Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6149/20.6T8VNG.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: DIREITO A ALIMENTOS
ALIMENTOS À MÃE
DIREITOS DE TERCEIRO
LEGITIMIDADE ATIVA
PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
LACUNA
ANALOGIA
Data do Acordão: 05/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. As autoras demandam as rés invocando um direito de terceiro alheio aos presentes autos (o direito a alimentos da mãe das autoras e rés) pelo que, na falta de disposição legal em sentido contrário, carecem de legitimidade processual activa para o efeito.

II. No quadro legal em vigor – que não cabe ao julgador alterar, mas apenas interpretar e aplicar –, na ausência de impulso processual por parte da alimentanda, a fixação de prestação de alimentos não pode ser exigida por terceiros, in casu, pelas filhas da alimentanda, ainda que estas possam vir a ser prejudicadas pela inércia da sua progenitora.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA, BB, CC e DD instauraram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra EE e FF, pedindo:

a) A condenação da 1.ª R. a pagar às AA. a quantia de € 9.286,79, acrescida de juros vincendos, calculados à taxa supletiva legal, que se vencerem desde a citação até efectivo e integral pagamento e, conjuntamente,

b) A condenação da 2.ª R. a pagar às AA. a quantia de € 4.086,79, acrescida de juros vincendos, calculados à taxa supletiva legal, que se vencerem desde a citação até efectivo e integral pagamento e, conjuntamente,

c) A condenação da 1.ª R. a comparticipar nas prestações vincendas, no montante de €40.090,80;

d) A condenação da 2.ª R. a comparticipar nas prestações vincendas, no montante de €40.090,80,

Subsidiariamente,

e) Que as condenações das RR. no pagamento do montante global de € 93.557,18 sejam fixadas em quotas a definir, de acordo com os respectivos rendimentos de cada uma das RR. e na respectiva proporção, e, em qualquer caso,

f) A condenação das RR. no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, no montante de € 30,00, por cada dia de atraso no pagamento das quantias devidas, nos termos do disposto no artigo 829.º-A do Código Civil.

Alegam as AA., em síntese, que:

- GG é progenitora das AA. e das RR. e aufere uma pensão mensal no montante de €205,00;

- Atentos os parcos rendimentos de GG, as AA. têm vindo a prestar auxílio financeiro à sua mãe, o que sucede desde 2018, tendo despendido já a quantia a quantia de €55 720,74, por referência à data de 31.08.2020;

- Tal quantia foi despendida para assegurar as necessidades básicas da mãe das AA. e RR. e ainda para fazer face a encargos da herança aberta por óbito de HH, de que são herdeiras GG, AA. e RR.; e que

- Atentas as despesas da progenitora é previsível que, no horizonte temporal de 10 anos, GG despenda a quantia de €240.544,80, competindo a cada uma das filhas a quantia de €40.090,80, por referência ao mesmo período de 10 anos.

Entendem, assim, as AA. que os encargos com o sustento de GG e, bem assim, com a administração da herança aberta por óbito de HH devem ser suportados em partes iguais por todas as suas filhas, AA. e RR. nos autos.

Contestaram as RR., invocando a ilegitimidade das AA., uma vez que a mãe das AA. e RR. é maior e capaz, de tal forma que é cabeça-de-casal no processo de inventário que corre termos no Juízo Local Cível ..., Juiz ..., com o n.º 2023/20...., por morte do pai das AA. e RR..

Excepcionam ainda as RR. a sua ilegitimidade, alegando, para o efeito, que a acção teria de ser intentada contra a herança e não contra as demandadas, herança essa onde a mãe é cabeça-de-casal e que tem bens que podem ser arrendados.

Responderam as AA., sustentando a sua legitimidade na presente acção, alegando, em síntese, que cumprem, voluntariamente e na íntegra, a obrigação que impende sobre as partes e que emerge dos deveres de auxílio e de assistência para com a mãe das AA. e RR., já que aquela carece desse auxílio, assistência e apoio, mas que tal facto não desonera as RR. de comparticipar no mesmo auxílio nem do dever legal de reembolsar as AA. por satisfazerem, sozinhas, uma obrigação que é de todas as filhas. Pretendem as AA. serem reembolsadas dos gastos que tiveram com o cumprimento de uma obrigação que também impende sobre as RR..

Sustentam ainda as AA. a legitimidade das RR., alegando, em síntese, que as RR. podiam ter requerido a divisão da herança e nunca o fizeram.

Por saneador/sentença de 17 de Fevereiro de 2021 foi proferida a seguinte decisão:

«a) julgam-se as Autoras parte ilegítima na presente acção, no que respeita ao pedido de condenação das Rés a comparticiparem nas prestações vincendas e, nessa parte, absolvem-se as Rés da instância, ao abrigo do disposto nos art.ºs 278.º, n.º 1, al. d), 577.º, al. e) e 578.º, todos do Cód. Processo Civil;

b) julgam-se as Rés parte ilegítima na presente acção, no que respeita ao pedido de condenação no pagamento das quantias correspondentes à sua comparticipação nas despesas com a preservação do património que integra o acervo hereditário e, nessa parte, absolvem-se as Rés da instância, ao abrigo do disposto nos art.ºs 278.º, n.º 1, al. d), 577.º, al. e) e 578.º, todos do Cód. Processo Civil;

c) No mais, julga-se a presente acção improcedente e, consequentemente, absolvem-se as Rés do pedido.».

Inconformadas, as AA. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação ..., pedindo a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 28 de Outubro de 2021 o recurso foi julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.


2. Vieram as AA. interpor recurso de revista, por via excepcional, para o Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento no art. 672.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil, o qual foi admitido, em 3 de Março de 2022, por acórdão da Formação prevista no n.º 3 do mesmo art. 672.º.


3. Formularam as Recorrentes as seguintes conclusões (não se excluem as conclusões relativas à admissibilidade do recurso por se entender que as considerações gerais nelas tecidas permitem enquadrar as questões recursórias formuladas a partir da conclusão 11ª)):

«1) As Recorrentes pretendem ver esclarecida a questão, dotada de franco ineditismo e que se reveste de verdadeira complexidade, até pelo próprio impacto que tal pode ter na sociedade e no sistema de administração de justiça, bem como nas traves-mestras do Estado de direito democrático

2) Lograram as Recorrentes demonstrar e justificar a relevância jurídica e social, nos termos do preceituado no artigo 672.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC posto que está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, torna o presente recurso claramente necessário para uma melhor aplicação do direito bem como o mesmo é necessário por estarem em causa interesses de particular relevância social.

3) O dever de auxílio de filhos a pais e a necessidade de, por via da interpretação, designadamente por aplicação analógica, haver uma efetiva necessidade de alargar os legitimados a exigir alimentos para o pai que dos mesmo careça, sobretudo, por banda daqueles filhos que estão a cumprir tal obrigação, de forma a obviar o constrangimento e o sofrimento que representa para um pai demandar um/a filho/a judicialmente.

4) Pelo que se requer, em face da fundamentação supra e da demonstrada justificada relevância jurídica da questão a apreciar seja admitido presente Recurso de Revista Excecional.

5) Não há dúvidas que estamos perante uma lacuna existente na lei e, por via interpretativa, de acordo com as boas regras da hermenêutica jurídica, é patente que está detetada uma disfunção, no sistema jurídico português.

6) A cargo dos filhos encontra-se também o dever de assistência para com os pais, dever este que encontramos também ínsito no mencionado artigo 1874.º do Código Civil, que prevê que, pais e filhos devem-se mutuamente assistência, sendo que o n.º 2 deste artigo expressa que o dever de assistência abrange a obrigação de prestar alimentos e de contribuir, de acordo com os próprios recursos, para os encargos da vida familiar, norma que nos autos resulta, pois violada.

7) Ao que acresce dizer que a recusa de auxílio foi encarada pelo legislador português de forma tão severa a mesma pode ter por consequência a deserdação do herdeiro legitimário, conforme resulta da alínea c), do nº 1, do artigo 2166.º do Código Civil.

8) Também ficam as Recorridas inconformadas com o entendimento do Tribunal a quo para além da ação de alimentos prevista no artigo 2006.º CC nada obsta a que seja acionado o instituto da responsabilidade civil, com a correspondente obrigação de indemnização, a quem viole os deveres a que se encontra adstrito, desde que cumpridos os critérios de acionamento da responsabilidade civil, porquanto a conduta omissiva quanto à ausência de cuidados e de alimentos das filhas Recorridas, para com a sua mãe, corresponde a um ilícito civil, por omissão, que viola direitos juridicamente tutelados, tendo os pais o direito de exigir uma indemnização aos filhos pelos danos causados, acrescendo sempre que a falta de cuidado dos filhos em relação aos pais corresponde a um abandono afetivo, pelo que este ato ilícito corresponde a um dano não patrimonial indemnizável.

9) Este tema é pungente nas sociedades atuais cujo incumprimento tem consequências legais, mas sobretudo sociais, pelo que não podem os filhos, por facilidade e /ou comodidade, por ausência de espírito de sacrifício descartarem-se dos pais.

10)  Muito menos votarem-nos ao abandono, como sucede no caso dos autos e a ordem jurídica acolher a postura de descaso que as Recorridas adotam quanto ao sacrifício patrimonial que infligem à mãe, no plano jurídico.

11) Com todo o respeito e urbana discordância, decidiu sem acerto, na esteira da primeira instância, a Veneranda Relação ... que “Cabendo ao ascendente necessitado o direito de exigir o cumprimento da obrigação de prestar alimentos aos descendentes que se encontrem em condições de lhos prestar, terá forçosamente de se concluir que a relação material controvertida, tal como é configurada pelas Autoras, tem como sujeito, do lado activo, a sua mãe, e não as Autoras.”

12) É ponto assente que o legislador do CC de 1966 resolveu a questão para as situações em que não é de todo cumprido o dever de prestar alimentos e o progenitor que dos mesmos necessita pretende intentar a ação de alimentos, prendendo-se o descontentamento das Recorrentes com o facto de, na verdade, a situação não estar acautelada, na Lei adjetiva pátria para as situações apenas um grupo de obrigados (ou dito de outro modo, alguns dos obrigados: no caso 4 (as AA.) das 6 filhas que a alimentanda possui, a prestar alimentos e o auxílio previstos na Lei, situação em que carece de causa de pedir a ação a intentar, pela mãe das AA. e RR.

13) Mais se considerando o facto de estarmos perante pessoa idosa, cardíaca e de arreigados princípios éticos que não queira ver-se envolvida numa contenda judicial com as suas filhas. Como se disse e se reitera a norma de onde avulta a obrigação de prestar alimentos é a mesma para pais e para filhos, sendo que tal obrigação decorre do artigo 1874.º do Código Civil, que prevê que, pais e filhos devem-se mutuamente assistência, norma que nos autos surge violada.

14) Ou seja, os alimentandos quer sejam pais, quer sejam filhos estão abrigados pelo efeito de proteção da norma (o sobredito preceito).

15) O que vale por dizer que quer os pais, quer os filhos, que careçam de auxílio integram o mesmo grupo de casos, sendo certo que para os filhos maiores que careçam de alimentos e cuja obrigação da respetiva prestação, o legislador português já resolveu o problema da inação judicial do filho maior e, desde 2015, é possível ao progenitor que esteja a cumprir tal obrigação sozinho, demandar o progenitor inadimplente, por direito próprio.

16) Assim temos que: a alteração introduzida no artigo 1905.º do Código Civil, mediante o aditamento do n.º 2 pela Lei n.º 122/2015, os filhos passam a ter automaticamente direito à pensão de alimentos que lhes foi fixada durante a menoridade, e até que completem 25 anos e que para possibilitar a concretização desta modificação ao regime substantivo, a referida Lei n.º 122/2015 procedeu à correspondente alteração no âmbito processual, atribuindo agora também ao progenitor que suporta o encargo de pagar as despesas dos filhos maiores a legitimidade para exigir do obrigado a alimentos a respetiva contribuição.

17) O artigo 989.º, n.º 3, do CPC, introduzido pela referida lei, remetendo para os termos dos nºs 1 e 2 do mesmo artigo, reconhece legitimidade ao progenitor com quem o filho maior coabita, quando se torne necessário agir judicialmente, quer seja para prosseguir, no confronto com o outro progenitor, a ação destinada à fixação da pensão iniciada durante a menoridade, quer seja para, depois desta, intentar ação com a mesma finalidade ou recorrer aos procedimentos necessários à efetivação do direito anteriormente acertado, sobre alimentos aos filhos maiores que ainda não concluíram a sua formação profissional.

18) A questão é, pois, a seguinte: para o mesmo tipo de casos (os carecidos de auxílio maiores e como tal com capacidade judiciária), protegidos pela mesma norma (pela mesma previsão) há dois tratamentos divergentes.

19) O que nos levará à conclusão, inevitável, de que no que respeita ao julgamento da EXCEPÇÃO DA ILEGITIMIDADE não andaram bem as instâncias, da perspetiva das Recorrentes.

20) A questão é melindrosa e dotada de franco ineditismo e mesmo as decisões que paulatinamente tentam fazer caminho neste sentido, ainda, da perspetiva das Recorrentes não lograram alcançar um patamar de uniformidade e profundidade decisórias mínimos, com alcance satisfatório, salvo o devido respeito.

21) Sendo importante, se pensamos que mesmo uma inevitabilidade, que a prática judiciária, contribuir para enformar uma mentalidade coletiva de matriz solidária para com franjas de população objetivamente vulneráveis (como sucede nos autos em que está em causa a denegação de auxílio a uma pessoa idosa e doente).

22) Quanto à questão da legitimidade ativa (neste conspecto quanto ao alargamento do respetivo leque de legitimados) e passiva e deveria ter sido encarada da perspetiva da integração de lacunas por analogia, uma vez que o artigo 8.º do Código Civil, pela proibição expressa do non liquet.

23) Esta é uma questão da legitimidade do direito de ação, foi (e em rigor ainda o é) durante muitos anos, sendo objeto de enorme controvérsia jurisprudencial, quando se tratava de no que tange o dever de prestar auxílio a filho maior, pelo cônjuge não convivente.

24) E nunca se podendo perder de vista que o preceito de onde emerge essa obrigação, é, num caso, como no outro, a mesma – o artigo 1874.º CC - não se podendo deixar de levar em linha de conta que em 2015 teve o legislador necessidade de a clarificar, com a introdução na ordem jurídica portuguesa, pela Lei 122/2015, dos n.ºs 3 e 4 do artigo 989.º do CPC, tendo sido introduzido no nosso ordenamento jurídico (o qual tem de ser uno) um novo direito substantivo do progenitor que está a pagar as despesas do filho maior, o que de acordo com a atual jurisprudência dos Tribunais Pátrios Superiores é um direito substantivo do progenitor e não dos filhos.

25) Quanto aos progenitores alimentandos no nosso ordenamento jurídico, por ora, o legislador foi omisso quanto à questão da legitimidade processual.

26) À semelhança do que aconteceu para o menor, em momento anterior a 2015, convocando o labor interpretativo da doutrina e da jurisprudência, nesse contexto, para dilucidar que o progenitor que paga os alimentos de filho maior - e/ou que os exige judicialmente – exerce direito próprio e não está a agir em nome do filho.

27) Tal entendimento não estando plasmado na Lei, colocou por anos, aos Tribunais ante a tarefa da respetiva densificação e mostrou-se abundantemente controverso nas decisões judiciais que versam este tema.

28) É precisamente o que vale para o caso dos autos.

29) O que está aqui em causa é o seguinte: há indiscutivelmente um dever de auxílio – que decorre da filiação, é um efeito da filiação - que: o Legislador do CC de 1966 não fez depender da idade do beneficiário de alimentos; nem impede que seja cumprido por um dos progenitores, a título voluntário (o qual nesse caso esvazia de sentido a ação prevista no artigo 2003.º do CC, preceito jurídico que a Decisão em mérito viola, salvo o devido respeito e a mais urbana discordância).

30) Pelo que não podem as Recorrentes concordar com o entendimento das instâncias, sempre com a ressalva pelo devido respeito, penalizou quem, voluntariamente, cumpriu o dever que sobre si impendia, pela mais que compreensível “inércia” dos titulares do direito a alimentos (in casu a mãe), que se escusou a litigar contra as filhas incumpridoras do dever jurídico de auxílio.

31) Na autorizada opinião autorizada do insigne Senhor Professor Doutor António Agostinho Cardoso Guedes, a este respeito, podemos apreender que: “O art. 10.º do Código Civil português estabelece as diretrizes que devem ser seguidas para o preenchimento das lacunas da lei. Sob a epígrafe “Integração das lacunas da lei”, esta norma estabelece, no seu número 1, que os casos “que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos”, sendo que se entende existir analogia sempre que “no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei” (número 2). Na falta de caso análogo, determina o número 3 que a “situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema.”

32) Ao nível de integração de lacunas impõe-se que, no limite, em face do sobredito princípio de Proibição de non liquet, na ausência de Leis suscetíveis de aplicação analógica a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema, pelo tendo a Lei 122/2015 configurado uma alteração legislativa que introduziu, pois, um novo direito substantivo do (próprio) progenitor que está a pagar as despesas do filho maior, sendo, na verdade, este o entendimento atual da jurisprudência dos Tribunais Pátrios Superiores um direito substantivo do progenitor e não dos filhos e tal direito criado pelo legislador português corresponde à importação, ainda que imperfeita do regime já vigente no Direito Comparado – mormente em França, porque, entre nós, o legislador foi omisso quanto à questão da legitimidade processual.

33) Omissão do legislador pátrio que foi sendo colmatada pelo recurso ao labor da doutrina e da jurisprudência no sentido de dilucidar que o progenitor que paga os alimentos de filho maior - e/ou que os exige judicialmente – exerce direito próprio e não está a agir em nome do filho, sem se perder de vista que também nesse contexto, a dado momento a Jurisprudência produzida entre nós, veio a alcançar um consenso alargado em torno do entendimento que uma vez atingida a maioridade do filho beneficiário de alimentos, o, à data, designado “poder paternal” extinguia-se e, com ele, caducava a obrigação do progenitor alimentante, e, de acordo com esta linha de raciocínio caberia ao filho, que se encontrasse na situação prevista no art.º 1880.º, demandar o(s) progenitor(es) a fim de lhe ser reconhecido o direito à prestação alimentar, devendo alegar e provar os respetivos pressupostos. E mesmo nesse momento histórico, o entendimento, a este propósito não era pacífico: os nossos Tribunais Superiores começavam a desenvolver uma corrente que entendimento que defendia que a obrigação de alimentos se mantinha, ope legis, após a maioridade do filho, devendo os progenitores onerados com a obrigação alimentar demonstrarem em juízo que não se verificavam os pressupostos previstos no artigo 1880.º do CC para tal obrigação se extinguisse.

34) Revertendo ao caso dos autos, sendo assimilável com facilidade esse constrangimento para que os filhos intentem ações contra os Pais pode ler-se na Exposição de Motivos do Projeto de Lei n.º 975/XII/4.ª, que esteve na origem deste preceito o seguinte: "A experiência demonstra uma realidade à qual não podemos virar as costas: o temor fundado dos filhos maiores, sobretudo quando ocorreu ou ocorre violência doméstica, leva a que estes não intentem a ação de alimentos. Mesmo quando o fazem, a decretação dos processos implica, por força da demora da justiça, a privação do direito à educação e à formação profissional.

35) Ora, o caso dos autos apresenta uma situação análoga, donde entendem as recorrentes que do ponto de vista do direito substantivo há vários institutos que podem ser convocados para estribar a atuação processual do progenitor convivente, que demanda o outro progenitor para obter a dita comparticipação nas despesas com o sustento do filho maior, de entre as quais se destaca:

31.1) o direito a ressarcimento assente na responsabilidade civil por omissão ilícita, cujo artigo 467.º do CC, na medida em que estipula o regime da solidariedade permitiria, em qualquer caso, afastar os óbices colocados pelas instâncias quanto a este aspeto;

31.2) Ou o avalisado entendimento do Exmo. Senhor Conselheiro António Abrantes Geraldes que também tem sustentado a existência de uma espécie de direito de regresso de um progenitor sobre o outro (precisamente o que se pede que se aplique nestes autos no que tange as descendentes cumpridoras).

36) Sob a ótica das Recorrentes, ao não reconhecer, como direito próprio, o invocado crédito pelas Recorrentes sobre as Recorridas, o Aresto em mérito violou o disposto no artigo 1874.º do CC e o artigo 30.º do CPC, estando o Tribunal a quo vinculado à integração da lacuna por recurso à ANALÓGICA, não se podendo furtar a essa tarefa interpretativa, com vista a alcançar uma solução consentânea com uma justa aplicação do direito, no que tange o dever de prestar alimentos a descendente maior que dos mesmos careça, pela mesma ordem de motivos.

37) Permitir que faça luz a Jurisprudência vertida no Aresto em mérito é, da perspetiva das Apelantes uma injustiça clamorosa.

38) Redunda apenas no reconhecimento de uma obrigação no sentido de ascendente para descente, esvaziando de sentido a norma.

39) Sendo completamente incompreensível que o direito não dê respaldo a estas situações, quando, por aplicação analógica do que sucede no sentido da obrigação de auxílio dos ascendentes para com os descendentes poder-se-á (e nós dizemos, dever-se-á) colmatar injustiça tão clamorosa.

40) O disposto no artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil, norma que resultou violada pelo Tribunal a quo teria de ter tido em consideração todos os casos que merecessem tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito, o que não sucedeu, como vimos, pelo que nessa medida, a Decisão recorrida, viola igualmente o disposto no artigo 10.º do CC.

41) Quer pela relevância jurídica do caso em apreço, quer pelo seu impacto social.

42) Desde logo, porque o Tribunal a quo deveria, a respeitado a legitimidade própria de um progenitor para demandar o outro, por direito próprio, desde 2015, por força da entrada em vigor no nosso ordenamento jurídico da Lei 122/2015, quando está em causa a necessidade de auxílio a filho maior que não queira lançar mão de tutela judicial contra o outro progenitor (quer porque não é razoável impor morosidade de acção judicial, quer porque é absolutamente compreensível que pais e filhos sintam uma natural e justificada inibição na demanda recíproca) ter aplicado tal regime analogicamente (nos termos do disposto no artigo 10.º, n.º 1 do CC).

43) Preceitua que os casos que a Lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos; e mais se dizendo no inciso 2 daquele dispositivo legal que há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na Lei e quer num caso e noutro (isto, quer se trate de prestar auxílio a descendente maior, quer a ascendente), o dever encontra a sua consagração legal no mesmo preceito, i.e. no artigo 1874.º do CC.

44) No limite, o n.º 3, do artigo 10.º do CC imporia ainda que “na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio interprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema.”, fazendo-se ainda notar que a prevalecer no ordenamento jurídico o entendimento sufragado pelo Tribunal a quo, o artigo 1874.º do Código Civil, seria, então uma norma jurídica imperfeita, posto que era uma norma sem sanção (nas concretas hipóteses em que resulta de um constrangimento das relações de filiação que estas se digladiem em Tribunal (é contra-natura).

45) Estamos pois verdadeira lacuna e não uma mera situação extrajurídica (tanto que existe a estatuição), já que não se trata de matéria não regulada porque não deva estar e, portanto, não há dúvida que, no caso vertente, estramos perante uma lacuna de previsão, pelo que sempre teria sido possível ao julgador pelas forças da própria Lei, chegar à solução de casos que a Lei não regulou especificamente, sendo rigoroso afirmar que ao problema submetido a julgamento, se não respondido pela Lei, porquanto era esta é omissa, dúvidas não restam que é respondia o sistema jurídico e o sistema é mais do que a Lei, resultando de muitos outros elementos que compõem a unidade final de cada ordenamento jurídico.

46) Como se viu, no caso dos autos, a incompleição do sistema atenta contra o próprio sistema e tanto assim é que a situação dos descendentes maiores e dos descendentes, cuja obrigação de auxílio é reciproca advém da mesma norma jurídica tem ínsita a mesma ratio, com inultrapassável afinidade substancial, pelo que ao não aplicar analogicamente o previsto na Lei 122/2015, o Tribunal a quo violou o Princípio da Igualdade e assim o artigo 13.º da CRP, (preceito que, de igual modo surge violado nos autos).

47) O Recurso à integração de lacunas por analogia mais não é do que densificação, no plano da Lei Ordinária daquele princípio: conferir tratamento igual a situações semelhantes.

48) Assim, a interpretação que o Tribunal a quo levou a cabo viola o artigo 13.º da CRP; viola também o próprio direito à vida (cf. artigo 24.º da CRP) e constitui uma forma de discriminação a que o artigo 26.º da CRP obstaculiza, preceito que também resulta violado, Por outro lado, e ainda do prisma constitucional a interpretação efectuada pelas instâncias violam ainda o artigo 67.º da CRP.

49) Mais resultando violado o disposto no Artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de acordo com o que: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”, o que se diga, com urbana discordância, a Sentença em mérito, de todo, não acautela.

50) Também sob a iluminação da Lei Fundamental Pátria: o raciocínio efetuado a propósito dos filhos maiores com a formação por completar e que, por essa razão carecem de alimentos, é o que tem de valer para os progenitores idosos e vulneráveis (nos autos está em causa uma mãe de quase 90 anos que aufere uma pensão de reforma que à data da prolação da Decisão de Primeira Instância se cifrava no € 196,90 e cujo valor foi majorado para € 205,00 Euros, no mês de Maio e Junho daquele ano por contemplar retroactivos, conforme Documento que se junta, sob o n.º 2, junto coma PI), Mãe essa extremosa e exemplar que sempre trabalhou para que nada faltasse às filhas e que muito auxiliou as aqui Recorridas e no presente momento, por estas, votadas ao abandono pois perante a bonomia da mãe e a respetiva passividade, não sofrem quaisquer consequências decorrentes da sua conduta omissiva

51) Vendo-se as Recorrentes (sendo que a R. FF tem rendimentos na ordem dos € 5.000,00 e se faz transportar num veículo mercedes de alta cilindrada, tendo ainda uma segunda viatura) deixou de auxiliar a mãe sobrecarregando as irmãs que auferem rendimentos mais modestos.

52) E neste ínterim, em que as Recorrentes procuram justiça, a Recorrida FF adicionalmente, intentou duas ações para cobrança de alegada dívida, contra a Recorrente CC e a própria mãe, a saber:

- O Processo que sob N.º 5341/21...., corre termos no Juízo Local Cível ... - Juiz ... (em que esta R. demanda a mãe peticionando-lhe a quantia de 8604,26 €);

- E o Processo que sob o N.º 5840/21...., Juízo Local Cível ... - Juiz ..., 4 (em que esta R. demanda a aqui A., sua irmã, CC, a qual acolheu a sua mãe em casa).

53) Parece-nos salvo o devido respeito que, sem a intervenção clarificadora desse Supremo Tribunal de Justiça, que passe uma mensagem de justiça no que tange estas condutas omissivas, ficará uma situação em todo idêntica à do descendente maior, desprotegida e que bem merece tutela jurídica, pois continuando as AA. a suportar as necessidades efetivas de sua mãe e pelo menos uma das R. a tentar cobrar alegados créditos judicialmente de quem notoriamente, para além de não dever, os não pode pagar.

54) E aquela Recorrida bem sabe por que razão.

55) A consciência jurídica geral não pode, salvo o devido respeito, acolher tal entendimento, porque de acordo com as regras da boa hermenêutica jurídica o Direito que não é justo não é direito, mas precisamente o inverso, sendo que as instâncias não estavam vinculadas à qualificação jurídica dada pelas Recorrentes, estavam, sim, vinculadas apenas ao Princípio da Proibição do non liquet, pois que – repise-se- os Tribunais estão vinculados a integrar lacunas.

56) Ademais: devido à robustez crescente dos sistemas e cuidados de saúde dos países evoluídos e ao constante progresso científico, a esperança média de vida tem vindo a aumentar consideravelmente, sucedendo, porém, que, com facilidade, os nossos idosos são invisíveis aos olhos de uma sociedade: não têm autonomia e muitas vezes condições físicas para se deslocar.

57) É justo que as Recorrentes tenham de arcar sozinhas com tão pesadas despesas (para não falar no carinho que devotam a sua mãe, o qual é quantificável, bem como o afeto e todo o amor e o lar que lhe proporcionam)? Não nos parece.

58) E muito menos nos parece que o direito possa “virar as costas” a esta questão jurídica, com todo o devido respeito e urbanidade

59) a Doutrina já se reclama por idêntica situação à que as Recorrentes defendem, se não vejamos.

55.1) Para Paula GUIMARÃES, uma das questões que deveria ser tratada, na área jurídica em relação ao envelhecimento, reside em “alargar a legitimidade de quem pode interpor ações no campo da obrigação de alimentos”.

55.2) E também, igualmente em apoio ao entendimento por que se têm batido as Recorrentes, Jorge DUARTE PINHEIRO que essa legitimidade poderia ser alargada a “qualquer indivíduo ou entidade que preste apoio aos idosos”.

56) É ponto que não se esqueça que as demais filhas também constituíram as suas famílias e é à custa do contributo que as mesmas poderiam dar que cumpre voluntariamente a obrigação em substituição das Recorridas, sendo certo e rigoroso que obrigação que as Recorrentes cumprem nos presentes autos não é uma obrigação natural, nem uma faculdade, mas uma verdadeira obrigação jurídica, impende sobre as recorrentes e recorridas o dever de garante, o que significa que o assunto em análise tem até dignidade penal, porquanto nos termos do artigo 250.º do Código Penal consagra o crime de violação da obrigação de alimentos.

57) O que significa que também a ordem jurídica se tem de se preparar para conceder tutela adequada a esta nova realidade, porque envelhecimento da população é um dos problemas mais pungentes do século XXI, sendo que um dos grupos da população que tem ficado mais vulnerável, é precisamente o dos idosos (uma frange de vulneráveis invisíveis).

58) E também dessa perspetiva esta questão vai adquirindo, hodiernamente, maior relevância e reclama soluções mais modernas e adequadas.

59) Entendem as apelantes que o Direito de regresso era mecanismo apto a solucionar a questão por aplicação do mesmo entendimento que vem sendo perfilhado para os descendentes maiores, louvando-se as Recorrentes no entendimento avisado do Exmo. Senhor Conselheiro António Abrantes Geraldes que tem sustentado a existência de uma espécie de direito de regresso de um progenitor sobre o outro (como se sustentou no Recurso de Apelação) e aqui por síntese expositiva se dá por reproduzido e se reitera.

61) O que significa que as instâncias, de igual modo, não aquilataram, com todo o respeito, de forma bem ponderada a questão sub judice, pelo que resultou violado o disposto no artigo 524.º do CC.

62) O mesmo se impondo considerar quanto ao instituto das SUBROGAÇÃO porque importa ter presente que o direito de subrogação se traduz na substituição do credor na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor (ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento), sendo que a sub-rogação pode ser voluntária, quando decorre de manifestação expressa da vontade do credor ou do devedor ou legal, quando opera por determinação da lei, independentemente de declaração do credor ou devedor.

63) Como resulta do artigo 592.º, n.º 1, do CC, que são razões especiais que justificam o regime legal de favor que coloca o terceiro na mesma posição jurídica do primitivo credor, o que significa que o crédito não se extingue, antes de transfere para o terceiro que cumpre em vez do devedor. Mantém-se, por conseguinte, na titularidade do terceiro, o mesmo direito de crédito de que era titular o anterior credor, ficando, também, sub-rogado nos direitos do credor, o terceiro que cumpra a obrigação alheia, quando “por outra causa, estiver directamente interessado na satisfação do crédito”.

64) Nesta medida dizendo-se que resultou violado o disposto no artigo 592.º, n.º 1, in fine, do CC.

65) O que se exige-se nos autos é um interesse directo, que a doutrina vem entendendo como sendo um interesse patrimonial e próprio, como sucede no caso dos autos (não sendo necessário para o efeito a propositura de acção judicial nos termos do disposto no artigo 2206.º do CC – bastando acordo, tal qual acontecia entre a Recorrida FF e sua mãe e está alegado em 6.º da PI (Despesas que as AA. realizam todos os meses, sozinhas, sempre sem a comparticipação da 1.ª R., desde 01.04.2018 - acordo que existia para a mãe não pedir partilhas e que a 1.ª Recorrida rompeu nessa data)

66) E finalmente não há dúvidas que aritmeticamente, a decisão em mérito introduz um enriquecimento injustificado na esfera patrimonial das Recorrentes com o qual a consciência jurídica se não deve conformar e muito menos se pode aceitar já que o cumprimento de uma obrigação legal, de forma voluntária, por parte das Recorrentes não desonera as Recorridas de comparticipar nesse auxílio a sua mãe.

67) Atualmente é reconhecido, de forma consensual, que nada obsta a que seja accionado o instituto da responsabilidade civil, com a correspondente obrigação de indemnização, a quem viole os deveres a que se encontra adstrito, desde que cumpridos os critérios de acionamento da responsabilidade civil

68) Na questão sub judice não é de somenos relevância devendo ter-se por pacífico que não cuidar dos pais, não lhes prestando assistência, não cumprindo com o dever de cooperação, recusando o cumprimento da obrigação de alimentos, corresponde, sem necessidade de mais considerações, a um ilícito civil, por omissão, que viola direitos juridicamente tutelados e como tal os danos daí emergentes – patrimoniais e não patrimoniais – indemnizáveis.».

Terminam pedindo, no que ora importa, que o recurso seja julgado procedente, revogando-se o acórdão recorrido e substituindo-o por decisão que julgue as partes legítimas.

As Recorridas contra-alegaram, pugnando pelo não conhecimento do recurso e, subsidiariamente, no que se reporta às questões objecto do recurso, concluindo nos termos seguintes:

«11. Independentemente disso, em todo o caso, a ação está ferida de ilegitimidade.

12. Motivo pelo qual a 1ª instância proferiu saneador/sentença, no qual se julgaram as Autoras, aqui Recorrentes, partes ilegítimas na ação, no que respeita ao pedido de condenação das Rés, aqui Recorridas, a comparticiparem nas prestações vincendas e, nessa parte, absolveram-se as Rés/Recorridas da instância, ao abrigo do disposto nos art.ºs 278.º, n.º 1, al. d), 577.º, al. e) e 578.º do CPC.

13. As Rés/Recorridas foram também julgadas partes ilegítimas na ação, no que respeita ao pedido de condenação no pagamento das quantias correspondentes à sua comparticipação nas despesas com a preservação do património que integra o acervo hereditário e, nessa parte, absolveram-se as Rés/Recorridas da instância, ao abrigo do disposto nos art.ºs 278.º, n.º 1, al. d), 577.º, al. e) e 578.º do CPC.

14. No mais, julgou-se a ação improcedente e, consequentemente, absolveram-se as Rés do pedido.

15. A este respeito, explicou o douto Acórdão da Relação que “(…) cabendo ao ascendente necessitado o direito de exigir o cumprimento da obrigação de prestar alimentos aos descendentes que se encontrem em condições de lhos prestar, terá forçosamente de se concluir que a relação material controvertida, tal como é configurada pelas Autoras, tem como sujeito, do lado activo, a sua mãe, e não as Autoras”.

16. Bem como, salientou que “os titulares dos direitos e deveres da herança aceite mas que se mantém indivisa, em comum e sem determinação de parte, são os herdeiros/sucessores do autor da herança, e não a própria herança aceite mas indivisa, a qual não é sujeito de direitos, não dispõe de personalidade judiciária e, como tal, não pode ser parte passiva. Assim sendo, pelos encargos da herança, deverão ser demandados os herdeiros/sucessores nessa qualidade (…)”.

17. Portanto, as Recorrentes não parecem compreender que a ação esteve sempre, desde logo, votada ao insucesso, devido a estas questões de ilegitimidade.

18. Além do mais, as Recorrentes fundamentam o seu pedido aludindo a um suposto direito de regresso que não se aplica ao caso concreto, olvidando-se de adaptar devidamente os preceitos legais, nomeadamente, o art. 2010.º, n.º 1 do CC que prevê que sendo várias as pessoas vinculadas à prestação de alimentos, respondem todas na proporção das suas quotas como herdeiros legítimos do alimentando.

19. Destarte, a obrigação alimentícia não poderá ser tratada como uma obrigação solidária, ao contrário do que alegam as Recorrentes, até porque, em consonância com o art. 513.º do CC, a solidariedade de devedores apenas existe quando resultar da lei ou da vontade das partes.

20. As Recorrentes invocaram ainda o seu alegado direito ao reembolso da parte que alegadamente competia às Recorridas, à luz do instituto da sub-rogação legal, o que também não tem merece aplicação no caso concreto.

21. Note-se que, a prestação de alimentos só é devida desde a propositura da ação, a não ser que já se mostre fixada pelo tribunal ou por acordo, caso em que a prestação é devida desde o momento em que o devedor se constituiu em mora.

22. De facto, a ação apenas foi interposta em 27 de setembro de 2020, sem que a prestação de alimentos estivesse fixada pelo Tribunal, ou existisse qualquer acordo.

23. Pelo que, os alimentos não eram devidos, no período de tempo a que se reportam as Recorrentes, ou seja, de 01 de abril de 2018 a 31 de agosto de 2020.

24. Portanto, se a mãe entende que lhe são devidos alimentos pelas suas filhas, logicamente, que será ela quem deverá intentar a respetiva ação, por ser quem tem a legitimidade processual e substantiva necessária.

25. As Recorrentes demonstram um profundo desconhecimento da adequação e enquadramento legal ao caso concreto, optando por recorrer a uma imensidão de analogias que não têm aplicação ao mesmo.

26. As Recorrentes tentam fazer uso deste Recurso excecional, quando nem sequer é admissível, repetindo exaustiva e desenfreadamente as motivações que já haviam apresentado anteriormente e que foram rejeitadas por serem desprovidas de fundamento.

27. Assim, não merece qualquer reparo a douta decisão proferida, pelo que se deverá mantê-la na sua íntegra.».

Cumpre apreciar e decidir.


4. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões:

- Ilegitimidade processual activa quanto ao pedido de condenação das RR. ao pagamento de quantias vincendas, a título de alimentos devidos a ascendente;

- Direito das AA. ao reembolso das quantias despendidas entre 01.04.2018 e 31.08.2020 com o sustento da sua progenitora.

Assinale-se que, em sede de conclusões de recurso, as Recorrentes apenas impugnam a decisão de ilegitimidade activa quanto ao pedido de reconhecimento da obrigação de alimentos e não a decisão de ilegitimidade passiva quanto ao pedido de comparticipação nos encargos da herança aberta por óbito de HH.


5. Com relevo para a apreciação do objecto do presente recurso, ficou provado o que consta do relatório supra.


6. Consideremos a questão da ilegitimidade processual activa quanto ao pedido de condenação das RR. ao pagamento de quantias vincendas, a título de alimentos devidos a ascendente.

Com a presente acção, pretendem as AA. que as RR. sejam condenadas no pagamento de uma quantia anual capaz de fazer face às necessidades de sustento, habituação e vestuário de GG, mãe das AA. e RR., necessidades essas que se encontram elencadas no artigo 5.º da petição inicial. Está, pois, em causa um pedido de fixação de alimentos, nos termos do disposto nos arts. 2003.º e segs. do Código Civil.

A legitimidade das partes constitui um pressuposto processual, no sentido de que da sua existência ou verificação depende a possibilidade de o tribunal se debruçar sobre o mérito da causa.

Em termos substantivos, a legitimidade mais não é do que um conceito de relação entre o sujeito e o objecto do acto jurídico que, encarada na perspectiva do sujeito, exprime a posição dele nessa relação, justificativa de que se actue juridicamente sobre o objecto, sendo que, em regra, postula a coincidência entre o sujeito do acto jurídico e o titular do interesse por ele posto em jogo (cfr. Isabel Magalhães Colaço, «Da Legitimidade no acto jurídico», in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 10, págs. 38 e segs.).

Em termos processuais, a legitimidade não se confunde com razões de mérito ou de demérito da pretensão apresentada pelo autor, antes se configurando como expressão da relação existente entre a parte no processo e o objecto deste (pretensão ou pedido).  Assim sendo, ao apuramento da legitimidade interessa apenas a consideração do pedido e da causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última.

As partes são, pois, legítimas se, admitindo-se que existe a relação material controvertida, tal como configurada pelo autor, elas se configurarem como titulares desta, traduzindo-se a legitimidade, por isso, na posição das partes numa determinada e concreta acção. 

No caso que nos ocupa, lida a petição inicial, é a mãe das AA. e RR. que assume a posição activa na relação material controvertida tal como configurada pelas autoras. De facto, como já afirmado nos autos pelas instâncias, ao longo da petição inicial são inúmeras as referências às necessidades de GG e à sua insuficiente capacidade financeira, sendo, de resto, esse o fundamento que subjaz ao pedido ora em análise.

Sendo manifesto que as AA. demandam as RR. invocando um direito de um terceiro alheio aos presentes autos, é evidente que, na falta de disposição legal em sentido contrário, carecem de legitimidade processual activa para o efeito.

Defendem as AA. que se verifica uma lacuna de regime jurídico, a integrar através da aplicação analógica do disposto nos arts. 1905.º, n.º 2, do Código Civil e 989.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o que permitiria a demanda dos obrigados à prestação de alimentos por parte de terceiro, in casu, pelas AA..

Na lição de Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1987, pág. 194):

 «A lacuna é sempre uma incompletude, uma falta ou uma falha. (…) uma incompletude relativamente a algo que propende para a completude. Diz-se, pois, que uma lacuna é uma “incompletude contrária a um plano”. (…) // (...) Existirá uma lacuna quando a lei (dentro dos limites de uma interpretação ainda possível) e o direito consuetudinário não contêm uma regulamentação exigida ou postulada pela ordem jurídica global, - ou melhor: não contêm a resposta a uma questão jurídica.».

Para se apurar se existe uma lacuna por integrar importa proceder à interpretação e conjugação das normas jurídicas aplicáveis ao caso concreto, sendo certo que, nas esclarecedoras palavras de Mário Bigotte Chorão («Integração de Lacunas», in Polis Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, Volume 3, Verbo, pág. 594):

«Bem pode acontecer, com efeito, que certo caso não encontre cobertura normativa no sistema, sem que isso frustre as intenções ordenadoras deste. Razões político-jurídicas ponderosas podem estar na base da abstenção do legislador. Esses “silêncios eloquentes” da lei não têm de ser supridos pelo juiz, ainda que este, porventura, em seu critério, entenda o contrário. Diz-se, por isso, que tais faltas de regulamentação constituem lacunas impróprias (de lege ferenda, de jure constituendo, político-jurídicas, críticas, etc.), que eventualmente poderão vir a desaparecer em futuros desenvolvimentos do sistema, a cargo dos órgãos competentes». Pode, assim, haver casos em que a inexistência de regulamentação (ou de regulamentação com um determinado conteúdo) corresponde a um plano do legislador e não da lei, a uma inexistência planeada, que não representa, enquanto tal, uma deficiência, mas apenas pode motivar críticas no plano da política legislativa.». [negrito nosso]

Assim, «não é suficiente concluir que o caso cabe dentro da descrição fundamental da ordem jurídica, sendo ainda necessário determinar se ele deve ser juridicamente regulado, tendo, pois, de se encontrar algum indício normativo que permita concluir que o sistema jurídico requer a consideração e solução daquele caso.» (Oliveira Ascensão, O Direito - Introdução e Teoria Geral, 11.ª ed., Almedina, Coimbra, 2001, pág. 422).

Ora, como é comumente aceite:

«O direito a alimentos encontra-se ligado à pessoa do alimentando, tendo indiscutivelmente, em relação a si, um caráter intuitu personae. (…) (Maria João Vaz Tomé, in Código Civil Anotado, coord. Clara Sottomayor, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 1071).

E, logo à frente, afirma a mesma autora:

«O alimentando está somente autorizado a não exercer o seu direito de peticionar os alimentos – na medida em que, por via de regra, a constituição da obrigação de alimentos está sujeita à vontade do alimentando. O respeito pela liberdade do alimentando remete para o livre arbítrio o exercício do direito a alimentos, que lhe é concedido também no seu próprio interesse».

Transpondo as considerações supra para o caso que nos ocupa, temos por evidente que o legislador optou por não estender a legitimidade activa para a propositura da acção de alimentos a terceiros, no caso de alimentos devidos a ascendente, atendendo à natureza pessoalíssima do direito a alimentos, ao respeito pela autonomia do ascendente, assim como, ao menos até certo ponto, à especificidade da relação entre pais e filhos, de acordo com a qual, em regra, são os pais que auxiliam os filhos e não o contrário.

Precisamente em razão do respeito pela autonomia dos ascendentes (autonomia que, no caso sub judice, é, aliás, expressamente reconhecida pelas Recorrentes ao afirmarem «estarmos perante pessoa idosa, cardíaca e de arreigados princípios éticos que não» quer «ver-se envolvida numa contenda judicial com as suas filhas») e da especificidade da relação entre pais e filhos, diversamente do alegado pelas Recorrentes, não se afigura possível transpor para a situação dos autos, o regime dos arts. 989.º, n.º 3, do Código de Processo Civil e 1905.º, n.º 2, do Código Civil.

Com efeito, o que justificou a alteração cirúrgica ao disposto nestas normas legais (realizada pela Lei n.º 122/2015, de 1 de Setembro) foi o entendimento de que «o temor fundado dos filhos de intentar esta ação» era, na grande maioria de casos, penalizador para o progenitor convivente que acabava por arcar com todas as despesas inerentes ao sustento dos filhos (cfr. Maria Clara Sottomayor, Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos casos de Divórcio, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, nota 983 da pág. 497).

Considera-se, assim, que a ausência de expressa regulamentação da situação apresentada pelas Recorrentes não configura uma lacuna em sentido próprio, pelo que apenas poderá ser ultrapassada/resolvida em eventual e futura intervenção do legislador mediante a introdução de norma legal que permita a propositura de acção de alimentos por terceiro. Em razão do princípio da separação de poderes, estruturante do Estado de Direito, não pode o julgador criar normas onde não existe lacuna, enquanto falha de regulamentação, restando esperar que o legislador pondere as razões de ordem social descritas pelas Recorrentes em sede de alegações recursórias, vindo a intervir na ordem jurídica em conformidade com o que entender mais adequado.

No quadro legal em vigor – que não cabe ao julgador alterar, mas sim interpretar e aplicar –, na ausência de impulso processual por parte da alimentanda, a fixação de prestação de alimentos não pode ser exigida por terceiros, in casu, pelas filhas da alimentanda, ainda que estas possam vir a ser prejudicadas pela inércia da sua progenitora.

No plano constitucional, e diversamente do invocado pelas Recorrentes, a ausência de norma legal que atribua legitimidade a terceiros para requerer a fixação de alimentos para pessoa deles necessitada apenas poderia ser equacionada, na sede própria, com fundamento em eventual responsabilidade civil do Estado por omissão legislativa.

Improcede, pois, o recurso nesta parte.


8. Quanto à questão do alegado direito das AA. ao reembolso das quantias já  despendidas entre 01.04.2018 e 31.08.2020 com o sustento da sua progenitora – seja com fundamento em responsabilidade civil por facto ilícito e culposo, em exercício do direito de regresso ou em sub-rogação nos direitos do credor de alimentos, fundamentos estes invocados pelas Recorrentes – a existência de tal direito encontra-se, sempre e em qualquer caso, dependente do reconhecimento de se encontrarem as RR. vinculadas à obrigação (por obrigação civil, isto é, cujo cumprimento é judicialmente exigível) de prestar alimentos à sua mãe.

Ora, não apenas tal obrigação de prestação de alimentos não foi judicialmente declarada, como, ainda que, porventura, o viesse a ser na presente acção (ou o venha a ser noutra acção), uma vez que tal decisão apenas produziria (ou produzirá) efeitos a partir da propositura da acção (cfr. art. 2006.º do Código Civil), não poderia abranger o sustento da alimentanda em período anterior ao da propositura da presente acção.

Conclui-se também, nesta parte, pela improcedência do recurso.


8. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.


Custas pelas Recorrentes.


Lisboa, 5 de Maio de 2022


Maria da Graça Trigo (relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira