 53 anos de idade, faleceu no estado de divorciado, vivia há, pelo menos, 6 anos com BB como se de marido e mulher se tratassem e trabalhava como motorista de veículos pesados, mas colocando o acento tónico na circunstância de a dinâmica do facto infortunístico, apenas ser parcialmente atribuível ao lesante, entendeu que «a justa indemnização a atribuir pela perda do direito à vida de CC se situará no valor correspondente que, aproximadamente, estará na média do que são os padrões correntes na jurisprudência, e que, concretamente, se fixa em 60.000,00 €», pelo que reduziu para este valor a indemnização arbitrada, a este título, pelo Tribunal de 1ª Instância.    

Persistem, porém, os recorrentes em defender que tal valor deve ser fixado em € 100.000,00.

Que dizer ?

Desde logo que, como ensina Antunes Varela e vem sendo seguido pela jurisprudência dos nossos tribunais, o juízo de equidade requer do julgador que tome «em conta todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida»[7], sem esquecer, como sublinha o já citado Acórdão do STJ, de 08.06.2017, que «no critério a adotar, não se devem perder de vista os padrões indemnizatórios decorrentes da prática jurisprudencial, procurando - até por uma questão de justiça relativa - uma aplicação tendencialmente uniformizadora ainda que evolutiva do direito, como aliás impõe o n.º 3 do artigo 8.º do CC, mas sem descurar as especificidades de cada caso».

E a verdade é que, em sede de avaliação do dano morte, a mais recente jurisprudência do STJ tem vindo a progredir, consoante os casos, para níveis mais próximos dos € 80.000,00, a rondar mesmo, nos casos mais graves, os € 100.000,00[8].

Assim, foi nesta linha  de entendimento que no Acórdão do STJ, de 21.03.2019 (processo n.º 20121/16.7T8PRT.P1.S1)[9], se fixou, relativamente a uma situação equiparável  à do caso concreto «sub juditio» [ existência de concorrência de culpas entre o condutor do veículo seguro na ré e a vítima, na proporção de 30% para o condutor e de 70% para a vítima mortal, que, à data, tinha 55 anos de idade], a indemnização devida pela perda do direito à vida em € 80.000,00.

E, no recente Acórdão do STJ, de 04.06.2020 (processo nº 2732/17.5T8VCT,G1.S1) [10], teve-se por razoável arbitrar a indemnização de € 80.000,00 num caso em que o lesado  tinha 53 anos, quando foi vitimado por um acidente de viação da exclusiva responsabilidade do condutor do veículo objeto do seguro firmado na ré. 

Daí que, ponderando as circunstâncias em que decorreu o acidente, a idade da vítima mortal (53 anos), o facto de não ter dado causa ao acidente e atendendo, numa perspetiva de satisfação das exigências do princípio da igualdade plasmado no art. 13º, nº 1 da CRP, aos parâmetros seguidos pela jurisprudência  mais atualista deste Supremo Tribunal,  seja de considerar, por um lado, excessivo o montante de € 100.000,00 reclamado pelos recorrentes a título de indemnização pela perda do direito à vida de CC e, por outro lado, insuficiente o montante arbitrado pelo Tribunal da Relação, tendo-se, antes, por mais razoável e equitativa a compensação de € 80.000,00 arbitrada pela 1.ª instância.

Têm, assim, o autor e a BB, em conjunto, direito este montante, cabendo, por isso, a cada um deles a quantia de € 40.000,00.      

Termos em que procedem apenas parcialmente as razões invocadas pelos recorrentes.


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4.2.2. Indemnização devida pelos sofrimentos da vítima desde a ocorrência do acidente até à sua morte.

Relativamente a este dano chamado de dano intercalar, que constitui a conversão económica da dor e angústia sofridas pela vítima, durante o período que mediou entre o acidente e a morte, importa realçar constituir entendimento pacífico no seio da jurisprudência  deste Supremo Tribunal, que os valores a fixar, nos termos do disposto no art. 496º, nº4, do C. Civil, variam bastante em função das circunstâncias do caso concreto, designadamente da gravidade das lesões sofridas, da intensidade das dores sofridas e do período de tempo durante a qual as dores se prolongam[11].

No caso dos autos e no que aqui releva, colhe-se que:

- No dia 29.10.2016, pelas 9h40 m, o CC encontrava-se parado na berma do lado direito, de frente para a faixa de rodagem, junto da linha que delimitava a berma da hemi-faixa;

- E pretendendo atravessar a faixa de rodagem e dirigir-se para o veículo pesado que se encontrava estacionado na berma contrária, efetuou um movimento de inclinação do corpo na direção da faixa de rodagem, sem que os seus pés ultrapassassem essa linha delimitadora existente entre a berma e a hemi-faixa de rodagem;

- Nesse momento aproximava-se o veículo de matrícula ...-LO-..., cujo espelho retrovisor lateral direito embateu no corpo do CC.

-  Com o embate do espelho retrovisor direito o CC foi projetado no ar, vindo a cair no solo, ficando prostrado com a parte superior do corpo (da cintura para cima) dentro da berma do lado direito, e a parte inferior (da cintura para baixo) dentro da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha .../....

- Na berma e perto da zona da cabeça ficou uma poça de sangue.

- Foi socorrido no local pelo INEM e após transportado para o Hospital ..., onde realizaram-lhe exames e tratamentos.

- Em consequência do embate sofreu laceração encefálica, traumatismo craniano e politraumatismos, com fratura do 3º ao 6º arco costais anteriores, com fraturas no parietal direito, no occipital direito, no maxilar inferior à esquerda, nas órbitas, no tecto, com infiltração hemorrágica parieto-temporal direita, contusão e status craniotomia, status craniotomia descompressiva e focos de contusão, edema cerebral e laceração.

- Lesões que foram causa direta e necessária da sua morte, declarada no dia 30.10.2016, pelas 14h00m.

Perante este quadro factual e considerando dele resultar  que o CC « ofreu traumatismo craniano e laceração encefálica, politraumatismos, tendo sobrevivido algumas horas (entre as 9h40m do dia 29.10.2016 e as 13h18m do dia 30.102016) antes da  morte, não se apurando que tivesse ficado de imediato inconsciente, ou o contrário»,  entendeu o Tribunal de 1ª Instância ser lícito concluir que o mesmo teve sofrimento, pelo que decidiu ser justo e equitativo fixar o valor deste dano no montante de € 20.000,00 peticionado pelo autor.

Diverso entendimento teve o Tribunal da Relação que considerou os factos provados parcos para justificar a indemnização atribuída, pois não se provou que “antes do embate o peão apercebeu-se que ia ser embatido e que iria falecer atropelado” e que “desde o embate até falecer sofreu dores intensas”.

Contudo e ponderando as «concretas circunstâncias em que ocorreu o acidente e o tempo que decorreu entre aquele e a morte», julgou ajustado o valor de € 5.000,00. 

Quanto a nós, tendo presente que no caso dos autos ficou provado que, mercê do embate com o espelho retrovisor do veículo ...-LO-..., o CC foi projetado no ar, caindo depois no solo, onde perto da zona da cabeça, ficou uma poça de sangue e que, em consequência daquele embate, o mesmo sofreu laceração encefálica, traumatismo craniano e politraumatismos, com fratura do 3º ao 6º arco costais anteriores, com fraturas no parietal direito, no occipital direito, no maxilar inferior à esquerda, nas órbitas, no tecto, com infiltração hemorrágica parieto-temporal direita, contusão e status craniotomia, status craniotomia descompressiva e focos de contusão, edema cerebral e laceração e que estas lesões foram causa direta e necessária da sua morte, declarada no dia 30.10.2016, pelas 14h00m, afigura-se-nos demasiado reduzido o valor arbitrado pelo acórdão recorrido,  considerando-se justo e adequado o valor de € 20.000,00, fixado na sentença da 1ª Instância

Têm, assim, o autor e a BB, direito a este montante, cabendo a cada um deles a quantia de € 10.000,00. 


Procedem, pois, quanto a este segmento, as razões invocadas pelos recorrentes.


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4.2.3. Indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo autor e pela interveniente BB.

Neste capítulo, o autor e a BB peticionaram a indemnização de € 60.000,00 para cada um deles.

E, no caso dos autos, apurou-se que:

- O CC nasceu a … .03.1963 e faleceu no estado de divorciado.

- Vivia há pelo menos 6 anos com BB como se de marido e mulher se tratassem.

- Trabalhava como motorista de veículos pesados.

- O autor é filho de CC, com o qual ficou a residir após separação dos pais.

- Sofreu desgosto com a morte do pai, com o qual mantinha relação de amizade, de suporte e amparo, material e sentimental.

- A companheira BB sofreu desgosto com a morte do companheiro, com o qual mantinha relação de suporte e amparo, material e sentimental.

Ante este cenário factual e atendendo «à idade da vítima e ao seu grau de ligação ao autor e à interveniente, sendo de valorar os laços familiares existentes com o filho, que após separação dos pais ficou a residir com o pai», o Tribunal de 1ª Instância arbitrou ao autor a indemnização de € 45.000,00 e à BB a indemnização de € 35.000,00.

Por sua vez, o Tribunal da  Relação, « apelando aos padrões correntes da jurisprudência e ponderando  que o filho da vítima é maior de idade, independente económica e financeiramente do malogrado pai e que a companheira BB  não obstante ter sofrido “desgosto com a morte do companheiro, com o qual mantinha relação de suporte e amparo, material e sentimental” estava unida à vítima há escassos anos», entendeu ser  de reduzir as indemnizações  fixadas em € 35.000,00 e € 20.000,00, respetivamente.

Confrontados  com esta divergência das  instâncias e  cumprindo-nos indagar, no âmbito do presente recurso de revista, quais  os valores arbitrados que mais se  harmonizam com os critérios ou padrões seguidos pela  jurisprudência,  importa salientar, tal como nos dá conta o citado Acórdão do STJ de 21.03.2019, proferido no processo n.º 20121/16.7T8PRT.P1.S1[12], que relativamente à indemnização de um filho pela morte do pai ou mãe, a jurisprudência deste Supremo Tribunal  tem fixado valores que têm variado, em razão da especificidade do caso, entre € 7.500,00 e € 30.000,00[13], tendo fixado valores mais elevados apenas nos casos em que existe uma especial situação de fragilidade dos filhos em causa havendo[14].

Assim, à luz destes parâmetros e cientes da necessidade de uma progressiva atualização dos valores indemnizatórios, impõe-se concluir, ante o quadro factual supra descrito, ser ajustada a indemnização arbitrada pela Relação ao autor, não se vislumbrando razões para estabelecer, a este nível, a diferenciação entre o autor, enquanto filho da vítima, e a interveniente BB, atendo o facto de a mesma ter vivido em união de facto com a vítima durante 6 anos.

Com efeito, resulta claro da matéria dada como provada que ambos mantinham com a vítima laços de afetividade e convivência no âmbito de um mesmo consolidado agregado familiar, admitindo-se que ambos ficaram psicologicamente afetados, em igual medida, pela perda do CC.

Considera-se, por isso, justo e adequado que a indemnização base pelos danos próprios do autor e da interveniente BB seja fixada em € 35.000,00.

Termos em que, nesta conformidade, procedem as razões dos recorrentes.


***


IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em:

A - Julgar improcedente a questão prévia suscitada pela ré.

B - Conceder, parcialmente, a revista decidindo-se:

I - alterar o acórdão recorrido nos segmentos referentes à imputação subjetiva da produção do acidente e à compensação pela perda do direito à vida do falecido pai do autor e companheiro da interveniente BB e, consequentemente, condenar a ré, Ageas Portugal-Companhia de Seguros, S.A. a pagar:

1.  ao autor AA, a quantia global de € 85.000,00, acrescida de juros de mora desde a data da sentença da 1.ª instância, sendo:

a) € 40.000,00 (quarenta mil euros), a título de compensação pela perda da vida da vítima;

b) € 10.000,00 (dez mil euros), a título de compensação pelos danos não patrimoniais da vítima que antecederam a morte;

c) € 35.000,00 (trinta e cinco mil e quinhentos euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais próprios.

2. à interveniente BB, a quantia global de € 85.000,00, acrescida de juros de mora desde a data da sentença da 1.ª instância, sendo:

a) € 40.000,00 (quarenta mil euros), a título de compensação pela perda da vida da vítima;

b) € 10.000,00 (dez mil euros), a título de compensação pelos danos não patrimoniais da vítima que antecederam a morte;

c) € 35.000,00 (trinta e cinco mil e quinhentos euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais próprios.

C - Confirmar no mais o acórdão recorrido.      

As custas ficam a cargo das partes na proporção do respetivo decaimento.


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Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade da Exmª. Senhora Conselheira Catarina Serra e do Exmº Senhor Conselheiro Paulo Rijo Ferreira que compõem este coletivo.

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Supremo Tribunal de Justiça, 25 de fevereiro, de 2021

Maria Rosa Oliveira Tching (relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira

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[1] Neste sentido, entre outros, os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 11/02/2016 (proc. n.º 403/13.0TVLSB.L1.S1), de 11/05/2017 (processo n.º 3779/12.3TBBCL.G1), cujos  sumários estão acessíveis in www.stj.pt, e de 01/03/2018 (processo nº 1755/12.5TVLSB.L1.S1), in www.dgsi.pt.
[2] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[3] Traduzindo-se a culpa, no dizer de Antunes Varela, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 102, pág. 58, na omissão da diligência exigível ao agente, tradutível em complexo juízo de censura ou responsabilidade.
[4]  “A Vida, a morte e a sua indemnização”, in BMJ, nº 365, pág. 15.
[5] Acessível in wwwdgsi/stj.pt.
[6] Cfr., entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31.01.2012; de 10.05.2012 (processo 451/06.7GTBRG.G1.S2); de 12.09.2013 (processo 1/12.6TBTMR.C1.S1); de 24.09.2013 (processo 294/07.0TBETZ.E2.S1); de 19.02.2014 (processo 1229/10.9TAPDL.L1.S1); de 09.09.2014 (processo 121/10.1TBPTL.G1.S1); de 11.02.2015 (processo 6301/13.0TBMTS.S1); de 12.03.2015 (processo 185/13.6GCALQ.L1.S1); de 12.03.2015 (processo 1369/13.2JAPRT.P1S1); de 30.04.2015 (processo 1380/13.3T2AVR.C1.S1); de 03.11.2016 ( processo nº 6/15.5T8VFR.P1.S1); de 18.06.2015 (processo 2567/09.9TBABF.E1.S1); de 16.09.2016 (processo 492/10.0TBB.P1.S1), todos acessíveis  in  www.dgsi/stj.pt.
[7] In “Das Obrigações em Geral”, Vol. 1.º, 10.ª Edição, Almedina, pág. 605, nota 4.
[8] Cfr. O recente Acórdão do STJ, de 11.02.2021 (processo nº 621/18.8T8AGH.L1.S1), ainda não publicado.
[9] Relatado pela Juíza Conselheira Maria da Graça Trigo, subscrito pela ora relatora como 1.ª Adjunta, e acessível em www.dgsi/stj.pt.
[10] Relatado pelo Juiz Conselheiro Tomé Gomes, subscrito pela ora relatora como 2.ª Adjunta, e acessível em www.dgsi/stj.pt.
[11] Neste sentido e ente muitos outros, os Acórdãos do STJ, de 08.09.2011 (proc. nº 2336/04.2TVLSB.L1.S1); de 27.09.2011 (proc. nº 425/04.2TBCTB.C1.S1); de 24.10.2013 (proc. nº 225/09.3TBVZL.S1); de 29.10.2013 (proc. nº 62/10.2TBVZL.C1.S1); de 28.11.2013 ( proc. nº 177/11.0TBCP.S1) de 15.09.2016 (proc. nº 492/10.0TBBAO.P1.S1) e de 02.03.2017 (proc. nº 36/12.9TBVVD.G1.S1), acessíveis in www.dgsi.pt ou em sumários da jurisprudência cível, www.stj.pt.
[12] Acórdão relatado pela Juíza Conselheira Maria da Graça Trigo, aqui 1.ª adjunta, e acessível em www.dgsi.pt.
[13] Cfr. os Acórdãos  do STJ, de 07.01.2010 (proc. nº 1975/04.6TBSXL.S1); de 07.07.2010 (proc. nº 1207/08.8TBFAF.G1.S1);de 12.10.2010 (proc. nº 2079/06.2TBBRR.L1.S1); de 22.02.2011 (proc. nº 25/06.2TBFLG.G1.S1); de 13.09.2011 (proc. nº 218/07.5TBAVZ.C1.S1); de 27.09.2011 (proc. nº 425/04.2TBCTB.C1.S1); de 27.10.2011 (proc. nº 3301/07.3TBBCL.G1.S1); de 01.03.2012 (proc. nº 2167/04.0TBAMT.P1.S1); de 12.06.2012 (proc. nº 1483/07.3TBBNV.L1.S1); de 30.10.2012 (proc. nº 830/08.5TBVCT.G1.S1); de 20.11.2012 (proc. nº 2/07.6TBMC.G1.S1); de 28.11.2013 (proc. nº 177/11.0TBPCR.S1); de 29.01.2014 (proc. nº 49/05.7TBPRL.E1.S1); de 03.04.2014 (proc. nº 436/07.6TBVRL.P1.S1); de 29.04.2014 (proc. nº 106/12.3TBVZL.S1); de 09.09.2014 (proc. nº 121/10.1TBPTL.G1.S1); de 21.04.2015 (proc. nº 184/2000.C3.S1); de 07.05.2015 (proc. nº 982/11.7TBSTR.E1.S1); de 09.07.2015 (proc. nº 1647/13.0TBBRG.G1.S1);  de 09.07.2015 (proc. nº 2985/05.1TBVRL.P1.S1); de 15.09.2016 (proc. nº 492/10.0TBBAO.P1.S1); de 02.03.2017 (proc. nº 36/12.9TBVVD.G1.S1); de 08.03.2018 (proc. nº 209/13.7TBTMR.E1.S1) e de 05.06.2018 (proc. nº 370/12.8TBOFR.C1.S2), acessíveis in www.dgsi/stj.pt ou  in sumários da jurisprudência cível, www.dgsi/stj.pt.
[14] Cfr, entre outros, Acórdãos do STJ, de 10.01.2012 (proc. nº 4524/06.8TBBCL.L1.S1) e de 19.04.2012 (proc. nº 569/10.1TBVNG.P1.S1), consultáveis em www.dsgi/stj.pt.