Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
789/18.0T8VNG.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: CASO JULGADO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO
CASO JULGADO FORMAL
CASO JULGADO MATERIAL
Data do Acordão: 09/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / CONTESTAÇÃO / EXCEÇÕES / SENTENÇA / EFEITOS DA SENTENÇA.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração – Artigos 1.º a 702.º, Coimbra, Almedina, 2018, p. 657, 661, 662 e 696;
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018, 5.ª edição, p. 127;
- Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, 2.ª edição, p. 308-309, 715;
- José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, Coimbra, Almedina, 2018, 3.ª edição, p. 657, 754-755;
- Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, p. 306-307.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 581.º, 619.º E 620.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 12-07-2011, PROCESSO N.º 129/07.4TBPST.S1, IN WWWW.DGSI.PT;
- DE 30-03-2017, PROCESSO N.º 1375/06.3TBSTR.E1.S1;
- DE 22-06-2017, PROCESSO N.º 2226/14.0TBSTB.E1.S1.
Sumário :
I. Pelo facto de o tribunal a quo ter apreciado a questão da autoridade do caso julgado e, decidindo pela sua procedência, absolvido os réus do pedido, não fica o tribunal de recurso necessariamente impedido de considerar verificada a excepcão dilatória de caso julgado e absolver os réus da instância.   

II. Para efeitos da excepção de caso julgado, a identidade de pedidos pode ser parcial, bastando que o pedido formulado na segunda acção esteja contido ou englobado no pedido formulado e decidido na acção anterior.

III. Para efeitos da excepção de caso julgado, a identidade de causas de pedir não pressupõe uma absoluta coincidência das causas de pedir, bastando que os factos que integram o núcleo essencial das normas jurídicas que se pretendem aplicáveis na segunda acção estejam entre os invocados e apreciados na acção anterior.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. RELATÓRIO

1. Na acção com processo declarativo e forma comum n.º 789/18.0T8VNG, do Juízo Local Cível de …, em que são autores AA e mulher BB e réus CC, DD, EE, FF e GG, pretendem os autores:

- que se declare que são donos e legítimos proprietários de um terreno a lavradio, com testada de mato, que é parte do denominado “HH”, com a área de 4310m2, situado na freguesia de …, concelho de …, e com as confrontações que constam do artigo 3º da petição inicial, que é parte do então inscrito na matriz predial rústica sob os artigos 2…6º e 2…7º e agora sob o artigo 14º da matriz predial rústica de …, e é parte do actualmente descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 006…7/19…7-…;

- que se condenem os réus a reconhecer aos autores o direito de propriedade plena da referida parcela, e consequentemente ordenar-se a abertura de descrição própria e inscrição dela a favor dos autores na 2ª Conservatória do Registo Predial de … .

Alegam, em síntese, os autores que, nas deslocações que faziam a Portugal (pois residem em …), negociaram com II, e efectivamente adquiriram, por contrato verbal, uma parte de um terreno a lavradio, com videiras, água de rega e lima, e água do … e mais pertenças, com testada de mato, denominado “HH”, situado em ..., freguesia de …, concelho de …, a confrontar do Norte com herdeiros de JJ, do Sul com caminho de servidão, do Nascente com Estrada e do Poente com o Rio …, que foi inscrito na matriz predial rústica sob os artigos 2…6º e 2…7º, e não descrito na Conservatória do Registo Predial de …, que vieram a comprar de forma titulada por escritura pública outorgada em 15/10/1980.

No acto e em simultâneo com a outorga da predita escritura, receberam do II a parte do prédio em causa, o que foi confirmado pela 1ª ré CC ainda em vida do II.

Desde a celebração da escritura e depois da decisão proferida na acção judicial que identificam, os Autores passaram a usar, gozar e fruir da referida parcela do imóvel, por si e legítimos antecessores, há mais de 5, 10, 15, 20, 25 e 30 anos, e mesmo desde tempos imemoriais, pelo que se outro título não houvesse o teriam adquirido por usucapião.

Apesar de na escritura constar a totalidade do prédio, o autor acordou com o vendedor proceder ao destaque e restituição da área restante do prédio ao vendedor ou a quem este indicasse.

Em sede de contestação, contrapõem os 1.º a 4.º réus que os autores adquiriram o prédio por compra a KK e os réus propuseram acção com vista à declaração de simulação da anterior transmissão a favor dessa KK, e foi efectivamente declarada a nulidade dessa transmissão, por simulação.

Alegam ainda os réus que, posteriormente, os autores propuseram contra eles acção que correu termos sob o n.º 13907/07.5TBVNG do 3º Juízo Cível de …, a pedir: a) declaração de nulidade da partilha efectuada por óbito de II, quanto ao prédio em questão; e b) reconhecimento de que os autores são dele proprietários; c) a condenação dos réus a pagar-lhes uma indemnização.

Nessa mesma acção os réus defenderam-se e deduziram pedido reconvencional, concluindo pela procedência parcial da acção, apenas quanto à restituição do preço constante da escritura (em que os autores foram compradores do prédio) e pela procedência do pedido reconvencional com a declaração de nulidade do contrato em que os autores compraram o prédio a KK.

2. Apreciadas as alegações, decidiu o Tribunal de 1.ª instância, em sentença proferida em 3.10.2018, absolver os réus do pedido, “[j]ulgando verificado o efeito preclusivo decorrente da sentença – transitada em julgado – proferida na acção que correu termos sob o n.º 13907/07.5TBVNG do 3.º Juízo Cível de …. com base na violação da AUTORIDADE DE CASO JULGADO”.

3. Não se conformando com esta decisão, os autores interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a revogação da sentença, por inexistência da autoridade de caso julgado, e o consequente prosseguimento dos autos.

4. Apreciadas as alegações, o Tribunal da Relação do Porto proferiu, por sua vez, um Acórdão, julgando improcedentes as alegações de apelação e julgando procedente a excepção dilatória de caso julgado, e, consequentemente, absolvendo os réus da instância. Decide-se aí, mais precisamente: “[n]a improcedência do recurso de apelação, julga-se procedente a excepção de caso julgado e, em consequência, absolvem-se os Réus da instância”.

5. Não se conformando, mais uma vez, com esta decisão, os autores recorrem para o Supremo Tribunal de Justiça, pugnando pela revogação do Acórdão recorrido e pelo prosseguimento dos autos. Concluem assim as suas alegações:

1a- O recurso é interposto do douto acórdão recorrido o qual, ao considerar verificado o efeito preclusivo decorrente da sentença transitada em julgado e proferida na ação que correu termos sob o n.º 13907/07.5TBVNG do 3º Juízo Cível de … com base na verificação da exceção do caso julgado, decidiu, entre o mais, absolver os réus da instancia, e assim, deliberou pela improcedência da apelação.

2a- É questão a conhecer (i) a violação do disposto no nº1 do artigo 620º do C.P.C. contida no douto acórdão recorrido do caso julgado formal constituído pela douta sentença de 1ª instância quanto à verificação da exceção do caso julgado, e (ii) da exceção do caso julgado (que não da autoridade do caso julgado), proveniente da sentença transitada em julgado, proferida no processo que correu termos sob o n.º 13907/07.5TBVNG do ex-3º Juízo Cível de Vila Nova de Gaia.

3a- O tribunal somente pode apreciar e decidir as questões de conhecimento oficioso, desde que não tenham ainda sido decididas, sob pena de, fazendo-o, violar o caso julgado formal formado por essa decisão, tal como consignado no nº1 do artigo 620º do C.P.C.

4a- Os aqui réus e recorridos invocaram, nos pontos 15° e 16° da sua contestação de 10-05-2018, a exceção do caso julgado quanto ao apreciado e decidido na ação nº13907/07.5TBVNG do ex-3º Juízo Cível de …, sendo certo que a sentença de 1ª instância dos presentes autos afastou a exceção do caso julgado, e julgou verificada a autoridade do caso julgado, decisão com a qual os ora recorrentes, mas também os ora recorridos se conformaram, pelo que essa questão - verificação ou não da exceção do caso julgado - mostra-se apreciada e decidida e transitou em julgado.

5a- O distinto aresto em crise, porém, entendeu “reapreciar” essa mesma questão da verificação ou não da exceção do caso julgado, e deliberou pela sua verificação, incorrendo, pois na violação do caso julgado formal a que alude o citado no 1º do artigo 620º do C.P.C.

6a- Há identidade de pedido quando em causas diferentes a parte ativa pretende uma sentença com idêntico efeito jurídico para um mesmo e determinado bem jurídico, sendo certo que o efeito jurídico pretendido nesta ação - aquisição originária de uma parcela de um prédio numa ação constitutiva - é distinto e diverso daquele outro efeito jurídico da ação n° 13970 acima identificada - nulidade parcial de um contrato em ação declarativa, em virtude da aquisição derivada proveniente de uma escritura de compra e venda.

7a- O nº 4 do artigo 581º do C.P.C. alude a um conceito restrito de causa de pedir que apenas compara os factos principais de duas causas, pelo que as diferenças ao nível dos factos complementares invocados não são consideradas.

8a- Há identidade de causas de pedir quando os factos principais das duas causas são idênticos, sendo certo que os factos principais desta ação são aqueles que integram a posse tal como caracterizada pelos recorrentes de parte do imóvel em crise, conducentes a essa aquisição originária, e os factos principais da ação 13907 são aqueles que integram a alegada nulidade parcial da escritura de partilha efetuada por óbito de II, designadamente aqueles integradores do esgrimido contrato de compra e venda que o autor marido, representado pelo seu procurador, celebrou por escritura publica de 15-10-1980 com KK, outorgada no Cartório Notarial de … e lavrada a fls. 49 verso e 50 verso, do Livro 35 D, razões pelas quais as causas de pedir são distintas e diversas;

9a- Mostra-se afastada a convocada exceção do caso julgado face a inexistência de identidade entre as causas de pedir, e face à inexistência de identidade entre os pedidos, daquela outra ação nº 13907/07.5TBVNG do ex-3º Juízo Cível de … no confronto com a dos presentes autos, pelo que esta exceção deve improceder, ordenando-se o prosseguimento dos autos”.

6. Os réus contra-alegaram. Pugna, por seu turno, pela improcedência do recurso e, prevenindo a hipótese de ele proceder, requerem a ampliação do objecto do recurso, nos termos do artigo 636.º do CPC, com vista à apreciação da autoridade de caso julgado.

São as seguintes as conclusões das suas alegações:

A) - Deverá ser negado provimento ao recurso;

B) - Entendendo-se que têm os Recorrentes razão deverá ser ampliado o âmbito do recurso, e analisado o fundamento invocado em 1ª instância pelos RR. e com base no qual a sentença então proferida decidiu: a autoridade do caso julgado;

C) - Na anterior acção foi também alegada pelos AA. a usucapião, e os factos que a sustentavam;

D) - Foi igualmente alegada a usucapião (e a respectiva factualidade) pelos RR.;

E) - O Tribunal deu como provada a usucapião alegada pelos RR., e como não provada a usucapião e os respectivos factos, alegados pelos AA.;

F) - Pretendem os AA. com esta acção uma nova apreciação dos mesmos factos já apreciados naquela acção por forma a obter uma decisão diferente;

G) - Porém, essa sua pretensão constitui ofensa de caso julgado, e não é permitida por lei, nos termos dos arts. 619º e 621º do Código do Processo Civil”.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a enunciar e a responder são:

1.ª – saber se, ao pronunciar-se sobre a excepção de caso julgado, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 620.º, n.º 1, do CPC (caso julgado formal);

2.ª – saber se se verifica a excepção de caso julgado.

Na hipótese de se responder negativamente a ambas as questões e ainda na hipótese de se responder afirmativamente à primeira (em que fica precludida a apreciação da 2.ª questão), haverá que apreciar uma 3.ª questão, decorrente do pedido de ampliação do objecto do recurso formulado pelos recorrentes, sobre a autoridade de caso julgado.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1 - Da consulta à acção com o n.º 13907/07.5TBVNG do 3º Juízo Cível de … decorreu que:

Os autores pretendiam, por via dessa acção, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel que descreviam como descrito na 2ª Conservatória do Registo de Predial de … sob o n.º 940 da freguesia de …, para tanto invocando, ademais, a sua aquisição originária, afirmando que o haviam declarado comprar por escritura outorgada em 15/10/1980 a II, que o havia declarado vender, ainda que representado por terceiro.

Os factos constitutivos da aquisição originária do direito de propriedade dos autores sobre o referido imóvel foram considerados não provados – artigos 13º e 14º da petição inicial e despacho sobre a matéria de facto de fls. 456 e seguintes p.p.

Em sede de sentença, decidiu-se absolver os réus do pedido referido, apenas se julgando procedente a pretensão dos autores de declaração de nulidade do contrato de compra e venda em causa, que também é referido na presente acção, com a consequente restituição àqueles do preço – fls. 463 e seguintes p.p., fazendo-se constar dos fundamentos de direito daquela sentença que “(…) atenta a matéria de facto dada como provada, verifica-se que os autores não lograram provar, como lhes competia, qualquer factualidade susceptível de integrar a prática de um qualquer acto de posse sobre o terreno id. no contrato de compra e venda de fls. 15 a 18”. “Em face do exposto, não se vislumbra que os pinheiros cortados a mando da primeira ré ofendam qualquer direito de ordem patrimonial por parte dos autores”.

O terreno identificado no contrato de compra e venda de fls. 15 a 18 desses autos é o seguinte: terreno a lavradio, com videiras, água de rega e lima e água do … e mais pertenças, com testada de mato, denominado “HH”, situado na freguesia de …, concelho de …, inscrito na matriz predial rústica sob os artigos 2…6º e 2…7º, que veio a ser registado na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 940 da freguesia de … – fls. 15 a 18 p.p. desses autos.

2 - Foi também considerado provado nessa sentença que:

Desde a data do falecimento do II, a primeira R. sempre explorou a quinta (ou propriedade mista), tal como está referida no inventário, em toda a sua extensão, com inclusão do terreno vendido aos AA. (que não sabia nem sabe que limites tem, e que não sabia, sequer que tinha sido vendida).

Desde 1980, primeiro como cabeça de casal e de seguida como proprietária com os seus filhos, sempre a R. exerceu a posse nos actos que a integram, quanto a toda a propriedade mista, sem exclusão de qualquer parcela vendida.

Fê-lo sempre à luz clara do dia, com conhecimento dos vizinhos, que a consideravam, com os filhos, dona da totalidade do prédio misto ou quinta, no decurso de 17 anos ininterruptos, sem a oposição de ninguém, só surgindo a oposição dos AA. na data referida supra.

O prédio rústico com o n. 14 englobou terreno vendido aos AA. (cuja configuração ninguém é capaz de dizer como é), sendo que, desse terreno, nem havia registo na Conservatória.

3- A sentença referida foi proferida em 2/10/2009 e transitou em julgado.

O DIREITO

Antes de se abordar as questões esclarece-se que a razão pela qual a dupla conforme não obsta ao presente recurso não é a diversidade da fundamentação das decisões, como entendem os recorrentes, mas sim a diversidade das decisões proferidas pelas duas instâncias.

Com efeito, apesar da improcedência da apelação, o Tribunal da Relação não confirmou a decisão do Tribunal de 1.ª instância, tendo absolvido os réus, não do pedido, mas da instância.

Concentrando agora a atenção nas duas questões que são objecto do presente recurso, salta à vista que ambas se prendem com o significado e o alcance do caso julgado. As palavras introdutórias que se seguem servem, portanto, a ambas.

Como ensina Manuel de Andrade, o caso julgado (fórmula abreviada de “caso que foi julgado”) encontra a sua razão de ser na necessidade de salvaguarda do prestígio dos tribunais e da certeza e da segurança jurídicas Cfr. Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, pp. 306-307..

Na expressão “caso julgado” cabem, em rigor, a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado, muitas vezes designadas, respectivamente, como a “vertente negativa” e a “vertente positiva” do caso julgado Além de ser utilizada na doutrina, a distinção é habitual na jurisprudência. Cfr., por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.03.2017, Proc. 1375/06.3TBSTR.E1.S1, e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 22.06.2017, Proc. 2226/14.0TBSTB.E1.S1..

A excepção de caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer uma decisão anterior. Nesta vertente, o caso julgado compreende limites (subjectivos e objectivos): pressupondo o caso julgado uma repetição de causas, a repetição pressupõe, por sua vez, identidade dos sujeitos, identidade do pedido e identidade da causa de pedir (cfr. artigo 581.º do CPC)

Ao lado da excepção de caso julgado assente sobre a decisão de mérito proferida em processo anterior, existe a excepção de caso julgado baseada em decisão anterior proferida sobre a relação processual. À primeira chama-se “caso julgado material” e está regulada no artigo 619.º do CPC e à segunda chama-se “caso julgado formal” e está regulada no artigo 620.º do CPC.

Tanto o caso julgado material como o caso julgado formal pressupõem o trânsito em julgado da decisão. No entanto, enquanto o caso julgado formal tem apenas força obrigatória dentro do processo em que a decisão é proferida, o caso julgado material tem força obrigatória não só dentro do processo como, principalmente, fora dele Salientando este facto cfr. Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985 (2.ª edição), pp. 308-309..

Por seu turno, a autoridade de caso julgado tem o efeito de impor uma decisão e por isso constitui a “vertente positiva” do caso julgado. Diversamente da excepção de caso julgado, a autoridade de caso julgado funciona independentemente da verificação daquela tríplice identidade mas nunca pode impedir que se volte a discutir e dirimir aquilo que ela não definiu. Por outras palavras, e como se depreende do disposto nos artigos 91.º e 581.º do CPC, a autoridade do caso julgado abrange a decisão contida na sentença bem como, em certos termos, os seus fundamentos. A eficácia do caso julgado não se limita, de facto – saliente-se –à decisão final. Na realidade, “[e]mbora se aceite que a eficácia de caso julgado não se estende aos motivos da decisão, é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado” Cfr. Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, cit., p. 715 (itálicos dos autores). .

Depois destes breves esclarecimentos sobre o sentido da expressão “caso julgado”, compreendendo a distinção entre a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado, é possível responder á 1.ª questão¸ que é a de saber se ao pronunciar-se sobre a excepção de caso julgado, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 620.º, n.º 1, do CPC (caso julgado formal).

Alegam, como se viu, os recorrentes que o Tribunal de 1.ª instância já se havia pronunciado (em sentido negativo) sobre a excepção de caso julgado, pelo que, ao pronunciar-se (em sentido afirmativo), o Tribunal da Relação estaria a violar o caso julgado formal constituído por aquela primeira decisão.

Como é sabido, a excepção de caso julgado é uma das excepções dilatórias previstas no elenco (não taxativo) no artigo 577.º do CPC, mais precisamente, na sua al. i). E as excepções dilatórias, porque resultantes da “violação de regras relativas a pressupostos processuais ou a requisitos de ordem técnica”, são, em princípio, objecto de controlo oficioso pelo tribunal, nos termos do artigo 578.º do CPC Cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração – Artigos 1.º a 702.º, Coimbra, Almedina, 2018, p. 657.. Significa isto que, independentemente de a questão ser suscitada pelas partes, o tribunal tem o poder e o dever de dar por verificada a excepção dilatória sempre que considere que alguma excepção dilatória se verifica. Trata-se de uma manifestação do princípio jura novit curia (artigo 5.º, n.º 3, do CPC).

Os recorrentes afirmam que, em concreto, o Tribunal recorrido estava impedido de se pronunciar sobre a questão por a questão ter sido suscitada pelos réus / ora recorridos na contestação e existir sobre ela uma prévia decisão do Tribunal de 1.ª instância, que formava caso julgado. Não lhes assiste, porém, razão.

Diga-se, primeiro, que a questão suscitada na contestação pelos réus / ora recorridos, tal como a entendeu o Tribunal de 1.ª instância, foi a da autoridade de caso julgado. Veja-se, em confirmação o que se diz, na sentença: “importa precisar que os réus suscitaram a questão da violação da AUTORIDADE DE CASO JULGADO (acção que correu termos sob o n.º 13907/07.5TBVNG do 3º Juízo Cível de Vila Nova de Gaia), porque naquela acção já os autores tinham invocado a aquisição do prédio por usucapião; aliás, nessa acção ambas as partes invocaram a usucapião relativamente ao terreno em questão e o Tribunal deu como não provado a usucapião alegada pelos autores e como provada a usucapião alegada pelos réus”. Foi, portanto, só à questão da autoridade do caso julgado que o Tribunal respondeu.

Vêm a propósito as palavras de José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre deixadas em anotação ao artigo 621.º do CPC (alcance do caso julgado): “[a] determinação do âmbito objectivo do caso julgado postula a interpretação prévia da sentença, isto é, a determinação exacta do seu conteúdo ('dos seus precisos termos e limites'). Releva, nomeadamente, para o efeito, a leitura que a sentença faça sobre o objecto do processo, isto é, sobre os pedidos formulados pelo réu e pelo autor reconvinte: o caso julgado tem a extensão objectiva definida pelo pedido e pela causa de pedir (…) mas não é indiferente a interpretação que o próprio tribunal faça de um e de outra (…) é sobre a definição do objecto do processo assim feita que se forma o caso julgado Cfr., por exemplo, José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre [Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º - Artigos 362.º a 626.º, Coimbra, Almedina, 2018 (3.ª edição), pp. 754-755..

Nem se diga que da resposta à questão da autoridade de caso julgado se pode induzir uma resposta (implícita) à questão da excepção de caso julgado. Existe um consenso alargado quanto ao facto de o caso julgado se formar apenas relativamente a excepções dilatórias que tenham sido concretamente apreciadas e nos limites dessa apreciação, não valendo como caso julgado sequer a declaração (expressa) genérica, no despacho saneador, sobre a ausência de alguma ou da generalidade das excepções dilatórias Cfr., por exemplo, José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre [Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º - Artigos 362.º a 626.º, cit., p. 657, e Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração – Artigos 1.º a 702.º, cit., p. 696.. Ora, é impossível dizer que, à margem daquela questão da autoridade de caso julgado, o Tribunal tenha apreciado em concreto a excepção dilatória de caso julgado e muito menos decidido em concreto sobre a sua (não) verificação.

Improcede, portanto, a alegação do obstáculo do caso julgado formal decorrente do n.º 1 do artigo 620.º do CPC.

Tendo respondido negativamente a esta questão, pode passar-se à seguinte, que é, justamente, a de saber se se verifica a excepção de caso julgado.

Os recorrentes alegam que não existe a excepção de caso julgado porque não existe identidade de pedido nem identidade de causa de pedir. Tão-pouco aqui lhes assiste razão.

Como se viu acima, a excepção de caso julgado pressupõe a tríplice identidade: de partes, de pedidos e de causas de pedir em ambas as acções (artigo 581.º do CPC).

Existirá identidade de sujeitos sempre que existir identidade física ou nominal e ainda “quando as partes sejam as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica Cfr. Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração – Artigos 1.º a 702.º, cit., p. 661..

A identidade de pedidos “afere-se pela circunstância de em ambas as acções se pretender o mesmo efeito prático-jurídico” Cfr. ob. cit., loc. cit..

A identidade de causas de pedir “verifica-se quando as pretensões deduzidas nas ações derivam do mesmo facto jurídico, analisado à luz da substanciação consagrada no n.º 4 [do artigo 581.º]” Cfr. Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração – Artigos 1.º a 702.º, cit., p. 662. O n.º 4 do artigo 581.º do CPC dispõe: “[h]á identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido”..

Sendo indiscutível que se verifica, in casu, a identidade de sujeitos, concentre-se a atenção nas restantes exigências.

Mantendo presente que o objectivo do caso julgado é impedir a repetição de decisões, compreenda-se, desde logo, que a exigível identidade de pedidos não implica uma absoluta coincidência dos concretos pedidos, ou seja, não implica que o pedido feito na ação proposta em segundo lugar corresponda exactamente ao pedido feito na ação proposta em primeiro lugar. Para efeitos da excepção de caso julgado, não interessa, assim, que a extensão do pedido formulado e decidido na primeira acção seja maior do que o formulado na segunda; basta que possa considerar-se que o pedido formulado na segunda acção está contido, incluído ou englobado no pedido formulado e decidido na primeira. Numa palavra: a identidade de pedidos pode ser parcial Cfr. Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração – Artigos 1.º a 702.º, cit., pp. 661-662..

Mantendo sempre presente que o objectivo do caso julgado é impedir a repetição de decisões, compreenda-se, depois, que a exigível identidade de causas de pedir não implica uma absoluta coincidência das causas de pedir concretamente invocadas, sendo suficiente que os factos que integram o núcleo essencial das normas jurídicas que se pretendem aplicáveis na segunda acção já tenham sido invocados na acção anterior, ainda que a par de outros factos e em posição instrumental relativamente a eles.

Ora, aquilo que resulta dos factos provados é que:

a) na presente acção os autores pretendem o reconhecimento de um direito de propriedade sobre uma parcela do mesmo prédio sobre o qual os autores pretendiam que lhes fosse reconhecido um direito de propriedade na acção que correu termos sob o n.º 13907/07.5TBVNG (cfr. facto provado sob o n.º 1);

b) na presente acção a causa de pedir é a usucapião assente na entrega e na posse do imóvel durante certo lapso de tempo, sendo que na acção que correu termos sob o n.º 13907/07.5TBVNG o Tribunal absolveu os réus do pedido, fazendo constar dos fundamentos de direito da sentença que “(…) atenta a matéria de facto dada como provada, verifica-se que os autores não lograram provar, como lhes competia, qualquer factualidade susceptível de integrar a prática de um qualquer acto de posse sobre o terreno id. no contrato de compra e venda de fls. 15 a 18” e dos fundamentos de facto que, desde 1980, sempre tinha sido a primeira ré a deter, em exclusivo, a posse sobre o referido terreno (cfr. factos provados sob os n.ºs 1 e 2).

Quer dizer: sendo sempre necessário, como se viu atrás, proceder à interpretação do conteúdo da sentença, incluindo os fundamentos que aí se apresentem como pressupostos da decisão Cfr., neste sentido, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.07.2011, Proc. 129/07.4TBPST.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt)., conclui-se que, para efeitos de caso julgado, o objecto processual é o mesmo em ambas as acções Valem aqui, mais uma vez, as palavras de José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre reproduzidas acima: o caso julgado forma-se sobre o objecto do processo tal como definido pelo tribunal..

Não merece, portanto, censura o Tribunal a quo quando considerou procedente a excepção de caso julgado e absolveu os réus da instância.

Os recorridos pediam que, no caso de a revista obter provimento, fosse ampliado o objecto do recurso para apreciação do fundamento da decisão do Tribunal de 1.ª instância, ou seja, a autoridade do caso julgado. Atendendo, no entanto, a que aquela condição não se verificou, fica prejudicada a apreciação deste seu pedido Como explica, em anotação ao artigo 636.º do CPC, Abrantes Geraldes [Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), p. 127]: “apenas fará sentido apreciar as questões suscitadas se porventura forem acolhidos os argumentos arrolados pelo recorrente (ou que oficiosamente forem conhecidos) com repercussão na modificação da decisão recorrida”..


*

III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


*

Custas pelos recorrentes.


*

LISBOA, 19 de Setembro de 2019

Catarina Serra (Relatora)

Bernardo Domingos

João Bernardo