Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
38/20.1PKSNT.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: CID GERALDO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
DECISÃO SUMÁRIA
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
REJEIÇÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DUPLA CONFORME
IRRECORRIBILIDADE
Data do Acordão: 06/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - A manifesta improcedência verifica-se quando, atendendo à factualidade apurada, à letra da lei e à jurisprudência dos tribunais superiores, é patente a sem razão do recorrente. A possibilidade de rejeição liminar, em caso de improcedência manifesta, tem em vista moralizar o uso do recurso.
II - Havendo recurso para o TRL, sendo o recurso rejeitado por decisão sumária do relator, tendo reclamado o arguido para a conferência, indeferindo o TRL a reclamação, no acórdão recorrido, concluI -se que a decisão sumária (primeiro), e o acórdão do TRL (depois), mantiveram integralmente (confirmaram) o acórdão do tribunal colectivo no que toca à factualidade provada, à respectiva qualificação jurídica e às penas. Ora, esse juízo confirmativo garante o duplo grau de jurisdição consagrado pelo art. 32.º, n.º 1 da CRP.
III - Isto significa, visto o disposto nos art. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, que o acórdão do tribunal da Relação de Lisboa (que indeferiu a reclamação, confirmando a decisão Ssmária proferida) é irrecorrível na parte em que confirma a condenação da 1.ª instância (princípios da dupla conforme condenatória e da legalidade), apenas podendo ser apreciado quanto à pena única que lhe foi imposta por ser superior a 8 anos de prisão, desde que houvesse recurso nessa parte, o que não aconteceu, uma vez que conforme resulta das conclusões que delimitam o objecto do recurso, o recorrente não impugnou a pena única, nem mesmo a título subsidiário.
IV - Quanto à quantia arbitrada nos termos do art. 82.º-A do CPP., deverá atender-se que, face o disposto no art. 400.º, n.º 2, do CPP, sem prejuízo do disposto nos art. 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada. A alçada do tribunal da Relação em matéria cível é de 30.000 euros (art. 44.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26-08). Ora, uma vez que o valor da reparação atribuída à vítima foi fixado em 25.000 euros, também nesta parte o recurso é inadmissível.
Decisão Texto Integral:


Procº nº 38/20.1PKSNT.L1.S1  

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça.

I. RELATÓRIO

I.1. Por acórdão proferido em 23 de abril de 2021, pelo Juízo Central Criminal de Sintra, o arguido, AA, foi condenado, pela prática, em coautoria material com os arguidos BB, CC e DD, dos seguintes crimes:

- de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, previsto e punível pelos artigos 131º, e 132º, nº 2, alínea h), do Código Penal, e artigo 4º do DL nº 401/82, na pena de 8 (oito) anos de prisão; e

- de um crime ofensa à integridade física qualificada, na forma consumada, previsto e punível pelos artigos 143º, nº 1, e 145º, n.os 1, alínea a), e 2, por referência à alínea h) do nº 2 do 132º, todos do Código Penal, e artigo 4º do DL nº 401/82, na pena de 1 (um) ano de prisão.

- Em cúmulo jurídico das sobreditas duas penas, o arguido AA foi condenado na pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão.

- Mais foi condenado a pagar a EE, mãe da vítima FF, em regime de solidariedade com os coarguidos não recorrentes, a quantia de 25.000 euros, arbitrada nos termos do art. 82º-A do CPP, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora

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I.2. Não se conformando com o Acórdão condenatório proferido pelo Tribunal de 1.ª instância, o arguido AA, recorreu para o TRL, impugnando alguns dos factos provados (conclusões 4.ª, 8.ª e 10.ª a 13.ª), invocando a violação do in dubio pro reo (conclusões 14.ª a 19.ª), questionando o enquadramento da agressão ao ofendido GG no tipo de ofensa à integridade física qualificada por que foi condenado (conclusões 20.ª a 33.ª), preconizando que a sua actuação contra o malogrado FF deve ser reconduzida ao crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos arts. 143º, nº 1, e 145º, n.os 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132º, nº 2, al. h), todos do CP, e punida com a pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na execução (conclusões 36.ª a 39.ª), defendendo, para a hipótese de este último entendimento não prevalecer, a aplicação de uma pena inferior a 5 anos de prisão suspensa na execução pela prática do crime de homicídio qualificado (conclusão 40.ª) e, por último, a improcedência, condicionada à sua absolvição do crime de homicídio qualificado, do arbitramento da indemnização civil (conclusão 41.ª).

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I.3. Na Resposta a este recurso o MºPº, em 1ª instância, chamou a atenção para que o recorrente não procedera a uma verdadeira impugnação da matéria de facto e que, ao invés de indicar as provas que impunham decisão diversa da recorrida, “se limitou a transcrever excertos de alguns depoimentos que individualizou”, razão pela qual a impugnação da matéria de facto não deveria assumir qualquer relevância e sustentando que o recurso não merecia provimento.

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I.4. No Tribunal da Relação de Lisboa, o Parecer do MºPº foi no mesmo sentido.

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I.5. O Tribunal da Relação de Lisboa, por Decisão Sumária de 17/11/021, proferida pelo relator, rejeitou, por manifesta improcedência substantiva, o recurso interposto pelo recorrente.

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I.6. O arguido reclamou para a conferência invocando a nulidade da decisão sumária por falta de fundamentação – discute o conceito de “manifesta improcedência” - artº 420 nº 1 al. a), pretendendo-o afastar como fundamento da decisão sumária, concluindo, assim, que a decisão não estava fundamentada - e omissão de pronúncia - por o tribunal não se ter pronunciado acerca do que considerava ser um erro de Direito, que já antes tinha invocado, (remetendo para os nº 20 a 35 das Conclusões do recurso que havia interposto do Acórdão proferido em 1ª instância)

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I.7. O MºPº pronunciou-se sobre estas nulidades - falta de fundamentação e omissão de pronúncia - emitindo parecer no sentido da sua inexistência.

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I.8. Em Conferência, o Tribunal da Relação de Lisboa, por decisão proferida em 10/2/022, confirmou, a Decisão Sumária proferida, indeferindo a reclamação apresentada para a conferência por AA.

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I.9. Desse acórdão, veio o arguido AA interpor recurso para o STJ.

Da motivação do recurso, retira o recorrente as seguintes conclusões:

1. O presente recurso tem por objeto: nulidade do Acórdão da Relação de Lisboa de 20/02/2022, por falta de fundamentação, no que corresponde ao exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal de 1.ª instância, as quais foram controvertidas no recurso para a Relação – ver o artigo 379º nº 1, alínea a), por referência ao disposto no artigo 374º, nº 2, aqui aplicáveis ex vi do artigo 425º, nº 4; nulidade do Acórdão da Relação de Lisboa de 20/02/2022, por omissão de pronúncia – cf. o artigo 379º, nº 1, alínea c), aqui aplicável por efeito do artigo 425º, nº 4; subsidiariamente – erro de direito/enquadramento; ainda subsidiariamente – medida da pena; e o arbitramento civil.

2. O arguido AA foi condenado, pela prática, em coautoria material com os arguidos BB, CC e DD, dos seguintes crimes: de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 131º, e 132º, nº 2, alínea h), do Código Penal, e artigo 4º do DL nº 401/82, na pena de 8 anos de prisão; e de um crime ofensa à integridade física qualificada, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 143º, nº 1, e 145º, n.os 1, alínea a), e 2, por referência à alínea h) do nº 2 do 132º, todos do Código Penal, e artigo 4º do DL nº 401/82, na pena de 1 ano de prisão. Em cúmulo jurídico das sobreditas duas penas, o arguido AA foi condenado na pena única de 8 anos e 6 meses de prisão.

3. Na envolvência de um arbitramento de indemnização civil em benefício de EE, mãe da vítima FF, todos os arguidos foram condenados a pagar-lhe solidariamente a importância de 25 000 €, a título de danos não patrimoniais.

4. No recurso, sinalizou-se a facticidade que o tribunal a quo deu como provada, bem como a pertinente motivação (que aqui se consideram descritas)

5. Seguidamente, foi transcrito o seguinte:

a) - as 41 conclusões atinentes ao recurso interposto pelo arguido para o tribunal da Relação de Lisboa;

b) – o teor da DECISÃO SUMÁRIA, prolatada em 17/11/2021 pela JUÍZA- DESEMBARGADORA RELATORA, que decidiu rejeitar “por manifesta improcedência substantiva os recursos interpostos por BB, DD, CC e AA;

c) – na parte significativa, a reclamação para a conferência e a arguição de uma nulidade apresentadas, na Relação de Lisboa, pelo arguido AA;

d) – na fração relevante, o conteúdo do Acórdão da Relação de Lisboa de 10 de fevereiro de 2022

[Dá-se aqui por totalmente reproduzida a transcrição relativa à materialidade assinalada na conclusão 5, alíneas a) a d)]

NULIDADE DO ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DE 20/02/2022, POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO, no que corresponde ao exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal de 1.ª instância, as quais foram controvertidas no recurso para a Relação – ver o artigo 379º nº 1, alínea a), por referência ao disposto no artigo 374º, nº 2, aqui aplicáveis ex vi do artigo 425º, nº 4.

6. Previamente, para uma inteira compreensão da temática em apreciação, foi transcrito o que ficou registado, pelo arguido AA, no recurso por si intentado para o Tribunal da Relação de Lisboa, nos seguintes apartados: pontos de facto indevidamente dados como provados, para os efeitos do estabelecido no artigo 412º, nº 3, alínea a); e violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo (que se acham aqui por completamente expostos)

7. De forma abreviada, foi feito o seguinte: foram concretamente indicados os factos indevidamente dados como provados; foi invocado o erro de julgamento, em cuja envolvência se fez uma digressão acerca do pertinente vício, da prova judiciária, da verdade processual, da avaliação das provas e da livre apreciação da prova; foi obtemperado o acervo probatório que se considerou igualmente apropositado, de forma a surpreender e a alcançar as incoerências, incongruidades e inconsequências emergentes dos factos e da motivação que lhes subjaz; foram transcritas as declarações do arguido AA, tidas por significativas, prestadas no âmbito do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, que reiterou no final do julgamento; foram extratadas as frações mais destacadas dos depoimentos de várias testemunhas (HH, II, JJ, KK e GG); foi desenvolvido um excurso teórico-jurídico acerca da coautoria material e da imputação subjetiva (do dolo) dos crimes atribuídos aos arguidos; foram extraídas diversas conclusões pelo que tange à prova; considerou-se que a fundamentação não foi corretamente densificada e que, por esse motivo, as impostações indexadas se sobrepõem à convicção estabelecida pelo Tribunal, que fez apelo a presunções exorbitantes da realidade fáctica, preteriu a prova efetuada, na sua dimensão multiangular e infringiu as regras da experiência e os critérios de normalidade; por fim, por se entender que as referências balizadas impunham uma decisão diversa da recorrida, afirmou-se inexistir fundamento para dar como provada a matéria de facto descrita, no Acórdão, em vários números.

8. Subsidiariamente, foi pretextada a violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo (sendo ceto que também foi delineado o quadro jurídico afeto ao princípio in dubio pro reo), em cujo recortado se averbou: a subsistência de, pelo menos, uma dúvida insanável no atinente à dinâmica dos factos e à responsabilidade do arguido AA no que corresponde aos factos que lhes são irrogados; e que esse non liquet devia ter sido resolvido em benefício do arguido.

NULIDADE POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DE LISBOA, ESTRIBADA NA AUSÊNCIA DO EXAME CRÍTICO DAS PROVAS.

9. A esse propósito, foi feito uma incursão amplificado acerca da fundamentação da sentença e do exame crítico das provas, com recurso a elementos doutrinais e jurisprudenciais; seguidamente, foram arrostados/impugnados dois itens enfatizados pelo Acórdão da Relação de Lisboa

10. Foi gizado o conceito alusivo à manifesta improcedência do recurso, com indicação de doutrina e de jurisprudência.

11. Cotejando a Decisão Sumária, o posterior Acórdão da Relação, que nada acrescentou àquela, o Acórdão da primeira instância e o recurso interposto, é inconcusso que a Decisão Sumária e o ulterior Acórdão da Relação se aferraram, num formato acrítico, ao Acórdão da primeira instância; com tal procedimento, pressuroso e injustificado, foi preterida a visão latitudinária, poliédrica e holística que se postulava e que foi redarguida no recurso. Na verdade, pode até dissentir-se da pretensão do recorrente; o que, todavia, não se lhe pode indigitar é a manifesta impertinência ou o patente desarrazoamento da avaliação por si feita pelo que tange à matéria de facto e de direito – para tanto, para abduzir semelhante assertiva, basta atentar no conteúdo das conclusões extratadas no recurso intentado da decisão da 1.ª instância; ou seja: o recurso, em vista dos termos balizados pelo recorrente, não se mostra substancialmente infundado nem desorbita das regras da experiência comum, e muito menos reverbera que não pode obter pelo menos parcial provimento num juízo de primeira aparência; acrescente-se que o recorrente, no respetivo recurso, outorga ao Acórdão da 1.ª instância a falta de fundamento de várias passagens inscritas no atinente discursivo e particulariza os motivos por que se deveria ter percorrido um itinerário factual e jurídico diferenciado.

12. A decisão sumária e o subsequente Acórdão da Relação, de que ora se recorre, consubstanciam uma resolução sobremodo epidérmica, superficial e não fundamentada, que acaba por desfechar numa conclusão facilitada, simplificada, precogitada e nolens, volens – daí que se encontrem coinquinados – o recurso não devia ter sido rejeitado por manifesta improcedência substantiva, o que significa que não havia substrato ou respaldo para a prolação de uma decisão sumária, homologada, depois, pelo Acórdão da Relação.

13. Visto que não ocorre nenhuma improcedência substantiva, muito menos manifesta, o recurso interposto devia ter sido objeto de uma decisão fundamentada, por parte da Relação, o que definitivamente não sucedeu – singularidade ainda mais gravosa, se atentarmos à valência e à densidade da pena de prisão aplicada.

14. A fundamentação a que respeita o artigo 374º, nº 2, aqui aplicável ex vi dos artigos 379º, nº 1, alínea a), e 425º, nº 4, não deve consubstanciar um procedimento em que o tribunal, no estrutural, se limita a referências inteiramente genéricas e, por vezes, abstratas, sem adentrar nas questões concretamente suscitadas. Na realidade, o tribunal da Relação restringiu-se extractar duas ou três parcelas, fazendo um apanhado inteiramente generalizado das provas, mas sem as correlacionar diretamente com as valorações feitas no recurso e sem clarificar, de forma séria e objetiva, por que motivo não outorgou credibilidade às impostações feitas pelo arguido.

15. Para coonestar/branquear a prefalada omissão, o tribunal da Relação socorreu-se de fórmulas sacramentais/costumeiras, mas completamente inócuas e vazias, de formato subjetivo e conclusivo: afirmou que a versão do arguido não merece a menor credibilidade, mas não lhe contrapôs as objeções invocadas pelo arguido

16. O Acórdão da Relação está eivado do vício da falta de fundamentação, porquanto não procedeu, de facto, a nenhuma análise crítica das provas, enunciando as razões por que as considerou credíveis. O Acórdão da Relação recorrido é nulo, por falta de fundamentação, consolidada na omissão do exame crítico das provas – dessarte, o tribunal da Relação violou o adjetivado no artigo 379º nº 1 alínea a), por referência ao estatuído no artigo 374º, nº 2 – cf, ainda, o artigo 425º, nº 4. Trata-se de uma nulidade insanável e arguível no âmbito do recurso, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 3, com a consequência de dever ser repetido o Acórdão pelo tribunal da Relação.

NULIDADE DO ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DE LISBOA DE 20/02/2022, POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA – cf. o artigo 379º, nº 1, alínea c), aqui aplicável por efeito do artigo 425º, nº 4.

17. No recurso referente ao Acórdão do Tribunal de 1.ª instância, assinalou-se existir um erro de direito/erro de enquadramento jurídico, por se entender que a matéria de facto apurada não é apta a preencher o crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, nº 1, e 145º, nºs 1, alínea a), e 2, por referência à alínea h) do nº 2 do 132º, todos do Código Penal, relativamente ao qual o arguido foi condenado na pena parcelar de 1 ano de prisão.

18. Nessa esfera, no fulcral, foi feito o seguinte: foi traçado o quadro teórico-jurídico atinente a tal crime, com enfoque particular na indicada alínea h), no segmento atinente à comparticipação; pelas razões expostas na motivação, concluiu-se que não ocorre a superioridade numérica demandada legalmente e, por isso, os factos não se subsumem ao exemplo-padrão. Significa isso que o crime em pauta, concretiza-se, então, num crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal

19. Ainda que assim não se entendesse – o que não se concede –, na situação vertente, não se pode concluir que a ofensa à integridade física verificada tenha sido produzida em circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade. Assim, também por esta via, deve operar-se a convolação para o artigo 143º, nº 1, do Código Penal

20. O procedimento atinente ao crime de ofensa à integridade física simples depende de queixa, revestindo, por conseguinte, natureza semipública; o ofendido, GG, a fls. 394, declarou não desejar procedimento criminal; por sua vez, o arguido declara, neste ato, que aceita a desistência de queixa. Dessarte, impõe-se, por qualquer dos itinerários percorridos, a homologação da tal desistência e a consequente extinção, nesta parte, do procedimento criminal que era exercido contra o arguido.

OMISSÃO DE PRONÚNCIA

21. Assuntando o teor da Decisão Sumária e do posterior Acórdão da Relação, daí exsurge, sem nenhum esforço superlativo, que eles se conformam totalmente omissos, no que se correlaciona à análise, suscitada no recurso, do indicado erro de direito ou de enquadramento jurídico; de facto, o Tribunal da Relação, na decisão sumária e no acórdão, acabou por não se pronunciar concretamente sobre o predito erro de direito, cuja decisão é também essencial para a decisão de mérito a proferir.

22. A omissão de pronúncia significa ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa; é um vício gerador de nulidade da decisão judicial (cf. o artigo 379º, nº 1, alínea c); e é aplicável aos acórdãos dos tribunais da Relação por efeito do disposto no artigo 425º, nº 4, que disciplina o seguinte: “É correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos artigos 379º […]”– no mesmo diapasão, veja-se o artigo 666º, nº 1, do CPC.

23. O Acórdão da Relação recorrido é, assim, nulo, por omissão de pronúncia – destarte, o tribunal da Relação infringiu o adjetivado nos artigos 379º, nº 1, alínea c), e 425º, nº 4. Configura-se uma nulidade insanável e arguível no âmbito do recurso, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 3, com a consequência de dever ser repetida o Acórdão pelo tribunal da Relação.

24. Na pressuposição, meramente hipotética, de não se considerar procedente a invocada nulidade – o que não se outorga de nenhuma forma –, deve então esse Colendo Tribunal conhecer do apontado erro de direito/erro de enquadramento jurídico, nos termos que ficaram sinalizados.

MEDIDA DA PENA – APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA

25. O arguido perfilhou o entendimento de que deve ser absolvido do crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º, e 132º, nº 2, alínea h), do Código Penal. Caso assim se não entenda, o que apenas se perspetiva num plano teórico, a conduta do arguido AA deve subsumir-se, no hemisfério em que é ofendido FF, ao crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, nº 1, e 145º, n.os 1, alínea a), e 2, por referência à alínea h) do nº 2 do 132º, todos do Código Penal, e artigo 4º do DL nº 401/82, não lhe sendo imputada a agravação do resultado, que se deve adstringir ao arguido BB.

26. Pelo tocante à determinação da medida concreta da pena, foi feito um percurso teórico-jurídico, a abranger, além do mais, o seguinte: a culpa e a prevenção; as finalidades das penas; e as exigências de prevenção.

27. Interessa aqui ponderar: a conduta do arguido e o facto de ele ser unicamente responsável pelo facto em que supostamente quis cooperar – e não pelo excesso; a personalidade positiva do arguido; a circunstância de se mostrar inserido social e familiarmente; a particularidade de os factos conformam uma situação meramente episódica; a singularidade de o arguido frequentar a Igreja ..., o que se representa superno em termos da estruturação de princípios e da normalização comportamental; e a conduta do arguido, anterior e posterior aos factos, ocorrendo que, nesse particular, nada de ilícito há a registar.

28. Diante disso, deve ser aplicada uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa, na respetiva execução, pelo período de 2 anos.

29. Na hipótese, que se representa errada, de se perspetivar, nos termos pugnados pelo tribunal a quo, o crime de homicídio qualificado, na vertente de dolo eventual, tendo presente que a moldura abstrata aplicável (em face da atenuação especial da pena) corresponde a uma pena de prisão cujo limite mínimo é de 2 anos, 4 meses e 24 dias e o limite máximo de 16 anos e 8 meses, a pena a aplicar, nesse caso, deve ser sempre inferior a 5 anos de prisão ou, pelo menos, igual a 5 anos, e deve ser suspensa, na respetiva execução, pelo período de 5 anos, com regime de prova.

ARBITRAMENTO CIVIL

30. Devendo o arguido ser absolvido, a consequência será naturalmente a improcedência do arbitramento civil fixado relativamente a ele

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NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADO O ACÓRDÃO RECORRIDO NOS EXATOS TERMOS DEFINIDOS NA PRESENTE PEÇA.

Consequentemente:

- deve ser declarada a nulidade do Acórdão da Relação de Lisboa de 20/02/2022, por falta de fundamentação, no que corresponde ao exame crítico das provas – cf. o artigo 379º nº 1, alínea a), por referência ao disposto no artigo 374º, nº 2, aqui aplicáveis ex vi do artigo 425º, nº 4;

- dever ser declarada a nulidade do Acórdão da Relação de Lisboa de 20/02/2022, por omissão de pronúncia – cf. o artigo 379º, nº 1, alínea c), aqui aplicável por efeito do artigo 425º, nº 4;

- a procedência das sobreditas nulidades determina a repetição do Acórdão pelo tribunal da Relação;

- subsidiariamente, deve ser declarado o erro de direito/erro de enquadramento invocado, com o efeito de ser declarado extinto, por homologação da desistência, o procedimento relativo ao crime de ofensa à integridade física;

- atendendo ao crime perspetivado no Acórdão recorrido, a pena concreta a aplicar deve ser sempre inferior a 5 anos de prisão ou, pelo menos, igual a 5 anos, e deve ser suspensa, na respetiva execução, pelo período de 5 anos, com regime de prova.

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I.10. O Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação respondeu ao recurso interposto, concluindo que deve improceder o recurso interposto pelo arguido.

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I.11. Neste Tribunal o Procurador-Geral-Adjunto emitiu Parecer, considerando:

Nos termos do art. 432º, nº 1, al. b), do CPP, recorre-se para o STJ de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, nos termos do artigo 400º.

Preceitua, por sua vez, o art. 400º, nº 1, al. f), do CPP que não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.

A irrecorribilidade prevista no art. 400º, nº 1, al. f), do CPP respeita a toda a decisão e não somente à questão da determinação da pena.

Na verdade, «como tem sido enfatizado na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, estando este, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, estará também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410º do CPP, respectivas nulidades (artigo 379º e 425º, nº 4) e aspectos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objecto, aqui se incluindo as questões relacionadas com a apreciação da prova – nomeadamente, de respeito pela regra da livre apreciação (artigo 127º do CPP) e do princípio in dubio pro reo ou de questões de proibições ou invalidade de prova –, com a qualificação jurídica dos factos e com a determinação da pena correspondente ao tipo de ilícito realizado pela prática desses factos ou de penas parcelares em caso de concurso de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400º do CPP, incluindo nesta determinação a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72º do Código Penal, bem como questões de inconstitucionalidade suscitadas neste âmbito (cfr., por exemplo, os acórdãos de 11.4.2012, no Proc. 3989/07.5TDLSB.L1.S1, de 25.6.2015, no Proc. 814/12.9JACBR.S1, de 3.6.2015, no Proc. 293/09.8PALGS.E3.S1, e de 6.10.2016, no Proc. 535/13.5JACBR.C1.S1, bem como, quanto à atenuação especial da pena, os acórdãos de 5.12.2012, no Proc. 1213/09.SPBOER.S1, e de 23.6.2016, no Proc. 162/11.1JAGRD.C1.S1)» (acórdão do STJ de 14.03.2018, processo 22/08.3JALRA.E1.S1, www.dgsi.pt).

Pois bem, no caso sub examine o arguido AA foi condenado na 1.ª instância nas penas parcelares de 8 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nº 2, al. h), do CP, e 4º do DL 401/82, de 23.09, e de 1 ano de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143º, nº 1, e 145º, n.os 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132º, nº 2, al. h), todos do C.P, e 4º do DL 401/82, de 23.09, e na pena única de 8 anos e 6 meses de prisão.

O arguido recorreu para o TRL.

O recurso foi rejeitado por decisão sumária do relator depois de concluir que «da análise da decisão recorrida verifica-se que a mesma não enferma de vício de erro notório na apreciação da prova, nem de outro, que está suficientemente fundamentada, que a prova foi correctamente valorada, que a dosimetria concreta das penas parcelares, e únicas, não merece qualquer reparo, que o montante fixado para a indemnização cível é adequado, pelo que os recursos interpostos pelos recorrentes improcedem manifestamente, em todos os segmentos, e que são de rejeitar».

O arguido reclamou para a conferência invocando a nulidade da decisão sumária por falta de fundamentação e omissão de pronúncia, mas o TRL, no acórdão recorrido, indeferiu a reclamação por considerar que «não só a decisão sumária se encontra devidamente fundamentada, como não enferma de qualquer omissão de pronúncia, o que não acolheu foi a pretensão do recorrente de o ilibar da comparticipação nos crimes pelos quais foi condenado».

Ou seja, a decisão sumária (primeiro), e o acórdão do TRL (depois), mantiveram integralmente (confirmaram) o acórdão do tribunal colectivo do JCC de Sintra no que toca à factualidade provada, à respectiva qualificação jurídica e às penas.

Como nenhum dos crimes foi punido em concreto com pena de prisão superior a 8 anos temos, assim, por certo que o acórdão do TRL apenas seria recorrível quanto à medida da pena única, não podendo o STJ, tal como já referido, sindicá-lo e «exercer qualquer censura sobre a actividade decisória prévia que subjaz e conduziu à condenação do recorrente por cada um [dos referidos] crimes» (acórdão do STJ de 12.03.2014, processo 1699/12.0PSLSB.L1.S1, www.dgsi.pt).

Sucede que o recorrente, conforme resulta das conclusões que delimitam o objecto do recurso, não impugnou a pena única, nem mesmo a título subsidiário [sendo certo que a medida desta, dentro da moldura abstracta do cúmulo prevista no art. 77º, nº 2, do CP (mínimo de 8 anos de prisão e máximo de 9 anos de prisão), foi fixada com parcimónia e em termos que não demandam a intervenção correctiva deste Tribunal].

Com respeito à quantia arbitrada nos termos do art. 82º-A do CPP.

Reza o art. 400º, nº 2, do CPP que sem prejuízo do disposto nos artigos 427º e 432º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.

A alçada do tribunal da Relação em matéria cível é de 30.000 euros (art. 44º, nº 1, da Lei 62/2013, de 26.08).

O valor da reparação atribuída à vítima foi fixado em 25.000 euros.

À vista destas coordenadas, também nesta parte o recurso seria, assim, inadmissível.

Aqui chegados, nada mais, com relevo para a decisão a proferir, se nos oferecendo aduzir, emite-se parecer no sentido da rejeição do recurso em razão da sua inadmissibilidade legal (arts. 414º, nºs 2 e 3, e 420, nº 1, al. b), do CPP).

*

I.12. Notificado do Parecer do Ministério Público, AA veio, nos termos do artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, apresentar a sua resposta, concluindo:

 

1 – No enfoque do arguido, subsiste, na totalidade, o prevalecimento das objeções por si firmadas no recurso.

2 – À vista disso, a presente resposta ao Parecer serve apenas para enfatizar, telegráfica e complementarmente, as subsecutivas particularidades.

3 – No seu Parecer, o Senhor Procurador-Geral Adjunto pugnou pela rejeição do recurso em razão da sua inadmissibilidade legal, ao abrigo do adjetivado nos 414º, nºs 2 e 3, e 420, nº 1, al. b), ambos do CPP.

4 – Para o efeito, aduziu o seguinte:

“(…)”.

5 – Relativamente a tal obtemperação, entende-se que não assiste razão ao Digno Procurador-Geral Adjunto.

Senão veja-se.

A problemática aqui em tela justapõe-se à exegese atinente ao artigo 400º, nº 1, alínea f), que dispõe não ser admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.

Com a sobredita alínea, pretendeu-se adstringir o triplo grau de jurisdição aos casos de maior merecimento penal – nesse recortado, permite-se, então, a recorribilidade da dupla conforme.

Diante da sinalizada redação, numa interpretação a contrario, conclui-se que, no caso de a Relação, em recurso, proferir acórdão condenatório que confirme decisão de 1.ª instância, é admissível recurso para o Supremo Tribunal, contanto que tenha sido aplicada pena de prisão superior a 8 anos: é, pois, a superior gravidade da condenação, com privação da liberdade que exceda 8 anos, que enseja a intervenção de uma terceira instância.

“A formulação genérica do preceito, com a eliminação da expressão «mesmo em caso de concurso de infracções», implica a sua aplicação indistinta aos casos de penas únicas emergentes de concurso de infracções, não parecendo que agora deva ser referido, como entendia parte da jurisprudência, às parcelares integrantes do cúmulo.”

“Agora é omitido esse sintagma [“mesmo em caso de concurso de infrações”], o que, face aos antecedentes jurisprudenciais, parece apontar para que diversamente se deva entender que o limite de 8 anos se refere à pena aplicada, seja em caso de infracção única, seja em caso de cúmulo jurídico.”

[Os sublinhados apostos nas precedentes citações são da autoria do arguido.]

Em vista dos indigitados escólios, que se mostram certeiros, sendo certo que o punctum saliens se consolida aqui na pena efetivamente aplicada e na respetiva gravidade, o Supremo Tribunal de Justiça deve rever, no caso em pauta, as questões de direito que lhe foram submetidas no recurso interposto pelo arguido e as que deva conhecer ex officio, que estejam correlacionadas com ambos os crimes cogitados nos presentes autos, em cujo apartado foi aplicada, em cúmulo jurídico, uma pena superior a 8 anos de prisão – concretamente, 8 anos e 6 meses de prisão.

Pode, por conseguinte, inferir-se, que o legislador, na envolvência de um condicionalismo correspondente ao dos presentes autos, não quis, de facto, arredar/apartar a possibilidade de o recurso ter a predita amplitude. Tanto vale por dizer que os brocardos latinos ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus (onde a lei não distingue, não deve o intérprete distinguir), verba cum effectu sunt accipienda (não se presumem, na lei, palavras inúteis) e uni lex voluit dixit, ubi noluit, tacuit (quando a lei quis, dispôs, quando não, calou), têm

aqui uma plena e axiomática aplicação.

Desta sorte, dado que o recurso apresentado se conforma admissível, dissente-se, na totalidade, do posicionamento assumido pelo Digno Procurador-Geral Adjunto.

6 – Na defluência do aduzido, deve ser prolatada decisão em assonância com o solicitado no recurso, porquanto persiste o total valimento das considerações aí aduzidas

*

I.13. Colhidos os vistos, e uma vez que não foi requerida audiência, o processo foi presente à conferência para decisão.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. No que importa quanto ao arguido/recorrente AA, as instâncias julgaram os seguintes factos provados e não provados:

A) FACTOS PROVADOS

Discutida a causa, provaram-se os seguintes factos com relevância para a decisão final:

1. No dia 17 de Fevereiro de 2020, pelas 21h00m, os arguidos encontravam-se no estabelecimento comercial de café denominado “Café H.…”, sito na Avenida ..., em ..., a jogar snooker e a beber cerveja.

2. No café encontravam-se, entre os demais clientes, GG, conhecido pela alcunha de “LL”, FF, conhecido pela alcunha de “MM”, KK e NN.

3. No decorrer do jogo e pelas 23h30m, GG comentou com OO, responsável pelo café: “Então! Só os ciganos é que jogam snooker!” e “Ciganos de merda!”.

4. Perante tal, um dos arguidos referiu, em voz alta, “a minha vontade era dar uma facada nestes lacorrilhos”.

5. Já perto da meia-noite, OO pediu aos arguidos para terminarem o jogo uma vez que o estabelecimento se encontrava a fechar.

6. Nessa ocasião, GG, FF, KK e NN deslocaram-se para o exterior do café e ficaram na esplanada mais algum tempo.

7. Pouco tempo depois, quando GG, FF e KK e NN já haviam saído da esplanada, os arguidos BB, CC, DD e AA deslocaram-se para o exterior do referido estabelecimento.

8. Ao sair do estabelecimento, o arguido BB trazia consigo uma navalha, com cabo azul e lâmina com bordo corto-perfurante, e cada um dos arguidos CC, DD e AA empunhava um taco de snooker.

9. E, em conjugação de esforços e intentos e com o intuito de os atingirem com a navalha e com os tacos que empunhavam, os arguidos BB, CC, DD e AA seguiram no encalce de GG e de FF, que se deslocavam a pé na direcção da Avenida ....

10. Os arguidos BB, CC, DD e AA alcançaram GG e FF, junto ao nº ... da Avenida de ... e a 230 metros do café.

11.Seguidamente, em conjugação de esforços e intento, enquanto FF pedia para terem calma, um dos arguidos desferiu uma pancada com o taco de snooker que atingiu GG nas costas, causando-lhe fortes dores.

12. E outro dos arguidos desferiu um pontapé que o atingiu na cabeça, lhe causou fortes dores e o projectou ao chão.

13.GG conseguiu-se levantar do chão e fugiu do local.

14.Nessa sequência, os arguidos CC, DD e AA, em conjugação de esforços e intentos, desferiram várias pancadas com os tacos de snooker, que atingiram o corpo de FF.

15.Por sua vez, em simultâneo e conjugação com aqueles arguidos, o arguido BB, desferiu vários golpes com a navalha que empunhava, no corpo do ofendido FF.

16. Com os golpes de que foi vítima, FF caiu prostrado no chão.

17. E os arguidos BB, CC, DD e AA, em conjugação de esforços e intentos, continuaram a desferir golpes quer com a navalha quer com os tacos de snooker, atingindo FF, que permanecia deitado no chão.

18.Tal apenas cessou pela intervenção dos agentes da Polícia de Segurança Pública PP, QQ e RR, em funções na Esquadra da PSP ..., que, entretanto, chegaram ao local após ouvirem os gritos de “socorro”.

19. Em consequência directa e necessária dos golpes infligidos pelos arguidos BB, CC, DD e AA, designadamente em resultado do objecto de natureza cortante e cortoperfurante (navalha) usado pelo arguido BB e dos objectos de natureza contundente (tacos) usados pelos arguidos CC, DD e AA, sofreu FF as seguintes lesões traumáticas,

Na cabeça:

i. Ferida cortante na região frontal esquerda, horizontal, 1 cm acima da metade lateral da sobrancelha, com 3 cm de comprimento,

ii. Ferida cortante na região frontal esquerda, coronal, 10,5 cm acima da sobrancelha, com 1cm de comprimento e com exposição a aponevrose,

iii. Ferida cortante na linha média da região frontal, 8,5 cm acima da sobrancelha direita, composta por dois ramos com orientações distintas, o mais superior grosseiramente vertical e o mais inferior oblíquo para baixo e para a direita, o ramo superior medindo 0,8 cm e o ramo inferior com 2 cm, com exposição a aponevrose,

No tronco:

iv. Ferida cortante no flanco direito, 4 cm à direita da linha média e 3 cm abaixo do umbigo, com 0,3x1,5 cm de maior eixo horizontal,

v. Ferida cortante no bordo inferolateral da escápula esquerda, horizontal, com 1 cm de comprimento,

No tórax:

vi. Infiltração hemorrágica do arco posterior ao nível do 8º espaço intercostal.

No membro inferior direito:

vii. Ferida cortante no terço proximal da face lateral da coxa, horizontal, com 4 cm de comprimento, coaptada na metade anterior e com diástase de 1 cm na metade posterior,

viii. Ferida cortante, 3 cm atrás da anteriormente referida, obliqua inferoanteriormente, com 1,5 cm de comprimento e diástase de 0,6 cm,

ix. Ferida cortoperfurante no terço proximal da face anterior da coxa, horizontal, coberta por penso, com 1,5 x 2,5 cm de maior          eixo horizontal, atravessando vários planos e estruturas até atingir a artéria e veia femorais direitas,

x. Ferida cortante no terço proximal da face posterior da coxa, horizontal, com 1 cm de comprimento e diástase de 0,5 cm,

xi. Ferida cortante no terço médio da face anteromedial da perna, vertical, com 1 cm de comprimento e diástase de 0,5 cm.

xii. Escoriação vermelho-escura no terço distal da face anterior da perna, com 0,8 cm de diâmetro.

20. A lesão referida em ix) foi causa directa da sua morte violenta:

21. Agiram os arguidos BB, CC, DD e AA em comum e prévio acordo e em comunhão de esforços e de intentos, cada um aceitando os resultados das condutas dos outros, movidos por sentimentos de vingança relativamente à pessoa de GG, e aproveitaram-se da circunstância de se encontrarem em superioridade numérica em relação a GG, com o propósito concretizado de molestarem o seu corpo e a saúde, bem sabendo que este não se iria conseguir defender, provocando-lhe dores, objectivo que se propuseram e alcançaram.

22. Agiram os arguidos BB, CC, DD e AA em comum e prévio acordo e em comunhão de esforços e de intentos, cada um aceitando os resultados das condutas dos outros, aproveitando-se da circunstância de se encontrarem em superioridade numérica em relação a FF que se encontrava sozinho no momento, não se coibindo de atingir repetidamente o corpo de FF com os objectos perfurantes, cortoperfurantes e contundentes que empunharam e causando-lhe ferimentos aptos a tirar-lhe a vida, o que conseguiram, demonstrando, desse modo, um manifesto desprezo pela vida humana.

23. O arguido BB agiu com o propósito concretizado de atingir FF e de lhe tirar a vida.

24. Os arguidos CC, DD e AA representaram a morte de FF como consequência possível da sua conduta e conformaram-se com isso.

25. Bem sabiam os arguidos que os objectos que usaram contra o corpo de FF eram adequados a provocar-lhe a morte, designadamente se o fizessem de forma repetida e violenta como efectivamente fizeram.

26. Os arguidos agiram sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas mesmas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou:

27.FF nasceu em .../.../1978

(…)

Mais se provou (arguido AA):

110. O arguido prestou declarações na audiência de julgamento, tendo reconhecido parcialmente os factos dados como provados e manifestando pesar pela morte da vítima FF, sem confessar a sua própria responsabilidade.

111. Este arguido não apresenta qualquer condenação averbada no respetivo certificado de registo criminal.

Mais se provou (relatório social do arguido AA):

112. O arguido nasceu em .../.../1999.

113. Sempre viveu na zona do ... e ... do concelho ..., local onde os pais residiam.

114. Trata-se de zonas socialmente   problemáticas com uma forte implantação de população que vive em situação de exclusão social.

115. O arguido é o segundo elemento de uma fratria de três elementos e é o único elemento do género masculino o que, no modelo educativo habitualmente partilhado na sua etnia, significa ter algumas vantagens relativamente aos elementos no género feminino.

116. AA integra-se num grupo étnico (etnia cigana) que, na sua maioria, vive nesta zona em condições precárias, ainda que o pai classifique o modo de vida familiar como satisfatório uma vez que se dedicava à venda ambulante de roupa e calçado.

117. Viveram inicialmente numa casa cedida por familiares, localizada num bairro social, mas, porque era de reduzida dimensão, decidiu adquirir casa própria com recurso a empréstimo bancário, localizada num bairro da povoação vizinha.

118. Na história de vida familiar não são referidas pessoas portadores de doença mental, consumidores de drogas ou de bebidas alcoólicas em excesso, nem pessoas que tivesse comportamentos violentos.

119. AA ingressou na escola na idade normal, frequentou escolas locais, mas só completou o segundo ciclo de escolaridade, tendo abandonado a escola quando frequentava o 8º ano e já tinha 18 anos de idade.

120. O arguido não tem explicação para este insucesso escolar, limitando-se a afirmar consecutivamente que agora está a concluir o 9º ano de escolaridade, tentando dar uma imagem valorizada de si, sem ser capaz de reconhecer a fragilidades do seu processo formativo, tendo em consideração as suas características pessoais e condições sociais.

121. Do ponto de vista profissional o arguido começou a ajudar os pais na venda em feiras, ainda muito jovem e assim continuou já depois de se “casar” (união de facto na cultura cigana) com SS, há cerca de quatro anos.

122. A família abandonou esta atividade há cerca de dois anos, em razão dos problemas de saúde do pai do arguido e porque este tipo de atividade deixou de ser rentável.

123. Ficou então o arguido desempregado e, com a companheira, passou a viver do montante do subsídio rendimento social de inserção.

124. Do ponto de vista da ocupação o arguido manteve sempre um relacionamento muito limitado a elementos do seu grupo étnico, o que foi sendo reforçado pelo facto de pertencer à Igreja ... que faz cultos para este grupo social, onde tem um estatuto importante, como teclista do grupo coral.

125. À data dos factos sob julgamento, o arguido residia na casa onde vive presentemente.

126. O imóvel estará totalmente pago, pelo que o arguido só assume os encargos de manutenção que, segundo o mesmo serão de €80,00.

127. O agregado familiar do arguido é constituído por si, pela esposa, pelo filho de três anos de idade, pela irmã mais velha do arguido e os seus dois filhos.

128. Toda a família sobrevive com o montante do subsídio do rendimento social de inserção que totaliza € 739,67, sendo que o montante que o arguido gere, para si, esposa e filho é de €417,21.

129. O arguido recebe ainda o montante do abono para crianças e jovens, relativo ao filho, no montante de €49,95.

130. AA afirma que ocupa o seu tempo no apoio a familiares, nomeadamente ao pai, o qual sofreu recentemente um AVC.

131. Também frequenta a escola onde, está a concluir o 9º ano de escolaridade, e dedica-se a atividades religiosas da Igreja ....

132. O arguido quis, durante a entrevista, passar a ideia de que a sua socialização lhe permitiu adquirir as competências pessoais necessárias e suficientes à sua inserção social, tendo sido mesmo diferente das outras pessoas da sua etnia, sendo o arguido incapaz de reconhecer que a sua escolaridade é muito reduzida, não tem qualquer formação profissional, não tem experiências profissionais relevantes, não tem hábitos de trabalho e não rotinas diárias com horários e ritmos de trabalho.

B) FACTOS NÃO PROVADOS

Com relevância para a decisão final, não resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão final:

1. O arguido AA referiu, em voz alta, “a minha vontade era dar uma facada nestes lacorrilhos”.

2. Ao sair do estabelecimento, o arguido BB empunhava uma navalha, com cabo azul e lâmina com bordo corto-perfurante.

3. Um dos arguidos puxou GG pelo pescoço.

4. FF colocou-se entre os arguidos e GG para socorrer o seu amigo.

5. Os arguidos BB, CC, DD e AA agiram movidos por sentimentos de vingança relativamente à pessoa de FF.

6. Os arguidos CC, DD e AA agiram com o propósito concretizado de tirar a vida a FF.

*

II.1.1. O tribunal de 1.ª instância fundamentou a motivação da matéria de facto, do modo seguinte:

1. O juízo probatório positivo e negativo alcançado pelo Tribunal fundou-se na análise global e sistemática das declarações prestadas pelos arguidos em sede de inquérito e de julgamento, dos depoimentos das testemunhas e da prova pericial e documental constante dos autos, tudo à luz da regra da livre apreciação da prova, com as restrições legais existentes e com a concorrência de critérios objectivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação e de convicção.

2. As questões de facto centrais neste processo consistem na morte de FF e nas lesões corporais sofridas por GG.

Vejamos em primeiro lugar os factos relativos à morte de FF e façamo-lo à custa de meios de prova que dispensam o contributo dos próprios arguidos – os quais, aliás, nem estão obrigados a prestar declarações, nem estão juridicamente obrigados a falar com verdade, podendo declarar o que bem entenderem e formular a estratégia de defesa que melhor lhes aproveitar.

3. No dia 18 de Fevereiro de 2020, pelas 01.22 horas, no Hospital ..., na ..., foi verificado o óbito de FF.

Esta morte apresenta etiologia criminosa, nomeadamente homicida, pois a morte de FF resultou especificamente de lesões traumáticas da artéria e veia femorais direitas causadas por golpes de arma branca como a navalha (relatório de autópsia do INMLCF de fls. 457).

Acresce que o corpo de FF apresentava um total de 10 feridas cortantes e corto-perfurantes nas zonas da cabeça, tronco e membro inferior direito compatíveis com utilização de arma branca (relatório de autópsia).

Sem prejuízo das referidas feridas, as próprias roupas então usadas por FF apresentam 13 cortes compatíveis com a utilização da navalha azul que veio a ser apreendida junto ao local onde aquele caiu prostrado no chão antes de ser transportado para o Hospital (auto de notícia de fls. 2, fotografia de fls. 90, auto de apreensão de fls. 91, relatórios periciais do LPC de fls. 221 e 587).

Por outro lado, FF apresentava uma escoriação na perna direita e uma infiltração hemorrágica na 8.ª costela direita compatíveis com traumatismos de natureza contundente compatíveis com a utilização de objectos como os tacos de snooker que vieram também a ser apreendidos no mesmo local onde FF caiu prostrado no chão antes de ser transportado para o Hospital (auto de apreensão de fls. 24, fotografia de fls. 90 e relatório de autópsia).

O cadáver de FF não tinha vestígios de ingestão de álcool (relatório de autópsia).

Quem causou a morte de FF?

Questão controvertida que determina uma sintonia mais fina no plano probatório.

4. No dia 18 de Fevereiro de 2020, pelas 00.05 horas, imediatamente antes do transporte de FF para o Hospital, este foi observado prostrado na via pública, mais concretamente no solo da Av. ..., ..., junto à Esquadra da PSP ..., por vários agentes da PSP (depoimentos dos agentes da PSP PP, QQ e RR).

Estes agentes da PSP deram conta de que estavam então à porta da Esquadra e que a sua atenção foi atraída pelos gritos de socorro que se faziam então ouvir.

Então, estes agentes da PSP percorreram uma distância de cerca de 20/30 metros e puderam então observar os quatro arguidos a agredir FF já prostrado no chão.

As agressões eram levadas a cabo pelos quatro arguidos em simultâneo, fazendo uso dos tacos de snooker e também ao pontapé.

Foi dada ordem policial aos arguidos para pararem e estes não cessaram imediatamente as agressões.

As agressões destes arguidos só cessaram quando o taco de snooker empunhado pelo arguido DD se partiu durante a execução dos golpes e este foi manietado pelos agentes da PSP.

Os agentes da PSP em apreço não se aperceberam então de que algum dos arguidos tivesse utilizado qualquer arma branca contra a vítima FF.

Ainda segundo aqueles agentes da PSP, após os arguidos terem cessado estas agressões, a vítima ainda estava consciente, mas não falava.

5. Posteriormente, na via pública, junto ao referido local das agressões, a PSP encontrou a aludida navalha azul, com uma lâmina com 7,5 cm de comprimento (relatório pericial de fls. 221).

Esta navalha tem vestígios de ADN do arguido BB e da vítima FF (relatórios periciais de fls. 341 e 344).

A lâmina desta navalha é compatível com os danos verificados no vestuário da vítima FF (exame pericial do LPC de fls. 587).

Mais tarde, viria a ser encontrada outra navalha com vestígios de sangue no interior do bolso das calças de trabalho trajadas pela vítima FF, tendo sido apurado que a lâmina e o cabo desta navalha apresentam vestígios de ADN do próprio (exames periciais do LPC de fls. 587 e 631).

6. Sendo líquida a etiologia criminosa da morte de FF, qual a razão para violência exercida contra esta vítima?

Se recuarmos cerca de duas horas por referência ao momento das aludidas agressões físicas, encontramos FF a frequentar, na qualidade de cliente, o estabelecimento de café denominado “H.…”, sito na Avenida ..., ..., e distanciado cerca de 230 metros do local onde aquele veio a tombar prostrado (depoimento da testemunha NN e Auto de Diligência de fls. 396).

Os quatro arguidos estavam então a jogar snooker no interior deste estabelecimento (depoimento da testemunha NN).

Cerca das 23.30 horas, OO, dono do estabelecimento, anunciou que iria encerrar o café às 24 horas (depoimentos das testemunhas KK e OO).

GG, igualmente presente neste café, reagiu então com desagrado a esta comunicação porque aparentava que queria também jogar snooker naquela noite e começou a proferir expressões dirigidas aos arguidos, nomeadamente “isto é racismo!”, sendo que os arguidos são de etnia cigana e estavam a jogar ininterruptamente há mais de uma hora (depoimento da testemunha KK).

Os arguidos não gostaram das palavras de GG e acabaram por ficar exaltados, tendo havido uma troca de palavras entre os arguidos e GG (depoimento da testemunha OO).

GG saiu do estabelecimento em primeiro lugar e dois dos arguidos foram imediatamente no seu encalço (depoimento da testemunha KK).

 Os restantes arguidos acabaram também por ir atrás de GG e dos restantes arguidos, sendo que FF ainda se colocou à sua frente para impedir, sem sucesso, a respectiva saída do estabelecimento (depoimentos das testemunhas KK e OO).

Os quatro arguidos saíram do estabelecimento, sem pagar o jogo e os consumos realizados no café, levando consigo quatro tacos de snooker (depoimento da testemunha OO).

Cada um dos arguidos tinha ingerido quatro cervejas mini enquanto estiveram a jogar a snooker (Idem).

Um destes tacos viria a ser encontrado encostado à parede exterior do estabelecimento (Idem).

Fora do estabelecimento, junto a este, não aconteceu nada de relevo que tivesse sido percecionado por quem estivesse no interior daquele (depoimentos das testemunhas KK e OO).

Mais tarde, junto à Esquadra da PSP ..., FF é observado a falar com os arguidos, enquanto GG está prostrado no chão (depoimento da testemunha KK).

GG dirigiu-se então para a sua residência, com o apoio de terceiro, apresentando então queixas de dores causadas por pancadas na cabeça e nas costas, deixando para trás FF junto aos arguidos (depoimento da testemunha KK).

 Ouçamos, agora, os protagonistas dos factos descritos na acusação, para perceber o que se passou entre a saída do café “H.…” e o local onde FF caiu prostrado.

7. GG – um dos pretensos ofendidos destes autos – apresentou uma versão dos factos semelhante à apresentada pelas testemunhas KK e OO relativamente àquilo que se passou no interior do café “H.…”, acrescentando apenas que um dos arguidos lhe dirigiu expressões como “lacorrilho de merda!” e “levas uma facada!” ainda no interior do café após o próprio depoente ter soltado a expressão “ciganos de merda!” em virtude de aqueles estarem a jogar snooker há muito tempo.

Relativamente ao que se passou depois da sua saída do café, relatou que:

- Estando o depoente na companhia de FF nas proximidades da Esquadra da PSP ..., os quatro arguidos chegaram junto de ambos empunhando tacos de snooker e uma faca, sendo que a faca era empunhada por um dos arguidos mais baixos que conhecia em virtude de este ter residido em ... (o qual corresponde a BB);

- A testemunha disse aos arguidos que estavam junto à Esquadra para os persuadir a não lhes fazerem nada, mas aqueles ignoraram completamente esta afirmação;

- FF levantou os braços abertos, sem qualquer faca na mão, e começou a pedir-lhes para não haver confusão;

- O arguido mais alto (AA) deu então um pontapé na cabeça do depoente em apreço, tendo o mesmo sofrido depois mais pancadas, nomeadamente nas costas e no rabo, desferidas por outro arguido ou arguidos com os tacos de snooker;

- Tendo caído ao chão, não viu até então FF a sofrer qualquer golpe de faca;

- Foi ajudado por KK e fugiu do local a gritar por socorro.

8. Vejamos então o que os arguidos disseram de relevante sobre os factos que constituem o objecto do presente processo, sendo que todos os arguidos prestaram declarações em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido e apenas o arguido CC se remeteu ao silêncio até ao final do julgamento.

8.1. Comecemos pelas declarações prestadas pelo arguido BB.

Perante o Juiz de Instrução Criminal, este arguido declarou, com relevância, que: - Apareceu um rapaz a querer jogar, a queixar-se dos ciganos e a ameaçar o co-arguido DD de “dar-lhe com o taco”;

- DD foi atrás deste rapaz para a rua, tendo aquele sido aqui apedrejado por este que então segurava uma faca de cozinha grande na mão;

- Os arguidos perseguiram este rapaz até junto da Esquadra e apareceu aqui outro rapaz, mais moreno, a provocá-los com uma faca na mão;

- O declarante atingiu este segundo rapaz com um taco e CC agarrou a mão deste, tendo caído CC e o rapaz moreno no chão;

- Antes de este rapaz ser agarrado por CC, DD deu-lhe uma facada.

- Nesta contenda, o declarante também foi espetado por uma lâmina, não concretizando quem o fez.

No julgamento, BB declarou, com relevância, que:

- Estava muito bêbedo na noite em apreço porque estava a festejar o aniversário da sua filha e já tinha bebido antes de entrar no café “H.…”;

- Na sequência dos insultos – “filhos da puta” – que lhe foram dirigidos por GG relacionados com o jogo de snooker, o declarante e os demais arguidos foram tirar satisfações com este, levando todos consigo um taco de snooker;

- GG e FF fugiram e os arguidos DD e AA foram imediatamente atrás deles levando cada um consigo um taco de snooker;

- O declarante e CC acabariam por ir à procura dos co-arguidos e encontraram-nos junto à Esquadra;

- Aparece então FF e começa a desafiar os arguidos dizendo-lhes que “dá cabo deles”;

- FF vai na direção de CC, agarra-o pelo pescoço e atira-o ao chão;

- O declarante vai em socorro deste irmão e começa a ser esmurrado por FF, acabando por caírem ambos no chão;

- Estando o declarante por cima de FF, aquele sente uma espetadela na perna e, após constatar que este tem uma faca na mão, retira-lhe a faca da mão e espetou-lhe a mesma duas ou três vezes na perna,

- O declarante não tinha intenção de matar e pede desculpa pela sua conduta, mas perdeu o controlo da situação quando viu a faca na mão de FF.

- O declarante não voltou a ver GG depois de este ter abandonado o café “H.…” e não lhe viu qualquer faca na mão.

8.2. Passemos agora às declarações prestadas pelo arguido DD.

Perante o Juiz de Instrução Criminal, este arguido declarou que:

- Após terem sido desafiados por GG para andarem à pancada, os quatro arguidos foram atrás deste para o exterior do café;

- Já no exterior, GG apedrejou os arguidos e fugiu de seguida;

- Os arguidos regressaram em direção ao café e apareceu FF com uma faca na mão e a dizer que “os ia cortar a todos”,

- CC e BB enfrentaram-no e começaram a bater-lhe, não sabendo o declarante concretizar os meios utilizados para o efeito;

- Cada um dos três irmãos tinham um taco de snooker consigo, sendo que o declarante não chegou a usar o seu taco contra FF apenas por causa da intervenção da PSP;

- O declarante não tinha visto antes FF quando estivera no café “H.…”.

No julgamento, DD declarou que:

- GG fugiu dos arguidos quando estes saíram do café no seu encalço (não havendo qualquer renovação referência à utilização de pedras contra os arguidos);

- O declarante e o arguido AA insistiram em perseguir GG e chegaram a agarrá-lo e a pontapeá-lo.

- Quando regressam ao café, o declarante e o arguido AA encontram o co-arguido BB “embrulhado” com FF, estando ambos em pé;

- O declarante deu uma tacada em FF e cessou quando a PSP interveio.

8.3. Avançando para as declarações prestadas pelo arguido CC.

Perante o Juiz de Instrução Criminal, este arguido declarou, com relevância, que: - Os arguidos saíram do café para falar com GG sobre o que tinha sucedido no interior do café;

- GG tinha uma faca grande na mão e começou a apedrejar os arguidos no exterior do café e fugiu;

- Os arguidos vão atrás dele e surge FF com uma faca pequena na mão;

- O declarante tirou-lhe a faca da mão e os irmãos do declarante (BB e DD) começam a bater-lhe;

- O arguido DD bateu com o taco de snooker no corpo de FF; - Instalou-se uma grande confusão e não viu mais nada;

- Os arguidos estavam todos bêbedos.

No julgamento, CC usou expressamente do direito ao silêncio, não tendo produzido mais declarações sobre os factos sob julgamento.

8.4. Comecemos pelas declarações prestadas pelo arguido AA.

Perante o Juiz de Instrução Criminal, este arguido declarou que:

- Estavam a festejar o aniversário da filha do arguido BB (sobrinha do declarante):

- Quando o dono do café avisou que ia encerrar o estabelecimento, GG exclamou: “Só os ciganos é que jogam!”;

- GG saiu do café e os arguidos correram atrás dele:

- O declarante deixou o “seu” taco snooker junto ao café e os restantes arguidos levaram tacos de snooker consigo;

- O declarante não viu GG com pedras ou facas nas mãos;

- GG atirou-se para o chão e depois foi embora, sem que alguém lhe tivesse batido:

- Surge FF bêbedo a desafiar os arguidos para um “mano a mano” e empurrou inicialmente o arguido CC para o chão;

- O arguido DD começou a bater-lhe com o taco de snooker, tendo então surgido mais indivíduos de raça negra saídos de uma carrinha;

- O arguido BB começou “à porrada” com FF e os outros arguidos juntaram-se àquele;

- Os arguidos BB, DD e CC bateram-lhe com os tacos, ao soco e ao pontapé, estando então já FF no chão;

- A Polícia apareceu e ouviu o arguido BB, com a navalha (apreendida) na mão, a dizer: “Acho que o cortei!”;

- O declarante encontrou dois telemóveis no chão e entregou-os aos arguidos CC e BB porque estes lhe disseram que os telemóveis eram seus.

No final do julgamento, AA declarou que reiterava as declarações prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial.

9. Aqui chegados, importa concluir, sem sombra de dúvidas, que os factos ocorreram nos termos dados como provados.

Obviamente que existem contradições entre as aludidas declarações dos arguidos e os referidos depoimentos das testemunhas ouvidas, mas também não se pode perder de vista que existem contradições vincadas e muito mais problemáticas entre as declarações prestadas pelos próprios arguidos sobre factos essenciais.

E para além disto, alguns dos arguidos – BB e DD – também alteraram o sentido das suas próprias declarações entre o primeiro interrogatório judicial de arguido detido e o julgamento, o que contribui, naturalmente, para o respetivo descrédito.

É inquestionável para os próprios arguidos que os mesmos perseguiram GG e FF armados de tacos de snooker, isto após ter havido uma troca de insultos no interior do estabelecimento de café.

Esta perseguição movida pelos arguidos durante cerca de 200 metros não sucedeu porque GG os tivesse apedrejado ou exibido qualquer faca de cozinha de grandes dimensões (declarações do arguido AA igualmente neste sentido, sendo divergentes dos restantes arguidos).

Acresce que FF também não exibiu qualquer navalha aos arguidos quando foi abordado por estes junto à esquadra ... (declarações do arguido AA igualmente neste sentido, sendo também divergentes dos restantes arguidos).

Ficaram igualmente por demonstrar as referências feitas pelos arguidos à actuação de FF sob a influência do álcool, sendo certo que eram os arguidos que estavam assumidamente alcoolizados em virtude de terem começado a ingerir bebidas alcoólicas antes de irem para o café por causa do aniversário da filha do arguido BB (relatório de autópsia).

Por outro lado, importa verificar a intensidade da violência exercida contra FF, pois a sua roupa foi atingida treze vezes por uma lâmina e o corpo do mesmo foi efetivamente golpeado dez vezes por uma lâmina.

Nenhum dos arguidos assume claramente esta realidade insofismável, pois o arguido BB começou por apresentar o co-arguido DD como o executor das facadas e, posteriormente, acabaria por assumir que foi ele próprio que desferiu três golpes com a navalha azul apreendida na via pública, a qual retirara das mãos de FF.

A existência de uma segunda navalha – posteriormente encontrada no LPC - acaba por não assumir qualquer relevância neste julgamento, pois é insofismável que FF não fechou, nem colocou, esta navalha no seu bolso das calças de trabalho enquanto estava a ser espancado e antes de ocorrer a intervenção policial, não se podendo afirmar sequer que a mesma tivesse sido utilizada nesta ocasião, não obstante conter (unicamente) vestígios hemáticos e ADN do próprio FF.

A intenção de matar FF é manifesta atenta a quantidade de golpes e as zonas corporais atingidas e foi muito naturalmente na execução sucessiva desta dezena de golpes que o arguido BB auto infligiu um golpe com a lâmina da navalha na sua própria perna, pois FF não tinha qualquer objecto com lâmina nas suas mãos quando começaram as agressões.

 A intervenção conjunta e simultânea de todos os arguidos na execução das agressões dirigidas à vítima FF resulta à saciedade dos depoimentos insuspeitos dos três agentes da PSP ouvidos no julgamento.

A falta de credibilidade das declarações dos arguidos é necessariamente compensada pela credibilidade dos depoimentos do ofendido GG e da testemunha KK.

BB – residente em ... – abordou as duas vítimas destes autos empunhado logo uma “faca” e este facto não podia ter passado despercebido aos demais arguidos.

Aliás, a posse e a utilização da navalha pelo arguido BB esclarecem a razão pela qual um dos quatro tacos de snooker ficou junto ao estabelecimento de café, pois o arguido em apreço já estava suficientemente armado e não precisava de mais objetos para agredir as pessoas perseguidas.

A primeira vítima da actuação dos arguidos foi GG e todos quiseram, desde logo, pela sua superioridade numérica, criar condições para que o mesmo fosse agredido naquela ocasião, ainda que não se tivesse provado concretamente qual foi o arguido que brandiu o taco sobre as costas daquele ou quem o pontapeou na cabeça.

O resultado das agressões infligidas por vários arguidos ao ofendido GG ficou à vista da aludida pessoa que lhe prestou auxílio e o levou para casa.

Se a imputação subjetiva dos factos típicos aos arguidos não levanta quaisquer restrições relativamente ao ofendido GG, o mesmo raciocínio não valerá necessariamente por referência ao ofendido FF.

Na verdade, a acção de bater com um taco nas costas de um ofendido, ou mesmo a acção de pontapear o seu corpo, não são equivalentes a espetar uma faca em várias zonas da cabeça, tronco e membro inferior, o que afasta, em princípio, o dolo direto dos arguidos que não usaram a navalha.

Todavia, num contexto de utilização por um arguido, conhecida por todos os demais arguidos, de uma navalha contra FF, ao mesmo tempo que esta utilização era conjugada com os pontapés e golpes de taco de snooker desferidos na mesma pessoa pelos demais arguidos, com isso colocando a vítima numa situação de maior impossibilidade de resistir ou mesmo de fugir, torna-se manifesta a necessária representação pelos arguidos da morte de FF como uma consequência possível da actuação conjugada de todos os arguidos, com a qual todos os arguidos se conformaram porque os mesmos não pararam de agredir FF nas referidas condições mesmo quando os agentes da PSP lhes deram ordem para esse efeito.

Nenhum dos três arguidos que não estavam armados com a navalha acudiu a vítima ou impediu que a mesma fosse golpeada pelo arguido BB, como ainda todos facilitaram a este a execução dos golpes de navalha ao agredirem a mesma vítima ao pontapé e com tacos de snooker, com isso evidenciado que se conformaram com a possibilidade de a mesma morrer.

Finalmente, uma reflexão sobre a motivação dos arguidos para a sua actuação nos termos dados como provados.

Os arguidos foram todos atrás de quem já tinha fugido, para se vingarem das palavras reputadas como insultuosas que lhes tinham sido anteriormente dirigidas por GG no interior do estabelecimento de café, tendo, aliás, havido logo uma menção sobre “facadas” nessa ocasião, como um prenúncio do que viria a suceder-lhe.

Mas esta vingança era apenas dirigida ou apenas seria susceptível de ser dirigida contra GG, pois FF não tinha protagonizado qualquer acção relativa aos arguidos e teve tão-só a suprema infelicidade de estar na companhia daquele quando o mesmo foi alvo do desforço dos arguidos.

10. O juízo probatório respeitante aos danos sofridos pela mãe do ofendido FF fundou-se no depoimento de EE e nas regras da experiência comum, não tendo sido produzida qualquer contraprova pelos arguidos nesta matéria que permita afastar o invariável impacto causado nos pais pela perda de um filho num contexto de crime especialmente violento.

11. Importa ainda deixar umas explicações finais suplementares para os factos considerados não provados para além da fundamentação implícita já resultante das considerações precedentes.

Não foi possível apurar, por falta de prova, qual foi o arguido que manifestou a vontade de dar uma facada em GG ainda no interior do estabelecimento de café.

Ficou igualmente por provar, desta feita em virtude dos depoimentos das testemunhas KK e OO, que o arguido BB já empunhava a navalha quando saiu do referido estabelecimento, não obstante já a trazer consigo.

Ficou por provar, também por falta de prova, que FF se tivesse posicionado entre os arguidos e GG para o defender quando este já estava caído no chão.

Finalmente, ficou por provar que os arguidos tivessem agido contra FF por vingança, pois este não lhes tinha feito nada, não tendo sido alegada qualquer outra motivação.

12. Para o apuramento da factualidade respeitante às condições sociais e familiares dos arguidos relevaram os relatórios sociais oportunamente elaborados pela DGRS, a declaração médica de fls. 531, o depoimento da Psiquiatra TT e os depoimentos das testemunhas UU VV.

13. Finalmente, a ausência e existência de condenações criminais dos arguidos foram alcançadas a partir dos respectivos certificados de registo criminal juntos aos autos.

 

*

II. 2. Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; Ac. STJ de 11-09-2019, Proc. nº 96/18.9GELLE.E1.S1, Relator: Raúl Borges).

*

II.2.1. Entende o ora recorrente que o Acórdão da Relação de Lisboa de 20/02/2022[1] é nulo por falta de fundamentação quanto ao exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal da 1.ª instância (conclusões 11.ª a 16.ª) e por omissão de pronúncia quanto à questão do enquadramento jurídico-criminal dos factos em que é ofendido GG (conclusões 17.ª a 23.ª), que a sua actuação contra a vítima FF deve ser subsumida ao crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos arts. 143º, nº 1, e 145º, nºs 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132º, nº 2, al. h), todos do C.P, e punida com a pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na execução (conclusões 25.ª, 27.ª e 28.ª), que, mantendo-se o entendimento de que cometeu um crime de homicídio qualificado, a pena deve ser fixada em medida igual ou inferior a 5 anos de prisão e ficar suspensa na execução com regime de prova (conclusão 29.ª) e que, a ser absolvido deste crime, o arbitramento da indemnização civil deve ser julgado improcedente (conclusão 30.ª).

*

II.2.2. Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente arguido AA, as questões a decidir dizem respeito:

a) Nulidade do Acórdão da Relação de Lisboa por falta de fundamentação, no que corresponde ao exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal de 1.ª instância, as quais foram controvertidas/questionadas no recurso para a Relação – artigo 379º nº 1, alínea a), por referência ao disposto no artigo 374º, nº 2, aqui aplicáveis ex vi do artigo 425º, nº 4, todos do Código de Processo Penal.

b) Nulidade do Acórdão da Relação de Lisboa, por omissão de pronúncia – cf. o artigo 379º, nº 1, alínea c), aqui aplicável por efeito do artigo 425º, nº 4,

c) - O arbitramento civil.

*

Antes, porém, deverá conhecer-se da questão prévia da rejeição do recurso em razão da sua inadmissibilidade legal (arts. 414º, nºs 2 e 3, e 420º, nº 1, al. b), do CPP).

*

II.3. Questão Prévia – Inadmissibilidade do recurso.

Esta questão prévia foi suscitada no Parecer emitido pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, cujo teor se relembra:

“(…) a decisão sumária (primeiro), e o acórdão do TRL (depois), mantiveram integralmente (confirmaram) o acórdão do tribunal colectivo do JCC de Sintra no que toca à factualidade provada, à respectiva qualificação jurídica e às penas.

Como nenhum dos crimes foi punido em concreto com pena de prisão superior a 8 anos temos, assim, por certo que o acórdão do TRL apenas seria recorrível quanto à medida da pena única, não podendo o STJ, tal como já referido, sindicá-lo e «exercer qualquer censura sobre a actividade decisória prévia que subjaz e conduziu à condenação do recorrente por cada um [dos referidos] crimes» (acórdão do STJ de 12.03.2014, processo 1699/12.0PSLSB.L1.S1, www.dgsi.pt).

Sucede que o recorrente, conforme resulta das conclusões que delimitam o objecto do recurso, não impugnou a pena única, nem mesmo a título subsidiário [sendo certo que a medida desta, dentro da moldura abstracta do cúmulo prevista no art. 77º, nº 2, do CP (mínimo de 8 anos de prisão e máximo de 9 anos de prisão), foi fixada com parcimónia e em termos que não demandam a intervenção correctiva deste Tribunal].

Com respeito à quantia arbitrada nos termos do art. 82º-A do CPP.

Reza o art. 400º, nº 2, do CPP que sem prejuízo do disposto nos artigos 427º e 432º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.

A alçada do tribunal da Relação em matéria cível é de 30.000 euros (art. 44º, nº 1, da Lei 62/2013, de 26.08).

O valor da reparação atribuída à vítima foi fixado em 25.000 euros.

À vista destas coordenadas, também nesta parte o recurso seria, assim, inadmissível.

Aqui chegados, nada mais, com relevo para a decisão a proferir, se nos oferecendo aduzir, emite-se parecer no sentido da rejeição do recurso em razão da sua inadmissibilidade legal (arts. 414º, n.os 2 e 3, e 420, nº 1, al. b), do C.P.P)”.

Analisando:

II.3.1. Antes de mais, e para melhor compreensão do teor do recurso, importa conhecer o percurso processual dos autos.

Assim, por acórdão proferido em 23 de abril de 2021, pelo Juízo Central Criminal de Sintra, foi o arguido AA condenado:

a) - na pena de 8 (oito) anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 131º, e 132º, nº 2, alínea h), do Código Penal, e art. 4º do DL 401/82;

b) - na pena de 1 (um) ano de prisão pela prática de um crime ofensa à integridade física, qualificada, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 143º, nº 1, e 145º, nº 1, alínea a), e nº 2, por referência à alínea h) do nº 2 do 132º, todos do Código Penal, e art. 4º do DL 401/82;

c) Em cúmulo jurídico das penas aplicadas, o arguido foi condenado na pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão.

d) A pagar a EE, em regime de solidariedade com os coarguidos não recorrentes, a quantia de 25.000 euros, arbitrada nos termos do art. 82º-A do CPP, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora.

*

II.3.2. Não se conformando com a decisão, o arguido recorreu para o TRL, impugnando alguns dos factos provados (conclusões 4.ª, 8.ª e 10.ª a 13.ª), invocando a violação do in dubio pro reo (conclusões 14.ª a 19.ª), questionando o enquadramento da agressão ao ofendido GG no tipo de ofensa à integridade física qualificada por que foi condenado (conclusões 20.ª a 33.ª), preconizando que a sua actuação contra FF, que veio a falecer, deve ser reconduzida ao crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos arts. 143º, nº 1, e 145º, nºs 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132º, nº 2, al. h), todos do CP, e punida com a pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na execução (conclusões 36.ª a 39.ª), defendendo, para a hipótese de este último entendimento não prevalecer, a aplicação de uma pena inferior a 5 anos de prisão suspensa na execução pela prática do crime de homicídio qualificado (conclusão 40.ª) e, por último, a improcedência, condicionada à sua absolvição do crime de homicídio qualificado, do arbitramento da indemnização civil (conclusão 41.ª).

*

II.3.3. Como vimos, por Decisão Sumária proferida pela Relatora, em 17/11/021, da 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, foi rejeitado por manifesta improcedência substantiva, o recurso interposto pelo recorrente, assim como os recursos interpostos pelos restantes arguidos, nos seguintes termos (transcrição):

«(…) Questão prévia:

O recurso interposto pelo AA não formula pedido, ou seja, não dá cumprimento ao disposto no artº 412, nº 1, parte final – formulação de um pedido de que as conclusões devem ser o resumo.

Todavia, ainda é possível conhecer do recurso, já que estão em causa direitos, liberdades e garantias.

Apreciando, sumariamente:

Da análise de todo o processo, numa espécie de revista alargada, para avaliar se a prova foi incorrectamente julgada, como pretendem os recorrentes, e se a decisão recorrida enferma de vícios de conhecimento oficioso, conclui-se que os 4 arguidos foram vistos a bater na vítima, dizendo, até, o guarda participante que viu “ …4 indivíduos a agredir outro, que lhes ordenou que parassem, que os mesmos não acataram a ordem, e que teve de esperar para ter condições de segurança para poder intervir separá-los.

O indivíduo agredido encontrava-se no chão, pelo que os 4 indivíduos tinham de ter consciência de que a agressão, assim perpetrada, era idónea para causar a morte, tanto mais que a agressão decorria com os tacos de “snooker”, com pontapés, e à navalhada.

O que nos conduz, directamente, ao cerne da versão do arguido AA, a saber, a de que só havia 3 tacos de “snooker”, e que ele não detinha nenhum desses tacos.

Esta versão não merece a menor credibilidade.

Com efeito, o arguido que empunhava a navalha, e que desferiu as facadas no ofendido, não tinha como deter consigo, segurando-o, um taco de “snooker”.

Não só essa possibilidade viola todas as regras da lógica, como viola as leis da física.

O que resulta pré-determinado, pela prova produzida, é que os arguidos abandonaram o café onde jogavam “snooker”, à hora do fecho, empunhando 3 tacos de snooker, e uma navalha, e, de acordo com as regras da experiência comum, quem tem navalha não precisa de taco de snooker para nada.

Pelas regras da experiência comum, estavam já animados da intenção de seguir atrás dos ofendidos, e de actuar em conjugação de esforços.

A versão do arguido de que não agrediu, e até tentou separar, neste contexto, não tem a menor credibilidade e consistência.

Como pode ler-se na anotação 5 ao artº 26º do Código Penal, …os casos de comparticipação só são configuráveis mediante acordo prévio dos comparticipantes… só assim se podendo determinar a punição e a transmissibilidade das circunstâncias.

Ora, neste caso concreto, a existência desse acordo prévio fica demonstrado pelo facto de terem saído do café, já depois de anunciado o fecho deste, empunhando os tacos de “snooker”.

Se o café ía fechar para que queriam os arguidos os tacos de “snooker” senão para ir no encalço das vítimas, para perpetrar as agressões?

E que estavam dispostos a praticar o mesmo ilícito, resulta exactamente do facto de empunharem os tacos de “snooker”, que são perfeitamente apropriados para causar lesões fatais em qualquer vítima, se usados para atingir zonas vitais, como a cabeça.

Como os pontapés desferidos na cabeça são igualmente idóneos para provocar a morte.

Pode ler-se no Ac do STJ de 27 de Setembro de 1995, que para haver comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria é necessária a existência de decisão e execução conjuntas, bastando-se o acordo com consciência/colaboração dos vários agentes na realização de determinado crime – CJ, Acs STJ, III, tomo 3º, 197.

No caso vertente, os arguidos recorrentes tinham intenção de matar – não podiam deixar de ter, como demonstram o facto de um estar munido de uma navalha e os restantes de tacos de “snooker”, como demonstram o tipo de golpes desferidos, o facto de serem 4, o facto de continuarem a desferir golpes já com a vítima no chão, e de nem terem acatado a ordem de parar dada pelo agente que interveio, ao ponto de este ter que esperar para ter condições de segurança para intervir – leia-se uma aberta para se poder meter entre eles.

As circunstâncias que qualificam o homicídio são pré existentes pelo que não se pode afirmar que os arguidos não tinham dolo, logo, que devem ser absolvidos da prática dos crimes de homicídio qualificado e de ofensas à integridade física qualificadas.

Aqui chegados, da análise da decisão recorrida verifica-se que a mesma não enferma de vício de erro notório na apreciação da prova, nem de outro, que está suficientemente fundamentada, que a prova foi correctamente valorada, que a dosimetria concreta das penas parcelares, e únicas, não merece qualquer reparo, que o montante fixado para a indemnização cível é adequado, pelo que os recursos interpostos pelos recorrentes improcedem manifestamente, em todos os segmentos, e que são de rejeitar.

Decisão sumária:

Termos em que se decide rejeitar por manifesta improcedência substantiva os recursos interpostos por BB, DD, CC e AA. Pagará cada um dos arguidos taxa de justiça que se fixa em 5ucs. Registe e notifique, nos termos legais».

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II.3.4. O arguido reclamou para a conferência invocando a nulidade da decisão sumária por falta de fundamentação e omissão de pronúncia.

*

II.3.5. O TRL, em acórdão de 10.02.2022, indeferiu a reclamação, confirmando a Decisão Sumária proferida, a qual transcreveu, na íntegra, e decidindo (na parte que ora interessa), nos seguintes termos:

«(…) Veio o arguido AA reclamar para a conferência por entender que a decisão sumária é nula por falta de fundamentação e omissão de pronúncia.

Na reclamação apresentada, formula questões sobre matéria do recurso que não podem ser atendidas, por não anteriormente formuladas.

A esta reclamação respondeu o MºPº nesta Relação (Exmo PGA António Joaquim Baloca) dizendo que:

Da invocada nulidade por falta de fundamentação e omissão de questões de que estava obrigado a conhecer, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1 c), do C. P. Penal

Entendo que não assiste qualquer razão ao arguente, tendo em conta os breves considerandos que se seguem.

Na verdade, a douta decisão sumária proferida, contrariamente ao invocado pelo requerente, fez a análise crítica da prova e explicou detalhadamente as razões porque a partir dela, foi dado como provado que o arguido/recorrente praticou factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de homicídio qualificado na forma consumada e na prática de um crime de ofensas à integridade física qualificada.

Importa referir, desde logo, que o arguente, embora indique quais os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, não explica as razões porque a partir dos elementos de prova indicados pelo TRL, se deveria ter concluído de forma diversa.

Com efeito, da leitura da douta decisão sumária proferida não se alcança que a mesma não tenha apreciado e fundamentado devidamente os factos que deu como assentes, e a que estava obrigada por força da própria lei.

Nem que este TRL tenha apreciado a prova produzida em julgamento de forma discricionária e subjectiva, sendo possível, pela sua leitura e sem esforço, perceber qual o fio lógico que levou à condenação do(s) arguido(s), ora requerente.

Como refere o Ac. do STJ, de 12 de Abril de 2000, no procº nº 141/2000- 3ª "(...) Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte no respectivo conteúdo".

Da fundamentação da decisão de facto resulta que o Tribunal, aliás, de forma suficiente, indica e analisa os meios de prova determinantes para a sua convicção, bem como as razões pelos quais os considerou relevantes e em que medida.

Refira-se que o juiz não está processualmente obrigado a elencar todos os factos alegados, mas apenas aqueles que têm interesse para a caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes e que são indispensáveis para a escolha e determinação da medida da medida concreta.

Assim, factos meramente instrumentais, conclusivos ou juridicamente relevantes, embora alegados, não são considerados.

Na verdade, nenhuma dúvida se colocou ao Tribunal na fixação da matéria de facto, aliás apresentando uma exaustiva fundamentação, valorando as provas em determinado sentido, tudo no exercício da livre apreciação da prova, a coberto do disposto no artigo 127º, do C. P. Penal.

A mera discordância do arguente, por serem contrárias aos seus interesses, balizados numa diferente análise e avaliação dos elementos de prova produzidos, por si só, não é susceptível de consubstanciar qualquer um dos vícios que invoca.

Com efeito, na sua fundamentação, a decisão sumária enumera os factos provados e não provados, faz uma exposição completa dos motivos de facto e de direito, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, tal como estatui o artigo 374º, do Código de Processo Penal.

É da fundamentação invocada para a decisão que se afere da correcção do juízo crítico sobre as provas produzidas. Deste modo, tal juízo só poderá ser valorado pela razoabilidade da fundamentação da decisão de facto, à qual in casu nada há a apontar.

Que a decisão sumária fundamentou devidamente as decisões que tomou até resulta, por ironia, do próprio teor da arguição de nulidades ora em apreciação.

Conforme se decidiu no Acórdão do STJ de 28/06/2007, (Proc. n° 1409/07 – 5ª Secção) «Na aplicação da regra processual da "livre apreciação da prova" (art. 127º do CPP), não haverá que lançar mão, limitando-a, do princípio in dubio pro reo exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida [ainda que «indirecta»] não conduzir, depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, "à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto" (cf. Cristina Líbano Monteiro, In Dubio Pro Reo, Coimbra, 1997).

Saliente-se que a apreciação da matéria de facto, na impugnação ampla feita pelo recorrente, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre várias limitações, designadamente a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida, tal como decidiu já o acórdão do STJ, de 12 de Junho de 2008.

Tal não ocorreu no caso em apreciação.

Atentas as razões expostas, entendo que a presente arguição de nulidades deve ser indeferida.

..."

Vejamos então da reclamação apresentada por AA:

Na motivação de recurso discordando da matéria de facto assente, não deu cumprimento ao ónus de indicar quais as concretas provas que impunham decisão diversa da recorrida.

Não formula pedido.

Pugna pela absolvição em sede de reclamação para a conferência.

Perante esta omissão, ainda assim, entendeu este Tribunal de recurso não rejeitar o mesmo por falta de pedido.

Entendeu assim analisar o processo com vista a concluir, ou não, pela existência de vícios de conhecimento oficioso na decisão recorrida.

Como decorre do texto da mesma, e ainda da análise alargada de toda a prova recolhida e pré constituída, a decisão posta em crise não enferma de vícios de conhecimento oficioso.

E analisou o segmento do recurso interposto de direito, no qual o arguido pugnava pela absolvição, para concluir que tal pedido era manifestamente improcedente.

Não só a decisão sumária se encontra devidamente fundamentada, como não enferma de qualquer omissão de pronúncia, o que não acolheu foi a pretensão do recorrente de o ilibar da comparticipação nos crimes pelos quais foi condenado.

A reclamação apresentada para a conferência é, pois, de indeferir, com esta fundamentação e ainda fazendo seus os fundamentos da resposta apresentada pelo MºPº.

Decisão:

Termos em que acordam, após vistos e conferência, em indeferir a reclamação apresentada para a conferência por AA».

*

II.3.6. É deste acórdão que o arguido vem recorrer para o STJ concluindo que o acórdão é nulo por falta de fundamentação quanto ao exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal da 1.ª instância (conclusões 11.ª a 16.ª) e por omissão de pronúncia quanto à questão do enquadramento jurídico-criminal dos factos em que é ofendido GG (conclusões 17.ª a 23.ª), que a sua actuação contra a vítima FF deve ser subsumida ao crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos arts. 143º, nº 1, e 145º, n.os 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132º, nº 2, al. h), todos do C.P, e punida com a pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na execução (conclusões 25.ª, 27.ª e 28.ª), que, mantendo-se o entendimento de que cometeu um crime de homicídio qualificado, a pena deve ser fixada em medida igual ou inferior a 5 anos de prisão e ficar suspensa na execução com regime de prova (conclusão 29.ª) e que, a ser absolvido deste crime, o arbitramento da indemnização civil deve ser julgado improcedente (conclusão 30.ª).

*

II.3.7. Verifica-se que por Decisão Sumária proferida pela Relatora, em 17/11/021, da 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, foi rejeitado por manifesta improcedência substantiva, o recurso interposto pelo recorrente.

Existirá manifesta improcedência quando seja inequívoco que argumentação usada para atacar a decisão de que se recorre, de modo nenhum pode conduzir ao efeito jurídico pretendido pelo recorrente.

A lei adjectiva instituiu a possibilidade de rejeição dos recursos em duas vertentes diversas, admitida que está, no nosso processo penal a cindibilidade do recurso, princípio acolhido nos arts. 403º nº 1, 410º nº 1 e 412º nº 2:

1) Rejeição formal que se prende com a insatisfação dos requisitos prescritos no art. 412º nº 2;

2) Rejeição substantiva que ocorre quando é manifesta a improcedência do recurso.

A manifesta improcedência verifica-se quando, atendendo à factualidade apurada, à letra da lei e à jurisprudência dos tribunais superiores, que é patente a sem razão do recorrente.

A figura da rejeição destina-se a potenciar a economia processual, numa ótica de celeridade e de eficiência.

A possibilidade de rejeição liminar, em caso de improcedência manifesta, tem em vista moralizar o uso do recurso[2] e também o Ac. Tribunal Constitucional nº17/2011, DR, II Série de 16-02-2011, decidiu: Não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 417º, nº 6, alínea b), do Código de Processo Penal, quando permite ao juiz relator proferir decisão sumária de indeferimento, em caso de manifesta improcedência do mesmo.

Em sentido idêntico Ac. TRE de 3-03-2015: I. A manifesta improcedência do recurso (conceito que a lei não define) nada tem a ver com a extensão da matéria submetida a apreciação, nem com a sua intrínseca complexidade, nem com a prolixidade da motivação do recurso (na procura de deixar bem claras as razões de discordância com a decisão recorrida). II. O que releva é o bem-fundado, a solidez ou o apoio legal, doutrinário ou jurisprudencial, da argumentação usada para atacar a decisão de que se recorre. III. Existirá manifesta improcedência sempre que seja inequívoco que essa argumentação de modo nenhum pode conduzir ao efeito jurídico pretendido pelo recorrente (in www.dgsi.pt).

Em caso de rejeição do recurso, a decisão limita-se a identificar o tribunal recorrido, o processo e os seus sujeitos e a especificar sumariamente os fundamentos da decisão - art. 420º, nº 2 do C.P.Penal.

Como vimos, o arguido reclamou para a conferência invocando a nulidade da decisão sumária por falta de fundamentação e omissão de pronúncia. E o TRL, em acórdão de 10.02.2022, indeferiu a reclamação, confirmando a Decisão Sumária proferida, recorrendo o arguido para o STJ concluindo, novamente que o acórdão é nulo por falta de fundamentação quanto ao exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal da 1.ª instância e por omissão de pronúncia.

*

II.3.8. Aqui chegados, cumpre referir o seguinte:

Os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito (art. 434º do CPP), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios previstos no art. 410º, nº 2 do CPP ou, na redação introduzida pela Lei nº 94/2021, de 21.12, visto o disposto no art. 5º do CPP (ou seja, desde que da aplicabilidade imediata da lei nova não haja um agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido ou quebra da harmonia e unidade dos vários atos do processo), sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do nº 1 do art. 432º.

Por sua vez, estipula o artº 432º, nº 1 do CPP [com a nova redação às alíneas a) e c) da Lei nº 94/2021 de 21 de dezembro - artigo 11º - que procede à alteração ao Código de Processo Penal].

1. Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400º;

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410º;

d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.

Nos termos da al. f) do mesmo artº 400º nº 1, também «não é admissível recurso […] de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos».

Assim, nos termos dos arts. 432º, nº 1, al. c), e 400º, nº 1, al. f) do CPP, apenas são recorríveis para este Supremo Tribunal de Justiça os acórdãos do Tribunal da Relação que, confirmando decisão de 1.ª instância, apliquem pena de prisão superior a 8 anos de prisão.

No caso presente o arguido AA foi condenado na 1.ª instância nas penas parcelares de 8 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nº 2, al. h), do CP, e 4º do DL 401/82, de 23.09, e de 1 ano de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143º, nº 1, e 145º, n.os 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132º, nº 2, al. h), todos do C.P, e 4º do DL 401/82, de 23.09, e na pena única de 8 anos e 6 meses de prisão.

O arguido recorreu para o TRL, tendo sido o recurso rejeitado por decisão sumária do relator, tendo reclamado para a conferência, indeferindo o TRL a reclamação, no acórdão recorrido, não acolhendo a pretensão do recorrente de o ilibar da comparticipação nos crimes pelos quais foi condenado.

Ou seja, a decisão sumária (primeiro), e o acórdão do TRL (depois), mantiveram integralmente (confirmaram) o acórdão do tribunal colectivo do JCC de Sintra no que toca à factualidade provada, à respectiva qualificação jurídica e às penas.

Esse juízo confirmativo garante o duplo grau de jurisdição consagrado pelo art. 32º, nº 1 da CRP, não havendo, assim, violação do direito ao recurso, nem tão pouco dos direitos de defesa do arguido (arts. 32º, nº 1 e 20º, nº 1, da CRP).

Daqui resulta que o recurso deve ser rejeitado na parte respeitante às condenações nos crimes e nas penas parcelares que lhes correspondem – 8 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nº 2, al. h), do CP, e 4º do DL 401/82, de 23.09 e de 1 ano de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada.

Tem sido esta a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, em interpretação conforme à Constituição, de acordo com as decisões do Tribunal Constitucional.

Assim se decidiu, por exemplo, no acórdão do STJ de 11-03-2021 (Rel. Helena Moniz), em cujo sumário pode ler-se:

II - Tendo em conta o disposto no art. 400º, nº 1, al. e), do CPP, onde se impede a possibilidade de recurso das decisões do Tribunal da Relação que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos de prisão, e o disposto no art. 400º, nº 1, al. f), do CPP, onde apenas se admite (a contrario) o recurso de acórdãos da Relação que, confirmando decisão anterior, apliquem pena de prisão superior a 8 anos, e sabendo que, segundo a jurisprudência deste STJ, ainda que a pena única seja superior a 8 anos de prisão, se analisa a recorribilidade do acórdão relativamente a cada crime individualmente considerado, necessariamente temos que concluir não ser admissível o recurso das condenações relativas a cada crime, do Tribunal da Relação, quando seja aplicada pena não superior a 5 anos de prisão; e das condenações em pena de prisão superiores a 5 anos de prisão e não superiores a 8 anos de prisão, quando haja conformidade com o decidido na 1.ª instância.” E, mais recentemente, no acórdão de 15/09/2021, proferido pela mesma Relatora, proc. 4426/17.2T9LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.

No mesmo sentido pode ler-se no acórdão do STJ de 17-02-2021 de 29.04.2015 (Rel. Raul Borges):

I - As penas aplicadas pelos crimes cometidos pelo recorrente, e integralmente confirmadas pela Relação, foram inferiores a 8 anos de prisão, sendo nos casos de furto qualificado – 2 anos e 2 meses e 2 anos e 5 meses – detenção de arma proibida – 1 ano e 4 meses – e roubo agravado – 6 anos de prisão. Em cúmulo jurídico, foi aplicada a pena única de 8 anos e 6 meses de prisão.

II - O STJ tem entendido, que em caso de dupla conforme total, como ora ocorre, à luz do art. 400º, nº 1, al. f), do CPP, são irrecorríveis as penas parcelares, ou únicas, aplicadas em medida igual ou inferior a 8 anos de prisão e confirmadas pela Relação, restringindo-se a cognição às penas de prisão, parcelares e única(s), aplicadas em medida superior a 8 anos”, ou no acórdão do STJ de 24-06-2021, proc. 2231/16.2T9LSB.S1. L1.S1, 5ª Secção (Rel: António Gama), com o seguinte sumário:

I- O acórdão da Relação que, em recurso, confirma integralmente a decisão da 1.ª instância, que aplicou penas singulares não superiores a 8 anos de prisão não é, nessa parte, recorrível para o STJ”. [3]

No sentido da conformidade constitucional do entendimento do Supremo, o Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar que o direito ao recurso como garantia de defesa do arguido não impõe um duplo grau de recurso.

Com efeito, a constitucionalidade da norma do artigo 400º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na actual redacção, na medida em que condiciona a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, que decidiu não a julgar inconstitucional – acórdão nº 263/2009, de 25 de Maio, processo nº 240/09-1.ª Secção (Acórdãos do Tribunal Constitucional – ATC –, volume 75, pág. 249), acórdão nº 174/2010, de 4 de Maio, processo nº 159/10-1.ª Secção.

Por outro lado, no acórdão nº 385/2011, de 27 de Julho de 2011, proferido no processo nº 470/11, da 2.ª Secção, foi decidido “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 400º, nº 1, alínea f) do CPP, interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que, apesar de ter confirmado a decisão de 1.ª instância em pena não superior a 8 anos, se pronunciou pela primeira vez sobre um facto que a 1.ª instância não havia apreciado” e, mais recentemente, no acórdão nº 232/2018, de 2 de Maio de 2018, proferido no processo nº 1291/2017, da 1.ª Secção, foi decidido “não julgar inconstitucional a norma contida nos artigos 400º, nº 1, alínea f), e 432º, nº 1 alínea b), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido da irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões dos tribunais da relação que, sendo proferidas em recurso, tenham aplicado pena de prisão não superior a oito anos e inferior à que foi aplicada pelo tribunal de primeira instância, alterando uma parte da matéria de facto essencial à subsunção no tipo penal em causa”.

Isto significa, visto o disposto nos arts. 400º, nº 1, al. f) e 432º, nº 1, al. b), do CPP, que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (que indeferiu a reclamação, confirmando a Decisão Sumária proferida) é irrecorrível na parte em que confirma a condenação da 1ª Instância (princípios da dupla conforme condenatória e da legalidade), apenas podendo ser apreciado quanto à pena única que lhe foi imposta por ser superior a 8 anos de prisão.

Não sendo admissível o recurso, igualmente não podem ser analisadas todas as questões relativas à parte da decisão irrecorrível — “Como tem sido afirmado na jurisprudência do STJ, estando este, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, está também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410º do CPP, respectivas nulidades (artigo 379º e 425º, nº 4) e aspectos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objecto, aqui se incluindo as questões relativas à apreciação da prova, à qualificação jurídica dos factos e à determinação da pena correspondente ao tipo de ilícito realizado pela prática desses factos ou de penas parcelares de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.o do CPP, incluindo nesta determinação a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72º do Código Penal, bem como de questões de inconstitucionalidade suscitadas nesse âmbito.” (Ac. do STJ de 14.03.2020, proc. nº 22/08.3JALRA.E1.S1, relator: Lopes da Mota, invocado no citado acórdão de 15/0972021, da 5ª Secção deste Supremo tribunal, no proc. 4426/17.2T9LSB.L1.S1.

Neste sentido, podemos consultar, ainda, o acórdão do STJ de 06.01.2020, proc. nº 266/17.7GDFAR.E1.S1 (Relator: Nuno Gomes da Silva), onde se consigna: “IV - Nessa mesma linha de entendimento da jurisprudência também é de considerar que «toda a decisão referente a crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, incluindo questões conexas como a violação do princípio “in dubio pro reo”, invalidade das provas, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [e demais vícios a que se refere o nº 2 do art. 410º CPP – interpolação] violação do no 2 do art. 30º do CP, qualificação jurídica dos factos, consumpção entre os crime em concurso, violação do princípio da proibição da dupla valoração, reincidência e medida das penas parcelares, já conhecidas pela Relação, não é susceptível de recurso para o STJ».V - Nesse sentido, já se pronunciou também o Tribunal Constitucional no Ac. nº 659/2011 (e também nos Acórdãos nºs 194/2012, 399/2013 e 290/2014 remetendo estes expressamente para a fundamentação do Acórdão nº 659/2011) decidindo “não julgar inconstitucional a norma do artigo 400º, nº 1, alínea f), do CPP, interpretada no sentido de não ser admissível o recurso de acórdão condenatório proferido em recurso pela relação que confirme a decisão da 1ª instância e aplique pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo no caso de terem sido arguidas nulidades de tal acórdão”, ou o já citado acórdão do STJ de 24-06-2021, proc. 2231/16.2T9LSB.S1. L1.S1, 5ª Secção (Rel: António Gama), “5. A irrecorribilidade das penas parcelares não significa apenas que a sua medida fica intocada, mas coenvolve a insindicabilidade de todo o juízo decisório – absolvição ou condenação – efetuado (ac. STJ 14.03.2018, Lopes da Mota, disponível em www.dgsi.pt) incluindo todas questões processuais relativas a essa decisão no tocante às penas singulares. De outro modo não se verificava irrecorribilidade”.

Sendo assim, não cumpre conhecer da invocada nulidade da decisão por falta de fundamentação, ou da alegada nulidade por omissão de pronúncia quanto à questão do enquadramento jurídico-criminal dos factos em que é ofendido GG (conclusões 17.ª a 23.ª), que a sua actuação contra a vítima FF deve ser subsumida ao crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos arts. 143º, nº 1, e 145º, nºs 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132º, nº 2, al. h), todos do C.P, e punida com a pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na execução (conclusões 25.ª, 27.ª e 28.ª).

Nulidades que, todavia, não se verificam, visto que a Decisão Sumária especificou sumariamente os fundamentos da decisão, nos termos, aliás, do disposto no art. 420º, nº 2 do CPP,[4] e também se pronunciou quanto à apreciação do dito “erro de direito”, ao exprimir a consonância relativamente à qualificação jurídica a que os factos foram subsumidos, ou seja, aos tipos de crime definidos, dos quais resultou a aplicação das referidas penas[5].

Apenas poderia ser apreciado o recurso quanto à pena única que lhe foi imposta por ser superior a 8 anos de prisão, desde que houvesse recurso nessa parte, o que não aconteceu neste caso, uma vez que conforme resulta das conclusões que delimitam o objecto do recurso, o recorrente não impugnou a pena única, nem mesmo a título subsidiário.

Face a tal opção, não pode o Supremo Tribunal de Justiça suprir a omissão, nem há lugar a convite nos termos do artigo 417º, nº 3, do CPP, que prevê mecanismo de aperfeiçoamento aplicável apenas às conclusões.

No que tange à medida da pena única, simplesmente falta motivação. Faltam os fundamentos do recurso. E a motivação tal como está é imodificável. E insuprível.

*

II.4. Quanto à quantia arbitrada nos termos do art. 82º-A do CPP., deverá atender-se que, face o disposto no art. 400º, nº 2, do CPP, sem prejuízo do disposto nos artigos 427º e 432º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.

A alçada do tribunal da Relação em matéria cível é de 30.000 euros (art. 44º, nº 1, da Lei 62/2013, de 26.08).

Ora, uma vez que o valor da reparação atribuída à vítima foi fixado em 25.000 euros, também nesta parte o recurso é inadmissível.

*

III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, por inadmissibilidade legal, face ao disposto nos arts. 420º, nº 1, al. b), 414º, nº 2 e 3, 432º, nº 1, al. b) e 400º, nº 1, al. f), todos do CPP.

Custas pelo recorrente/arguido, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC`s.

Lisboa, 23 de junho de 2022

Cid Geraldo (Relator)

Leonor Furtado

Eduardo Loureiro (presidente)

___________________________________________________


[1] A data de 20/02/2022 constitui um mero lapso do recorrente, uma vez que o Acórdão do TRL que apreciou a reclamação é de 10.02.2022 cfr. ref.ª 18029730.
[2] Ac. STJ de 16 de Novembro de 2000, proc. n.º 2353-3; SASTJ, n.º 45, 61
[3] No mesmo sentido, o recente acórdão deste Supremo Tribunal de 17/02/2022, 5ª secção, proc. 18/20.7JELSB.L1.S1, Relatora: Maria do Carmo Silva Dias.
[4] Com efeito, a nulidade de uma sentença, - e, no caso em apreço, estamos perante um Acórdão que indeferiu a reclamação, confirmando a Decisão Sumária proferida - por falta, ou deficiência de fundamentação, nos termos do disposto nos arts. 374.º, n.º 2 e 379.º, nº 1 al. a) do CPP, apenas se verifica quando inexistem, ou são ininteligíveis, as razões do tribunal a quo, ou seja, as conclusões a que o mesmo chegou, não, também, quando estas forem incorrectas, ou passíveis de censura, ao que acresce que essa fundamentação não tem que ser feita em relação a cada facto, como parece pretender o recorrente, nem com menção de todos os meios de prova, exigindo a lei, apenas, o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Verificamos, porém, que a Decisão Sumária especificou sumariamente os fundamentos da decisão, nos termos, aliás, do disposto no art. 420.º, n.º 2 do CPP, quando a dado momento refere:
Da análise de todo o processo, numa espécie de revista alargada, para avaliar se a prova foi incorrectamente julgada, como pretendem os recorrentes, e se a decisão recorrida enferma de vícios de conhecimento oficioso, conclui-se que os 4 arguidos foram vistos a bater na vítima, dizendo, até, o guarda participante que viu “ … 4 indivíduos a agredir outro, que lhes ordenou que parassem, que os mesmos não acataram a ordem, e que teve de esperar para ter condições de segurança para poder intervir separá-los.
O individuo agredido encontrava-se no chão, pelo que os 4 indivíduos tinham de ter consciência de que a agressão, assim perpetrada, era idónea para causar a morte, tanto mais que a agressão decorria com os tacos de snooker, com pontapés e à navalhada.
O que nos conduz, directamente, ao cerne da versão do arguido Francisco, a saber, a de que só havia 3 tacos de snooker, e que ele não detinha nenhum desses tacos.
Esta versão não merece a menor credibilidade.
Com efeito, o arguido que empunhava a navalha, e que desferiu as facadas no ofendido não tinha como deter consigo, segurando-o, um taco de snooker.
Não só essa possibilidade viola todas as regras da lógica, como viola as leis da física.
O que resulta pré-determinado, pela prova produzida, é que os arguidos abandonaram o café onde jogavam snooker, à hora do fecho, empunhando 3 tacos de snooker e uma navalha, e, de acordo com as regras da experiência comum, quem tem navalha não precisa de teco de snooker para nada.
Pelas regras da experiência comum, estavam já animados da intenção de seguir atrás dos ofendidos e de actuar em conjugação de esforços.
A versão do arguido de que não agrediu, e até tentou separar, neste contexto, não tem a menor credibilidade e consistência.”
E, do trecho do Acórdão recorrido quando, referindo-se à Decisão Sumária proferida refere:  
Como decorre do texto da mesma, e ainda da análise alargada de toda a prova recolhida e pré constituída, a decisão posta em crise não enferma de vícios de conhecimento oficioso.
E analisou o segmento do recurso interposto de direito, no qual o arguido pugnava pela absolvição, para concluir que tal pedido era manifestamente improcedente.
Não só a decisão sumária se encontra devidamente fundamentada, como não enferma de qualquer omissão de pronúncia, o que não acolheu foi a pretensão do recorrente de o ilibar da comparticipação nos crimes pelos quais foi condenado.
A reclamação apresentada para a conferência é, pois, de indeferir, com esta fundamentação e ainda fazendo seus os fundamentos da resposta apresentada pelo MºPº.”
Observada a decisão recorrida, resulta claro que estamos perante uma decisão devidamente fundamentada, quer de facto, quer de direito, que adere, na íntegra, ao teor da Decisão Sumária e à respectiva apreciação das provas produzidas em audiência de julgamento, explicando, de forma muito clara, por que razão considera não credível a versão sustentada pelo recorrente.
 

[5] Quanto a este ponto, convém anotar que o artigo 379.º do CPP determina que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento – n.º 1 alínea c).

A discordância do recorrente no modo de valoração das provas, e no juízo resultante dessa mesma valoração, não traduz omissão de pronúncia ao não coincidir com a perspectiva do recorrente sobre os termos e consequências da valoração dessas mesmas provas, pelo que não integra qualquer nulidade, quando o tribunal se orientou na valoração das provas de harmonia com os critérios legais.

Das Conclusões acima transcritas resulta claro que o arguido entende que o erro de direito consiste na qualificação das ofensas corporais como crime de ofensas à integridade física, qualificadas, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, este último por referência à alínea h) do n.º 2 do art. 132.º, todos do CP, sendo certo que o arguido entende que estamos apenas perante um crime de ofensas corporais simples, na medida em que não existe superioridade numérica por parte dos agressores e não se pode concluir que a conduta dos arguidos tenha sido produzida em circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade.

Quanto a esta questão, refere a Decisão Sumária:

- “O arguido Francisco Fernandes Garcia entende, por sua vez, que existem na decisão recorrida pontos de facto indevidamente dados como provados, foi violado o princípio da presunção de inocência e do ” in dúbio pro reo”, existe erro de direito na qualificação jurídica, a medida da pena é excessiva, e a decisão sobre o pedido cível merece reparo.” 

(…)

- Discorda da qualificação jurídica dos factos, da dosimetria concreta da pena e, bem assim, do montante de indemnização fixado, de 25 000,00 euros.”

Daqui resulta claro que a Decisão Sumária teve bem presente as questões suscitadas pelo arguido, designadamente no que se refere ao que designa de erro de direito na qualificação jurídica.

E, da análise da Decisão Sumária, dela resulta que: 

“(…) No caso vertente, os arguidos recorrentes tinham intenção de matar – não podiam deixar de ter, como demonstram o facto de um estar munido de uma navalha e os restantes de tacos de “snooker”, como demonstram o tipo de golpes desferidos, o facto de serem 4, o facto de continuarem a desferir golpes já com a vítima no chão, e de nem terem acatado a ordem de parar dada pelo agente que interveio, ao ponto de este ter que esperar para ter condições de segurança para intervir – leia-se uma aberta para se poder meter entre eles.

As circunstâncias que qualificam o homicídio são pré existentes pelo que não se pode afirmar que os arguidos não tinham dolo, logo, que devem ser absolvidos da prática dos crimes de homicídio qualificado e de ofensas à integridade física qualificadas.

Aqui chegados, da análise da decisão recorrida verifica-se que a mesma não enferma de vício de erro notório na apreciação da prova, nem de outro, que está suficientemente fundamentada, que a prova foi correctamente valorada, que a dosimetria concreta das penas parcelares, e únicas, não merece qualquer reparo, que o montante fixado para a indemnização cível é adequado, pelo que os recursos interpostos pelos recorrentes improcedem manifestamente, em todos os segmentos, e que são de rejeitar”.

Vemos, assim, que a conclusão proferida, no contexto de uma Decisão Sumária, se pronunciou quanto à apreciação do dito “erro de direito”, ao exprimir a consonância relativamente à qualificação jurídica a que os factos foram subsumidos, ou seja, aos tipos de crime definidos, dos quais resultou a aplicação das referidas penas.

E, o Acórdão recorrido também reforça esta posição expressa na Decisão Sumária, quando, a dado momento, ao analisar tal decisão, refere:

Como decorre do texto da mesma, e ainda da análise alargada de toda a prova recolhida e pré constituída, a decisão posta em crise não enferma de vícios de conhecimento oficioso.

E analisou o segmento do recurso interposto de direito, no qual o arguido pugnava pela absolvição, para concluir que tal pedido era manifestamente improcedente.

Não só a decisão sumária se encontra devidamente fundamentada, como não enferma de qualquer omissão de pronúncia, o que não acolheu foi a pretensão do recorrente de o ilibar da comparticipação nos crimes pelos quais foi condenado.”

O que significa que, também em sede de conferência, o tribunal se pronunciou sobre a questão e adoptou a mesma posição relativamente ao suscitado erro de direito.