Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
919/15.4T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
PRESSUPOSTOS
ABUSO DO DIREITO
SOCIEDADE COMERCIAL
PERSONALIDADE JURÍDICA
SEPARAÇÃO DE BENS
BOA FÉ
FIM SOCIAL
SÓCIO
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
Data do Acordão: 11/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Área Temática:
DIREITO DAS SOCIEDADES – DELIBERAÇÕES DOS SÓCIOS / DELIBERAÇÕES ANULÁVEIS / RESPONSABILIDADE CIVIL PELA CONSTITUIÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E FISCALIZAÇÃO DA SOCIEDADE.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / PERFEIÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / ABUSO DO DIREITO – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES.
Doutrina:
- Coutinho de Abreu, Do Abuso do Direito, 102/103;
- Pedro Cordeiro, A Desconsideração da personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais, Novas Perspectivas do Direito Comercial, Livraria Almedina, Coimbra, 1988, 297 – 2005, 2.ª Edição, Universidade Lusíada Editora;
- RUI de ALARCÃO, Direito das Obrigações, Polic., Coimbra,1983, 108 e ss.;
-Armando Triunfante e Luís Triunfante, Desconsideração da Personalidade Jurídica - Sinopse Doutrinária e Jurisprudencial, Revista Julgar, n.º 9, Coimbra Editora, 136 e 145 ;
-Baptista Machado, RLJ 117º, 233;
-Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Edição da AAFDL, I, 246;
-Catarina Serra, Desdramatizando o afastamento da personalidade jurídica (e da autonomia patrimonial), Revista Julgar, n.º 9, Coimbra Editora, 130;
-Ferrer Correia, Sociedades fictícias e unipessoais, Coimbra, 1948, 325;
-Fredie Didier Jr., Professor da Universidade Federal da Bahia, Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica;
-Heinrich E. Horster, A Parte Geral do Código Civil Português, 284 e ss.;
-J. Coutinho de Abreu, Do Abuso do Direito, 59 e 60;
-Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I Volume, Parte Geral, 429 ; Manual de Direito Comercial, II Volume, 191 e 192 ; Tratado de Direito Civil, I, Tomo III, 648 ; O Levantamento da Personalidade Colectiva, Almedina, 2000, 107, 105, 122 e ss. ;
-Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2007, Almedina, 4.ª Edição, 183;
-Palma e A. Varela, Código Civil, Anotado, 4.ª Edição, Volume I, 298;
-Paulo Ferreira Guedes, Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades por Quotas Subcapitalizadas, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 32 e ss.;
-Rubens Requião, Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica, disregard doctrine, Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, 1969, n.º 410, 14 e 15.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 58.º, N.ºS 1, ALÍNEA A) E 3 E 84.º.
CÓDIGO DO TRABALHO (CT): - ARTIGO 378.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 227.º, 334.º E 762.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 24-02-1999, BMJ 484º, 246;
- DE 26-06-2007, PROCESSO N.º 07A1274;
- DE 03-02-2009, PROCESSO N.º 08A3991;
- DE 30-11-2010, PROCESSO N.º 1148/03.5TVLSB.S1, IN WWW.STJ.PT, “SUMÁRIOS”;
- DE 12-05-2011, PROCESSO N.º 280/07.0TBGVA.C1.S1;
- DE 10-01-2012, PROCESSO N.º 434/1999.L1.S1;
- DE 10-05-2016, PROCESSO N.º 136/14.0TBNZR.C1.S1.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:


- DE 03-03-2005, PROCESSO N.º 1119/2005-6;
- DE 11-05-2006, PROCESSO N.º 7541/2005-6;
- DE 29-03-2012, PROCESSO N.º 1751/10.7TVLSB.L1-2.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL RELAÇÃO DE COIMBRA:


- DE 03-07-2013, PROCESSO N.º 943/10.8TTLRA.C1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL RELAÇÃO DO PORTO:


- DE 13-05-1993, CJ, 3º, 199.
Sumário :

I - O princípio da atribuição da personalidade jurídica às sociedades e da separação de patrimónios, ficção jurídica que é, não pode ser encarado, em si, como um valor absoluto e não pode ter a natureza de um manto ou véu de protecção de práticas ilícitas ou abusivas – contrárias à ordem jurídica –, censuráveis e com prejuízo de terceiros.

II - Assim, quando exista uma utilização da personalidade colectiva que seja, ou passe a ser, instrumento de abusiva obtenção de interesses estranhos ao fim social desta, contrária a normas ou princípios gerais, como os da boa fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade jurídica, deve actuar a desconsideração desta, depois de se ponderarem os verdadeiros interesses em causa, para poder responsabilizar os que estão por detrás da autonomia (ficcionada) da sociedade e a controlam.

Decisão Texto Integral:

                                                                                           

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
           


AA, SA propôs a presente acção contra BB, Lda,
CC, Lda, DD, Lda, EE e FF, pedindo que os RR sejam condenados a pagar-lhe a quantia de € 187.375,47, acrescida dos juros à taxa legal comercial desde a citação.
Para tanto, alegou, em síntese:
- Celebrou com a primeira R os contratos cujos conteúdo e forma como foram sendo executados descreve;
- Relativamente à colheita de kiwis do ano de 2013, apenas lhe foi entregue um total de cerca de 144 toneladas de Kiwi, muito inferior às 800 toneladas previstas no segundo contrato celebrado entre ambas; nessa colheita e pela primeira vez, apenas os Kiwis entregues provenientes da parcela do “--” vinham identificados como sendo do produtor “BB, Lda”, enquanto os Kiwis entregues provenientes da parcela “--” vinham identificados como sendo do produtor “CC, Lda”, e os das parcelas “--” como sendo do produtor “DD, Lda.”, tendo cada uma destas emitido as respectivas facturas; os montantes destas facturas foram parcialmente pagos pela autora em valor correspondente a € 9.817,43;
- Quando esperava que a primeira R regularizasse a situação que lhe havia sido pedida na carta que a A lhe enviara, foi confrontada com a posição de que aquele fornecimento de kiwis não podia ser contabilizado na sua totalidade como cumprimento do segundo contrato celebrado com a mesma R, pois apenas estaria nesta situação o fornecimento que foi em nome desta e já não o fornecimento feito em nome das restantes RR;
- O R EE alterou o seu comportamento dos anos anteriores, passando a permitir à técnica da A que apenas visitasse o pomar “--”, alegando que as outras parcelas que explora não pertenciam à BB e, relativamente à colheita de 2014, apenas entregou fruta do pomar daquela “--”, alegando, novamente, que esse era o único pomar daquela sociedade;
- A A foi interpelada para pagar o valor em falta às outras sociedades RR, sendo a estratégia dos RR retirar da totalidade dos fornecimentos as quantidades que atribuíam a outras sociedades que dominam, por forma a poderem cobrar o crédito desses fornecimentos sem que a A pudesse operar a compensação com o crédito que detém sobre a primeira R por via dos adiantamentos realizados (€ 254.400);
- A A, mediante carta que enviou à primeira R, declarou resolver o contrato supra referido, interpelando-a para devolver a quantia de € 174.005,06, referente aos adiantamentos que recebeu pelas campanhas de 2014, 2015 e 2016, que ascendem a € 190.800,00, deduzida do montante de € 16.794,94, referente aos pagamentos devidos em contrapartida da fruta entregue na campanha de 2014/2015, tendo, ainda, solicitado a devolução da quantia de € 13.370,41;
- Sendo a A credora da primeira R pelo montante de € 254.400, tem a seu favor o saldo peticionado de € 187.375,47, considerando o preço da totalidade dos kiwis que lhe foram fornecidos, deduzido do valor que a A pagou, nada devendo às restantes RR sociedades.
Por fim, a A defendeu que se deve proceder à desconsideração da personalidade jurídica das pessoas colectivas RR, de molde a que os RR pessoas singulares respondam solidariamente pela mencionada dívida que a primeira R tem para com ela.
 
Os Réus apresentaram contestação e reconvenção, alegando, além do mais, que a A é devedora da primeira R da quantia de € 167.000.

Na réplica, a A veio reduzir o seu pedido para o montante de € 148.152,21.

Em sede de saneamento, foi a A absolvida da instância da reconvenção, com fundamento na ineptidão desta.

Foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente e, por consequência:
1) condenando a primeira R (BB) a pagar à A a quantia de € 148.152,21, acrescida de juros de mora à taxa comercial desde a citação;
2) absolvendo os RR do demais peticionado contra os mesmos.

A Relação do Porto, depois de alterar a decisão proferida em 1ª instância sobre a matéria de facto provada, aditando a esta os factos que arrolou, julgou improcedente as apelações interpostas pela A e pelos RR, confirmando a sentença recorrida.

A A interpôs recurso de revista desse acórdão, alegando que o mesmo é admissível à luz do art. 674°, nº 1 b) do CPC, uma vez que o Tribunal a quo violou a norma processual constante do artigo 662°, e requerendo que, caso se entenda existir dupla conforme entre as decisões de ambas as instâncias – por as suas fundamentações não serem essencialmente diferentes –, o recurso seja admitido a título excepcional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do art. 672º do referido código.
A recorrente delimitou o objecto do recurso com conclusões em que suscita, primacialmente, a questão de saber se a factualidade assente permite, desde já, “desconsiderar a personalidade jurídica” da R BB, condenada na decisão recorrida a restituir à A a quantia de € 148.152,21, e, na sequência, responsabilizar pelo pagamento de tal crédito o casal formado pelos dois últimos RR (EE e FF), bem como, se assim não se concluir, se aquela decisão, quanto à matéria de facto, violou a lei processual na apreciação da prova e sofre de contradições insanáveis.

1 A admissibilidade do recurso.
Previamente ao conhecimento do objecto do recurso, demonstraremos, muito brevemente, que estão preenchidos os requisitos para tal.
A 1ª instância condenou a primeira R a pagar à A a quantia de € 148.152,21, acrescida de juros, mas, ponderando que o acervo factual que teve por assente, embora suficiente para a desconsideração da personalidade das 3ª e 4ª RR (CC e DD), com a consequente imputação da totalidade de fornecimentos de kiwis à 1ª R, não o seria para derrogar o princípio da separação patrimonial entre esta pessoa colectiva e os que «por detrás dela actuam», ou seja, para «afirmar que os réus EE e FF abusaram da pessoa colectiva BB». Nessa senda, julgou improcedente a formulada pretensão condenatória do referido casal, tal como vem reiterada neste recurso.
A Relação, sem voto de vencido, confirmou o assim decidido, sustentando não haver na factualidade apurada em torno das condutas dos RR EE e FF elementos que suportem o abuso pelos mesmos da personalidade jurídica da sociedade BB, para aceder à “desconsideração” da personalidade colectiva desta como via da sua responsabilização pessoal. Porém, fê-lo depois de alterar, significativamente, a decisão proferida sobre a matéria de facto, procedendo ao extenso aditamento dos factos que se sintetizarão.
Ora, o núcleo destes “novos” factos reporta-se à actuação desenvolvida pelos réus EE e FF «por detrás» da pessoa colectiva 1ª R (DD), que, com eles, emerge agora (ainda) mais claramente exposta ou “destapada”, como infra melhor concretizaremos. Por isso, o referido aditamento assume uma decisiva complementaridade em relação aos factos já anteriormente adquiridos quanto à essencial questão da “desconsideração”, debatida ao longo do processo e também neste recurso.
E, assim sendo, a Relação afirmou não haver fundamento para aceder à “desconsideração” da personalidade da R BB, depois de (e apesar de) ponderar também a “nova” factualidade apurada, complementar mas essencialmente distinta daquela em que se estribou a decisão de 1ª instância. Donde não pode deixar de se reconhecer que a decisão recorrida, nesta última vertente, confirmou a de 1ª instância, mas com uma fundamentação essencialmente diferente, o que arreda o obstáculo posto pelo art. 671º nº 3 do CPC à admissibilidade do recurso.

2. A “desconsideração da personalidade jurídica” da R BB.
Começamos por enunciar, sistematizadamente, o que da matéria de facto tida por assente pela Relação se colhe de mais saliente quanto à conduta dos ora recorridos:

1) - Os Réus EE e FF exercem, a título pessoal, a actividade de produtores de kiwis e a sua residência é o seu domicílio profissional e a sede das sociedades RR BB, CC e DD, apenas por eles constituídas – em 24-06-2003, 18-05-2009 e 16-12-2012, respectivamente –, detidas e geridas, sendo por eles próprios totalmente controladas, sem qualquer órgão externo de fiscalização.

2) - No ano de 2011, a A realizou investimentos, aumentando a sua capacidade de maturação, e, com vista a desenvolver relações de confiança e de cooperação com os seus fornecedores, constituiu o que designou de “--”, estabelecendo com cada um dos seus membros as práticas culturais a adoptar e comprometendo-se a prestar-lhes a necessária assistência técnica à produção de kiwis, através de técnicos de campo.

3) - O casal formado pelos RR EE e FF são tidos como grandes produtores de kiwis, o que determinou o interesse da A em estabelecer com eles relações comerciais.

4) - Após um primeiro contacto estabelecido, em 2011, entre um administrador da A e o R EE, em que este informou aquele de que, a título pessoal, produzia Kiwis da variedade “Erica” e que geria várias empresas que produziam kiwis na variedade “Hayward”, através da exploração de pomares situados nos concelhos de -- e --, foi celebrado, em 3 de Outubro desse ano, um contrato de fornecimento de kiwis, entre a A, como “Comprador”, e a lª R, representada pelos 4º e 5ª Réus, como “Vendedor”, mediante o qual a BB se comprometeu a vender à A kiwis “Hayward” com origem nos “pomares do Vendedor situados nos concelhos de Felgueiras e Guimarães”, tendo as partes estimado que o “Vendedor” tivesse para vender, pretendendo o “Comprador” adquirir, uma quantidade de 800 toneladas de kiwis da colheita de 2011. No texto desse contrato de fornecimento ficou a constar que «O Vendedor declara que é o único proprietário dos kiwis presentemente vendidos».

5) - Relativamente à colheita de 2011, foram fornecidas à A, através da BB, 743 toneladas de kiwis, provindas das parcelas designadas por --, --, --, --, --, --, --, --, --, --, -- e --.

6) - Em Janeiro de 2012, o R EE foi incluído no registo de produtores da A, com as seguintes identificações fornecidas por ele ou a seu mando: como empresa, a R BB; como produtor, o R EE; como responsável pela exploração, a R FF; e como “localização da exploração”, todas as seguintes parcelas situadas nos concelhos de -- e --, com a área total de 47,8 hectares [“--” (6 ha), em --; “--” (11 ha), em --; “--” (3 ha), em --; “--” (10 ha), em --; “--” (12,4 ha), em --; “--” (1 ha), em --; “--” (1 ha), em --; “--” (1,2 ha), em --; e “--” (2,2 ha), em --]. Nesse mesmo circunstancialismo, foi informado que, do total das parcelas que foram registadas, a Foz “não produziu” e a fruta da “--” não é “--”

7) - Pelo menos para a A, para os seus funcionários e para alguns terceiros do ramo da actividade em questão, o produtor dos kiwis é o Engenheiro EE, com o apoio da sua mulher, a Engenheira .... Os prédios rústicos denominados “--”, “--” e “--”, situados no concelho de --, pertencem, desde Julho de 2010, aos RR EE e FF.

8) - Em meados do ano de 2012, o R EE passou a ter interesse em assegurar o escoamento dos kiwis que viessem a ser produzidos, por um prazo de tempo alargado, e também para a A, perante o investimento feito, era essencial que o mesmo produtor assegurasse um abastecimento certo e contínuo de kiwis, durante um período alargado de tempo. Por tais motivos, foi celebrado, em 20-06-2012, o “contrato de fornecimento de kiwis”, pelo qual a R BB (“vendedor”) e a A (“comprador”) reconheceram mutuamente a necessidade e o interesse em acordarem numa relação comercial de longo prazo e aquela se obrigou a vender e esta se obrigou a comprar kiwis “Hayward” das colheitas de 2013 a 2016, nas quantidade de 800 toneladas em 2013 e de 1.000 toneladas em cada uma das três colheitas de 2014 a 2016. Foi então contratualmente estabelecido que os kiwis a fornecer seriam provenientes, exclusivamente, dos pomares do “vendedor” situados em --, o que, perante as informações que o R EE anteriormente lhe prestara, determinou que a A ficasse convencida de que o R, por si ou na qualidade de gerente da BB, era um produtor que explorava um determinado número de parcelas e de que os frutos previstos no contrato seriam colhidos nas parcelas “...”, “...”, “...”, “...”, “...” e “...”.

9) - Durante as negociações que conduziram à celebração de tal contrato, o R EE, para a sua efectivação, apresentou como contraparte a sociedade BB e solicitou, como contrapartida da fidelização do “vendedor”, que a A fizesse um adiantamento de 60.000 euros por conta de cada uma das 4 colheitas das campanhas incluídas no contrato, ao que esta anuiu, tendo em conta o interesse relevante que tinha no desenvolvimento dessa relação comercial e que tais adiantamentos seriam facilmente diluídos anualmente, perante o esperado volume de fornecimentos acordados, pelo que transferiu para uma conta titulada pela BB o montante total de € 254.400, tendo ambas as partes acordado que o valor de cada um desses adiantamentos seria tido em conta no acerto de contas a efectuar após o final da campanha integrada em cada uma das colheitas abrangidas (2013 a 2016).

10) - No ano de 2012, o R EE permitiu a visita às mesmas parcelas por parte dos técnicos de campo da A para o acompanhamento e intervenção que acordara com a esta e, ainda no âmbito da colheita desse ano, não incluída no referido contrato de 20-06-2012, os fornecimentos da BB, representada pelo casal dos RR EE e FF, ascenderam a cerca de 630 toneladas de kiwis produzidos nas diversas parcelas indicadas, designadas por “--”, “--”, “--”, “--”, “--”, “--”, “--”, “--” e “--”.

11) - Entre Dezembro desse ano (2012) e Maio de 2013 a R FF foi também colaboradora da A, como técnica de campo.

12) - Relativamente à colheita de 2013, apenas foi entregue à A um total de cerca de 144 toneladas de kiwis, das 800 toneladas que, segundo o contrato, a BB teria de fornecer, provenientes das parcelas “--”, “--”, “--” e “--”, mas, desta vez, apenas os kiwis provenientes da parcela “--” vinham identificados como sendo do produtor BB, enquanto os da parcela “--” vinham identificados como sendo do produtor CC e os das parcelas “--” e “--”, como sendo do produtor DD.

13) - Essas 144 toneladas de kiwis, não obstante serem estes provenientes de parcelas que nas colheitas anteriores se apresentaram à A com a aparência de pertencerem ou serem exploradas pela BB, foram, sem qualquer acordo com a A, unilateralmente identificadas pela R BB, representada pelos seus gerentes (o casal dos RR EE e FF), como sendo da BB cerca de 46 toneladas, da CC cerca de 55 toneladas e da World Kiwi cerca de 43 toneladas, tendo sido emitidas por cada uma destas sociedades as facturas correspondentes a tais quantidades. A A aceitou toda essa fruta, mas considerou-a e contabilizou-a como cumprimento, ainda que parcial, por parte da BB, do contrato celebrado em 20-06-2012.

14) - Concluída a campanha 2013/2014, a A enviou à BB uma carta, em 22-10-2014, informando ter procedido à compensação dos créditos por si detidos por força do adiantamento, pedindo a liquidação do saldo ainda existente a seu favor e comunicando a sua intenção de, como até então, se deslocar aos pomares no subsequente dia 27, para proceder à recolha de amostras de fruta.

15) - Na sequência, o R EE, como gerente ou pessoa individual, quis transmitir à A que os kiwis que deviam ser utilizados para o cumprimento do contrato não deviam ser todos os entregues mas apenas os que, alegadamente, tinham vindo da parte da BB, enviando-lhe a carta datada de 24-10-2014, por ele assinada por cima de um carimbo com os dizeres “BB, Lda., a gerência”, em que declarava que a capacidade produtiva da BB ficara drasticamente afectada pela PSA, que a impedia de fornecer as quantidades previstas no contrato e que «por isso mesmo estou disponível para negociar uma rescisão e devolução dos adiantamentos que a Prosa fez à BB a título de campanhas futuras». Nesse escrito comunicava, ainda, o propósito da BB proceder à devolução de € 43.285,13 e que, relativamente às outras empresas a A teria de regularizar com elas o acerto de contas da colheita de 2013, por elas não serem a BB «como era do conhecimento da anterior administração e como já expliquei ao actual administrador na reunião que tivemos».

16) - Nesse ano de 2014, alterando o seu comportamento dos anos anteriores, o R EE apenas permitiu que a técnica de campo da A visitasse o pomar da “--”, para recolha de amostras de fruta, alegando que as outras parcelas que explorava não pertenciam à BB

17) - E, relativamente à colheita desse ano, apenas entregou, na qualidade de gerente da BB e em nome desta, a fruta da “--”, alegando que esse é o único pomar da BB, fazendo “desaparecer”, subitamente, os restantes pomares, apesar de terem produzido Kiwis, da titularidade do “Produtor” tal como fora registado, em conformidade com as suas informações, perante a A, passando assim a pretender que os Kiwis seriam fornecidos por outras empresas não outorgantes do contrato, contra a convicção, acima aludida em 8), que o seu anterior comportamento gerara na A e que contribuiu para o início de uma relação comercial privilegiada com esta.

18) - A A recebeu uma carta de cada uma das RR CC e DD, datadas de 6-11-2014, acompanhadas de factura, com pedido de «regularização do valor em falta».

19) - O que determinou a prática dos actos descritos nos anteriores pontos foi o propósito dos RR EE e FF de, usando as participações que detinham em cada uma das ditas sociedades e as respectivas qualidades de gerentes, retirar da totalidade dos fornecimentos de Kiwis entregues, relativamente à colheita de 2013, as quantidades que atribuíam às outras sociedades que dominam, por forma a poderem cobrar o crédito desses fornecimentos sem que a A pudesse operar a compensação com o crédito que detinha sobre a BB, por via dos adiantamentos realizados, utilizando nesses termos as referidas sociedades para gerir a relação que a BB estabelecera com a A, quanto àqueles adiantamentos.

20) - Face aos factos descritos nos anteriores pontos 15) a 18), a A enviou à BB uma carta, datada de 18-12-2014, a resolver o contrato de fornecimento de kiwis celebrado em 20-06-20l2, declarando que a não entrega da fruta originária dos pomares localizados em Felgueiras constituía uma quebra irremediável de confiança e legitimava a extinção do contrato, pelo que deveria a BB devolver os adiantamentos que recebera pelas campanhas, deduzidos do montante referente aos pagamentos devidos em contrapartida da fruta entregue, devendo todos os fornecimentos ser considerados como efectuados no âmbito do contrato de fornecimento então extinto.

21) - Para que um projecto agrícola possa obter financiamento europeu ou outro tipo de subsídio, é necessário que as respectivas parcelas sejam registadas nos parcelários do IFAP, neles constando como beneficiária a pessoa que apresenta o projecto, sendo a “--” – que não tem capacidade para produzir 800 toneladas de kiwis – a única parcela que foi explorada em nome da R BB e não qualquer das seguintes: “--”, de que são proprietários os RR e foi explorada por EE, a título pessoal, até 2012, data em que foi registada no Parcelário do IFAP como sendo explorada, na qualidade de “rendeiro”, pela DD (que foi constituída para esse efeito); “--”, dada de arrendamento à CC, em nome da qual está registada no parcelário do IFAP; “--”, “--” (--) e “--”, que sempre foram exploradas pelo R EE, a título pessoal, na qualidade de arrendatário; “--”, pertencente a um cliente da R FF, enquanto técnica, dada de arrendamento a uma sociedade terceira (“GG, Lda”); “--”, que sempre foi explorada pela R FF, na qualidade de arrendatária.

22) - No contrato celebrado em 20-06-2012 foi inserida, a pedido do Réu EE, a cláusula de que poderia não ter lugar a redução do preço de compra do produto a que o “comprador” teria direito no caso de a quantidade real após colheita ser inferior à quantidade mínima em 15%, se o “vendedor” demonstrasse cabalmente quais as quantidades de Kiwis atingidas pelas alterações climáticas ou por doença.

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Passamos agora a expor alguns apontamentos quanto à figura da desconsideração da personalidade jurídica da pessoa colectiva.
A atribuição de personalidade jurídica à pessoa colectiva faz emergir um novo centro de relações jurídicas, autónomo em relação aos seus membros e às pessoas que actuam como seus órgãos. Trata-se de uma ficção jurídica que, no que concerne às sociedades comerciais, visa dotar a chamada iniciativa privada, enquanto manifestação do direito de propriedade, de um instrumento de propulsão da actividade económica, através da consequente separação e limitação da responsabilidade que a autonomia invoca ([1]).
Por assim ser, o princípio da atribuição da personalidade jurídica às sociedades e da separação de patrimónios, ficção jurídica que é, não pode ser encarado, em si, como um valor absoluto e, quando estejam em causa práticas ilícitas – contrárias à ordem jurídica –, censuráveis e com prejuízo de terceiros, a personalidade colectiva não pode ter uma finalidade redutora, não pode ter a natureza de um manto ou véu de protecção dessas mesmas práticas. «Quando a personalidade colectiva seja usada de modo ilícito ou abusivo, para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios, é possível proceder ao levantamento da personalidade colectiva: é o que a doutrina designa pela desconsideração ou superação da personalidade jurídica colectiva», como defende Menezes Cordeiro, que sugere, ainda, como sub-hipótese particular, o recurso a ‘testas de ferro’ que autorizaria a procurar o real sujeito das situações criadas ([2]), ou, ainda, a da confusão de esferas jurídicas, que se verifica «quando, por inobservância de certas regras societárias ou, mesmo, por decorrências puramente objetivas, não fique clara, na prática, a separação entre o património da sociedade e o do sócio ou sócios» ([3]).
Devido a comportamentos abusivos e fraudulentos, que não são substancialmente da sociedade mas dos que estão por detrás da sua autonomia (ficcionada) e a controlam (ou ao invés), a mesma pode ser utilizada desonestamente e, funcionalmente, ao arrepio do seu fim social ou com desvio da rota que o ordenamento jurídico lhe traçou, para servir de véu para encobrir uma realidade ou para mascarar uma situação. Com a liberdade que o julgador tem na concretização daquilo que é o direito, tal resultado não pode ser tolerado, por se traduzir, afinal, no desrespeito pelo princípio da autonomia e da separação que a atribuição da personalidade deveria prosseguir ([4]).
Em tese geral, justifica-se, nesses casos, a desconsideração, o levantamento ou a superação da personalidade jurídica da pessoa colectiva, por imposição dos ditames da boa-fé. Já Castro Mendes explicava ([5]) que «esta atitude é o que os juristas anglo-saxónicos chamam romper o véu da pessoa colectiva» e justifica-se porque, ao contrário da pessoa singular – fim em si mesma –, a pessoa colectiva «não é mais que um instrumento de realização de interesses humanos», pelo que a sua «personificação pode ser, ou passar a ser, instrumento de abuso; e deve neste caso ponderar quais os verdadeiros interesses humanos em causa.».
Esta figura, criada originariamente pela jurisprudência, na busca da justiça, e, depois, sistematizada e aperfeiçoada com o contributo da doutrina, intervém – hoje pacificamente – para obviar aos esquemas de fraude, em casos de comprovado abuso da autonomia, pessoal e patrimonial, inerente à personalidade jurídica da sociedade para a obtenção de interesses estranhos ao fim social desta ([6]). «Quando ocorre o aproveitamento ilícito desta autonomia para obter a fuga à imputação pessoal e à responsabilidade patrimonial por parte dos sócios de sociedades comerciais» ([7]), rompe-se o “véu” da pessoa colectiva, para imputar a autoria e a responsabilidade a quem é o real titular das posições jurídicas.
«A desconsideração da personalidade jurídica, também designada por levantamento da personalidade colectiva das sociedades comerciais, “disregard of legal entity”, tem, na sua base, o abuso do direito da personalidade colectiva, ou seja, o instituto deve ser usado, se e quando, a coberto do manto da personalidade colectiva, a sociedade ou sócios, dolosamente, utilizarem a autonomia societária para exercerem direitos de forma que violam os fins para que a personalidade colectiva foi atribuída em conformidade com o princípio da especialidade, assim almejando um resultado contrário a uma recta actuação.
Nos casos de deliberada confusão patrimonial, bem como naqueles em que a sociedade e a sua autonomia jurídica são usadas/abusadas, com o propósito de camuflar actos lesivos dos sócios, o levantamento da personalidade jurídica societária conduz à imputação de tais actos aos sócios por eles responsáveis.» ([8]).
Segundo informa Paulo Ferreira Guedes ([9]), na Europa, a doutrina tem o seu primeiro momento numa decisão do 3º Senado do Reichsgericht (RG) de 22/6/1920, responsabilizando o sócio único de uma sociedade unipessoal, com a declaração de que «O juiz deve dar mais valor ao poder dos factos e à realidade da vida do que à construção jurídica». Essa decisão foi assim comentada por Menezes Cordeiro ([10]): «Na sua simplicidade, esta decisão é apontada como a certidão de baptismo, no Continente, do levantamento da personalidade colectiva» ([11]).
Escreveu Fredie Didier Jr. ([12]):
«É forçoso admitir que, nesses casos, assim como o direito reconhece a autonomia da pessoa jurídica e a consequente limitação da responsabilidade que ela invoca, a própria ordem jurídica deve encarregar-se de cercear os possíveis abusos, restringindo, de um lado, a autonomia e, do outro, a limitação. É nesse cenário, portanto, que desponta a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, visando corrigir essa eventual falha do direito positivo. Trata-se, pois, de uma sanção à prática de um ato ilícito.
É como diz o pioneiro RUBENS REQUIÃO (“Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine)”. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, 1969, n. 410, p. 15):
“Se a personalidade jurídica constitui uma criação da lei, como concessão do Estado à realização de um fim, nada mais procedente do que se reconhecer no Estado, através de sua justiça, a faculdade de verificar se o direito concedido está sendo adequadamente usado. A personalidade jurídica passa a ser considerada doutrinariamente um direito relativo, permitindo ao juiz penetrar o véu da personalidade para coibir os abusos ou condenar a fraude através do seu uso.”
Ainda RUBENS REQUIÃO (ibidem, p. 14):
“O mais curioso é que a ‘disregard doctrine’ não visa a anular a personalidade jurídica, mas somente objetiva desconsiderar no caso concreto, dentro de seus limites, a pessoa jurídica, em relação às pessoas e os bens que atrás dela se escondem. É caso de declaração de ineficácia especial da personalidade jurídica para determinados efeitos, prosseguindo todavia a mesma incólume para seus outros fins legítimos”».
Por sua vez, Armando Triunfante e Luís Triunfante ([13]) sustentam a necessidade de invocar a desconsideração da personalidade colectiva (também) em dois tipos de casos:1) os de condutas em que o «cerne da questão não reside na confusão patrimonial, mas coloca-se verdadeiramente ao nível da confusão de pessoas», reflectindo tal conduta «uma acção contrária a normas ou princípios gerais e acarrete o prejuízo de terceiros»; 2) «os casos em que a comunhão de interesses não se verifica entre a sociedade e alguns dos seus sócios», hipótese em que a imputação de actos devidos em primeira linha à sociedade deva ser reconduzir-se a um terceiro estranho à sociedade».
Estes Autores esclarecem esta última afirmação, por este modo: «Estranho do ponto de vista de que não assume a qualidade de sócio. Estranho total nunca há-de ser, tendo mesmo necessariamente uma ligação próxima, pois, caso contrário, nunca estaria numa situação que conduzisse a uma situação de confusão. Terá de estar normalmente numa posição de poder controlar a gestão da sociedade cuja personalidade se vai desconsiderar». E, depois ([14]), concretizam assim o seu entendimento:
«Por outras palavras, nem sempre se mostra necessário derrogar o princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que por detrás dela actuam, para que estes possam também ser responsabilizados. Já a verdadeira desconsideração deverá ficar limitada para outras hipóteses em que a resposta anterior não é suficiente, designadamente nos casos em que a confusão seja mais intensa (ao nível da própria esfera jurídica e não envolvendo somente aspectos patrimoniais) ou quando o agente seja alguém que não um sócio. Por outro lado, serão normalmente patrimoniais e ao nível da responsabilidade os efeitos mais comuns da desconsideração. Todavia nem sempre será assim, deve ser promovida, dentro do espírito do sistema, a consequência que melhor inibir as sequelas do evento gerador da desconsideração.»
Pedro Cordeiro lembra que deve ser tido em consideração que detrás da pessoa colectiva estão homens que determinam os seus comportamentos, ao apreciar-se as consequências desses comportamentos ([15]). O mesmo Autor define “homem oculto” como «aquele (ou aqueles) – pessoa(s) singular(es) ou coletiva (s) – que pode (m) formar “de per si” a vontade social, desfuncionalizando a sociedade” e salienta que o «homem oculto só se apura […] em face de cada situação concreta» ([16]).

Como se sabe, não existe no nosso ordenamento jurídico positivo um preceito que tutele de modo genérico a desconsideração da personalidade jurídica ([17]), embora a figura não deixe de encontrar arrimo em princípios gerais positivamente consagrados, como são os da boa-fé e do abuso de direito, e também possam ser vistos como seus afloramentos concretos alguns casos tipificados de responsabilidade dos sócios, como são os previstos, p. ex., nos arts. 58º nº 1 a), 58º nº 3 e 84º do CSC ou, até, no art. 378º do CT. Embora a lei não contenha, como se disse, referência expressa à figura da desconsideração, a justificação da sua actuação, pelo menos em grande parte dos casos, emerge da exigência do princípio da boa fé ([18]), cuja dimensão é aflorada, no essencial do que aqui importa, pelo art. 762º, nº 2, concatenado com o art. 334º, ambos do CC.
Nessa senda, é um facto que a jurisprudência nacional tem equacionado a doutrina da desconsideração, que, por essa via, foi já recebida no seio do nosso ordenamento jurídico. Cita-se aqui, apenas a título de exemplo, extractos de alguns arestos, para além dos já referenciados na nota 8:
- Ac. do STJ de 10-01-2012 ([19]):
«Justifica-se o levantamento da personalidade coletiva de sociedade que outorgou escritura de compra e venda em 21-12-1995, constatando-se que essa sociedade era mero testa de ferro do oculto comprador, seu sócio dominante com 85% do capital, considerando-se, por via do levantamento ou desconsideração da personalidade dessa sociedade, celebrado o contrato entre o oculto comprador e os demais intervenientes na compra e venda.
O abuso da personalidade coletiva da sociedade revela-se pela circunstância de que, com a intervenção dela, e não do seu sócio maioritário - homem oculto - na escritura de 1995, pretendia impedir-se que os imóveis adquiridos se integrassem no património desse sócio que, muitos anos antes (1988), outorgara contrato-promessa de compra e venda com traditio desses mesmos imóveis (apesar de ao tempo não ser deles ainda proprietário), sujeitando-se, se não se acobertasse em 1995 sob o manto da personalidade coletiva da “ sua” sociedade, ao pedido de execução específica (artigo 830.º do Código Civil) por parte do promitente comprador de 1988, atenta a mora em que há muito incorria o promitente vendedor.».
Ac. do STJ 12-05-2011 ([20]):
«(…) entendemos justificar-se que chamemos para aqui a figura da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas colectivas. (…) As sociedades, sempre em termos práticos, não tinham autonomia relativamente a eles [AA], tudo funcionando como um todo. A confusão entre as esferas jurídicas de cada um dos autores AA e mulher e da sociedade autora foi total, o mesmo se passando na parte passiva. Ao descaracterizar, para os efeitos que estão aqui em causa, as sociedades, o direito está a aproximar-se da vida tal como ela é, e, consequentemente, no caminho do seu próprio aperfeiçoamento.».
- Ac. do STJ de 30-11-2010 ([21]):
«A desconsideração ou levantamento da personalidade colectiva das sociedades comerciais – disregard of legal entity – tem na sua base o abuso do direito da personalidade colectiva, ou seja, deve ser usado o instituto em causa quando, a coberto do manto da personalidade colectiva, a sociedade ou sócios excederem, ou utilizarem, a autonomia societária em relação a terceiros, para exercerem direitos de forma que contraria os fins para que a personalidade colectiva foi atribuída, haja em vista o princípio da especialidade.
A desconsideração, como instituto assente no abuso do direito – art. 334.º do CC –, tem em si abrangida a violação das regras da boa fé no interagir com terceiros, implica a existência de uma conduta censurável que só foi possível alcançar mediante a separação jurídica do ente societário – através da personalidade jurídica que a lei lhe atribui – e a pessoa dos sócios, para assim almejar um resultado contrário a uma recta actuação.».
- Ac. do STJ de 3-02-2009 ([22]):
«Estão mais ou menos sistematizadas as condutas societárias reprováveis que, na vertente do abuso da responsabilidade limitada (que não se confunde com a do abuso da personalidade), podem conduzir à aplicação do instituto da desconsideração da personalidade, avultando, de entre elas: a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas da sociedade e dos sócios; a subcapitalização, originária ou superveniente, da sociedade, por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; as relações de domínio grupal.
Para além destas situações, também se podem perfilar outras em que a sociedade comercial é utilizada pelo sócio para contornar uma obrigação legal ou contratual que ele, individualmente, assumiu, ou para encobrir um negócio contrário à lei, funcionando como interposta pessoa.
A aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica tem carácter subsidiário, pois só deverá ser invocada quando inexistir outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar.».
- Ac. do STJ de 26-06-2007 ([23]):
«Por trás da desconsideração ou levantamento da personalidade colectiva está, sempre, a necessidade de corrigir comportamentos ilícitos, fraudulentos, de sócios que abusaram da personalidade colectiva da sociedade, seja actuando em abuso de direito, em fraude à lei ou, de forma mais geral, com violação das regras de boa fé e em prejuízo de terceiros».
Também as relações têm usado considerandos de idêntico pendor para fundamentar as suas decisões, como sucedeu no acórdão da RC de 3-07-2013 ([24]):
«O recurso a esse instituto é possível quando ocorram situações de responsabilidade civil assentes em princípios gerais ou em normas de protecção, nomeadamente dos credores, ou em situações de abuso de direito e não exista outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar, ou seja, a desconsideração tem carácter subsidiário.
De entre elas avultam a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas de duas ou mais pessoas, normalmente entre a sociedade e os seus sócios (ainda que não tenha de ser obrigatoriamente assim); a subcapitalização da sociedade, por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; e as relações de domínio grupal.
Em todas estas situações verifica-se que a personalidade colectiva é usada de modo ilícito ou abusivo para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios.
A desconsideração tem de envolver sempre um juízo de reprovação sobre a conduta do agente, ou seja, envolve sempre a formulação de um juízo de censura e deve revelar-se ilícita, havendo que verificar se ocorre uma postura de fraude à lei ou de abuso de direito.».

Posto isto, afigura-se-nos que, contrariamente ao sustentado pela Relação, a acima registada súmula dos factos patenteia, por si só, que o comportamento dos RR EE e FF, em grande medida concretizado por intermédio do primeiro, se encaixa, plenamente, nos expendidos pressupostos para a intervenção da desconsideração ou levantamento da personalidade jurídica da sociedade BB, para responsabilizar aqueles, que agiram por detrás desta e, bem vistas as coisas, até muito pouco “ocultos”.
Como se retira, indubitavelmente, dos factos o que determinou o comportamento dos RR EE e FF, pelo menos a partir da campanha de 2013, foi o propósito, que criaram em algum momento do percurso do analisado relacionamento comercial com a A, de obstar a que esta fosse integralmente reembolsada dos adiantamentos que a mesma fez, no montante total de € 254.400, ao pagamento da fruta que, nos termos acordados, tinha a legítima expectativa que lhe fosse fornecida, servindo-se os RR, para tanto, do exclusivo controlo de que dispunham sobre a BB e as demais sociedades.
É certo que os factos não permitem inferir, com a necessária margem de segurança, que os RR tivessem esse seu desiderato já consolidado desde o primeiro contacto estabelecido com a A em 2011 e, sobretudo, que esse intento persistisse aquando das negociações que conduziram, em 20-06-2012, à celebração do contrato aqui em questão ou, sequer, que o mesmo também presidisse à solicitação do adiantamento como contrapartida da sua fidelização.
Contudo, não é menos certo que a A, nomeadamente ao anuir à pretensão a tal adiantamento, só poderia ter negociado segundo as regras da boa-fé para a conclusão do contrato – tanto nos preliminares como na formação dele – e crente de que a contraparte também assim procedia, pelo interesse relevante que tinha no desenvolvimento da relação comercial com o casal formado pelos RR EE e FF – que, sendo tidos como grandes produtores de kiwis, poderiam assegurar um abastecimento certo e contínuo de kiwis – e perspectivando que o adiantamento que veio a fazer seria facilmente diluído anualmente, dado o esperado volume dos fornecimentos acordados, tanto mais que ambos os RR, logo no contrato de fornecimento celebrado em 2011, fizeram constar, então em representação da BB, que «O Vendedor declara que é o único proprietário dos kiwis presentemente vendidos» (800 toneladas, na previsão contratual).  
Por outro lado e bem diversamente, os RR, ao agirem determinados pelo escopo – qualquer que tenha sido o momento em que o formularem – de frustrar a satisfação do legítimo crédito que a A detinha sobre a BB, fizeram-no com ostensivo desprezo pelas regras da boa-fé, que encerram deveres de protecção – tendentes a procurar evitar causar danos ao parceiro negocial – e de lealdade – que adstringem os contraentes a não assumir comportamentos que se desviem de uma negociação correcta e da conclusão honesta do contrato.
Com efeito, na falta de factos assentes que indiquem o contrário, até talvez se deva admitir que a inicial utilização pelos RR EE e FF da pessoa colectiva BB, para o relacionamento que estabeleceram com a A, correspondeu ao normal recurso, autorizado pela ordem jurídica, de um instrumento para a realização dos seus interesses económicos.
Sabendo-se que os RR EE e FF, por si e pelas sociedades que detinham e controlavam, exploravam todas as acima referenciadas parcelas, com a área total de 47,8 hectares, só no contexto dessa suposta normalidade se poderá conceber que tenham agido sem reserva mental quando o primeiro se fez incluir no registo de produtores da A com as indicações supra referidas: como empresa, a R BB, como produtor e responsável pela exploração, respectivamente, os RR EE e a sua mulher, e, como “localização da exploração”, todas aquelas parcelas que, em abstracto, tinham potencial para delas serem colhidas as quantidades de fruta programadas nas negociações. É que – não pode olvidar-se – os mesmos, em nome da BB, apenas haviam registado nos parcelários do IFAP uma parcela com a área de 12,4 ha, cuja exploração, considerando a produtividade média europeia – 17 toneladas/ha (sendo a de Portugal de apenas 10) – poderia lograr obter uma produção anual de cerca 200 toneladas/ano, muito longe das contratualmente visadas (800 toneladas em 2013 e 1000 em cada um dos três anos subsequentes).
 Com efeito, é normal que os RR tenham recorrido à utilização daquela sociedade, tal como das demais por eles detidas em exclusivo, para alcançar a optimização da rentabilidade das diversas explorações por eles desenvolvidas, designadamente através de tais ficções jurídicas, em pomares situados nos ditos concelhos, sobretudo, para obter financiamentos ou subsídios de que, legalmente, pudessem dispor.
E também continua a não parecer anormal que, pretendendo assegurar, a curto e a médio prazo, o mais eficaz escoamento de toda a sua produção por tal modo alcançada tenham formalizado o relacionamento comercial com a A apenas através de uma das sociedades por eles detidas e controladas, em exclusivo, no caso, aquela em nome da qual estava registada nos parcelários do IFAP a parcela que, em maior medida (12,4 ha), contribuía para a área total (47,8 ha) explorada pelo casal, em seu nome e nos desses seus “instrumentos”: relembra-se que, para a A, substancialmente, o produtor dos kiwis era o R EE, com o apoio da sua mulher, e que o mencionado interesse destes convergia com o da A, que, sobretudo a partir dos investimentos que realizou, pretendeu desenvolver relações de confiança e de cooperação com os seus fornecedores e, especialmente, pretendeu estabelecer relações comerciais com o casal formado pelos RR EE e FF, por serem tidos como grandes produtores de kiwis.
Mas, essa suposta boa fé, com que, porventura, os RR EE e FF estariam aquando do estabelecimento do relacionamento comercial com a A, depois, perdeu-se pelo caminho da execução do negociado. Não há uma outra hipótese de explicação: com o seu comportamento, os mesmos RR, justificadamente, geraram na A a expectativa de que, através do “instrumento” BB ao seu dispor, iriam entregar da produção colhida em todas as referidas parcelas por eles exploradas – utilizando, para esse efeito, quer o seu nome quer o das suas três sociedades – as aludidas toneladas de fruta (800 em 2013 e 1000 em cada um dos 3 anos seguintes) – o que à A permitiria compensar a não despicienda quantia de € 254.400, que – sublinhe-se – aceitou adiantar, a solicitação do R, em relação ao preço que haveria de vir a dever como contrapartida da estipulada produção que lhe seria, previsivelmente, transmitida.
Ora, essa conduta dos RR sofreu uma sensível inflexão ainda em 2013 e uma violenta guinada a partir de então, com o propósito, manifesto mas totalmente injustificado, de lesarem o direito da A a recuperar o crédito originado pelo aludido adiantamento que a tinham logrado convencer a fazer com todas as indicações que anteriormente lhe tinham proporcionado – designadamente através da entrega em nome da BB, na colheita de 2011, de 743 toneladas de kiwis produzidos nas parcelas que, nos aludidos termos, exploravam – e contra as quais, abertamente, passaram a agir.
Todavia, também dos RR EE e FF, e não apenas da A, se esperaria, por imposição do princípio da boa-fé, um comportamento leal, correcto e diligente.
A razão de ser deste princípio está na tutela da confiança e da expectativa criada entre as partes no caminho negocial, tanto antes de ter surgido qualquer contrato – ou seja, na fase tendente à sua celebração –, como na sua conclusão, percurso durante o qual devem as partes adoptar comportamentos conformes às regras da boa-fé (arts. 227º e 762º do CC). «Toda a conduta, todo o agir ou interagir comunicativo, além de carrear uma pretensão de verdade ou de autenticidade (de fidelidade à própria identidade pessoal) desperta nos outros expectativas quanto à futura conduta do agente» e «todo o agir comunicativo implica uma auto-vinculação (uma exigência de fidelidade à pretensão que lhe é inerente), na medida em que desperta nos outros determinadas expectativas quanto a uma conduta futura. Mas esta auto-vinculação não tem que ter em todos os casos a mesma força» ([25]).
A prolongada aceitação pela A, na sua esfera, dos efeitos jurídicos supra explanados e advindos dos termos da proposta contratual celebrada pelos RR em nome “sua” BB não poderia deixar de, idoneamente, contribuir para que a mesma, interlocutora contratual dos RR, perante a normal confiança depositada na boa-fé destes, tivesse a convicção de que o contrato era considerado, por ambas as partes, regularmente celebrado e como abarcando toda a produção obtida pelos RR em parcelas registadas no parcelário do IFADAP em seu nome ou nos das sociedades que controlavam, bem como a real e fundada expectativa na futura eficácia do contrato em tais moldes.
Por conseguinte, como flui do expendido enquadramento jurídico dos factos examinados, a posterior conduta dos RR, contrária aos elementares deveres decorrentes da boa-fé, actuou, no plano geral e abstracto, como causa adequada da produção do dano concernente à imputada exigibilidade da restituição do adiantamento efectuado pela A apenas à sociedade BB, segundo tudo indica, sem património para a garantir.

Com efeito, foi clamorosamente abusiva a actuação, concretizada através do R EE e acima mencionada nos itens 15) a 18), ao passar a invocar que os kiwis que deviam ser utilizados para o cumprimento do contrato deveriam ser apenas os que viriam, alegadamente, da parte da parcela explorada pela BB e de que as demais não pertenciam a esta, designadamente para efeitos das visitas técnicas, bem como ao fazer “desaparecer”, subitamente, os restantes pomares da titularidade do “produtor” tal como fora registado, em conformidade com as suas informações, perante a A, passando assim a pretender que os Kiwis seriam fornecidos por outras empresas não outorgantes do contrato, contra a convicção, acima aludida que o seu anterior comportamento gerara na A e que contribuiu para o início de uma relação comercial privilegiada com esta. Afinal, os RR delinearam a estratégia de obstar a que a A pudesse operar a compensação com o crédito que detém sobre a BB por via dos adiantamentos realizados, utilizando nestes precisos termos as referidas sociedades para gerir da forma que entenderam ser mais conveniente para eles a relação que, por seu intermédio, a BB estabeleceu com a A, quanto àquela concreta situação dos adiantamentos.
Na verdade, nesse percurso comportamental, foi evidenciada a grave violação pelos RR da boa fé e da ética dos negócios, em que sobressai a utilização abusiva, em seu proveito, do fim social ou económico próprio da separação patrimonial da sociedade BB.
Realmente, o abuso de direito ([26]), previsto no art. 334º do CC ([27]), confronta-se, nomeadamente, com os conceitos da boa fé ([28]) e do fim social ou económico do direito ([29]), perante cujos conteúdos não pode deixar de se reconhecer que aquela invocação dos RR equivale ao “venire contra factum proprium”, frustrou uma confiança legítima criada, é uma exigência injustificada ou um comportamento desleal, é, enfim, uma conduta que, manifesta e intoleravelmente, abusa «daquela confiança que constitui a base imprescindível das relações humanas» ([30]), bem como tripudia a função instrumental que justifica a atribuição pela lei da separação patrimonial inerente à personificação da sociedade.
Portanto, perante a pertinência da questão apreciada, procede o recurso, o que prejudica o conhecimento das demais questões nele suscitadas, e, como tal, deve ser assacada aos RR EE e FF a responsabilidade (solidária) pelo pagamento à A da quantia de € 148.152,21 em que a R BB foi já condenada.

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Síntese conclusiva.
1. O princípio da atribuição da personalidade jurídica às sociedades e da separação de patrimónios, ficção jurídica que é, não pode ser encarado, em si, como um valor absoluto e não pode ter a natureza de um manto ou véu de protecção de práticas ilícitas ou abusivas – contrárias à ordem jurídica –, censuráveis e com prejuízo de terceiros.
2. Assim, quando exista uma utilização da personalidade colectiva que seja, ou passe a ser, instrumento de abusiva obtenção de interesses estranhos ao fim social desta, contrária a normas ou princípios gerais, como os da boa-fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade jurídica, deve actuar a desconsideração desta, depois de se ponderarem os verdadeiros interesses em causa, para poder responsabilizar os que estão por detrás da autonomia (ficcionada) da sociedade e a controlam.
*

Decisão:
Pelo exposto, concedendo a revista, acorda-se em: 1º) revogar em parte o acórdão recorrido e, por consequência, condenar os RR EE e -- a pagar à A “-- SA”, solidariamente com a primeira R (“BB”), a quantia e juros em que esta foi já condenada nos autos; 2º) confirmar no demais o acórdão recorrido.

Custas deste recurso pelos recorridos EE e FF.         

Lisboa, 7/11/2017


Alexandre Reis

Lima Gonçalves

Cabral Tavares


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[1] Coutinho de Abreu, a propósito do sentido da personalidade jurídica das sociedades comerciais e a questão do interesse social, escreve in “Do Abuso do Direito”, a pp. 102/103: «Hoje, os autores são concordes na visão da personalidade jurídica como uma “criação do Direito”, um “expediente jurídico”, um “mecanismo técnico” ordenado a fins essencialmente práticos e limitado por esses fins».
[2] In “O Levantamento da Personalidade Colectiva”, Almedina, 2000, pp. 122 e s.
[3] In “Direito das Sociedades”, I, Parte Geral, p. 429. O mesmo Autor escreve in “Manual de Direito Comercial”, II, volume, págs. 191/192: «O atentado a terceiros verifica-se sempre que a personalidade colectiva seja usada, de modo ilícito ou abusivo, para os prejudicar. Como resulta da própria fórmula encontrada, não basta uma ocorrência de prejuízo, causada a terceiros através da pessoa colectiva: para haver levantamento será antes necessário que se assista a uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios…o abuso do instituto da personalidade colectiva é uma situação de abuso do direito ou de exercício inadmissível de posições jurídicas, verificada a propósito da actuação do visado, através duma pessoa colectiva. No fundo, o comportamento que suscita a penetração vai caracterizar-se por atentar contra a confiança legítima (venire contra factum proprium, suppressio ou surrectio) ou por defrontar a regra da primazia da materialidade subjacente […].». Ainda nesse sentido, in “Tratado de Direito Civil”, I, Tomo III, p. 648, também complementa o já aludido conceito de utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios, dizendo que «o abuso do instituto da personalidade colectiva é uma situação de abuso do direito ou de exercício inadmissível de posições jurídicas, verificada a propósito da actuação do visado, através duma pessoa colectiva».

[4] Catarina Serra [“Desdramatizando o afastamento da personalidade jurídica (e da autonomia patrimonial)”, Revista “Julgar”, nº 9, Coimbra  Editora, p. 130], preconizou que «É altura de recuperar as palavra (intemporais) de FERRER CORREIA [in “Sociedades fictícias e unipessoais”, Coimbra, 1948, pág. 325)] “[s]aber quando a ideia de separação de personalidades deva ser abandonada, em homenagem aos referidos princípios [da boa fé e do abuso do direito], é problema que só caso a caso poderá resolver-se. Terá aqui um largo papel a desempenhar o prudente arbítrio do julgador, o seu humano sentido da justiça devida às coisas – o seu bom senso. Porque, na verdade, o avaliar das consequências da distinção entre personalidade social e individual é, antes de tudo, uma simples questão de bom senso”».
[5] In “Teoria Geral do Direito Civil”, edição da AAFDL, I, 246.
[6] «Ao descaracterizar, para os efeitos que estão aqui em causa, as sociedades, o direito está a aproximar-se da vida tal como ela é, e, consequentemente, no caminho do seu próprio aperfeiçoamento» (Ac. do STJ de 12-05-2011, p. 280/07.0TBGVA.C1.S1- João Bernardo).
[7] Pais de Vasconcelos, “Teoria Geral do Direito Civil”, 2007, Almedina, 4ª ed., p. 183.
[8] Trecho do sumário do Ac. deste Tribunal de 10-05-2016 (p. 136/14.0TBNZR.C1.S1 - Fonseca Ramos), que confirmou o proferido pela RC em 03-11-2015, citado pela recorrente e relatado pelo relator do presente acórdão, cujo sentido aqui seguimos de perto.

[9] “Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades por Quotas Subcapitalizadas”, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, pp 32 e s.
[10] O Levantamento … p 105.

[11] Como lembra Catarina Serra no estudo citado, «Em Portugal, o afastamento da personalidade jurídica foi invocado pela primeira vez, tanto quanto se sabe, por FERRER CORREIA [na obra referenciada] (sete anos antes de FOLF SERIK ter baptizado e desenvolvido a teoria)» e, na jurisprudência, foi percursor o Ac. da RP de 13/5/1993 (CJ, 3º-199), relatado pelo então Desembargador Fernandes Magalhães.
[12] Professor da Universidade Federal da Bahia, em “Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica”.

[13] Em estudo denominado “Desconsideração da Personalidade Jurídica - Sinopse Doutrinária e Jurisprudencial”, publicado na revista “Julgar” nº 9, Coimbra Editora, p. 136.
[14] A p. 145 do mesmo estudo.

[15] In “A Desconsideração da personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais, Novas Perspectivas do Direito Comercial”, Livraria Almedina, Coimbra, 1988, p. 297.

[16] In “A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais” (2005, 2ª ed., Universidade Lusíada Editora), citado no Ac. do STJ de 10-01-2012 (p. 434/1999.L1.S1- Salazar Casanova).

Também Meneses Cordeiro (O levantamento … p. 107), para além da já aludida hipótese sugerida quanto ao recurso a ‘testas de ferro’, comentou assim uma situação apreciada por um tribunal alemão: «A nível de decisão considerou-se que quem fundasse uma sociedade com recurso a um testa-de-ferro (“homem de palha”...) deveria responder como se fosse sócio».
[17] P. ex., no Brasil, segundo Bárbara Barbizani Caiado “A Desconsideração da Personalidade Jurídica na Sociedade por Quotas. Uma Perspectiva Comparada entre Portugal e Brasil”), é indubitável que, face ao disposto no art. 50º do CC de 2002, está estabelecida a «teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica», regra geral no sistema brasileiro, exigindo-se, para que se recorra à desconsideração, para além da prova da insuficiência patrimonial, a demonstração do desvio de finalidade (teoria subjectiva) no comportamento dos sócios ou da confusão patrimonial (teoria objectiva) entre pessoa do sócio e ente societário.
Os requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica, na formulação subjectiva, são o abuso de direito – o seu exercício irregular ou anormal – ou a fraude ou à lei – o cumprimento apenas formal da letra da lei, mas em divergência com o espírito para a qual ela foi criada e para obtenção de fim contrário a ela (de que é exemplo a conhecida compra por interposta pessoa) – e, na formulação objectiva, a confusão patrimonial.
[18] Nesse sentido, Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil”, I, Tomo III, p. 648.
[19] Já referido na nota 16.
[20] Já identificado na nota 6.
[21] P. 1148/03.5TVLSB.S1 - Fonseca Ramos, in www.stj.pt, “Sumários”.
[22] P. 08A3991 - Paulo Sá.
[23] P. 07A1274 - Afonso Correia.
[24] P. 943/10.8TTLRA.C1 - Felizardo Paiva, ou, p. ex., nos da RL de 29-03-2012 (p.1751/10.7TVLSB.L1-2 - Teresa Albuquerque), de 11-05-2006 (7541/2005-6 - Manuela Gomes) e de 3/3/2005 (p. 1119/2005-6 - Gil Roque). Neste último, o Tribunal constatou que, quando alguém se socorre da limitação da responsabilidade em seu favor e simultaneamente em prejuízo de terceiros, realizando na prática os negócios em função do controlo que detém da sociedade, tal facto, consubstancia abuso do princípio da limitação da responsabilidade.
[25] Baptista Machado in, RLJ 117º-233.

[26] «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito». «O abuso do direito abrange o exercício de qualquer direito por forma anormal, quando à intensidade ou à sua execução de modo a poder comprometer o gozo dos direitos de terceiros e a criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito, por parte do seu titular, e as consequências que outros têm que suportar» (Ac. do STJ de 24/2/1999, BMJ 484º-246).
[27] O nosso código adopta a concepção objectiva de abuso de direito, a qual, desligando-se da intenção ou da atitude psicológica do titular do direito, dá relevância ao alcance objectivo da sua conduta, de acordo com o critério da consciência pública. «Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites» (P.LIMA e A.VARELA, CC Anot., 4ª ed. Vol. I, p. 298).
[28] Como já dissemos, também aqui, apenas relevará o alcance objectivo da conduta censurada pela recorrente, de acordo com o critério da consciência pública. A boa-fé pode ser vista como um estado de espírito que se exprime pelo convencimento da ignorância da ilicitude de certo comportamento ou como exigindo que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros. «(...) a doutrina moderna, sobretudo a alemã, tem elaborado, com base na jurisprudência dos tribunais, uma série de “hipóteses típicas” ou “figuras sintomáticas” concretizadoras da cláusula geral da boa fé» (v. J. COUTINHO de ABREU, Do Abuso do Direito, p. 59 e 60). HEINRICH E. HORSTER (A Parte Geral do CC Português, pp 284 e ss) destaca como algumas dessas hipóteses: «O “venire contra factum proprium” (ou comportamento contraditório), onde foi adoptado pelo titular do direito um comportamento positivo no sentido de não querer exercer o mesmo, tendo esta atitude como consequências as correspondentes disposições da outra parte...»; «a perda do direito (“Verwirkung”)», correspondendo, aproximadamente, à caducidade, quando o titular do direito não invoca o mesmo durante bastante tempo; «a exigência injustificada...»; «um comportamento desleal...»; «a inobservância dos princípios gerais das obrigações...».
[29] O fim social e económico do direito é a função instrumental própria do direito, a justificação da respectiva atribuição pela lei ao seu titular.
[30] RUI de ALARCÃO, Direito das Obrigações. Polic., Coimbra ,1983, pp. 108 e ss.